Lucíola

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Henrique de Moura Costa

Instituto de Educação, onde Luciola Estudava

Luciola e outras estórias ~@@@~


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AGRADECIMENTO

Clarice:

“ a crase não foi feita para humilhar ninguém”

Mesmo assim...

valeu

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INDICE PRIMEIRA PARTE Mem贸rias quase verazes Mil Novecentos e Cinq眉enta..................................9 Luciola...................................................................13 O Her贸i Frustrado..................................................19 O Plano..................................................................23. Incidente Em Moscou............................................59 SEGUNDA PARTE Contos politicamente incorretos Dez dias que abalaram Armando...........................85 O Porco..................................................................99 A Galinha.............................................................117 O Gato..................................................................137.

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PRIMEIRA PARTE

MEMÓRIAS QUASE VERAZES Mil Novecentos E Cinqüenta Lucíola O Herói Frustrado O Plano Incidente Em Moscou

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MIL NOVECENTOS E CINQÜENTA O ano de mil novecentos e cinqüenta, no Rio de Janeiro foi, por diversas razões um ano mágico, pelo menos para a minha geração de adolescentes A mudança de década tem um efeito peculiar de despertar a esperança por outra melhor, porque a passada foi (sempre) horrível Para nós, “teeners” aquele ano se afigurava luminoso. Sob forte influência da aparente juventude norte americana, havia uma imitação, se não macaqueamento, dos hábitos e costumes dos nossos jovens “irmãos” do norte, aqueles aninhados em um confortável estilo de vida, nós nos espremendo para tentar copiá-los, seja pela compra de um suéter, uma calça “blue jeans”, um “sundae” nas Americanas ou mesmo por um “hot dog”, vendido em barraquinhas na rua, junto com exóticos refrigerantes como Grapete ou Crush. Para tal, a inauguração da Sears (em 1949) veio bem a calhar. Situada na praia de Botafogo, com suas escadas rolantes (as primeiras do Brasil), seu ar condicionado, suas estantes cobertas de todos os artigos que um ser humano pudesse adquirir, desde um aparelho de rádio até uma cueca samba canção faziam o paraíso dos nóveis consumistas que


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dispunham de algum dinheiro para gastar. Era o centro de encontro dos garotos e das moças que, após as aulas, para desespero das mestras, iam namorar, fofocar e eventualmente tomar um sorvete na lanchonete no quarto andar. Tudo sob a atmosfera do “american way of life”. Para os adultos, havia também maravilhas. O advento do liquidificador provocou orgasmos múltiplos nas donas de casa que se esfalfavam em produzir manualmente sucos e outras iguarias para sua prole. O balcão das ferramentas realizava os sonhos masculinos de possuir as ferramentas “Cratfsman” tão bem expostas. Mas a maravilha das maravilhas eram os receptores de televisão. Embora criado nos idos de 1920, estavam agora disponíveis para quem quisesse ter o mundo visual dentro de sua própria casa. Se pudessem pagar, é claro, porque o aparelho ainda era muito caro para os padrões da classe média. Em setembro de 1950, foi criada a Rede Tupi, primeira emissora de televisão do Brasil que reinou absoluta ao longo de muitos anos. Os programas eram escassos mas suficientes para reunir toda a noite, mesmerizados pela pequena tela de raios catódicos, a família, os amigos e os televizinhos, nova modalidade de relacionamento.


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Dos carros, lembro-me bem do Cadillac “rabo de peixe”, uma luxuosa banheira com as lanternas trazeiras protuberantes, o que lhe valia o apelido. Na musica, um sucesso que se tornou um clássico foi a "Chiquita Bacana", de João de Barro e Alberto Ribeiro, cantada por Emilinha Borba e destaque dos carnavais de 1949 e 1950. Emilinha e Marlene, sua famosa rival, despontaram nessa época, fase áurea dos programas de auditório no rádio. No cinema, além de Rita Hayworth, Fred Astaire, Frank Sinatra, Carmen Miranda, o público também lotava as salas para assistir às chanchadas da Atlântida, que desde os anos 40 traziam a dupla Oscarito e Grande Otelo. A três de Outubro o ex ditador Getulio Vargas, que após sua destituição em 1945 vivera recluso em sua granja em São Borja, foi eleito, por esmagadora maioria, presidente da Nação. A vinte e cinco de junho iniciou-se na Coréia uma guerra estúpida que durou dois anos, ninguém sabe exatamente para que, embora o “Repórter Esso” bradasse diariamente, na voz embargada de Eron Dominguez, a maldade dos norte coreanos. Mas para nós, e o Brasil inteiro, a Copa do Mundo foi o fato


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mais relevante do ano. Para este fim, foi construído um gigantesco estádio, o maior do mundo, capaz de abrigar duzentas mil pessoas, para assistir as partidas do evento. No dia 16 de julho de 1950, cerca de duzentos e vinte mil pessoas dentro do Estádio do Maracanã assistiram a equipe de Flavio Costa entrar em campo contra o Uruguai em uma situação confortável, pois bastaria um empate para conquistar a cobiçada Taça Jules Rimet. A exaltação brasileira chegou ao clímax quando, apenas com dois minutos do segundo tempo Friaça marcou o primeiro gol. No entanto o Uruguai empatou, o que ainda seria aceitável, mas aos trinta e quatro minutos do segundo tempo Ghiggia tornou-se o responsável pela maior tragédia do futebol brasileiro ao marcar o terceiro gol do Uruguai. Uma multidão de pessoas saía do estádio sem dizer uma só palavra seguindo-se dias, senão semanas ou meses de luto nacional.

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LUCÍOLA Naquela época, com quinze anos, eu morava em uma rua na Tijuca, bem perto do afamado Instituto de Educação, ou Escola Normal, na Rua Mariz e Barros. Era uma rua tranqüila, arborizada, ainda cheia de casas, pequenas mas confortáveis, onde hoje se destacam estúpidos edifícios. Do outro lado da rua, algumas casas abaixo, morava Lucíola. Devia ter minha idade ou um pouco mais, era linda e foi a primeira paixão de minha vida. Lucíola era normalista. As normalistas tinham fama de ser meninas fáceis, mas certamente não a minha Lucíola, que era pura como um lírio. Todas as manhãs ela ia fardadinha para a escola, agarrada em seus livros, e eu a espreitava da janela, dando asas à minha fantasia de ter um dia coragem para falar com ela. Mas ficava na fantasia. Ela não me via ou fingia que, mesmo quando passei a esperar, de longe, sua saída do Instituto, na hora do almoço. Meus sonhos com ela, embora eróticos, nada tinham de lascivos. Em meu romantismo adolescente eu imaginava beijando-a ao luar ou ouvindo de mãos dadas a Sonata Appassionata (No. 23 in Fa menor, Opus 57) do Beethoven que eu havia descoberto nas audições diárias da Radio Ministério da Educação.


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Até aquele dia. Como de costume, fui esperá-la na saída do colégio, na hora do almoço. Era o último dia de aulas antes das férias, e pude vê-la, rodeada pelas colegas, em grande e risonho alvoroço. Como habitualmente fazia, ela voltava para casa e eu a seguia à distancia. Mas naquela manhã ela se dirigiu para o canto no qual eu julgava estar escondido e, como em um sonho veio falar comigo. - Você não é o filho de Dona Gloria, do cento e quatorze? Não disse meu nome. Eu era filho de Dona Gloria e pronto. - Sou. - É o seguinte, hoje é o ultimo dia de aulas e vai ter uma festa no Tijuca. Você gostaria de ir? Ela não esperou minha resposta, mesmo porque eu não a saberia dar. Limitou-se a dizer: - Oito horas lá. Foram horas de deliciosa ansiedade até que eu transpus a portaria do Tijuca Tênis Clube na Rua Conde de Bonfim. Surpreso em ver que realmente meu nome estava lá, dirigi-me ao salão de festas


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O salão estava quase vazio, apesar da orquestra estar atacando (literalmente) o Night and Day do Cole Porter, mas ela estava lá. Em um canto da sala, cercada de colegas em uma alegre algazarra, linda e maravilhosa em um virginal vestido branco. Não tive coragem de me aproximar do grupo, esperando o abençoado momento em que ela se dignasse a notar a presença de seu convidado. Subitamente ela veio em minha direção. Espantado, mas deliciado, deixei-me levar pela mão através do salão até a saída que dava para o jardim. Antecipei aquele beijo tão desejado sob o luar que iluminava as quadras de tênis, mas Lucíola levou-me para um canto mais escondido, onde mal se enxergava um banco. Mas, ao invés do beijo, ela se curvou um pouco e para meu espanto vi que tirava as calcinhas. Deitou-se em seguida e ordenou: - Venha. Meu coração quase estourou na minha boca. Não estava preparado para um ato que só conhecia em teoria e muito menos com a minha intangível amada. Até hoje não consigo me lembrar dos sentimentos que me ocorreram. Deu-me um branco total. Mas os fatos ainda me


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vêm à cabeça, não como cinema, mas como uma seqüência de fotos. Abaixei rapidamente as calças e tentei deitar-me ao lado dela, no estreito banco. Mas a natureza apressada e intempestiva não esperou que o ato se consumasse. Um torrencial jorro de algo que deveria ser dirigido a outro alvo literalmente inundou o imaculado vestido da minha deusa. Baldada seria uma nova tentativa, pois ela logo se levantou, arrumou-se e saiu correndo, não sem antes de ter-me dirigido um olhar de ódio. Não sei como cheguei em casa, mas cheguei. E foi ai que pirei. Pirei mesmo. Com um misto de dor, vergonha e frustração fiquei dias quase catatônico, sem comer e sem falar, não respondendo às preocupadas perguntas de meus pais até que, depois de uma consulta com o doutor Floriano resolveram me enviar para Juiz de Fora, na casa de uma tia. Os dias que lá passei, seja pelo meu afastamento da trágica vizinhança, seja mesmo pela chatice da cidade me fizeram voltar quase ao normal. Passei a considerar os fatos dentro de um quadro de racionalidade, mas as perguntas que me fazia caíam em dúvidas que eu sabia jamais seriam esclarecidas. Porque eu? Eu era consciente de que ela poderia ter


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um parceiro mais velho e mais atraente do que um adolescente de dezesseis anos. Então fora por bondade? Ou por simples capricho? Nunca saberia. Quando voltei, pouco a pouco a lembrança de Lucíola foi se diluindo. Nunca mais a vi. Anos depois soube que ela estava, nas asas da Panair, como aeromoça na rota de Belo Horizonte.

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O HEROI FRUSTRADO

Na madrugada do dia cinco de agosto de mil novecentos e cinqüenta e quatro, o Major Rubens Vaz, da Aeronáutica que acompanhava o jornalista Carlos Lacerda foi alvejado mortalmente por pistoleiros na Rua Toneleiros. Carlos Lacerda era o dono do jornal A Tribuna da Imprensa, periódico pelo qual Lacerda movia uma virulenta campanha contra o ex-ditador Vargas. Vários oficiais da Aeronáutica assumiram as investigações que acabaram revelando que os assassinos eram membros da guarda pessoal do presidente Getulio Vargas.Submetido a fortes pressões, o Presidente suicidou-se na manhã do dia vinte e quatro. Eleito em 1950 por esmagadora maioria, Getulio era muito popular tendo seu suicídio provocado forte comoção nacional. Entre outros, os seguidores de Lacerda (nos quais eu me incluía) e mesmo leitores de seu jornal passaram a ser encarados como os algozes de Vargas. Haviam inclusive noticias de que pessoas foram agredidas pelo “populacho” simplesmente porque estavam portando a famigerada “Tribuna” Uma noite quando me dirigia a um encontro com amigos, tomei um ônibus e divisei no corredor um exemplar do jornal,


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que, embora pisoteado raivosamente pelos passageiros, ainda ostentava seu título e algumas partes intactas. Em juvenil anseio de heroísmo, resolvi desafiar a turba que atacava meu líder. Apressei-me em recolher o que restava do jornal e, sob o olhar indignado dos passageiros, dirigi-me ao fundo do veículo, onde me sentei à espera de alguma reação violenta que me transformaria em herói da causa. Não precisei esperar muito. O ultimo passageiro a entrar, uma musculosa e enorme figura de um indisfarçável meganha, seu “berro” mal escondido sob a jaqueta semi-aberta, auscultou atentamente todas as fileiras e foi ao meu encontro. Levanteime provocadoramente, sempre a Tribuna como um troféu e preparei-me para levar alguns tapas que me conduziriam ao Hall da Fama. Para meu espanto contudo, a ameaçadora figura passou por mim e sentou-se no ultimo banco, aninhando-se no generoso colo de uma bem nutrida profissional que ali o aguardava. Ao ridículo a situação somou-se á minha frustração. Desci no próximo ponto.


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Engraçado como as coisas se repetem. (ou nada engraçado para mim) Trinta anos depois eu estava em Génève, Suíça, em uma viagem de negócios. Além da chatice daquela bela cidade, às noites eu me sentia só, carente de alguém com quem pudesse conversar, empreitada impensável para um estrangeiro sobretudo para alguém oriundo de um país exótico como o Brasil. Contentava-me por bebericar no bar do hotel após o jantar, até que surgisse um milagre ou que o sono me levasse para a cama. Naquelas horas se reuniam no bar alguns vetustos senhores, conversando baixinho provavelmente sobre as sacanagens financeiras que fizeram no dia ou no presente que deram às amantes. Tudo muito discreto. Nenhuma mulher. Era um “stag bar” Uma noite, após pedir um whisky surgiu o tão ansiado milagre: Do outro lado do bar, em um daqueles banquinhos altos em frente ao balcão, sentou-se uma bela moça que logo me agraciou com um simpático sorriso. No intervalo de uma dose e outra, trocamos outros simpáticos sorrisos, suprindo meu coração (e outras partes) de esperança.Subitamente ela se levantou a caminhou na minha direção. Seu sorriso agora era


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radioso, e, no meio do caminho ela bradou, alto e bom som, atraindo o olhar dos presentes espantados: “Mon Amour” Para tal eu não me sentia ainda preparado, mas surpreso e deliciado levantei-me então e abri os braços ostensivamente para acolher tão entusiasmada senhora. Mas, ela passou direto por mim, aconchegando-se nos braços de um armário suíço, com um porte de estivador de Marselha e uma estúpida cara de banqueiro. Não havia me dado conta de que a porta do bar situava-se atrás de mim, (o que me serviu de lição mais tarde), o que me reduziu a uma figura ridícula, perplexa, com os braços abertos para ninguém. Apressei-me em assinar a conta e sair, e sob os maliciosos sorrisos dos vetustos helvécios fui para o quarto. Puto da vida.

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O PLANO Aos dezenove anos de idade, comecei a trabalhar, em meio expediente na LYRA&CIA. Naquela época, a LYRA&CIA era uma conhecida empresa imobiliária, responsável pelo lançamento de vários prédios de alto luxo em Copacabana. Gozava de enorme fama pela qualidade de suas construções, uma verdadeira “grife”, ficando logo atrás da Construtora Canadá, tão conhecida pelo Edifício Chopin, na Avenida Atlântica. A firma fora fundada pelo Dr.Lyra, um engenheiro da velha guarda homem afável, generoso, muito querido pelos seus empregados. Naquela época, a empresa era altamente lucrativa, merecido resultado pelo primor de seus produtos. Locada em um suntuoso andar de um prédio de sua construção na Av. Rio Branco, a LYRA&CIA era sinônimo de qualidade, solidez e prestigio. Ali, eu era razoavelmente bem remunerado podia assistir às aulas matinais da Faculdade de Economia. Finalmente formado, o Dr. Lyra me promoveu a auxiliar de escritório, onde logo subi, graças a um curso noturno de finanças, para Gerente financeiro, cargo logo abaixo do Diretor Financeiro. Este, o Dr. Gomes já idoso, concentrava todas as atividades


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do departamento, delegando pouco ou nada para mim. Salvo a atenta observação de tudo o que acontecia na empresa. Pouco a pouco, a empresa, antes tão requisitada foi perdendo mercado. Este já não mais comportava prédios de luxo em Copacabana, mas estava mais voltado para produtos menos sofisticados em bairros menos nobres, mais baratos e mais accessíveis à emergente classe média. Além disto, despontava como altamente promissora a vastidão da Barra da Tijuca, onde prédios espaçosos, providos de amplas áreas de lazer poderiam oferecer à clientela uma opção atraente para a Zona Sul do Rio. Embora anunciados como de “alto luxo”, o acabamento dos prédios estava longe daquele exigido pela LYRA&CIA, que se recusava terminantemente a baixar seu nível. Assim, na década de oitenta, a empresa perdera toda sua competitividade, reduzida apenas a poucas mansões no Alto da Tijuca encomendadas por alguns saudosistas e milionários clientes. Dado o pequeno volume de obras contratadas, sua construção

fora

terceirizada,

o

que

diminuíra

consideravelmente as despesas com o pessoal. No entanto, talvez desinformado da realidade ou pressionado pelos parasitas que ali gravitavam, seu presidente não abria


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mão do fausto a que a firma estava acostumada desde os tempos das vacas gordas. Entre outras coisas, o “Conselho de Administração”, órgão, aliás, desnecessário em uma limitada, era composto de oito membros, primos e sobrinhos do Dr. Lyra, que recebiam polpudos “jetons” em cada reunião mensal, onde nada faziam além de tomar um cafezinho com seu protetor e trafegarem em vistosos “Diplomats” do ano, beneficio adicional que a firma lhes proporcionava. Todo aquele luxo não poderia ser mantido apenas pelos recebíveis das obras, sendo provável um alto endividamento bancário. Quando, anos mais tarde o Dr. Gomes se aposentou aos setenta anos, ocupei provisoriamente seu lugar até que alguém mais qualificado fosse contratado para assumi-lo. Mas tal nunca aconteceu. Afoito como era, apressei-me em pedir ao Reinaldo, nosso contador, os “print out” da empresa. Naquela época não tínhamos computador, mas ele tinha. Como supunha, as despesas administrativas estavam infladas, em grande parte pela “remuneração” dos conselheiros. No balancete, no Ativo Fixo, constavam, afora o andar da sede, os oito automóveis dos parasitas. Mas o que mais me horrorizou foi a rubrica dos exigíveis. Sua desproporção em relação aos os recebíveis evidenciava um Patrimônio Liquido negativo.


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A Empresa estava tecnicamente falida! Verificando a natureza dos exigíveis, vi que estava concentrado em vários empréstimos contraídos junto ao BCI, Banco de Credito Imobiliário um pequeno, mas sólido banco de investimentos com o qual a firma operava. Os empréstimos que eu tinha conhecimento estavam colateralisados pelos recebíveis, menos o maior que eu desconhecia e para o qual não constavam quaisquer garantias.


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dois Eu conhecia bem o banco, acostumado que era em providenciar a papelada do movimento, e me dava bem com o gerente Pierre, rapaz inteligente e ambicioso. E foi dele que fui informado de que o empréstimo maior fora negociado diretamente

pelo

meu

antecessor,

cuja

garantia

era

simplesmente todas as ações da LYRA&CIA! E mais. Seu vencimento se daria no mês seguinte, o que estava provocando grande desconforto na diretoria, por ser obrigado a exercer a garantia, e inflar seu balanço com ações de valor duvidoso. Não me espantei. Esperava até coisa pior. Perguntei ao Pierre se havia alguma possibilidade de rolar aquele empréstimo. -Acho difícil. A menos que vocês consigam amortizar boa parte dele e apresentem um projeto bem consubstanciado para a continuidade dos negócios. Pedi então uma semana. E naquela semana, com o auxilio do Reinaldo, em três dias e noites montei o projeto. Para amortização de 80% do principal, O Dr. Lyra teria que prover ao banco, em dação de pagamento, o andar da Av. Rio


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Branco, os automóveis e uma de suas fazendas em Mato Grosso. Além disto, o saneamento financeiro, necessário para completar o projeto, exigia um corte nas despesas administrativas, notadamente na extinção daquele obsceno Conselho de Administração. Alugando um escritório mais modesto e reduzindo drasticamente as despesas, a firma teria condições de, durante algum tempo, terminar as poucas obras em andamento e empreender outros negócios. Eu estava de olho em um terreno na Barra, o qual o Dr. Lyra havia relutantemente comprado em seu nome, pressionado que fora por um de seus “conselheiros”. Na época, o terreno era muito barato, mas com a expansão do mercado para aquelas bandas, poderia agora abrigar um lucrativo empreendimento Na véspera do dia fatal, procurei o Dr. Lyra. Respeitosamente pedi para trancar a porta pois a confidencialidade do assunto assim o exigia. Para minha surpresa o Dr.Lyra não se espantou quando expus a situação da empresa. Disse que o Gomes, no dia de sua saída, lhe havia colocado a par. Estava triste e conformado em perder sua empresa, objetos do esforço de toda a sua vida, mas muito preocupado com a sorte de seus fiéis empregados que perderiam inevitavelmente seus empregos. -Doutor, ninguém vai perder o emprego


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-Como assim? Então lhe expus o projeto. Ele ouviu atentamente e não se abalou com a perda de sua fazenda nem a venda do andar. Só refugou um pouco com a extinção do Conselho, mas fiz-lhe ver que sua manutenção, além de imoral, poderia inviabilizar o projeto. Embora cético do seu sucesso, acabou concordando, sem antes deixar de prometer despedir imediatamente os “conselheiros”, coisa que eu não poderia fazer. Depois de outra noite em claro junto com Reinaldo e seu computador, redigimos o projeto e as planilhas explicativas, elaboradas no nascente “Lotus 123”. Às duas da tarde o projeto foi entregue a um ansioso Pierre, que se comprometeu a submetê-lo na próxima reunião de diretoria. Depois de uma aflitiva semana de espera, Pierre me telefonou pedindo todos os documentos necessários para a transferência de titularidade dos ativos oferecidos bem como um termo de responsabilidade, assinado pelo Lyra e por mim, nos comprometendo a medidas necessárias para o saneamento da empresa, como proposto. E, dias depois, assinados todos os papéis e renovado o empréstimo, o Lyra passou em minha mesa.


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-Está muito ocupado? -Não para o senhor -Então vamos descer. Intrigado, descemos até a garagem do prédio, onde ele parou ao lado de uma reluzente Mercedes. Sacou então as chaves do bolso e disse: -É sua. É o meu presente pessoal por ter salvado a firma.


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três E fomos levando. Já agora ocupando poucas salas de um

prédio

despretensioso

em

Botafogo

estávamos

esperançosos na incorporação no terreno da Barra, a qual eu estava montando. Seriam dois prédios de luxo, com dez andares cada, um por andar, provido de piscinas, áreas de lazer, e situado em um aprazível e espaçoso terreno. Contas feitas, a incorporação daria um resultado bastante bom à LYRA&CIA, capaz talvez de restituir a confortável situação de outrora. Não foi fácil convencer ao Dr.Lyra ter que abdicar dos

padrões

de

qualidade

que

caracterizavam

suas

construções, mas acabou cedendo. Haveria

sem

duvida

muitos

problemas

pela

frente.

Descapitalizada como era a firma enfrentaria dificuldades em obter créditos para o empreendimento, mas isto eu esperava superar. Não me apercebi, porém que, exatamente por isto, LYRA&CIA era uma preza fácil.. O mercado imobiliário no Rio estava em franca ascensão, e o “boom” resultante era do conhecimento e cobiça dos ávidos investidores estrangeiros. E foi assim que, em certa manhã, o Dr.Lyra me comunicou ter recebido uma proposta irrecusável para a venda da firma.


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Embora um pouco chateado por não ter sido avisado antes, eu fiquei aliviado. Já havia sugerido ao Dr.Lyra da conveniência de um sócio para enfrentar um empreendimento daquele porte, mas não contava que a solução fosse tão radical. Ele já estava cansado, disse-me, sem energia para entrar em mais uma aventura. O comprador seria o JP Mortgage Bank, um banco especializado em hipotecas imobiliárias, com sede em Mobile, Alabama. Conformei-me. Não participei das negociações nem da concretização do negócio, nem fiquei sabendo o preço da transação. Só fui informado que na segunda feira, o novo patrão, o CEO como diziam iria tomar posse. Até lá, Dr. Lyra continuaria o presidente da firma.


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quatro Afinal chegara o dia. Todos comparecemos cedo, ás sete e meia, engravatados e ansiosos à espera do novo “boss”, o CEO da empresa. Pontualmente, às oito horas ele chegou. Acompanhado de outro sujeito, que depois vim a saber que era o representante do JP no Brasil, foi recebido pelo Dr. Lyra e, sem qualquer palavra para nós, fecharam-se por algumas horas na sala do presidente. Ao sair, Dr. Lyra, com um sorriso triste, abraçou-nos a todos dizendo “afinal, vou para casa descansar” No dia seguinte o CEO me chamou em sua sala. Era um gringo enorme, com cabelo cortado rente, vestido de camisa de mangas curtas e várias canetas no bolso. Sem um sorriso, apresentou-se secamente : -Sou Mark Thompson, seu novo boss. Embora com forte sotaque, falava um português inteligível. Ordenou-me sentar e relatar minhas atividades na empresa: Expliquei

detalhadamente

o

que

fazia,

os

controles

financeiros, os empréstimos bancários e os preparativos para o


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lançamento, do novo empreendimento na Barra. Expliquei ainda como funcionavam as incorporações no Brasil, onde os prédios eram vendidos na planta para ulterior construção. O comprador pagaria à imobiliária quarenta por cento do preço durante a construção prevista para dezoito meses, e ao final desta os sessenta por cento restantes eram financiados pelo SFH, Sistema Financeiro de Habitação. -Quer dizer que no lançamento vocês estão vendendo só papel? -Sim. Doutro jeito precisaríamos de muita exposição para financiar toda a construção. É a forma usual aqui. -Não estou interessado na SUA forma usual. Fique sabendo que NÓS vendemos apartamentos prontos, não papel. Quanto à exposure, isto é problema nosso, não seu. Atrevi-me: -Mas Mark -Mister Mark, por favor, - Mister Mark, Senhor, sou eu quem está montando o negócio


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-Pois não está mais. A partir de agora o senhor está dispensado destas funções. Saí da sala arrasado. Depois de trinta anos de casa, havia retornado ao inicio, exercendo apenas um controle de tesouraria que ocupava ínfima fração do meu tempo. Pensei em pedir demissão, mas a inércia de tanto tempo me impediu. Além disto, precisava do meu salário, e, pedindo demissão teria que abrir mão dos quarenta por cento do Fundo de Garantia, que a empresa seria obrigada a me pagar caso me demitisse. Lá fiquei humilhado e quase ocioso, vendo as barbaridades cometidas por aquela nova administração. Em apenas uma semana mudaram tudo. Reinaldo,

nosso

dedicado

contador

décadas

foi

sumariamente substituído pela KGB do Brasil, empresa de auditoria e contabilidade com sede em Phoenix, Arizona As contas bancárias migraram do BCI para o Citibank Até a firma de limpeza, composta de duas bem nutridas senhoras teve que ceder lugar à Brazilian Cleaners. Além disto, embora para efeitos fiscais continuasse o mesmo, o nome da firma passaria para Brel, Brazil Real Estate


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Limited. Com Brasil com Z!! Depois, os despedimentos. Primeiro o Sebastião, um velhinho, encarregado da segurança, que acompanhara o Dr.Lyra desde a fundação da firma. Depois foi a vez da Maria Lucia, a telefonista, uma menina maravilhosa. O Boy, também foi sumariamente dispensado. Por estranha coincidência, eram todos negros. Havia sido admitido um assistente do Mister Mark, cujo nome não mais me lembro, um rapaz idiota, pescado em uma agencia, a quem eu deveria me reportar diretamente. Quando lhe perguntei a razão do despedimento daquela gente, ele ingenuamente respondeu que era política da empresa. Afros brasileiros não eram mais permitidos.


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cinco Após um ano e meio os prédios estavam quase prontos. Os jornais publicavam, nas páginas imobiliárias, suntuosos anúncios do lançamento do que chamavam “uma nova maneira de morar” Foi quando, em uma sexta feira à tarde, o assistente me procurou e avisou que a partir de segunda feira meus serviços não seriam mais necessários. Embora chocado, fiquei aliviado. Enfim, a tortura terminara e com o que receberia do Fundo de Garantia poderia viver alguns meses, após o que iria provavelmente me tornar “consultor” de alguma pequena lanchonete do bairro. Depois de comovidos abraços dos meus poucos antigos colegas, apanhei minhas coisas e fui para casa. Jantar com minha filha. Foi um jantar triste. O alivio que experimentara nas primeiras horas havia passado. Eu estava amargurado e deprimido, forçado a uma aposentadoria precoce, porque aos sessenta anos ninguém haveria de me empregar. Meu futuro, certamente seria o de tornar- me um “consultor” para alguma pequena lanchonete do bairro.


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Foi quando ela, movida certamente pelo entusiasmo da juventude disse: -Mas pai, vocĂŞ nĂŁo pode ficar parado. Tem que fazer alguma coisa para acabar com estes bandidos! E foi assim que, de madrugada, elaborei o PLANO


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seis No dia seguinte fui procurar o Borges. O Borges era uma figura extraordinária. Havíamos sido colegas no internato e lá ficamos grandes amigos. Talvez porque eu era muito mandão no colégio, ele me chamava de Sherlock, pela minha mania em tentar descobrir mistérios, apelido que ficou durante toda a vida. Mas a vida nos separou. Enquanto eu seguia minha trajetória medíocre, o Borges em poucos anos ficou milionário. Envolveu-se em vários negócios de alto risco, e conseguiu rapidamente multiplicar o que recebera do seguro de vida do pai até amealhar considerável fortuna. Era dono de fazendas de gado, um apartamento em Paris e imóveis no Rio, inclusive uma espantosa cobertura na Vieira Souto, onde vivia. Gostava de viver bem, e vivia. Mas sua paixão era a aventura. Comprara uma mina de ouro (que depois se desfizera) no Sudão e uma frota de taxis no Marrocos. Embora de direita, ajudara a esconder e tirar do país um estudante perseguido pela ditadura militar. Havia rumores de que havia financiado um golpe de estado em um pequeno país africano para depor um sanguinário ditador. Raramente nos falávamos, embora ele religiosamente me


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telefonasse no Natal. Eu tinha certo pudor em procurar meu amigo rico quando eu levava uma vida modesta. Mas sabia que podia contar com ele. Recebeu-me efusivamente e depois de alguns drinques, contei-lhe da minha desdita. Quando soube que meu algoz havia sido o JP Mortgage Bank o Borges se enfureceu: -São uns filhos da puta. Quase me levaram a falência! Mas quando expus meu plano, ficou eufórico: -Isto mesmo Sherlock. Vá em frente. Faço questão de financiar este plano


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sete O lançamento havia sido planejado com antecedência. Precedido por uma espalhafatosa campanha publicitária, os stands de venda, o ajardinamento do terreno, os balões coloridos, tudo estava primorosamente montado para o grande dia. Mas às sete da manhã, quando o diligente CEO da BREL chegara para pessoalmente conferir os detalhes uma cena insólita se apresentava: No terreno contíguo, até um dia antes, um inofensivo descampado,

estavam

montadas

várias

construções

incipientes, construídas de madeira e lata, popularmente conhecidas como barracos. E mais, por eles circulavam homens, mulheres e crianças, seus habitantes. E mais, em uma das construções uma cruz, sugerindo uma igreja. Às dez horas, quando os primeiros pretendentes começaram a chegar, o barulho começou. Através de um possante equipamento de som, os visitantes foram saudados por veemente e ensurdecedores convites do pastor da “igreja”, para que redimissem seus pecados encontrando a fé. Os apelos divinos eram entremeados por músicas sertanejas e forrós, cujos decibéis tornavam quase impossível qualquer comunicação verbal no local.


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Os visitantes chegados foram aos poucos se retirando e os que chegavam eram logo espantados daquele inferno. Ao meio dia, o som parou, mas, alem dos desolados corretores e do furioso CEO, não havia mais ninguém no local. No domingo, o mesmo aconteceu. Na segunda feira foi suspenso o lançamento. Inútil fora o acareação com os vigias noturnos. Eles nada haviam visto, nem poderiam, pois enquanto um ouvia o jogo o outro dormia ambos já generosamente remunerados para tal.


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oito Uma semana depois procurei o banco. Com a gentileza habitual, Pierre me escutou pacientemente, acompanhando atentamente as contas que eu fazia quadro negro. Didaticamente comecei: 1. A BREL havia construído dois espigões de dez andares cada, em um total de vinte apartamentos de luxo. 2. A BREL havia contraído um empréstimo junto ao Citibank de dois milhões de dólares, dando como garantia, além do aval da matriz americana, os direitos sobre a venda de dois terços dos apartamentos os quais, aos preços praticados na época, cento e cinqüenta mil dólares por unidade, responderia pelo valor mutuado. 3. Uma vez que o preço dos apartamentos havia caído drasticamente após a desastrada tentativa de lançamento, era provável que o Citi se sentisse muito desconfortável com aquela garantia, hoje representando pouco mais que a metade do que seu valor de face. Certamente estaria disposto a ver-se livre dela. 4. O banco negociaria com o Citi a compra


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daqueles ativos mediante um deságio significativo. 5. Por sua vez, o Senhor Borges, através de sua empresa “Borges & Cia”, compraria ao BCI os direitos creditícios daqueles ativos pelo seu valor de face, dois milhões de dólares, mediante um empréstimo a ser fornecido pelo banco, com seu aval pessoal. Pierre ficou algum tempo em silencio. Depois pediu licença e saiu da sala. Aproveitei para fumar um cigarro, até que ele voltou acompanhado de dois diretores e um rapazinho de óculos que julguei ser o analista financeiro. Pediu-me então para começar tudo de novo. Quando terminei, ficaram em silêncio durante alguns angustiantes minutos, até que o rapaz perguntou: - O que não entendi é porque o senhor vai se endividar para comprar um ativo podre que vale hoje pouco mais que a metade do preço de compra. Era a dica que eu esperava. Já havia ensaiado aquele discurso, que era a chave do negócio. Solenemente falei: - Senhores, o Senhor Borges é um antigo cliente deste banco.

Através

dele,

vocês

fizeram

excelentes

negócios, mesmo aqueles que a principio pareciam inexeqüíveis. Não posso evidentemente revelar a


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mecânica deste negocio, mas tudo o que posso dizer é que o Senhor Borges sempre soube perfeitamente o que quer e que seu aval é lastreado em sólido patrimônio. Estou confiante nesta operação e preciso alertar que seu segredo vai depender da rapidez em que for feita. Pierre pediu-me uns dias para uma decisão. Até o final da semana. Mas o final da semana passou sem qualquer resposta. Eu já estava me borrando todo quando, dez dias depois, o Pierre telefonou-me convocando para uma reunião. Passei o dia sem nada comer, tentando me preparar para um comportamento digno quando recebesse a resposta negativa, que eu a tinha por certo. O Pierre, muito sério, depois de me fazer esperar uma eternidade na sala de reunião onde devorei mais uns cinco cigarros, cumprimentou-me cerimoniosamente, sentou-se, tirou os óculos e me olhou, sério. -Você tem certeza do que está pedindo? -Se não tivesse cá não estaria. Abriu-se então em cativante sorriso


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-A operação foi aprovada Senti um úmido quentinho por entre as pernas. Iria ser difícil disfarçar quando me levantasse. -Mas tem um detalhe Mijei-me novamente -Qual? -Precisamos também do seu aval pessoal. Ufa! - Não tem problema. - Agora os detalhes: Termo? - Noventa dias renováveis. E os juros? - Os de mercado, nem mais nem menos. - OK, mas quero ter a faculdade de poder amortizar antecipadamente o principal, em todo ou em partes, quando quiser. Após algum tempo chegou a papelada. Já havia fornecido a procuração que o Borges havia me dado, não só para negociar, mas para contrair o empréstimo e quitá-lo quando devido.


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Despedi-me do Pierre e fui jantar. O primeiro passo estava dado. Borges era agora devedor de dois milhões e quatrocentos mil dólares e proprietário dos direitos creditícios de dezesseis apartamentos de luxo, cujo valor naquele momento não ultrapassava nem dois milhões. O passo seguinte foi mais difícil. O dono da firma de vendas, o espanhol Señor Mera estava furioso, pois havia perdido todo o material de publicidade, inclusive os stands montados naquele absurdo lançamento. Não estava disposto a enfrentar nova aventura e foi preciso aumentar a remuneração de cinco para sete por cento das vendas e oferecer minha Mercedes como garantia para que, relutante, acabasse aceitando. Muito embora os preços dos apartamentos similares nas redondezas já estivessem bem acima dos praticados há uns meses atrás, insisti para que os corretores pudessem dar descontos aos compradores até atingir cinco por cento a mais sobre o preço inicial. O cliente adora descontos e os corretores adoram negociá-los.


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nove Todo o lançamento imobiliário deve ser feito no sábado. É o dia em que os maridos dispõem para, junto com as caras metades escolherem suas compras e suas mulheres se maravilharem com a perspectiva de mudança para um apartamento de luxo. Quanto mais não fosse, para um passeio até a Barra, onde iriam desfrutar não só de um drinque de cortesia, mas também da esperança de que um dia poderiam lá chegar. Na quinta feira, o desconfiado Mera foi até o local. Ficou atônito. A área estava completamente limpa, sem sombra da ameaçadora e ensurdecedora “comunidade” que arruinara o primeiro lançamento. Não entendeu o milagre, mas apressouse em voltar para o escritório para acionar imediatamente a campanha de mídia e as providencias para a montagem da estrutura e seleção dos corretores. Na noite de sexta para sábado, montaram os stands, instalaram a grama artificial, os balões coloridos e os cartazes. E, pontualmente às nove horas do sábado, com os balões inflados e fogos de artifício, lá estavam os corretores, convenientemente trajados de terno e gravata e as lindas


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donzelas, de mini saias esperando os clientes. Estes não faltaram. A técnica do desconto estava funcionando. Os maridos sentiam-se orgulhosos de poderem exibir às respectivas suas habilidades de negociação e os corretores estimulados pelo reconhecimento do comprador aos seus “esforços” junto ao chefe de vendas, “que hoje devia estar de bom humor” em conceder o desconto. Ao meio dia já haviam sido fechados três contratos, e ao final da tarde sete vendas haviam sido concretizadas. No domingo, mais cinco. Durante a semana, mais fraca, mais uma. E no fim da semana seguinte todos os dezesseis apartamentos haviam sido vendidos. Passei a semana inteira em um trabalho mourisco. À cada venda eu coligia os contratos, as notas promissórias para as parcelas a serem pagas com a entrega das chaves, preparava os cheques para as comissões, endossava os cheques dos sinais recebidos para o banco, e torcia para tudo dar certo. E deu. Não houve desistências e os pagamentos devidos foram realizados em tempo recorde graças aos diligentes esforços do Mera junto ao SFH, que nos pagava os sessenta por cento do valor do imóvel e os financiava a longo prazo aos mutuários.


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E, ao final de sessenta dias, pude resgatar a promissória do empréstimo, perante um exultante Pierre. Naquele mesmo dia recebi a noticia de que, face ao enorme prejuízo que tivera com a imobiliária a JP Mortgage Bank resolvera cessar suas operações no Brasil. A BCE fora fechada, seu CEO elegantemente demitido através de um breve e seco telefonema e os poucos funcionários restantes puderam retirar seus FGTS acrescidos dos quarenta por cento que a empresa tivera que pagar por despedimentos sem justa causa.


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dez Durante todos aqueles dias não tive tempo para visitar o Borges. Pelo telefone o colocava a par do progresso das coisas, que ele ouvia atento e satisfeito, mas sabia que seu estado estava piorando rapidamente. Naquela tarde fui visitálo no hospital, onde fora internado. Foi a ultima vez que o vi. Morrera naquela noite. Não fui à cremação. Não haveria lá ninguém para confortar e as homenagens que devia prestar ao meu amigo morto eu já as havia prestado em vida. Uns quinze dias depois resolvi ir ao banco. Afinal eu havia também analisado aquela operação e queria saber se estava tudo em ordem. Como sempre, Pierre me recebeu. Estava eufórico. -Foi uma ótima operação para o banco. Por causa dela fui promovido, pois fui eu que a recomendei. Como você sabe, o nosso Borges estava falido... _Não sabia mesmo! _Pois é ele havia perdido tudo, seu aval não tinha o menor valor.


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-Então porque você aceitou? -A operação era muito tentadora. O Citi estava louco para se livrar daqueles papéis e nos cedeu o crédito com enorme deságio. Mas o que pesou foi o seu aval. - Como, se eu não tenho nada? - Depois de tantos anos de convivência, eu estava certo de que você não iria avalizar nada em que não tivesse certeza do resultado. Fiquei muito lisonjeado com aquilo. Despedi-me com enorme alívio, e quando já estava na porta, Pierre disse: - Só faltou uma coisinha. - O que? - O Borges fez ainda um empréstimo que ainda não foi saldado. - Que empréstimo? - Ha cerca de um mês, ele nos telefonou, aflito, solicitando um empréstimo para ser depositado na sua conta. Já sabíamos que ele já estava muito doente e com duvidosas condições para honrar o aval, mas dado o antigo relacionamento que tínhamos com ele, enviamos alguém à sua casa para assinar os papéis e


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a promissória e depositamos o dinheiro. -De quanto foi o empréstimo? - Dez mil dólares - Realmente, eu havia recebido em minha conta esta quantia, era o “financiamento do projeto” como ele havia batizado, mas não sabia que era fruto de um empréstimo. - Pois era. O Borges já não tinha quase nada em sua conta corrente e precisou fazer o empréstimo. Mas não se preocupe, vamos lançar o débito em “Lucros e Perdas” e o seguro cobrirá isto depois.


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onze Momentos existem nos quais tomamos decisões que mais tarde não sabemos explicar. Não foi por gratidão nem por orgulho. Somente mais tarde entendi. Uma operação tão bem bolada, tão bonita, não poderia ter sido lastreada em um “default”. Ela deveria ser irretorquivelmente perfeita, esteticamente simétrica, sem perdas ou ganhos indevidos para as partes. Quando saí do banco, fui imediatamente à revendedora da Mercedes. Após longas negociações com o gerente, que se empenhava

diligentemente

em

depreciar

o

carro,

concordamos em avaliá-lo em vinte e cinco mil dólares, menos da metade do que valia, conquanto que o cheque me fosse fornecido imediatamente. Horas depois, preenchidas as formalidades e a pesquisa no DETRAN, recebi a quantia em dois cheques, um de dez mil e outro de quinze mi dólares. Após o almoço, retornei ao banco e diante de um perplexo Pierre, entreguei o cheque e resgatei a promissória. Na manhã seguinte foi à concessionárias buscar o fusca. Embora não fosse mais uma Mercedes, senti prazer em entrar naquele carrinho, com cheirinho peculiar de novo. Dirigindo


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para casa, pude então fazer um balanço de toda a operação. Financeiramente havia sido neutra. Todas as contas haviam sido pagas e o pouco que havia restado foi, conforme desejo do Borges, distribuído entre os empregados despedidos do BREL. Bom. Antes assim. Perguntei-me se teria valido a pena. Afinal, toda aquela aventura havia resultado apenas no prejuízo que tivera o banco americano e no fechamento de suas operações no Brasil. Para que? Para minha vingança pessoal contra uma empresa odiosa, racista que me injustiçara? Para a satisfação pessoal do Borges em sacanear o JP de quem tinha tanto ódio? Não sei. Mas voltou-me à cabeça a ultima noite em que estive com Borges. O quarto do hospital estava na penumbra, e mal podia divisar meu amigo deitado na cama cercada por um emanharado de tubos de soro e fios de monitoração. Estava muito magro, quase esquelético, mas saudou-me com aquele sorriso maroto de sempre: - Então Sherlock, vencemos! - Graças a você. - Eu fui apenas o financiador. O plano foi seu. Como você teve aquela idéia?


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- Na verdade a idéia não foi minha, foi do Prozilo. - Quem é o Prozilo? Contei-lhe então os detalhes do plano. Prozilo era um favelado que fazia pequenos serviços no bairro, como bombeiro, eletricista etc. Mas além disto tinha outra atividade. Muito lucrativa, dizia. Ele, junto com sua “thurma”, identificava terrenos vazios onde poderiam ser montados barracos para posterior aluguel. Pretendentes não faltavam e a “empresa” do Prozilo prosperava. Com uma organização que faria inveja a qualquer multinacional, em vinte e quatro horas ele e seu pessoal montavam ali dez unidades, imediatamente ocupadas pelas famílias dos “sócios”, que ali permaneciam até que as habitações fossem alugadas. Ficava assim caracterizada uma “comunidade”, cujo despejo chamaria atenção da imprensa, protestos e embaraços para o prefeito. O Prozilo topou minha proposta. Por dez mil dólares, sua empresa iria montar no terreno, em trinta e seis horas, um complexo de dez barracos que seriam habitados por famílias durante uma semana, após o que, em não mais que uma noite, totalmente desmontados. Forneceria ainda, uma imitação de igreja evangélica, devidamente guarnecida por um eloqüente


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“pastor”, que se faria ouvir aos berros, através de um potente equipamento de som também fornecido sem custo adicional. Mesmo debilitado como estava, Borges se torcia de rir. - Genial genial!! - Mas custou caro, dez mil dólares. Não sei como vou poder te pagar. - Não se preocupe, meu amigo. Não vai ser isto que vai me fazer mais pobre. Foi o melhor investimento que já fiz. Nunca me diverti tanto...

Foram para mim suas últimas e reconfortantes palavras.

~@@@~


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INCIDENTE EM MOSCOU

Chegamos ao Sheremetyevo. Aeroporto internacional de Moscou à noite, em meio a uma tempestade de neve. Em mil novecentos e setenta e seis eu atuava como consultor financeiro independente. Graças ao meu conhecimento e às relações que havia cultivado no Ministério da Fazenda, CACEX, BNDES e outras entidades, eu já tinha uma tranqüilizadora carteira de clientes que me satisfazia. Em novembro fui procurado por um estaleiro para assessorar uma operação comercial com a União Soviética, que envolvia a construção

e

venda

de

cinqüenta

sofisticadas

embarcações de pesca. De inicio pensei em recusar. O clima político-policial no Brasil estava muito pesado com a ditadura militar e eu não tinha exatamente uma ficha limpa com a repressão e uma simples conexão com a Rússia, ainda que inocente poderia me trazer problemas. Mas como a remuneração era boa, acabei aceitando. Assim, no final do mês, embarcamos para Londres, eu, o diretor do estaleiro e um engenheiro naval. Embora os vistos de entrada na Rússia fossem


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permitidos para operações comerciais, sua obtenção era extremamente morosa, pois envolvia investigações sobre os participantes de ambos os lados e uma infinidade de burocracia. No entanto um visto provisório (que não podia aparecer no passaporte) poderia ser obtido em Londres através do nosso intermediário,

o

todo

poderoso

Nicholas,

um

milionário grego que, graças à sua fortuna e inesgotável poder de corrupção na União Soviética, tudo conseguia.


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dois Após

passarmos

pela

imigração

e

alfândega

(experiência sempre desagradável em qualquer país, que dirá na URSS), embarcamos em um imenso Cadillac, propriedade do grego que ali a mantinha para servir aos dignitários que o interessava. Fomos conduzidos ao famoso Hotel Nacional, na Mokhovaya Ulitsa. Era um esplêndido edifício tipo “Art Nouveau”, construído em 1903, no qual se hospedara Vladimir Ilyitch Uliánov, o Lenin. O primeiro andar abrigava um luxuoso saguão, contiguo a um não menos luxuoso restaurante e a famosa (e conveniente) “berioska”, uma pequena loja reservada apenas aos turistas, que ali poderiam compra cigarros americanos, wisky e outras iguarias, somente em dólares. Nos diversos andares superiores encontravam-se os quartos e suítes. Cada andar tinha sua própria “concierge”, velhinhas que só falavam russo, a quem deveríamos deixar as chaves do quarto quando deles saiamos. Achei prudente conquistar a simpatia delas, o que fiz com um beijinho e um “spassiba” (obrigado), a única palavra que sabia em russo. Mas ela passou a sorrir sempre para mim, provavelmente à espera de outro beijinho. Meu

quarto,

embora

amplo

bem

aquecido

e


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confortável, era muito feio, contendo além da cama, um aparelho de TV e uma enorme geladeira (vazia). Mas dele podia divisar a espetacular Praça Vermelha, o Kremlin e a fantástica Catedral de São Basílio (dizem que Ivan o Terrível mandou cegar o arquiteto que a construiu para não poder repetir tão bela coisa). Terrível mesmo o Ivan. Pela manhã dava para ver a enorme fila de pessoas que, ainda no escuro (amanhece às dez horas), e sob uma temperatura próxima de quarenta graus (negativos), enfrentavam para visitar o corpo embalsamado de Lenin. O telefone na cabeceira da cama era praticamente inútil: não havia uma central telefônica e cada quarto tinha seu numero próprio, não relacionado ao hotel, de forma que, para receber uma chamada, era necessário que o hospede permanecesse todo o tempo no quarto. Alem disto para proteção do estado durante a invasão alemã em 1941, Stalin havia mandado queimar todas as listas telefônicas, Quando subi ao quarto pela primeira vez, quis verificar se haviam revistado minhas malas como se dizia. Eu havia cruzado dentro delas dois fios muito finos, de forma a denunciar, pelo seu rompimento se alguém violasse seus conteúdos. Inútil precaução: a mala estava aberta, completa e ostensivamente desarrumada.


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A primeira refeição que fiz em Moscou foi memorável. Em um compartimento privado no restaurante deliciei-me com uma mesa repleta de grande variedade de peixes defumados e generosa oferta de caviar regados a muita Vodka e um ótimo vinho branco da Geórgia. O problema foi que em todas as refeições subseqüentes ao longo daqueles dias, o cardápio era praticamente o mesmo. Após dois dias, acostumado que era à comidinha brasileira, meu estomago se revoltou àquela profusão de alimentos salgados que eram servidos sem oferecer alguma opção mais amena. Consegui a duras penas contrabandear um ovo (maravilha!) para o café da manhã, negociando secretamente com o garçom cada exemplar por um maço de cigarros americanos, que comprava na exclusiva berioska. Em busca de um restaurante alternativo, a agente da “Inturism” (agencia oficial de turismo) nos ofereceu orgulhosa uma lista de boas casas locais. Só que quando pedimos uma reserva verificamos que esta só seria disponível em um prazo de trinta dias... Para compensar as exaustivas reuniões de trabalho com os representantes do Ministério da Pesca, eram-nos oferecidas à noite entradas para espetáculos. Assim conheci o Teatro do Kremlin, moderno e frio, para uma apresentação da “Flor de Pedra” de Prokofiev, o Bolshoi, lindo, oferecendo um balé chatíssimo de um compositor


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barrigudo que foi ovacionado e por fim, o cĂŠlebre Circo de Moscou. Abrigado em um enorme prĂŠdio moderno, todo de vidro, ali fiquei muito frustrado por nĂŁo ter podido entender, embora avisado previamente, como uma mulher (aliĂĄs, bonita), pode desaparecer literalmente ante meus olhos.


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três Enfim, havia chegado o grande dia. Após dez dias de trabalho, poderíamos voltar para casa, coisa que todos ansiávamos. Mas decepção: na última hora verificamos que alguns documentos que deveriam ser levados para o Brasil não haviam sido aprontados a tempo pelo Ministério. Assim, eu deveria aguardar ainda mais um dia enquanto meus colegas partiriam naquela noite. Chateado, para matar o tempo, fui até o Gum, o conhecido “shopping center” de Moscou, para defrontar-me com duas enorme filas: uma para ver as vitrines e outra para comprar. Desisti. No dia seguinte, recebi os documentos e fiquei bebendo no bar do hotel antecipando o prazer que sentiria ao voltar para o Rio, para minha família, minha praia, até as quatro da tarde quando subi para apanhar minha mala. Antes de fechá-la, procurei no fundo o passaporte, dinheiro e os bilhetes de volta que havia cuidadosamente enfiado em um envelope e escondido cuidadosamente no fundo da dita. Nada encontrei. Havia desaparecido Não poderia partir


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quatro Com o coração pulando, desci até o escritório da administrata, mas fui informado que ela só viria no dia seguinte. Inútil seria descrever a noite que passei. Foi sem dúvida a pior de minha vida. Cedo pela manhã, insone e angustiado, voltei á administrata e narrei o ocorrido. Sem qualquer demonstração de espanto e solidariedade ela simplesmente deu de ombros e sugeriu: - Politzei? Embora apavorado eu ainda estava razoavelmente lúcido para me dar conta de que aquilo não havia sido um roubo comum onde a policia poderia eventualmente atuar. - Spassiba, niet. Ela deu de ombros indiferente e eu resolvi apelar para a embaixada. Afinal era meus compatriotas de quem poderia, de alguma forma, obter algum auxilio, pelo menos simpatia. Com alguns rublos que me restaram no bolso, tomei um taxi para a Embaixada na Bolshaia Nikitskaia, 54. Já lá havia estado antes, em uma visita de cortesia, sendo recebido por dois

terceiros amorfos

secretários.

Lá estavam

eles,


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iguaiszinhos, afáveis e sorridentes, mas quando expus meu problema substituíram sua afabilidade diplomática por uma expressão séria. -Sinto muito, mas aqui nada podemos fazer. O senhor procurou a policia? - Quero falar com o embaixador - Ele está de férias no Brasil - Então alguém mais... Pude notar a irritação com que me responderam: - Senhor, já lhe dissemos que aqui nada podemos fazer em seu caso. Por favor, não insista. Sem mesmo me despedir, saí da embaixada puto da vida, quando me apercebi não ter mais dinheiro para o taxi. Tive que voltar andando...


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cinco Tentei comer alguma coisa no hotel, mas em vão, minha garganta estava contraída de angustia e não passava nada. Fui para o quarto curtir meu desespero. Lá pelas cinco da tarde o telefone tocou. Era a administrata que, com voz de comando me instou para que descesse imediatamente. Na portaria estavam dois homens fardados a minha espera. O primeiro, com um rosto sovieticamente impassível se aproximou exibindo uma carteirinha dizendo: - Polizei. Com um gesto convidou-me a acompanhá-los. Indiquei que estava sem sobretudo e chapéu, coisas que a administrata me proveu imediatamente, provavelmente ansiosa para afastar da portaria aquele hóspede incomodo. Entrei em um Zil preto, reluzente, acompanhado pelos dois meganhas que se mantiveram calados durante todo o trajeto. Eu havia substituído aquela angustia gelada do quarto do hotel por outra, misto de curiosidade e medo. Por um lado as coisas iriam se esclarecer. Por outro... Pela janela pude ver que o carro entrava em uma grande praça onde se erguia a estatua de Felix Dzerzhinsky, fundador da


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Cheka, a primeira policia secreta comunista, (como vim a saber mais tarde) e parou em frente a um majestoso edifício que reconheci pelas fotografias. Eu estava na Praça Lubianca e entrava na sede da KGB! Os policiais conduziram-me através de intricados corredores iluminados por fortes lâmpadas fluorescentes até uma porta, que abriram e com um gesto “convidaram-me” a entrar. Depois que entrei e eles fecharam a porta, ali fiquei só. Era uma saleta pequena, com uma escrivaninha, uma cadeira em frente e um sofá na parede oposta, onde um indefectível retrato de Lênin me espreitava. Não me atrevi a sentar-me, mas como a saleta estava muito aquecida tirei o sobretudo. Durante uma eternidade de alguns minutos aguardei que algo acontecesse até que a porta se abriu e adentrou uma grande figura fardada que sem uma palavra indicou-me a cadeira e sentou-se atrás da escrivaninha. Era um homem bem apessoado, na faixa de uns cinqüenta anos, com uma cara meio infantil e uns olhos azuis piscina (gelados, imperscrutáveis, soviéticos) que me fitaram, impassível, por algum tempo. Após longo silencio ele se apresentou em perfeito português: - Sou o coronel Radek


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Eu quase respondi: “E daí?”, mas me contive. Às vezes o medo se transforma em temeridade. Como ele já devia saber meu nome, nada respondi. - Soube que o senhor esteve ontem na Embaixada brasileira, na Bolshaia Nikitskaia Então ele sabia de tudo! -

Estive

sim,

coronel.

Como

roubaram

meu

passaporte, dinheiro e passagens de avião, fui pedir auxilio para voltar para casa. - E conseguiu? - Não Ele sorriu ligeiramente. Naquele momento bateram na porta, e sem esperar resposta entrou um soldado com uma bandeja com um bule e duas chávenas. O coronel serviu-se de uma e amavelmente estendeu-me a outra. - Chá? Aceitei aliviado. Aquilo prenunciava uma conversa civilizada, sem instrumentos de tortura e talvez mesmo sem uma longa hospedagem na famigerada Lubianca ou em algum inóspito Gulag.


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Outro silencio. Resolvi quebrá-lo: - O senhor coronel fala perfeitamente a minha língua. Ele fingiu não ouvir. Subitamente abriu uma gaveta e estendeu sobre a mesa todos meus haveres, passaporte, carteira e bilhetes de avião. Bendita a policia soviética que havia recuperado todo o produto de um inominável roubo de um inocente cidadão brasileiro! Comovido agradeci e estendi a mão sobre a mesa para recolher aquele tesouro, mas antecipou-se o coronel colocando sua enorme pata sobre ele. - Ainda não. Primeiro tire suas botas. - Como? - Suas botas. Tire-as. Seria uma nova forma de tortura? Privar-me das botas em pleno inverno russo? Sem outra alternativa, descalcei as botas baratas que havia comprado em Londres e ali fiquei, descalço e inerme, a mercê daquele monstro soviético que se comprazia em me torturar. Mas eis que o monstro sacou debaixo da mesa um par de belíssimos coturnos e ordenou: - Agora calce estas. Menos mal. Obedeci. Serviam-me lindamente.


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- Servem?Está confortável? Ainda surpreso pelo discutível senso de humor eslavo respondi que estavam ótimas. Ele pareceu satisfeito. - Muito bem senhor coronel. Estou muito agradecido por ter recuperado meus documentos e pelas botas tão bonitas, mas posso me retirar agora? - Ainda não - O que falta? - O senhor deve levar estas botas para o Brasil Instintivamente apalpei o cano das botas. Eram mais espessas que as usuais, sugerindo que ali continham algo mais do que acolchoamento. Então era isto! Eu deveria servir de mula para transportar para o Brasil algum material provavelmente subversivo. - Senhor coronel, ambos sabemos que as botas contêm coisas que devem entrar secretamente no Brasil. Embora eu seja contra a ditadura militar na minha terra e já tenha sido preso por isto, não desejo ser portador de material subversivo. - Posso lhe assegurar que este material nada tem de subversivo.


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- E se eu me recusar? Ele abriu os braços com um muxoxo: - O senhor voltará para o hotel de onde será despejado esta noite. Ficará então, em nossa bela cidade sem dinheiro, passaporte ou possibilidade de voltar para casa. A opção é sua. Relutantemente senti que não tinha opção. Recebi então as instruções precisas. Após a chegada no Rio, eu deveria ir diretamente para casa e aguardar alguém que se identificaria com uma palavra chave. - Qual palavra? - Escolha o senhor Impulsivamente falei: - Sheerazade - Gosta do Korsakov? - Gosto, mas prefiro a Páscoa Russa e o Capriccio Espagnol E, surpreendentemente o coronel: - Sabia que ele esteve no Rio de Janeiro? Foram suas últimas palavras para mim.


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seis Eu ainda não estava livre de sustos. Depois de feito o “check out” com a “administrata”, tomei um taxi para o aeroporto onde fui abordado por mais um policial que havia sido informado pelo rádio portátil de que eu deixara o hotel levando a chave do quarto. Com muita dificuldade expliquei que entregara a chave na administração ao invés da “concierge” do andar. Após filas enormes a céu aberto sob gélida temperatura, entrei afinal no útero aquecido da British Airways que em tranqüilo vôo levou-me à reconfortante civilização londrina. A lembrança do retorno ao Rio pela Varig, minha passagem pela imigração e alfândega e minha chegada em casa estão ainda envoltos em uma nebulosa. O importante é que nada aconteceu. Por expressa instrução do coronel nada revelei da aventura aos meus familiares. Permaneci dois dias em casa aguardando o emissário, que se revelou uma velhinha que apenas sussurrou “Sheerazade” e levou as botas. Durante algum tempo fiquei traumatizado com aquela experiência, mas pouco a pouco ficou esquecida e resolvi tocar minha vida


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sete Em 1992 retornei a Moscou para finalizar um contrato de exportação. Gorbachev havia sido eleito como primeiro presidente executivo da União Soviética em 15 de Março de 1990 mas resignou a 25 de Dezembro de 1991. Nessa mesma noite a bandeira soviética foi recolhida do Kremlin. Por

saudosismo

um

pouco

masoquista

hospedei-me

novamente no Hotel Nacional, palco de um pesadelo que jamais esquecerei. Mas não perdi muito tempo em sentimentalismos pois precisava voltar logo ao Brasil. Após dois dias, quando retornei ao quarto para recolher meus pertences (desta vez estavam todos lá), tocou o telefone na portaria, informando, em excelente inglês, que havia uma família no “lobby” desejando falar comigo. Curioso, apresseime em descer. Sentados estavam um senhor, uma senhora e um rapaz. Logo se levantaram para cerimoniosamente me receber. Tive um choque: era o coronel. Embora mais gordo e envelhecido, tinha ainda a cara meio infantil e os olhos azuis piscina. Abraçou-me efusivamente e apresentou sua mulher, gorda e


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sorridente matrona que logo me estendeu uma caixinha de doces, que agradeci. A um gesto do coronel, o rapaz se aproximou. - Este é Michayl, o menino que o senhor salvou! Aturdido, manifestei meu espanto. E o coronel contou-me a historia. Radek, naquela época tenente da KGB, havia vivido no Brasil por oito anos como “adido cultural”. Naquele período tivera um relacionamento com uma jovem brasileira, com quem tivera um filho. Pouco antes do golpe militar de 1964, fora urgentemente convocado para a sede em Moscou. Embora temeroso de deixar sua companheira e seu filho de seis anos, teve que ir. Mas não pode voltar. Com o advento da “redentora” em primeiro de abril, passara a ser “persona non grata” no Brasil dos militares. Sempre informado pela mala diplomática, veio a saber, dez anos depois,que Michayl,seu filho, estava perseguido pelo famigerado “DOI-CODI” e,pior, acometido de estranha doença degenerativa para a qual, conforme um médico amigo local, só haveria tratamento nos Estados Unidos , União Soviética , ou,talvez em Cuba. Era imperativo retira-lo do Brasil. Para isto seria necessário fornecê-lo, além de dinheiro para passagens, um passaporte


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falso, cuja fabricação no Brasil era praticamente impossível. Radek, angustiado, elaborou um plano. O passaporte de um cidadão britânico e o dinheiro necessário não foram problema. Mas precisava encontrar uma “mula” para transportá-los, uma vez que a mala diplomática era extremamente severa na fiscalização de qualquer encomenda suspeita. Somente um ano depois Radek foi informado por um amigo ter encontrado o mensageiro ideal. Não sei por que, mas fui eu o eleito. Toda a encenação do roubo de minhas coisas e das ameaças a que fui submetido tinha apenas o propósito de eu contrabandear para o Brasil umas botas recheadas de um passaporte falso e dois mil dólares. Por sorte, Michayl ainda não havia sido preso, mas a doença tinha progredido. Mal podia andar. Um mês depois da minha volta ao Brasil, foi recebido em Londres por amigos (o coronel era muito relacionado) e embarcado pela Aeroflot para Moscou. - Nossa medicina o salvou, veja o senhor, ele está quase perfeito, e é um brilhante aluno de engenharia. Graças ao senhor. Michayl aproximou-se, mancando um pouco. - Muito obrigado senhor Diante da felicidade do pai e da gratidão do filho, consegui


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sopitar a indignação que sentia por Radek por ter-me submetido a toda aquela situação. Limitei-me a abrir a caixa de

uns

doces

açucarados,

oferecê-los

à

família

e

relutantemente comer um. Desculpei-me pela urgência em sair, tomei um taxi para o aeroporto (desta vez o Domodedovo, não mais o antigo Sheremetyevo) e voltei para casa.


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oito Alguns anos depois recebi uma carta de nosso correspondente em Moscou, de quem me tinha tornado amigo. “a situação aqui na mudou muito. Passamos a viver, é verdade, em uma “democracia” mas os desmandos da KGB foram substituídos pelos da nova e poderosa máfia russa e uma geração de jovens bilionários emergiu a partir de negócios escusos.A Prefeitura de Moscou vendeu o Hotel Nacional por quase 5 bilhões de rublos para o banco B&N, que tem como um dos proprietários Mikhail Gutseriyev, expresidente da maior empresa petroleira russa, a Rosneft !!. Quanto aos seus amigos, lamento informar que o Coronel faleceu, mas o filho (Michayl ?) casou-se aqui com uma brasileira e voltou para o Brasil” Por mera coincidência, uma semana depois de receber a carta encontrava-me na Rodoviária, de volta de Juiz de Fora onde fora tratar de negócios. O saguão estava cheio, quente e fétido, rescendendo a óleo Diesel e suor. Subitamente um guri de seus três anos separou-se dos pais correndo e colidiu nas minhas pernas.Tendo um nome duplo, não sendo muito freqüente ouvi-lo, virei-me espantado na direção de quem o chamava. Atendendo ao grito da mãe, a criança desgarrada voltou correndo e ela brindou-me com um sorriso de desculpa. O marido estava de costas e não me viu. Mas eu o reconheci.


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Era o Michayl. Saí da rodoviária, entrei em um botequim e pedi uma Januaria. Tomei-a de um só trago.

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SEGUNDA PARTE

CONTOS POLITICAMENTE INCORRETOS

Dez dias que abalaram Armando O Porco A Galinha O Gato

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DEZ DIAS QUE ABALARAM ARNALDO

A Estupidez. Para este mal não há remédio Emmanuel Kant Critica da Razão Pura

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DIA UM Na hora do almoço daquela segunda feira, Arnaldo se juntou aos seus colegas para descerem até a academia situada no segundo andar. Sendo o prédio ocupado por muitos escritórios de advocacia, alguém teve a idéia brilhante de explorar ali uma academia de ginástica, onde os estressados advogados poderiam se relaxar. Contava com a boa vontade das firmas, pois era sabido que o rendimento dos profissionais era melhorado com a prática de exercício físicos durante as exaustivas jornadas de trabalho. Arnaldo era querido pelos colegas, pois, além de simpático e comunicativo era bom de bola, distinguido por importante score na mini quadra de basquete. Mas naquela manhã ele não teve muita sorte. Não conseguindo parar de uma corrida até a cestinha, colidiu-se violentamente contra a trave, provocando um corte na testa. Foi logo atendido pelos empregados, que aplicaram um “Band Aid” no ferimento. Mas ele não parava de sangrar. Preocupados, seus colegas o conduziram à emergência do Copa D’Or onde foi medicado e refeito o curativo. Mas em casa verificou que este estava encharcado de sangue e


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que o ferimento continuava a sangrar. Preocupada, Letícia, sua mulher conseguiu uma consulta no dia seguinte em um médico do Plano de Saúde da Firma. Este tranqüilizou Letícia, que quase histérica perguntava se não era câncer nem alguma outra coisa séria, prescreveu umas pílulas de vitamina K, anticoagulante, e solicitou alguns exames de sangue. - Fiquem tranqüilos, não deve ser nada, mas aconselho que até que os exames fiquem prontos, o Arnaldo evite exercícios violentos para prevenir algum outro acidente. Em casa, Letícia sempre preocupada falou: - Arnaldo, não quero mais que você desça para a academia. - Mas Letícia, vou tomar cuidado. - Não mesmo. Arnaldinho meu amor, não seja estúpido. Você não é mais criança e tem dois filhos para criar. Promete que não vai mais lá. - Prometo. Mas não foi convincente.


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ARNALDO E LETÍCIA Conheceram-se na faculdade. Casaram logo após a formatura e durante algum tempo viveram na casa dos pais (dela) até que Arnaldo conseguisse o tão almejado emprego da Firma, Siqueira e Associados, prestigioso escritório de advocacia, na Avenida Rio Branco. O salário que recebia era suficiente para alugar um pequeno apartamento no Bairro Peixoto que, embora modesto, fora decorado com o extremo bom gosto de Leticia. Apesar dos horários tardios de Arnaldo, assoberbado pela carga de trabalho da Firma, levavam uma vida feliz e ao fim de dois anos já contavam com um casal de filhos que encantavam suas vidas.


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OSCAR Oscar era o chefe do escritório. Respondia diretamente ao “Senior Partner”, o Dr. Siqueira, um advogado da velha guarda muito digno e respeitado. Havia se formado em direito, mas, apesar de ingentes esforços, não conseguira ser aprovado em dois exames consecutivos da Ordem. Era, pois bacharel, mas não podia advogar. Mas como sobrinho distante do Dr. Siqueira, fora admitido como chefe do escritório. Suas funções eram de conferir os “time sheets” dos advogados e emitir as faturas para os clientes, além de cuidar da administração geral, pagamento de contas, limpeza etc. Procurava esconder sua mediocridade através de uma pose de autoridade, inútil entre os advogados e pouco eficaz na periódica admoestação à Leila pelo comprimento de sua minissaia. Leila era a telefonista, que além de ter pernas lindas era burra como uma porta.


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DIA DOIS Como havia perdido um dia para ir ao médico, Arnaldo entrou no escritório naquela quarta feira preocupado com o volume de trabalho que havia acumulado. Estava também chateado pela promessa que fizera à Leticia de não mais ir à academia, pelo menos por um tempo. Ao entrar, achou meio estranha a receptividade de seus colegas à efusiva saudação usual. Ao invés da calorosa resposta que costumava receber, ouviu apenas tímidos bons dias. Não teve entretanto tempo para se grilar. Ato continuo, ao se sentar na baia, Oscar se aproximou e disse, com pomposo tom de autoridade para ele ir para a sala dele. - Agora. - Que houve Oscar? - Armando, quero que você saiba que não tenho nada contra a orientação sexual de ninguém, mas peço que você não se envolva com ninguém deste escritório. Peço também que você evite sair com seus colegas. Arnaldo ficou perplexo - O que você está dizendo Oscar ? Que eu sou gay?


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- Arnaldo, você não precisa me dizer nada. Compreendo sua posição, mas peço que compreenda minha responsabilidade neste escritório. - Oscar, você está completamente enganado. Quem te disse isto? - Desculpe Armando, isto não posso dizer. E com um “amistoso” sorriso de compreensão: - Esta conversa acaba aqui. Tenha um bom dia.


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DIA TRES Arnaldo voltou atônito. Quem teria dito esta mentira? Nunca tivera qualquer inimigo e não se lembrava de qualquer desavença com alguma moça com quem teria saído além de Letícia. Notou então que o mal já estava feito. Uma inusitada frieza de seus colegas evidenciava que o babaca do Oscar havia propalado a infâmia no intuito de “preservar” a moral do escritório. Ao meio dia, todos desceram para a academia sem o convidarem. Restou somente Haroldo, que nunca ia, ficando naquela hora a mastigar alguma coisa e ler algo igualmente ininteligível. Voltou para casa completamente arrasado. Nada contou à Leticia preferindo lidar sozinho com a situação. Não sabia a quem apelar muito menos como desfazer aquela situação.


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DIA QUATRO

Inútil se provou sua ida, no dia seguinte ao grupo de análise que freqüentava na Rua Santa Clara. Após relatar a desdita a uma silenciosa platéia, ouviu do Dr. Daniel a seguinte pérola: -O que o Sr. Arnaldo quer dizer é que espera do grupo compreensão e apoio... Arnaldo saiu furioso e bateu com a porta.


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DIA CINCO Por volta das seis, o pessoal estava se aprontando para sair. Como de costume, iam ao “happy hour” no Amarelinho, mas desta vez Arnaldo não havia sido convidado. Em um arroubo de sagrada ira, se levantou e berrou: - Gente, pelo amor de Deus, eu não sou gay! Os colegas o olharam entre constrangidos e pesarosos e silenciosamente foram saindo. Menos o Haroldo. Ele se aproximou, e com a mão em seu ombro conduziu-o delicadamente para o elevador dizendo: _Calma Arnaldo. Eu sei por experiência própria que isto é muito difícil.


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DIAS SEIS, SETE E OITO

Sob o olhar furioso de Leticia, Arnaldo, no sรกbado, tomou um porre histรณrico. Mas no domingo, em monumental ressaca, concentrou-se em escrever sua carta de demissรฃo da Firma.


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DIA NOVE Pontualmente às nove horas, Arnaldo adentrou na salinha de Oscar, mostrou a carta e disse que iria levá-la para o Dr. Siqueira. Oscar ficou em pânico: - Arnaldo, não faça isto. Você está levando esta coisa longe demais. - Longe demais porra nenhuma. Por sua culpa meus colegas estão me discriminando, até a Leila me olha esquisito. - Não tive opção Arnaldo. - Como não teve? - Ela pediu-me encarecidamente... - Ela quem? Oscar sentiu que tinha dito besteira e que agora não tinha mais jeito. Derrotado, abaixou a cabeça e murmurou: - Sua esposa Arnaldo ficou perplexo: - Isto é um absurdo! Letícia?


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- Sim. Ela me telefonou pedindo, ou melhor suplicando, que eu impedisse você de sair com os colegas. Disse que você tinha um problema, pois era gay. - Letícia disse que eu era gay? - Não com estas palavras, ela é uma moça muito educada. - Com que palavras? - Homo. Homo alguma coisa. Arnaldo eu ainda me lembro do latim da escola. - Que alguma coisa? - Não me lembro. - Seria “filico”? - É isto aí. Arnaldo tomou um profundo fôlego. -Oscar, homofílico não existe. Existe hemofílico, que é uma doença do sangue. Não foi o que você ouviu?

O súbito empalidecer de Oscar serviu como resposta.


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DIA DEZ

Às doze horas, retiradas as queixas de lesão corporal e tentativa de homicídio, Arnaldo foi libertado da 4º DP onde havia passado a noite em cela especial. No dia seguinte, junto com Letícia e os filhos, foi passar o resto da semana em uma pousada em Petrópolis, paga pela Firma. Na segunda feira apresentou-se para o novo trabalho, em outra firma, igualmente importante, levado por uma generosa carta de recomendação, assinada por um constrangido Dr. Siqueira. Fora admitido com um salário bem maior, junto com bônus e participação. Como chefe do escritório.

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O PORCO

On ne doit pas jeter des perles aux cochons BĂ­blia

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OS PERSONAGENS Dr. Tomaz...................... Prefeito Dona Lydia..................... Sua mulher Francisco Araujo........

Empreiteiro

Dona Elvira.................... Sua mulher Dr. Frederico................. Candidato a Prefeito Nuno............................... Pastor da Igreja Dos Sagrados Donativos Juliano.............................. Fac Totum O Porco........................... Porco


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UM Santa Felicidade era uma pacifica cidade, típica do interior, não propriamente próspera, mas razoavelmente equilibrada, vivendo da sua economia própria, basicamente da produção leiteira e frutífera e principalmente do repasse das dotações estaduais. Estas últimas permitiram a realização de algumas obras públicas, como a construção do novo cemitério, a reforma da prefeitura e o prédio dos correios. Talvez outras obras pudessem ser realizadas não fosse o crônico, sistemático e tolerado superfaturamento pago às empreiteiras. Aliás, à empreiteira, pois Santa Felicidade Limitada, de propriedade do Francisco Araujo era há décadas a única empresa vencedora de todas as licitações, uma vez que seus concorrentes eram meros testa de ferro indicados pelo prefeito. Francisco

Araujo

não

era

rico,

embora

vivesse

confortavelmente em uma boa casa, carro do ano, tendo se permitido até enviar Dona Lydia sua mulher junto com a filha para uma semana em Orlando. Possuía também uma reserva financeira, aplicada principalmente em ações da Bolsa da Capital, que através de um corretor aparentado conseguia manter boa rentabilidade em seu patrimônio. Mas podia ter muito mais se não tivesse que repassar a maior parte de sua


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receita superfaturada para o prefeito. Não para a Prefeitura, mas para o prefeito. Doutor Tomaz era o prefeito. Político astuto, macaco velho, era há muitas décadas o manda chuva da cidade. Quando não era prefeito, arreglava-se com seu opositor, muitas vezes do partido de oposição, de forma que estava sempre no poder. Com seus sessenta e muitos, Doutor Tomaz era dono de razoável fortuna, toda ela representada pelos prédios que possuía na Capital. Mas ninguém se chateava com isto. A população local se dividia entre os ignorantes e os conformados que há muito já haviam digerido a corrupção como “business as usual” , ou a pratica normal dos negócios.


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DOIS Naquela manhã de sábado, Francisco Araujo acordou cedo. Estava excitado e ansioso com o bom desenvolvimento daquele almoço que tão cuidadosamente havia planejado. Uma semana antes havia sido convocado para uma conversa na prefeitura. Nela, o Doutor Tomaz havia comunicado ao seu protegé sua disposição em indicá-lo para prefeito nas eleições que se avizinhavam. Isto tinha um preço, sem duvida, não só representado por polpuda contribuição “para o Partido” mas principalmente o compromisso de inteira lealdade que, ele estava seguro, poderia esperar do Araujo. Araujo obviamente vibrou. Aquilo seria a porta para a consolidação de seu patrimônio, pois não mais teria que repassar para o Doutor a totalidade de suas espúrias receitas, disfarçadas

que

seriam,

nos

tortuosos

meandros

da

contabilidade municipal. Haveria logo, isto sim, que providenciar a cessão de suas cotas na empresa para evitar o tal do “conflito de interesses”, mas isto era fácil. Quanto à contribuição, sua mente experiente logo evidenciou que o “super” da próxima obra amplamente compensaria. O Doutor explicou a seguir seu plano.

O presidente do

Partido - doravante nomeado por Presidente - iria visitar a


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cidade no próximo sábado e caberia a Araujo oferecer um almoço em sua residência onde seria a ele apresentado e efetivada certamente a homologação de seu nome para candidato. - Mas Doutor, argumentou Araujo, e se a oposição ganhar? - Araujo, você já me conhece há muito tempo. Quando deixei de colocar qualquer oposição no bolso?


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TRES Havia sido uma semana de intensos preparos e preocupações. A principal delas fora a escolha do cardápio. O que iriam servir para agradar tão ilustre convidado? Após dias de confabulações com o Doutor, chegaram à conclusão de que um porco assado seria a escolha mais adequada. No telefonema que se seguiu, o Doutor foi informado pelo próprio Presidente de que estava encantado com o convite e que um porco assado era seu prato preferido. Mas onde encontrar o porco? Na cidade não havia e trazê-lo da capital seria além de oneroso, muito demorado. Não daria tempo para o transporte, abate e preparo. Restava uma única solução: O porco do bispo. O Reverendo Nuno, Pastor da Venerável Igreja Dos Sagrados Donativos era sinuoso, escorregadio como um réptil, sabendo usar seu cativante Sorriso Colgate para extorquir generosas doações de seus fiéis. Havia herdado de seu antecessor uma pequena criação de porcos, que ele mantinha nos fundos do terreno da igreja, que fora pouco a pouco minguando até restar apenas um espécime. Pesando cerca de vinte quilos era um magnífico exemplar da


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raça objeto de admiração dos fieis que lá iam, depois do culto semanal.

Tão

popular

se

tornou

o

porco

que

foi

(informalmente) batizado com o nome de Jesus. Embora Araujo não fosse muito com a cara dele, resolveu procurar o Bom Pastor para uma proposta de compra do animal. Mas em vão. O Reverendo Nuno se mostrou irredutível em ceder o suíno, alegando ser uma de suas evangélicas bandeiras a da proteção aos animais e que a venda, sobretudo para ser assado, de um “quase membro da comunidade” seria muito mal visto pela mesma. Araujo ficou chateado mas não vencido. De simples animal, aquele porco havia se convertido em uma Questão de Estado, sendo sua presença, ainda que assado, imprescindível ao ágape onde assuntos políticos da maior relevância seriam decididos. Resolveu assim apelar para o Juliano.


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QUATRO Juliano era um marginal oficializado, cuja violência física fora algumas vezes utilizada por Araujo para a persuasão de alguns devedores renitentes. Credor de alguns favores, Araujo sentiu-se à vontade para encomendar um servicinho: - O estimado amigo deveria na sexta feira surrupiar o porco da Igreja, abatê-lo delicadamente e entregar o defunto na padaria de sua cunhada onde seria devidamente assado e entregue em sua casa, impreterivelmente ao meio dia de sábado.


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CINCO Embora o Presidente fosse esperado para as treze horas, o Doutor, pressuroso, compareceu ao meio dia. Para irritação de Dona Elvira, procedeu a uma minuciosa inspeção de tudo, desde a arrumação da sala até a limpeza da cozinha. Dando-se por fim satisfeito disse sorrindo : - Tudo vai dar certo. Tenho total confiança em você. O Araujo não sabia que todo o empenho do Doutor em impressionar o Presidente não se cingia somente à sua indicação para candidato, mas à pretensão que tinha de ser nomeado para membro efetivo do Conselho do Partido. Pontualmente a uma hora, precedido por um SUV com os seguranças chegou o Presidente, dentro de um vistoso Lexus preto. Foi um homem alto, magro, de expressão meio sarcástica que ofereceu galantemente à Dona Elvira um ramo de flores e em seguida estendeu uma mão mole e fria para cumprimentar o Doutor e Araujo. O Doutor o saudou efusivamente, elogiando a performance do partido e a excelência da sua presidência. Depois introduziu o Araujo como um jovem e empreendedor, excelente quadro


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para concorrer à Prefeitura, elogiando sua competência e sobretudo sua confiabilidade. - Confio integralmente nele, Presidente. O senhor vai ver ao saborear o porco assado de que tanto gosta Mas o porco ainda não havia chegado. Araujo estava meio preocupado mas começou a servir o whisky esperando ganhar tempo. Mas depois de bem bebidos, o animal ainda não tinha chegado. Disfarçando sua impaciência o Doutor sussurrou preocupado: - E o almoço Araujo? Já são duas horas. O Presidente tem que sair às quatro para um compromisso. - Estamos só esperando o porco, deve chegar a qualquer momento. Mas não chegou. O Juliano não tinha obviamente telefone e o Araujo imprudentemente não havia anotado o telefone da padaria. Pela cara dos convivas era patente sua irritação não atenuada pela profusão de salgadinhos oferecida por uma prestimosa e preocupada Dona Elvira. Mas o porco não havia chegado.


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Por fim, às quatro horas, o Presidente levantou-se meio cambaleante,

despediu-se

de

Dona

Elvira

e

saiu,

acompanhado pelo Doutor. Nenhum nem outro se dignaram a dirigir a palavra para o desconsolado Araujo. O olhar de ódio do Doutor foi suficiente para ele compreender que todos seus planos haviam virado pó. Araujo já ia saindo para saber do acontecido que lhe retirara todas as acalentadas pretensões políticas e financeiras, quando viu o Juliano subindo a ladeira em um monumental porre. - Porra Juliano, cadê o porco? - Eu fui lá como o senhor mandou. - E aí? - Não tive coragem, seu Araujo.Eu não podia roubar uma Casa de Deus. - Filho da Puta!! - Seu Araujo, Jesus me ama!!


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SEIS Nas eleições de Outubro vencera a oposição.

Dr.

Frederico, médico sanitarista, lotado no único hospital da cidade, homem correto e respeitado foi eleito com setenta e dois por cento dos votos contra quinze do adversário, um inexpressivo comandante aposentado dos Bombeiros, que o Presidente fora obrigado a indicar após a defenestração de Araujo. Logo após ter recebido do Doutor Tomaz a faixa prefeitual, seu antecessor o procurou no prédio da prefeitura. Confiante no seu taco, Doutor Tomaz achava que poderia cooptar o médico para manter a tradicional continuidade administrativa da cidade. Mas estava enganado. Embora recebido com muita delicadeza sentiu, desapontado, o novel prefeito ignorar polidamente todas as suas pretensões relativas a nomeações de cargos. Interessado na execução de algumas obras imprescindíveis ao funcionamento de hospital, Dr. Frederico logo procurou se enfronhar

nos

procedimentos

para

licitações

e

desavisadamente entrou em uma seara perigosa. Com o auxilio de seu primo contador, apercebeu-se logo das irregularidades passadas, não apenas nas licitações fraudadas,


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mas em toda a vida financeira da Prefeitura. Para uma apavorada Chefia de Material, encomendou um cadastro das cinco mais importantes empreiteiras do Município, que deveriam preencher todas as exigências de um edital de convocação. Francisco Araujo recebeu contristado que sua empresa não fora incluída. Na rubrica de dotações da Prefeitura, notou que muitos recursos repassados à Igreja Dos Sagrados Donativos para utilização em necessidades da comunidade, careciam por completo da necessária contrapartida, salvo por um luxuoso Land Rover do Pastor. Sem perda de tempo, convocou o santo homem para uma conversa em seu gabinete onde, calma mas firmemente, o informou que, para evitar um indesejável escândalo , deveria se afastar imediatamente da Igreja e deixar a cidade. Tudo por culpa do porco


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SETE O Doutor Tomaz estava muito deprimido. Não só havia perdido o prestígio tão longamente acumulado, como havia sido informado de que todos seus apaniguados haviam sido demitidos dos cargos fantasmas que ocupavam na Prefeitura. Tudo por culpa do porco. Mas a gota d’água foi uma tarde em que foi informado que uma denuncia contra ele, por irregularidades administrativas e enriquecimento ilícito, havia sido encaminhada ao procurador do Município. Era demais. Fora Dona Lydia, coitada, quem na manhã seguinte descobriu que o adorado marido havia morrido de um enfarte fulminante. Foi enterrado com honras municipais no mesmo cemitério que, anos antes, havia inaugurado para gáudio da população e considerável reforço em seus haveres.


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EPILOGO Seis meses depois, a cidade de Santa felicidade poderia fazer o balanço daquela estória. Havia um empreiteiro empobrecido, já sem o carro do ano e não mais pudendo enviar mulher e filha para Miami como havia prometido. Havia um Pastor que desaparecera misteriosamente, levando toda a caixa da Igreja e substituído por um anódino representante da Congregação Havia por fim um falecido ex-prefeito tão pranteado por sua inconsolável esposa e todos seus desamparados protegidos Havia também o Porco, agora convenientemente doado, vivendo tranquilamente em um próprio da Prefeitura, indiferente a todo o mal que havia causado. Mas algum arguto observador poderia talvez notar em seu focinho, um sutil sorriso zombeteiro.

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A GALINHA

Mas sรณ uma pobre crianรงa Reparou nos dotes da galhinha Mas nรฃo adiantou Sopa um dia ela virou! Kethlene Vanzeler

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1 Santo Batista da Mata e São João do Mato eram duas cidades vizinhas, quase gêmeas distantes uma da outra não mais que vinte kilometros, mas, por algum equivoco geopolítico, pertencentes a diferentes municípios. Cada uma era simetricamente guarnecida com todos os equipamentos de uma cidadezinha do interior, como Prefeitura, Igreja, escola, delegacia e posto de saúde. Santo Batista fora agraciada também com uma agência do Banco do Brasil, o que dela fazia uma metrópole. Uma estrada vagamente asfaltada separava as duas cidades. Quase na divisa, uma Casa da Luz Vermelha ostentava à noite, conspicuamente, sua rubra identidade, como um convite aos atarefados fazendeiros para algumas horas de relaxamento e prazer com as meninas, além de ali fecharem entre si alguns negócios milionários. Além disto, nos fundos da casa havia uma saleta destinada ao carteado, onde freqüentemente pequenas fortunas mudavam de mão. Embora totalmente ilegal ninguém incomodava sua proprietária, pois entre seus clientes regulares contava, além da fina flor do poder econômico local, com a presença dos prefeitos e delegados das duas inocentes cidades.


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2 Em São João três figuras eram proeminentes: O Prefeito, o Vigário e o Coronel. O Prefeito, homem de seus cinqüenta anos era mesquinho, medíocre e capacho do Imperador O vigário não era tão mau. Tratava bem sua velha empregada, oficiava sempre os batizados e enterros e dedicava carinho especifico a alguns jovens mancebos da paróquia. Mas quem imperava era o Coronel. Figura anacrônica mas atuante, o Coronel era dono de metade da cidade. Além de sua fazenda, onde o gado leiteiro lhe rendia boa receita, possuía o armazém, a farmácia e numerosos prédios urbanos. Dizia-se mesmo que era um dos proprietários da Casa da Luz Vermelha, onde era um habitué. A casa da fazenda onde morava no alto da colina destacava-se como o símbolo de seu poder. Com um varandão que divisava a cidade, uma enorme sala de jantar, vários quartos e um só banheiro, onde, pela manhã, o Coronel se trancava para ler pacientemente seu jornal, indiferente à angustia fisiológica do resto da família. Contigua à sala ficava o escritório onde ele despachava seus negócios e assistia religiosamente com a mulher a novela das oito em um portentoso televisor de


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catorze polegadas. Mau feito uma peste, era muito temido na cidade, pois mandava surrar seus desafetos ou quem mais ousasse contrariar seus interesses. A surra era diligentemente aplicada pelos seus feitores. Havia três, dois deles, além dos afazeres normais da fazenda, cumpriam fielmente as ordens de espancamento. O terceiro, Sebastião, não se envolvias nelas, cuidando tão somente do trabalho normal a que era afeto. Reservado distante, em nada se assemelhando aos truculentos colegas, era objeto de continuas humilhações do patrão, que o considerava um imbecil. Corria o boato de que ele era filho bastardo do Coronel. Era casado com Dona Gloria, uma tímida e conformada senhora que agüentava, há mais de vinte anos a presença sufocante do marido. Tinha dois filhos, quase da mesma idade. Luiz, com seus dezenove anos era o desgosto do pai. Inútil como ele dizia, mal freqüentava a escola, passando a maior parte do tempo zanzando pela cidade ou fazendo embaixadinhas com a pelota que adorava. Mas a filha, Margarida ele adorava. Talvez pelo seu jeito petulante e desafiador, ele achava que ela havia herdado seu belicoso temperamento e isto o enchia de orgulho. Aos


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dezessete anos, era uma moça muito bonita e vivaz, pronta para o amor. Era esta a preocupação do pai. Precisava enviar a filha para completar seus estudos na capital, ou mesmo na Oropa, onde poderia lhe presentear com um genro de qualidade, em nada semelhante aos possíveis pretendentes locais. Mas para isto devia prepará-la.


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3 Uma moça educada, capaz de atrair um noivo de estirpe, deveria saber, além de outra língua também tocar piano. Para ensinar o inglês contratou uma cearense, viúva de um embarcadiço canadense, que gostava de ser chamada de Miss Linda, mas não era nem Miss nem linda. Para o piano, adquiriu na capital um Pleyel tipo armário juntamente com a contratação da dona Ofélia, professora indicada pela loja cuja postura austera e os óculos “pince nez” nele despertaram uma sensação de competência. Margarida não se entusiasmou muito com a idéia de aprender piano, mas resolveu experimentar. No entanto, no dia aprazado, quem se apresentou foi um rapaz bem apessoado, convenientemente trajado de terno e gravata. Paulo era seu nome. Como dona Ofélia estava doente, a loja o havia indicado como substituto. O Coronel não gostou nada. Preferia de longe que fosse uma mulher para ensinar à filha, ao invés de um rapaz que ele não conhecia. Não gostou ainda mais, quando, espreitando as aulas, via que as mãos do mestre se demoravam mais que deviam a guiar os dedos da filha sobre o teclado. Gostou ainda menos quando percebeu que ela gostava. Decidiu


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despedir o Paulo. Para consternação de Margarida, quem apareceu na semana seguinte foi dona Ofélia. Não durou uma semana. Com toda a petulância que possuía, declarou ao pai que não mais ia aprender piano.


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4 Mas o mal já estava feito. Ela e Paulo ficaram apaixonados. Trocavam bilhetes de amor, que Zezé ia secretamente depositar e recolher no Correio. Paulo, que era também

caixa

do

Banco

do

Brasil,

conseguiu

sua

transferência para a agência do mesmo, em Santo Batista, onde distaria apenas dez minutos de motocicleta. Guiado pela paixão, ia toda a noite ao jardim da fazenda para se encontrar escondido com a moça. Esta aproveitava o horário da novela das oito, quando o Coronel e dona Gloria a assistiam atentamente, para se envolver, no jardim, em maravilhosos eflúvios amorosos com o secreto namorado. Até a noite em que, deitados debaixo da mangueira foram pilhados pelo Everton. Este era uma figura estranha, sorrateira, cuja orientação sexual, segundo as maledicentes línguas, era dirigida às cabras. Era o olheiro do Coronel, que logo se apressou em contar ao patrão sua lasciva descoberta. Na manhã seguinte o Coronel, contendo a ira que o invadia, reuniu os feitores e calmamente ordenou um sério corretivo no pilantra engravatado que ousara macular sua filha.


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5 Por infeliz coincidência, Paulo havia ido a São João naquele dia. Aproveitara o feriado bancário para ali comprar um farol novo para a moto, tão necessário para suas investidas noturnas. Enquanto tomava um cafezinho, sentiu o bastardo Sebastião em suas costas. Ele simpatizava com o rapaz, tão diferente de seus companheiros. - Professor, preciso lhe dizer uma coisa importante. - Pode me chamar de Paulo, o que é? - Vamos lá para fora. E lá fora Sebastião lhe informou que sua vida estava em perigo na cidade e que dela não deveria sair naquela hora porque os rapazes estavam tocaiando na estrada. Paulo sentiu-se sem saída. Estava preso na armadilha, não podia ficar nem sair. - Que é que eu faço Sebastião? Não tenho pra onde ir, nem dormir. - Já pensou na cadeia? Era uma boa idéia, mas não tinha como pedir proteção ao


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delegado, sabido que era amigo do Coronel. - Mas como? - Tem galinhas... Bendito Sebastião. Paulo agradeceu e desceu a rua, rumo à delegacia. De passagem, parou na casa de Seu Mesquita, personagem insignificante, mas relevante para seu plano. Aos fundos da casa havia uma criação de galinhas, que Paulo invadiu corajosamente e apropriou-se indevidamente da mais bonita. Voltando à rua, foi andando decidido em direção à delegacia com o bicho no colo, seguido por um enraivecido Mesquita e logo por pequena multidão entusiasmada que aos berros gritava “Pega Ladrão.” Imperturbável continuou andando até que o Cabo, diante do clamor publico, o prendeu. O delegado estava presente quando diante dele compareceram o Cabo, o prisioneiro e a galinha. - Que faço agora, seu delegado? - O transgressor deve ser posto em custódia e o corpo de delito recolhido para averiguações.


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- ?? - Ponha o cara na cela e a porra da galinha no banheiro O delegado estava chateado. Tinha que manter preso um cara da outra cidade, precisaria de uma precatória, o juiz iria criar caso, tudo por causa de uma galinha. Mas de repente achou que podia tirar partido da situação. Foi até a cela onde Paulo, recuperando-se do stress, exausto cochilava. - Seu Paulo, você vai ser solto... O coração do Paulo disparou - Caso pague a fiança. Ao alivio que sentiu, retomou o sangue frio - Quanto é a fiança, senhor delegado? Ele pensou um pouco. - Mil pratas Paulo já havia adquirido completo controle da situação. - Posso dar um cheque? - Não, só dinheiro. - Seu delegado, para provar minha boa fé proponho o


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seguinte: Eu durmo aqui esta noite e amanhã o cabo me leva na viatura até Santo Batista, apanho o dinheiro no banco e entrego a ele. Deixo a chave da minha moto como garantia. A proposta pareceu razoável e Paulo passou pela primeira vez uma noite na cadeia. No dia seguinte,a bordo de uma lastimável Kombi da policia, atravessou em segurança a perigosa estrada que o levou a Santo Batista. Pontualmente às dez horas quando abria o banco, Paulo viu suas economias se reduzirem em mil pratas e sua integridade física restaurada.


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6 O delegado já havia se esquecido da galinha quando entrou no banheiro e deparou-se com uma imundice consubstanciada por um mar de titica. A responsável, a um canto movia a cabeça de um lado para o outro sem nada compreender. - Merda, que vou fazer com este bicho? Ao ver, contudo o Luiz perambulando, como de habito, em frente à delegacia, teve uma brilhante idéia. Como não havia registrado a ocorrência iria doar o corpo de delito ao Coronel, seu amigo e parceiro nas truculências. Seria um bom presente, uma Legorne de quatro kilos, quase nova e em ótimo estado de conservação. Chamou o Luiz e entregou-lhe a dádiva com a recomendação expressa que ele a entregasse ao pai, em seu nome.


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7 Naquela noite, após o jantar, o Coronel não se sentia bem. Havia exagerado na comida e na bebida e um peso no estomago o levou a se deitar no sofá do escritório para esperar a novela. Mas adormeceu. Dona Gloria fechou a porta de mansinho, abdicando da novela, mas curtindo seus momentos de paz. Por sua vez, Luiz resolveu esperar o anoitecer para levar a galinha. Não queria, com justa razão, se encontrar com o pai, cujo contacto resultava quase sempre em uma porrada. Iria depositar o animal em algum lugar estratégico. Prendeu a galinha no jardim e foi jantar na cozinha, o que sempre fazia. Quando viu que o Coronel estava no escritório, abriu cuidadosamente a porta para certificar-se se ele dormia. O Coronel estava ditado em decúbito dorsal, isto é, de barriga para cima, roncando estrepitosamente. Mas não havia ali onde deixar a galinha. No chão era arriscado, ela podia sujá-lo e se escondesse debaixo da televisão, aí vinha a porrada. Desanimado voltou-se para sair quando viu o piano. Ali estava o infaustoso Pleyel, há muito abandonado e pivô de toda aquela melodia. Seu topo, afora algumas miniaturas de porcelana, estava quase vazio. Era alto


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o suficiente para que a galinha nĂŁo se evadisse e visĂ­vel bastante para nĂŁo passar despercebida quando o Coronel acordasse.


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8 Há muito o Coronel padecia de um pesadelo recorrente, principalmente quando dormia empanturrado e de barriga para cima. Nele, vislumbrava todos aqueles a quem tinha mandado agredir, alguns fatalmente, que riam para ele. Ao fim, vinha a figura do falecido pai, instando severamente para que se arrependesse e, tal como no “Don Giovanni” de Mozart, as gargantas do inferno se abriam para devorá-lo. Acordava aos berros, sobressaltado, com Dona Gloria o consolando. Talvez nunca se possa explicar o que deu na galinha naquela noite. Após horas de espera naquele poleiro incomodo, ela imprudentemente resolveu saltar, em busca talvez de um lugar mais confortável. Mas a galinha é uma péssima avoante. Suas asas servem tão somente para pequenas elevações ou para amortecer a queda quando pulasse. Mesmo assim, aventurouse. Mas, desastradamente não pode escolher no escuro o seu “landing spot”. Pousou estrepitosamente na cabeça do Coronel, arranhando seu rosto com suas garras. Foi no preciso momento do sonho em que as chamas infernais o ameaçavam que o Coronel sentiu que algo apavorante o estava sufocando.


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Foi demais. Seu coração não agüentou. Na manhã seguinte, Zezé abriu o escritório para a limpeza. Observou espantada uma galinha confortavelmente aninhada na cabeça do Coronel que jazia imóvel, no sofá. Acostumada com a morte, Zezé não teve a menor duvida de que estava morto. Mortinho da silva. Mas não gritou com a descoberta, como as camareiras fazem nos filmes. Detestava o patrão desde que ele havia surrado seu filho maior por ter inadvertidamente quebrado a lanterna trazeira de sua adorada pick-up Ford em um infeliz chute da pelota. Benzeu-se convenientemente e retirou-se, não sem levar a galinha para uma boa refeição dos filhos. Ao enterro do Coronel compareceram o prefeito, o vigário, a mulher e os filhos. Foi uma breve cerimônia onde não correram muitas lagrimas. Nem muitas nem poucas. Após o vigário, com sua voz melíflua, encomendar o corpo, ele foi enterrado e pronto. Dois dias depois, no intervalo da novela, Paulo, devidamente


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engalanado em seu terno e gravata, ousou pedir à Dona Gloria sua filha em casamento. Dona Gloria, meditou, e, durante um anuncio de dentifrício acenou silente, mas positivamente, seu consentimento. Casaram-se um mês depois, em um cartório em Santo Batista, pois o vigário havia sido afastado de suas funções não havendo ainda sido substituído e de qualquer forma não queriam qualquer vinculo religioso em sua união pois Margarida estava grávida. E viveram felizes para sempre durante algum tempo. Graças à galinha


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9 A felicidade dos dois durou até que a verdadeira situação financeira do Coronel se evidenciasse. Todo o seu patrimônio, a farmácia, o armazém e seus numerosos prédios estavam penhorados por enormes dívidas no jogo e os agiotas que supriam seu padrão de vida. O resultado era que a tão esperada herança se resumia a alguns objetos particulares do extinto. Mas Paulo não se deixou abater. Notando que a defenestração do vigário havia gerado uma demanda insatisfeita no exercício da fé, fundou uma alternativa Igreja Evangélica. E se deu bem.

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O GATO

Gato que brincas na rua Como se fosse na cama, Invejo a sorte que ĂŠ tua Porque nem sorte se chama. Fernando Pessoa

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I Conheceram-se na PUC, onde cursavam Engenharia Civil. Batista, alegre, expansivo e por vezes irresponsável, era filho de portugueses. Daniel, reservado, estudioso e fonte inesgotável das colas de Batista, era de ascendência judaica. Apesar da diferença de temperamento eram muito amigos. Inseparáveis. Formaram-se ambos, Daniel com louvor e Batista na tangente, mas formaram-se. Daniel, com sua pericia em matemática devotou-se ao ensino. Batista, inicialmente como estagiário de um banco de investimentos, conseguiu depois de algum esforço um lugar na Administração de Carteiras. Ali tomou conhecimento das operações dos clientes e se apaixonou pelas operações da Bolsa de Valores, que naquela época ainda existia no Rio de Janeiro. A tal ponto que passava suas horas de almoço na Boverj, acompanhando o pregão, tendo feito amizade com alguns corretores. De simples observador, tornou-se um expert no assunto. Investia religiosamente parte do seu salário nas ações que seu conhecimento indicava, incluindo algumas dicas profissionais dos seus amigos, sendo recompensado, ao fim de algum tempo, com um expressivo retorno de seu capital.


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Simpático e insinuante logo

conquistou

alguns

dos

investidores da carteira do banco, a quem fornecia úteis informações. Foi quando se apercebeu que poderia se tornar autônomo. A idéia era simples: o banco cobrava uma alta comissão, não só sobre cada operação de compra e venda, mas principalmente sobre o lucro delas auferido. Através de uma empresa de consultoria, poderia prestar serviços de administração da carteira dos clientes, sem cobrar qualquer comissão

além

da

corretagem

que

era

transferida

integralmente aos operadores. Remunerar-se-ia tão somente por uma mensalidade fixa,que cobriria, além do ISS e as despesas do escritório, uma margem razoável para sua manutenção.


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II De inicio, alguns clientes do banco, após fazerem as contas, decidiram-se por transferir suas aplicações para a firma de Batista. Logo porém, satisfeitos com o resultado obtido, cooptaram outros investidores do banco, até o ponto em que a firma, situada em uma modesta saleta na Rua Evaristo da Veiga e operada por um homem só, passou a precisar urgentemente de um sócio e uma expansão física. Foi ai que pensou em Daniel. Ele também gostava de investir em

ações,

era

ótimo

em

matemática

financeira

e

extremamente meticuloso para organizar o escritório, que havia se transformado em uma bagunça. Além disto, poderia trazer outros clientes, não só dos colegas acadêmicos com quem lidava, mas também, quem sabe, da comunidade judaica a que pertencia. Com a presença de Daniel, agora sócio em partes iguais de Batista, foi criado um Fundo, administrado pela firma, devidamente registrado na CVM com amplo escritório na Rua da Assembléia, secretárias e analistas. As comissões cobradas aos mutuários não afastaram os investidores porque os lucros auferidos eram mais do que compensadores. Mas foram suficientes para, em pouco tempo, tornar

ricos os dois


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amigos. A vida de ambos mudou completamente. Já casados, Batista com Marlene, bela e esfuziante morena, burra, mas muito simpática, e Daniel com Clara, calma e reservada professora do colégio A. Liessin, adquiriram ambos duas casas em um condomínio de luxo na Barra da Tijuca. Os modestos Chevetes que possuíam foram substituídos por um Audi, de Daniel e por uma Land Rover, de Batista. Certa manhã de sábado, levaram as esposas para uma concessionária Fiat, onde foram presenteadas com dois Puntos do ano, iguaizinhos, mas “não da mesma cor, pelo amor de Deus” como bradou Marlene, encantada com seu novo status.


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III Naquela época já tinham filhos. Ambos com oito anos, David, de Clara e José Carlos de Marlene, encantavam os casais. David era reservado, super protegido pela “mama idish”, muito cioso dos seus deveres escolares. Já José Carlos, a quem os pais só chamavam de “menino” era, como Batista, alegre e expansivo. Para alegria dos casais, seus rebentos brincavam juntos e eram aparentemente amigos. Nas férias das crianças, de surpresa, os amigos levaram as famílias para Orlando, onde, após se deliciarem com as atrações da Disney, foram passar uma semana em Nova York. A vida estava boa, as famílias, vizinhos que eram freqüentemente se encontravam para fartos almoços, judaicos feitos pela dedicada Rosa, ou feijoadas encomendadas por Marlene.


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IV

Mas naquele Domingo tudo mudou. Batista, como sempre fazia foi tomar um drinque na casa ao lado. Depois de conversarem alegremente sobre os negócios, Batista, sorrindo meio torto disse: - Dan, tem um pequeno problema. - Fala Batista. Meio sem jeito Batista desembuchou: - Não é nada demais, é que seu filho ontem levou o gato do menino. Ele gosta muito do gato e gostaria que ele o devolvesse. Sabe como é criança... Daniel chamou imediatamente o filho - David, devolva imediatamente o gato do menino. - Que gato? - O do menino, que você tirou. - Pai, não tirei nenhum gato! Daniel abriu os braços, desarmado, e com um sorriso amarelo: - Batista, deve ter sido um engano...


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Mas Batista não mais estava sorrindo: - Não houve nenhum engano. Meu filho não mente. E retirou-se. A relação dos dois havia esfriado. Falavam-se polidamente no escritório mas agora sem a intimidade que lhes era habitual. Esfriou ainda mais quando, na semana seguinte, Marlene e Clara se enfrentaram em violento bate boca ao qual não faltaram palavrões. A partir de então, não mais se cumprimentaram. No escritório, não mais se falavam, gerando um clima tenso entre os funcionários. Daniel, trancado em sua sala, começou a sentir que a animosidade dos sócios poderia estar prejudicando os negócios. Por prudência, resolveu então deles se assenhorear, coisa que há muito tempo não fazia, louvado que estava na competência de Batista, que havia chamado a si toda sua condução.


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V E foi então que descobriu o segredo do extraordinário sucesso do Fundo: estava montado em um vasto esquema “Ponzi” cujo estouro podia der iminente. O esquema Ponzi é uma sofisticada operação fraudulenta de investimento do tipo pirâmide que envolve o pagamento de rendimentos anormalmente altos aos investidores, à custa do dinheiro pago por aqueles que chegarem posteriormente. Foi inventado por Charles Ponzi, emigrante italiano chegado aos Estados Unidos na década de vinte que, após ter lesado milhares de pequenos investidores teve sua falência declarada e fora indiciado criminalmente. Com a cabeça fervendo, voltou para casa. Posto o filho para dormir após o jantar, sentou-se com Clara e contou tudo. Contou ainda mais. Iria se desfazer da Firma, vender a casa e mudar radicalmente de vida. Clara tudo ouviu com a calma que lhe era peculiar. Ao invés de triste, sentiu-se aliviada. Jamais gostara daquele estilo de vida que passara a levar desde que o marido ficara rico. Preferia muito mais tê-lo perto de si e do filho, dedicado a coisas mais importantes do que os negócios. Detestava a ociosidade a que fora submetida, estava saudosa do tempo em


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que ensinava, atividade que tivera que largar depois de ter se mudado para a Barra. E, naquela noite treparam, coisa que nĂŁo faziam hĂĄ muito.


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VI No dia seguinte, Daniel colocou seu plano em ação. Esboçou rapidamente um instrumento de cessão de suas cotas da firma para Batista e dirigiu-se para o escritório Di Camargo & Luciano Advogados. Procurou o Dr. Luciano, que era o advogado da Firma. Recebido com a habitual gentileza, foi direto ao assunto: - Luciano, gostaria que você, além de representar a Firma, fosse também meu advogado particular. - Será uma honra Daniel. Pode me considerar como tal. Estava assim estabelecida a relação de sigilo entre os dois. Entregou-lhe então o rascunho do documento que preparara. Luciano leu atentamente. - Quer dizer que você quer se desligar da Firma. Mas porque Daniel? Batista já sabe? - Por motivos pessoais. Batista vai saber assim que você me preparar o instrumento. Vamos assinar os dois e depois peço que você faça os registros necessários, inclusive na CVM - Claro Daniel. Amanhã á tarde, está bem?


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VII De posse do documento, Daniel passou a noite seguinte a copiá-lo no computador. Em baixo da cláusula que estipulava, conforme suas instruções, que o preço da cessão deveria ter um valor simbólico, escreveu um adendo no qual as

partes

concordavam

em

liberá-lo

de

toda

a

responsabilidade dos atos praticados pela firma, passados e presentes, Cedo, na manhã seguinte, entrou na sala de Batista. Secamente se cumprimentaram e Daniel começou o discurso antes ensaiado: _Batista,

estou

sentindo

que

esta

situação

é

insustentável e está prejudicando a Firma. Acho melhor eu me desligar cedendo as cotas a você. Batista ficou surpreso e aliviado. Era isto que estava querendo. Mas quando leu perfunctoriamente o documento que Daniel lhe entregara, ficou grilado: - Mas você não vai querer nada? - Batista, estou cansado, já tenho bastante dinheiro ganho pela Firma, não preciso de mais. Clara está de acordo e gostaria de resolver agora este assunto.


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- O Luciano jรก viu isto? - Claro, foi ele mesmo quem preparou. Telefone para ele agora. E, pelo telefone, o advogado confirmou ter preparado o documento e que ele poderia assinรก-lo.


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VIII Dois meses depois, em um chuvoso domingo, Daniel estava sentado na sala lendo o jornal. Estavam morando agora em um apartamento alugado, prédio antigo, mas confortável em Laranjeiras, convenientemente perto da Hebraica e da escola onde Clara voltara a ensinar. Havia vendido a casa na Barra, e, após quitada a hipoteca, aplicara na poupança o que restara, que lhe garantiria uma renda mensal modesta, mas suficiente para uma vida contida mas segura. Ocupava-se agora em assessorar, mediante modesta remuneração, pequenos investidores que conhecera na comunidade e que a ele confiaram suas economias. O jornal dedicava extensa matéria sobre o estouro da Firma, os credores prejudicados, o indiciamento de Batista por fraude financeira e conseqüente arreste de seus bens. Levantou-se, e sorrindo divertido com a idéia de que um simples gato tivesse mudado tão radicalmente sua vida, dirigiu-se ao quarto do filho. Queria certificar-se de algo que sempre desconfiara. Cercado por enorme bagunça, lá estava o filho, tranqüilo, lendo uma revistinha. Mas seu corpo não podia evitar a visão de um insólito rabo, cujo proprietário se escondia atrás do


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jovem. Calmamente Daniel perguntou: - David, você está com o gato do menino? - Não, pai. - O que é isto atrás de você? Ele se levantou, evidenciando o bichano - Um gato. - E de quem é este gato? - Do menino.

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