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LIVROS E PROFESSORES “CAÇADORES DE LEITORES”
MARIA VIANA1
O avanço de pesquisas nas áreas da pedagogia e da psicologia cognitiva, em que se estuda, entre outras coisas, a evolução da capacidade de interpretação textual por crianças e adolescentes, contribuiu sobremaneira para a concepção de uma teoria a respeito da literatura destinada a eles. Portanto, desde a década de 1970, os estudiosos têm mostrado interesse renovado em entender a importância da ficção para o desenvolvimento do pensamento lógico dos indivíduos. E, a partir daí, nenhum pesquisador da área de pedagogia, literatura ou psicologia nega a importância de os leitores em formação terem acesso a histórias editadas especificamente para eles.
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Além disso, nas últimas décadas, a discussão em torno da importância da leitura no Brasil ganhou espaço indiscutível na mídia, nos gabinetes dos políticos, nas universidades; e, no bojo desse debate, estão aspectos que envolvem a formação do leitor literário.
Nos últimos anos, os grupos editoriais também têm feito investimentos volumosos no segmento de literatura para crianças e jovens. Criaram-se as editorias especiais para atender esse público, e grande somas são investidas na produção gráfica, na seleção de ilustradores, na concepção de projetos.
No entanto, sabe-se que apenas o domínio do código alfabético não é suficiente para que uma pessoa se torne leitora. A leitura ou, melhor dizendo, a prática da leitura, é algo que se aprende, se desenvolve, se cultiva. Não existe uma idade padrão ou um momento específico para se tornar leitor. Trata-se de um processo que se dá de maneira diferenciada para cada pessoa. No entanto, o acesso a livros de diversos gêneros, autores e estilos certamente contribuirá para o bom andamento dessa formação que jamais se encerra.
Despertar o gosto pela leitura não é, por certo, uma tarefa que caiba exclusivamente à escola. Mas é nesse espaço que muitos, senão a grande maioria das pessoas, têm seu primeiro contato com os livros. É na escola que muitos são apresentados a um mundo até então desconhecido, aquele que se descortina com a leitura. Daí o papel fundamental do professor.
Uma questão que se coloca de imediato quando pensamos na importância de uma seleção de textos para a infância e a juventude é: “Para que serve a literatura?”. E aqui podemos nos valer das palavras de Leyla Perrone-Moysés:
Se nós acreditamos que a literatura tem a alta utilidade de esclarecer, alargar e valorizar nossa experiência do mundo, admitiremos que a história do conjunto de suas realizações maximiza o proveito que podemos tirar do contato com cada realização particular. E se a fruição da literatura, no seu mais alto sentido de conhecimento e valorização da experiência humana, é o nosso objetivo, seremos levados a defender um certo tipo de história literária: aquele que otimiza a fruição das obras.2
Portanto, segundo a estudiosa, longe de ensinar conteúdos pedagógicos, a leitura literária deverá permitir ao leitor a fruição, ou seja, o prazer intelectual e estético proporcionado pelo ato de leitura.
1 Estudou Artes Cênicas na UFMG e Letras na USP, onde atualmente faz mestrado no programa de Culturas e Identidades Brasileiras do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB). Foi atriz, contadora de histórias e educadora. Há alguns anos trabalha como editora de livros didáticos e de literatura para crianças e jovens. Os textos de sua autoria aqui apresentados foram escritos especialmente para este catálogo. 2 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas literaturas. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 23.
Todavia, a leitura é uma habilidade que exige esforço intelectivo antes de tornar-se fruição e, a depender do nível de desenvolvimento desse leitor, características essenciais devem ser consideradas na construção das estruturas narrativas. A classificação por idade ou ciclo escolar é uma das formas possíveis de se pensar a seleção de obras para esses destinatários.
No entanto, acreditamos que mais importante do que determinar a faixa etária é considerar as habilidades cognitivas e linguísticas do leitor em formação e seus interesses nas diferentes fases de vida, mas sem abandonar a ideia de que um leitor em qualquer idade geralmente se interessa por vários tipos de livro ao mesmo tempo. O que não é diferente no caso da criança. Um menino de nove anos pode tanto gostar de ler gibi como livros de aventuras, que também são apreciados por sua amiga de doze, que, por sua vez, adora ouvir os contos maravilhosos lidos pela mãe para a irmã de seis anos. Ou seja, não há fronteiras, apenas alguns parâmetros. Isso porque concordamos com Edson Gabriel Garcia, quando considera que o texto sedutor é também um mediador de leitura:
Há, no entanto, uma mediação feita de modo sutil, delicado, tênue, quase sem a presença de sujeitos mediadores. É a mediação feita pelo texto sedutor, que seduz e conquista o leitor com suas próprias forças, razões, propostas, tramas, teias, enredos. O texto sedutor, como um animal caçador, fica à espreita, esperando a aproximação de um leitor. E fisga-o. E o leva para dentro de seu universo, enredando-o nas palavras, nas ideias, nos buracos da significação, na ausência e presença de ideias, num diálogo solitário, mas fecundo e emaranhado. Sós, leitor e texto, texto e leitor dialogam e constroem sentidos. 3
Para nós, esta pode ser uma grande contribuição do professor na formação do leitor literário: propiciar aos alunos o contato com o maior número possível de livros “caçadores de leitores”. No entanto, acreditamos que o professor também tem papel fundamental como “caçador de leitores”. Mas como poderá ser esse caçador se antes não empreender sua própria jornada pelas veredas da leitura? Se não suspirar diante de uma bela narrativa romanesca, não sentir o coração disparar no desfecho de uma grande aventura ou ter os olhos mareados diante de um belo poema? Em síntese, se não for, ele mesmo, presa dos livros-caçadores?
Portanto, antes de selecionar textos para alunos de qualquer idade, é preciso que o professor tenha seu próprio repertório de leituras preferidas, de livros lidos e relidos, de histórias abandonadas a meio caminho, que nem por isso deixam de ter importância na trajetória de todo leitor, que tem, inclusive, o direito de abandonar uma leitura por não ter gostado da história ou não estar preparado para ela.
Ler é construir e desconstruir sentidos permanentemente. É penetrar em mundos desconhecidos, onde, com sorte, somos surpreendidos por redes que nos prendem do começo ao fim da narrativa. Às vezes, somos capturados por intrigas, estilos ou personagens, que são como a isca colocada na frente da armadilha para atrair certos animais. Quando nos damos conta, já estamos dentro da jaulalivro para, ao final da história, sairmos de lá às vezes mais sabidos, às vezes emocionados, quase sempre com aquela sensação de que as portas da jaula já estão abertas – pois a história acabou, mas queremos ficar lá dentro, sentados num canto, ainda a conviver com aquele mundo que não é o nosso, mas do qual já fazemos parte.
As redes e arapucas que podem ser usadas para caçar leitores são muitas. Cada professor conhece bem qual funciona melhor com determinada classe ou aluno. Por isso, não acreditamos em receitas infalíveis, que possam funcionar num passe de mágica. Queremos apenas compartilhar algumas reflexões e técnicas que poderão contribuir para que o professor amplie seu repertório de possibilidades nesse desafiante e delicioso trabalho de formar leitores literários.