Mar de Canal

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Henrique de Jesus Teixeira de Sousa Caldas da Rainha, 13 de Outubro de 2020 Mar de Canal Poucos dias depois do recomeço das aulas, tinha eu entrado no 3.º ano do liceu, perguntaram-me lá em casa como é que as coisas estavam a decorrer, se gostava ou não das disciplinas do novo ciclo, se gostava dos novos colegas, etc.. Haveria mais turmas do 3.º ano, mas eu tinha sido colocado numa turma mista, de rapazinhos a entrar na puberdade e meninas mais velhas, algumas delas repetentes crónicas. Possivelmente, na elaboração das turmas fomos aquele “resto” que não se consegue meter em turmas sexualmente uniformes como era normal nesse tempo e, mediante alguma eventual autorização especial, surgiu então essa turma de “restos”. Apesar disso, os rapazes tinham que ir, nos intervalos, para o pátio de terra das traseiras, enquanto as meninas ficavam nas varandas ou no pátio interiores. E lá íamos então brincar à “apanhada” no pátio de terra sob a vigilância do Nhô Djunga, regressando depois à sala de aula todos transpirados e cheios de terra. Eu respondi que sim, que estava a gostar das matérias, dos colegas e dos professores. E aproveitei essa oportunidade para dizer que gostaria de passar a usar calças compridas e não aqueles calções ridículos de caqui, do género dos que também se usava na mocidade portuguesa. Mas também referi que durante as aulas tinha muita comichão na cabeça e quando me coçava caíam uns bichinhos muito pequeninos para cima do caderno… Foi neste ponto da narrativa que a minha mãe soltou um grito de pânico e veio imediatamente inspeccionar a minha cabeça! Fiquei alarmado com a reacção dela; tanto mais que, após a tal breve inspecção, ela exclama: “Virgem Maria, estás infestado com piolhos!” Não é que eu nunca tivesse ouvido falar de piolhos porque na escola primária a maior parte dos meus colegas andava de cabeça rapada para não apanhar piolhos... Mas, pela reacção da minha mãe, comecei a pensar que seria uma doença incurável e o pior é que, se calhar, já não poderia ir às aulas para não contaminar os meus colegas. De seguida, a minha mãe mandou a empregada à Farmácia Nena buscar uma pomada para me aplicar na cabeça. Afinal a coisa resolveu-se depressa, no dia seguinte já não tinha piolhos. Não só isso, como também, a partir desse dia, vi reconhecido o meu direito de usar calças compridas. Mas fiquei a matutar sobre os piolhos, não percebi logo como e onde teria sido contaminado… O meu colega de carteira, o Focá, não me contaminou de certeza porque ele usava o cabelo curto e não o via coçar-se como eu… Comecei então a rebobinar e a pensar nas férias que tinha acabado de passar no Fogo, grande parte delas no campo para fugir ao calor abrasador da Vila. A viagem de ida decorreu sem sobressaltos, num barco azul que salvo erro era o Neptuno, e desembarcámos na Fonte da Vila, pois ainda não existia o cais de Vale dos Cavaleiros. O barco fundeou ao largo, os botes já andavam por perto à espera de encostar para levar passageiros e carga para a praia. O primeiro bote a atracar foi o do Patrão-Mor que, depois de cumpridas as formalidades, autorizou o desembarque. A passagem do barco para o bote era feita com as necessárias cautelas, esperando-se pelo momento propício e só quando tínhamos instruções explícitas é que saltávamos para o bote, auxiliados pelos remadores. Quando o bote ficava carregado, partia em direcção à terra, impulsionado pelos braços fortes e experientes dos remadores.


À chegada à praia, o bote aguardava, naquela zona antes da rebentação, pelo momento apropriado para se aproximar, momento esse em que rapidamente os fortíssimos e valentes braçais, com água pelos ombros, nos raptavam e levavam, às cavalitas, para terra. Após o desembarque, atravessámos a praia a pé, pela areia negra escaldante, até chegar ao local onde alguns carros velhos aguardavam para levar as pessoas à Vila por aquela estrada íngreme, com os motores em esforço máximo. Enfim, lá chegámos à casa da avó Aline, que nos aguardava à varanda. Subimos, cumprimentámos, instalámo-nos e sentámo-nos a comer aquela primeira refeição que tão bem nos soube, após a estafa da viagem. Poucos dias depois da chegada a São Filipe, a minha avó acerta a nossa mudança para o Brandão com o Djonzinho d’Nhô Padre que tinha um dos poucos carros do Fogo. No Brandão era onde a avó Aline passava a maior parte do seu tempo depois da morte do nosso avô Aníbal, no ano anterior. Só me lembro dela vestida de preto, dos pés à cabeça. Penso até que nunca mais largou essa vestimenta que se tornou hábito, mesmo após o luto. A vida lá no Brandão era, para uma criança de hoje, uma sensaboria. Mas eu e os meus irmãos soubemos tirar partido daquela liberdade, calcorreando cutelos e ribeiras, e aprendendo com as outras crianças coisas diferentes daquelas que aprendíamos em S. Vicente: fazer armadilhas para chinchirotes, montar burros, fazer cordas de carapate e com elas fazer fundas com que se espantava os pássaros dos campos semeados… “Ahhh, ladrão!”, e a pedra zunia nos ares em direcção aos pássaros. À tardinha, íamos à pequena loja do tio Vivico, situada à entrada do Brandão, e onde os homens que durante o dia andaram a labutar, ficavam a espairecer e a tomar um groguinho na agradável companhia do dono da loja que também bebia uns copitos com eles. Ele até comentava connosco que o melhor cliente da sua loja era ele mesmo. Não raramente, juntavam-se na loja alguns músicos locais com os seus violões e cavaquinhos para animar o convívio. Um desses músicos era o Henrique Tchatchá! Quando nos conheceu e soube que éramos filhos da terra, revelou-nos que tinha brincado muito com o nosso pai e contou-nos algumas das tropelias deles nas noites de Lapa Cavalo. Que uma vez levaram uma grafonola numa padiola e, escondidos atrás de uma purgueira, puseram-se à espera que alguém passasse. Quando pressentiam a passagem de alguém punham a tocar um disco de gargalhadas, disco esse que o meu avô paterno trouxera da América numa das suas viagens; e muito se divertiam eles ao ver as pessoas a fugir com medo das almas do outro mundo… De entre as composições do Henrique Tchatchá, duas ficaram-me na memória: Nhô Dimingo Bom Dia e A Mocidade do Rei Henrique. A última delas era uma sucessão de títulos de livros de uma lista que ele encontrou na contracapa de um livro: A Mocidade do Rei Henrique, O Favorito da Rainha, Andou Rebanho à Lua Envenenada, Era Um Crime da Mocidade, Mulher que Nasceu do Amor… Etc., etc.. E as férias foram decorrendo animadamente, com a minha avó a encher-nos de mimos. Ai aquele pequeno almoço com leite dormido, papas de milho, queijo de cabra, frutas e café; ai as refeições de bongolão, xerém com fava, cachupa, carne de porco, torresmos, galinha, ovos... Por vezes o meu tio caçava uma galinha do mato (galinha Guiné) ou trazia algum pedaço de atum ou peixe da Vila para o jantar. Um dia fui com ele à caça e fiquei fascinado com o “fuzil” e com a possibilidade de poder caçar também. Fiquei à coca para ver onde ele guardava a arma e, sem ninguém ver, surripiei a caçadeira e carreguei-a com dois cartuchos. Meti-me pelo mato e lá fui tentar a minha sorte. Depois de algum tempo à espera, apareceram umas galinhas do mato. Apontei, puxei o gatilho mas… nada! A espingarda não disparou! Segunda tentativa e... também nada! Pensei para comigo que o cartucho não devia estar bom e regressei. Vinha eu de caçadeira apontada para o chão mas engatilhada,


quando acidentalmente carreguei no gatilho e Bumm! Dessa vez disparou, a arma maldita! Como fui apanhado de surpresa, apanhei um susto enorme e, a tremer, levei o “fuzil” para o seu esconderijo e nunca mais mexi nele! Ninguém deu por nada e a minha sorte foi não ter levado um tiro nos pés! Sem rádio ou cinema, depois de ouvir algumas histórias dos tempos antigos que a minha avó ou o meu tio às vezes contavam, íamos cedo para a cama à luz das velas ou dos candeeiros. Mas o meu tio, no quarto de quem nós dormíamos, ligava um rádio a válvulas que ele tinha sobre a mesa de cabeceira, alimentado a bateria e um conversor, e punha-se a ouvir, em ondas curtas, várias rádios internacionais. BBC, Voz da América e até a rádio Moscovo que tinha também emissão em brasileiro: “Os movimentos de libertação das colónias portuguesas”, “O presidente Johnson que sucedeu a J. F. Kennedy”, “O príncipe do Cambodja, Norodom Sihanouk”, “Nikita Khrushchov” eram algumas das coisas que me lembro de ter ouvido na altura. E lá se foram passando as férias e o dia do regresso aproximava-se, para mal dos nossos pecados. No final de Setembro regressámos à Vila para nos fazermos de novo ao mar. Havia sempre aquela espera de alguns dias pois nunca sabíamos ao certo quando seria a viagem porque dependia dos barcos que passassem ou não por S. Filipe. Um belo dia disseram-nos que vinha a caminho o barco Maria Sony e seria nesse que nós íamos regressar, a tempo do começo das aulas. Chegou o dia da viagem. Arrancámos para a Fonte Vila depois do almoço, o barco ia partir ao entardecer. O embarque fez-se sem problemas, porque não me lembro de quaisquer peripécias. É possível que o mar estivesse calmo. Aliás, estava mesmo porque ficou-me a imagem do Maria Sony ali ao largo, de proa apontada para Norte, com o seu belo casco pintado de preto e branco a flutuar num mar calmo. Tive a sensação que ia ser uma viagem maravilhosa. Chegados a bordo, indicaram-nos os nossos beliches e tratámos de nos acomodar. Mas enquanto o barco continuava a carregar, ficámos pelo convés a assistir à azáfama. Sacos e mais sacos iam enchendo o porão, quiçá com café, mancarra, batata, eu sei lá. Cestos de boca cozida com sarapilheira, malas de porão e outras, era preciso rentabilizar essas viagens. Quando o barco partiu era ainda dia. Não me lembro dos preparos da partida, mas lembro-me do capitão Armando a dar vozes de comando curtas e precisas à tripulação para verificar o cordame, içar ferro, hastear as velas de estai, bujarrona, traquete, mezena...! A cada ordem a tripulação respondia, primeiro a confirmar, e depois a dá-la como cumprida. O vento estava de Norte pelo que, depois das velas estarem a barlaventar, o timoneiro virou o barco para Noroeste e as velas começaram a enfunar; o barco começou a progredir lentamente rumo aos ilhéus da Brava, com vento de estibordo. Ainda era dia quando passámos ao largo do Ilhéu de Cima e estou certo que mantivemos a rota por mais algumas milhas para depois rumar para S. Vicente. O Sol morria esplendoroso no horizonte e o barco avançava mar adentro. Foram momentos de pura magia, aquele anoitecer no mar. Depois do Sol se pôr, desci à cabine para ver onde iria dormir. Não vos digo nada, apesar de cá fora já estar fresco, na cabine era um calor insuportável e quase todos os passageiros tinham começado a chamar o Gregório. O cheiro a vómito faria marear o melhor dos marinheiros. Saí de lá o mais depressa que pude e fiquei sentado no banco da popa. Mas o mar já não estava tão calmo, e naquela zona do barco era certo e sabido que ia apanhar umas molhas. Subi então para a cobertura da cabine onde já se encontravam mais pessoas. Lembro-me que me trouxeram um prato de comida para jantar e, como eu não era dado a enjôo, comi e gostei. Aliás, podia ter sido um bom marinheiro como o meu avô João. Noite de breu, conseguíamos ver todas as estrelas do céu sentindo o navio a cortar as águas do oceano profundo. Depois de ter inspeccionado o conta-milhas e tirado as coordenadas, o capitão


Armando deu as suas ordens à tripulação e juntou-se ao grupo que estava sobre a cabine. E fez-nos as suas previsões de chegada a S. Vicente: com o vento que estava, ele não podia navegar a direito mas o seu barco era muito rápido pelo que, ao nascer do sol, já estaríamos a ver S. Vicente. Depois, se o vento ajudasse, poderíamos chegar ao Porto Grande às primeiras horas da manhã. Sentia-se o barco a avançar depressa sobre o mar, velas esticadas, respingos do mar de vez em quando e, se balanços havia, eram mais os de caturrar, a oscilação no sentido popa-proa no cavalgar das ondas. Ouvia-se o som de um violão, vindo dos lados do porão, algum passageiro ou tripulante a fazer passar o tempo: Mar de canal Bô ê carambolent Bô tâ carambolam Ês nha casament Chegada a hora de dormir, as pessoas foram-se acomodando para repousar. Eu também tentava dormir mas estava muito frio e não conseguia conciliar o sono. O capitão apercebeu-se disso e foi buscar uma vela que foi partilhada por várias pessoas para se taparem. Refiro-me a uma vela de navio e não a essas de alumiar. E ficámos todos com as cabeças encostadas umas às outras para tirar melhor proveito do espaço e do “cobertor”. O que é certo é que dormimos bem, só acordando uma vez à noite, quando o barco virou de bordo para rumar a S. Vicente, ficando agora com vento de bombordo. Essa manobra de virar de bordo é complicada, exige muita coordenação entre o timoneiro e a tripulação que manobra o cordame. Ao nascer do Sol, só se via mar e céu. Mas não foi preciso esperar muito para começarmos a ver as silhuetas dos montes de S. Vicente, tal como dissera o capitão Armando. Cerca das nove da manhã o navio, ainda com vento de bombordo, chegou perto do farol de S. Pedro. Foi quando o capitão deu ordem para virar de bordo e passámos a avançar em direcção a Santo Antão com vento forte de estibordo. Estávamos em pleno Mar de Canal, vagas alterosas, o navio a mergulhar de proa, para logo se levantar e mergulhar de novo. De dentro da cabine, soavam gritos e preces, até os ateus chamavam por Nossa Senhora e faziam promessas que sabiam que não iam cumprir. Depois de estarmos perto de Santo Antão, o capitão manda virar de bordo outra vez para apontar de novo para S. Vicente. Nesta manobra é que foram elas, o barco deu uma guinada de tal ordem que toda a gente pensou que ia virar e tinha chegado a nossa hora. “Olha a escota!”, gritou o capitão! Sob o comando do capitão Armando, o barco estabilizou e retomou o seu avanço, sem conseguir porém vencer o vento porque o navio não podia orçar muito devido à força do vento. Tinha que bolinar, ora para para um lado ora para outro para poder avançar contra o vento, mas devagar. O meu pai, que tinha ficado em S. Vicente, viria a contar-nos mais tarde que tinha visto o Maria Sony em S. Pedro e pensou que daí a pouco tempo chegaríamos a Mindelo. Mas o Mar de Canal é caramboleiro e o Maria Sony teve que fazer carambolas entre S. Vicente e Santo Antão, vezes sem conta, até conseguir chegar ao Porto Grande onde finalmente o motor auxiliar entrou em acção para nos levar até atracar no cais. Chegámos já à noitinha, o meu pai estava em cuidados! Entrou no barco para nos ajudar a sair e foi depois conversar com o capitão Armando, que ele conheceu na Escola de Cabotagem de Cabo Verde no Mindelo. Mas esta história toda foi apenas para concluir que terá sido a bordo do Maria Sony que eu apanhei os piolhos, nessa tal noite do “Tête à Tête”!


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