Revista Bistrô

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Saboreando

os valores culturais atribuídos a determinado alimento. Transformando-se e se introduzindo a cultura popular brasileira, as receitas culinárias passam por um processo de desconstrução para se adequarem aos hábitos e disposições familiares: “(...)As rejeições, as adaptações e as transformações dos alimentos são mais do que meras questões de gosto ou de capricho, representam a essência do valor que é dado aos diferentes bens e conduzem a questões de identidade”, como aponta o livro “Sabores do Brasil em Portugal”. – Lembro-me que quando criança, mamãe reunia os familiares dominicalmente para um almoço farto. Uma tradição que ela trouxe lá da Espanha e perpetuou em nossa família, tal como quando ela era criança. A especiaria que ela preparava era a Paella, uma iguaria que mistura mariscos, frango e arroz, preparados com muito azeite. Eu cresci vendo-a preparar essa receita e o engraçado é que meus filhos passaram pelo mesmo processo em relação a mim. Os temperos certos, as quantidades ideais, a manhas do cozimento e correta disposição de cada alimento não se aprende nos livros, mas sim na prática – reforça o depoimento de Maria da Conceição González, iguaçuana, de 73 anos, quanto ao entendimento da gastronomia ser uma arte representativa cultural e em constante transformação. Pressa, desorientação, falta de ingredientes adequados e más condições de trabalho são responsáveis, também, pela criação de muitos pratos culinários. Tal colocação é afirmada por Maria de Paula Silva e Souza, nilopolitana, de 59 anos, ao dizer: – Minha família é de origem do interior Fluminense. Meu avô não tinha condição financeira muito boa, mas tinha 38

terras, sabe? E uma das formas de sustento da família era plantar pra comer. Vendiam os legumes a preço muito baixo, mas conseguiam tirar o mínimo do que plantavam para se alimentar. Por um tempo, sobreviveram à base de legumes, praticamente. Com os anos, as condições foram melhorando e conseguimos acrescentar carne ao nosso cardápio, mas como vovó sempre cozinhou os legumes, ela então resolveu manter o costume familiar junto às novas condições. Aí que surge como tradição da nossa família o cozido, que foi passado para minha mãe, depois a mim e agora aos meus filhos. Toda reunião de família é marcada pelo cozido, se não tem cozido, dizemos que não é reunião. Independente do processo histórico em que o Brasil foi colonizado, a cozinha brasileira varia de região para região. Não há como formar um ideal culinário brasileiro, nem moldar a gastronomia nacional. O fato é que esta prática se relativiza de acordo com a cultura de cada família ou grupo. Receitas são criadas, multiplicadas, adaptadas e perpetuadas nos cernes familiares, cada qual com sua particularidade. A tradição de passagem dos segredos culinários familiares dentre as gerações foi, é e será para sempre um patrimônio histórico e imaterial do povo brasileiro. Certamente, o nosso mais belo folclore. •


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