Fascistas

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Índice PREFÁCIO ANTÓNIO COSTA PINTO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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PREÂMBULO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Uma Sociologia dos Movimentos Fascistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Explicar a Ascensão do Autoritarismo e Fascismo do Período Entre as Duas Guerras . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Itália: Fascistas Puros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Nazis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Simpatizantes Alemães . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Austro-fascistas, Nazis Austríacos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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A Família Húngara de Autoritários . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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A Família Romena de Autoritários . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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A Família Espanhola de Autoritários . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Conclusão. Fascistas, Mortos e Vivos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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ANEXOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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BIBLIOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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ÍNDICE REMISSIVO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Portugal, Michael Mann, o Fascismo Europeu ANTÓNIO COSTA PINTO

Fascistas, do destacado sociólogo Michael Mann, representa um saudável regresso à análise comparada do fascismo e do seu papel na crise e colapso da democracia, provindo da melhor tradição das ciências sociais, nomeadamente da sociologia histórica comparada. Com a sua obra, a sociedade e a política estão de volta aos estudos sobre o fascismo. Interrompendo ou realizando ligeiros desvios à sua opera majore The Sources of Social Power (1986 e 1993), Mann utiliza a vastíssima bibliografia académica sobre o fascismo para esboçar uma análise do fenómeno e das condições do seu sucesso. Por outras palavras, o seu livro é um regresso às perguntas clássicas: quem são eles, como crescem e apoiados por quem? Que condições são mais favoráveis à sua tomada do poder? Mann tenta construir um modelo para uma análise dinâmica e não meramente taxonómica do fascismo através de seis estudos de caso, aqueles onde o fascismo foi um movimento importante no derrube da ordem liberal e democrática e chegou ao poder, quer como força dominante, quer como parceiro menor: Itália, Alemanha, Áustria, Hungria, Roménia e Espanha. Para isso, Mann concentrou-se mais “na ascensão dos movimentos fascistas do que nos regimes fascistas estabelecidos” (p. 29).

O que é o Fascismo? Mann abre o livro com a sua definição de fascismo em termos de valores, acções e organizações de poder dos fascistas. “Mais concisamente, o fascismo é a busca de um estatismo nacionalista transcendente e depurador através do para9


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militarismo” (p. 13). Os cinco termos centrais, alguns com tensões internas, são nacionalismo, estatismo, transcendência, depuração e paramilitarismo. Alguns destes não requerem introdução com grande pormenor, pois são relativamente consensuais: 1. Nacionalismo: a “filiação profunda e populista de uma nação ‘orgânica’ e ‘integral’”. 2. Estatismo: aqui, trata-se de objectivos e formas de organização. A concepção orgânica impõe um Estado autoritário, corporizando uma vontade coesa e singular expressa por uma elite partidária que adere ao “princípio da liderança” (p. 43). Mann apercebe-se das tensões entre “movimento” e “burocracia”, afirmando que o fascismo “foi mais totalitário nos seus objectivos de transformação do que na forma prática do seu regime” (ibid). 3. Transcendência: aqui, estamos na típica “terceira via” do fascismo. Mann sublinha que o núcleo duro do apoio ao fascismo só pode ser compreendido levando a sério “as suas aspirações transcendentes”. “O seu centro de gravidade não foi a classe, mas a nação e o Estado” (p. 44). 4. Depuração: “A maioria dos fascismos combinava depuração étnica e política, embora em graus diferentes” (p. 45) (1). 5. Paramilitarismo: regressamos a um valor central e uma forma de organização do fascismo. Como muitos outros analistas do tema antes dele, Mann sublinha que “o que distingue essencialmente os fascistas de muitas ditaduras monárquicas e militares é esta dimensão violenta e “de bases” do seu paramilitarismo, que lhe trouxe popularidade eleitoral e entre as elites (ibid). Mann diz que combinações diversas da sua definição podem dar movimentos “mais ou menos fascistas”, mas que não teve imaginação para “colocar movimentos fascistas (cada um deles, obviamente, único) num espaço a cinco dimensões” (p. 46). Mas um dos grandes problemas da operacionalidade desta sua definição, como veremos à frente, é que ela diz respeito a diferentes unidades: às vezes refere-se a partidos ou movimentos, outras a regimes políticos e, por vezes, aos dois. Mais consensual e de acordo com muitos historiadores, Mann considera o fascismo “europeu-epocal”, para utilizar a expressão de Roger Eatwell, uma variante das reacções autoritárias num quadro de crise (2). No entanto, “as noções (1) O seu estudo sobre este tema foi entretanto publicado: Michael Mann, The Dark Side of Democracy. Explaining Ethnic Cleansing, Nova Iorque, Cambridge University Press, 2005. (2) Vide António Costa Pinto (org.), Rethinking the Nature of Fascism, London, Palgrave, 2011. 10


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de crise geral explicam melhor a vaga de autoritarismo, menos bem a ascensão dos movimentos fascistas [...]” (p. 79). A estratégia de localização dos estudos de caso que este escolheu é relativamente óbvia: ele parte da metade da Europa (quase toda a Central, Oriental e do Sul) onde o autoritarismo venceu e escolhe aquela onde o fascismo emergiu, enquanto variante da família autoritária, e foi importante na queda das democracias. A força relativa do fascismo enquanto movimento foi de facto maior na Alemanha, Hungria, Áustria e Itália e, sobretudo, este chegou ao poder com mais ou menos apoio social e político. A Espanha foi escolhida para exemplificar um caso no qual o “fascismo permaneceu um membro subalterno da família autoritária” (p. 59). Mann concentra-se também no quadro das macroteorias sobre a crise da democracia e a ascensão das ditaduras, procurando aquelas que são também operativas para o fascismo, testando sucessivamente as hipóteses relacionadas com a economia, a política e a ideologia, muito embora exista alguma falta de precisão e uma prosa fluida e cheia de excepções. Existe uma longuíssima bateria de estudos que correlaciona ditaduras e graus de desenvolvimento económico. Em termos empíricos, com a excepção alemã, parece evidente que “a ascensão do autoritarismo foi sobretudo um problema dos países menos desenvolvidos da Europa do período entre guerras”, mas os movimentos fascistas mais importantes emergiram em todos os “níveis de desenvolvimento”, pelo que o fascismo parece não estar relacionado com o “nível de desenvolvimento económico” (p. 83). A relação entre fascismo e conflito de classes fez correr rios de tinta académica e política. Para Mann, “essas motivações da classe capitalista tinham menos a ver com o lucro do que com a defesa da propriedade” e, “na ideologia da época a propriedade estava associada a dois valores sociais desejáveis, fundamentais: ordem e segurança” (p. 96). Talvez “devido ao papel que a ideologia desempenha numa definição de ‘interesses’ mais ampla do que suger a pela teoria da escolha racional” (p. 96). Mann aponta cinco razões para a reacção, todas bem conhecidas: o “dilema da segurança”; a vulnerabilidade dos direitos de propriedade dos proprietários rurais; a ameaça da esquerda à “autonomia tipo casta” dos militares; a reacção das Igrejas perante o secularismo de esquerda; a geopolítica, que marcava também o «problema da ordem” (p. 400). No campo militar, subestimado muitas vezes pelas ciências sociais, Mann sublinha sobretudo alguns legados da Primeira Guerra Mundial, mas aqui a dimensão mais operativa é a “ligação entre o poder militar e ideológico na ascensão dos valores paramilitares”. Poderíamos continuar, mas o problema é que muitas das clivagens anteriormente analisadas remetem para o autoritarismo em geral. Como Mann reconhece, “a separação principal – conceptual e geograficamente – era entre a democracia liberal e formas de autoritarismo de direita” (p. 123). Onde é 11


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que entram os fascistas? Na sua conclusão, Mann considera-os “criados entre a direita autoritária”, ainda que “característicos”, pois “nem a sua organização nem os seus valores permitiam que fossem meros veículos para interesses de classe. Organizacionalmente, eram um movimento ‘de bases’, e não de topo. Os seus próprios valores fundamentais levavam-nos por caminhos radicais [...]” (p. 402). Mas caracterizá-los segundo estas linhas não explica o seu sucesso em alguns casos. Como ele próprio reconhece, é mais fácil generalizar sobre as causas da ascensão do autoritarismo do que do fascismo. Fascistas é mais interessante na tentativa de caracterização dos “contextos sociais” que presidiram ao crescimento do fascismo do que na análise dos regimes e suas instituições. Para isso, baseia-se numa enorme compilação de bibliografia secundária que, aliás, expressa a vitalidade dos estudos monográficos nacionais. Mann situa o crescimento do fascismo em torno de quatro crises, associadas às quatro fontes de poder: “guerra entre exércitos enormes de cidadãos, grave conflito de classes exacerbado pela Grande Depressão, uma crise política desencadeada pela tentativa de transição rápida, em muitos países, para o Estado-nação e um sentimento cultural de contradição e decadência civilizacionais” (p. 52). Tudo isto enfraqueceu a capacidade de funcionamento das elites e o fascismo oferecia soluções para as quatro crises. Apesar de o fascismo ter causas diferentes em cada país, “era mais forte nos países onde se verificavam claramente combinações das quatro” (ibid.). O autor concentra-se de seguida nos três ‘eleitorados fascistas’ fundamentais onde os valores e organizações fascistas atrás identificados “tinham mais eco e que assim viriam a organizar verdadeiros movimentos fascistas” (p. 55). Mann inclui aqui a categoria ampla dos “seguidores”, que eram militantes, bem como eleitores: 1. Eleitorados que favoreciam o paramilitarismo: o núcleo fascista consistia, em toda a parte, em duas gerações sucessivas de jovens do sexo masculino que atingiram a maioridade entre a Primeira Guerra Mundial e o final da década de 30. Produto de socialização “moderna” e “moral” de duas instituições, o ensino secundário e superior e as forças armadas, “que encorajavam o militarismo”. 2. Eleitorados que favoreciam a transcendência: a composição social do fascismo é complexa e variável. Mais importante é a sua localização no sector económico: “regra geral, os fascistas tendiam a provir de sectores que não estavam na linha da frente da luta organizada entre o capital e o operariado” e favoreciam os movimentos que transcendessem a luta de classes (p. 56). 3. Círculos que favoreciam o estatismo nacionalista: “Os fascistas encontravam-se no coração da nação ou do Estado [...] algumas situações eram semelhantes em todos os países: sobretudo soldados e vetera12


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nos, mas também funcionários públicos, professores e trabalhadores manuais do sector público, eram desproporcionalmente fascistas” nos países onde emergiu o fascismo de massas (p. 56). É com esta grelha que ele analisa os casos nacionais. No caso italiano, “a intensa luta de classes, o paramilitarismo do pós-guerra e um antigo regime enfraquecido”. No caso alemão, o paramilitarismo foi, uma vez mais, um factor importante; já a luta de classes, ainda que relevante, não foi dominante. Ao contrário do fascismo italiano, o nazismo foi também um movimento popular em termos eleitorais. “Assim, o estatismo nacionalista transcendente dos nazis foi suficientemente popular para o conduzir ao poder” (p. 406). O fascismo austríaco estava dividido entre dois movimentos rivais. “Os paramilitares de ambos os partidos tentaram golpes de Estado, mas só chegaram ao poder com a ajuda do poder militar de um Estado” (ibid.). Os fascismos húngaro e romeno surgiram apenas em meados da década de 30, bem depois da ameaça da esquerda, “pelo que os fascistas não tinham tendência capitalista; na verdade, tornaram-se bastante proletários em termos da sua composição. Em ambos os casos, o paramilitarismo foi utilizado mais como instrumento eleitoral do que como forma de dominar os rivais ou de tomar o poder.” No final, o poder militar triunfou sobre o paramilitar e os autoritários radicais triunfaram sobre os fascistas. Foi apenas o caos da guerra que permitiu aos fascistas uma breve vitória (p. 406). No caso espanhol, o “antigo regime sofrera menos rupturas do que qualquer outro dos casos estudados, e por isso foram os autoritários conservadores, e não os fascistas, a dominar” (ibid.). Apesar de a explicação de cada caso requerer factores locais, quais são “as forças comuns que determinam o poder dos fascistas”? Uma que teve uma importância menor foi a “ameaça operária”. Não tem correlação com a força fascista. Para os militantes, a principal atracção residia na capacidade de aprisionar jovens solteiros do sexo masculino na “gaiola” da camaradagem, da hierarquia e da violência. O fascismo atraía também um substancial apoio eleitoral baseado na combinação das três primeiras características fascistas de Mann: o estatismo, o nacionalismo e a transcendência da classe. No final, “a popularidade do fascismo foi também profundamente afectada pela força política e a estabilidade do conservadorismo de antigo regime, o qual (mais do que a democracia liberal ou social) era o principal rival do fascismo” (p. 408). Para concluir, “o fascismo resultou do processo de democratização por entre crises profundas causadas pela guerra” (p. 409).

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As teses de Michael Mann e a crise da I República portuguesa Quando analisamos a crise da I República à luz das hipóteses de Mann temos de encarar os factores que não favoreceram o aparecimento de um movimento fascista na crise do liberalismo republicano. No caso português, a participação na Primeira Guerra Mundial não provocou danos graves na estrutura produtiva ou social comparáveis aos sofridos pelos beligerantes da Europa Central, e não favoreceu também as condições para o nascimento de grupos capazes de formar a primeira base para movimentos fascistas através do alargamento do núcleo intelectual fundador. Portugal sofreu as suas “humilhações de guerra” e a dizimação dos seus batalhões na frente em plena ditadura sidonista. Foi aliás sob o mesmo regime que o país terminaria a sua participação militar. Os republicanos conseguiram mobilizar muitos veteranos e voltá-los contra a ditadura de Sidónio Pais – afinal haviam sido “traídos” pelos monárquicos, que apoiaram os regimentos militares que se recusaram a partir para França. Mas não houve qualquer fenómeno de “veteranos de guerra”, que seriam rapidamente absorvidos quer pela sociedade rural quer pela emigração. A vitoria mancata também era moderada, na medida em que Portugal conseguiu salvaguardar a sua herança colonial e não tinha quaisquer pretensões territoriais na Europa. A ditadura sidonista e o seu desfecho insurreccional permitiram que o primeiro pacto entre os partidos políticos para a revisão da Constituição de 1911 conferisse maior estabilidade ao sistema político. Os conservadores eram fortemente pró-presidencialistas e os democráticos concederam ao Presidente o poder de dissolver o parlamento após uma definição clara dos poderes restritos dos governos entre a dissolução e as eleições seguintes (1919). A gestão deste poder revelar-se-ia difícil, abrindo um importante canal directo para pressões extraparlamentares sobre o Presidente. Deram-se importantes mudanças no sistema partidário no pós-guerra: os líderes “históricos” do período anterior a 1917 desapareceram; Afonso Costa, o homem forte do Partido Democrático, não regressou do exílio e António José de Almeida e Brito Camacho deixaram os Partidos Unionista e Evolucionista; o Partido Democrático sofreu cisões à esquerda e à direita; partidos pequenos, mas muito ideologizados, apareceram tanto na arena parlamentar (católicos, “esquerda democrática”, etc) como na extraparlamentar (1921, Sidonistas, 1919, Partido Comunista, etc). As principais características do período anterior à guerra, no entanto, prevaleceram. O sufrágio não foi alargado e o sistema político formal permaneceu fundamentalmente na mesma. Uma crescente fragmentação do sistema partidário caracterizou o período do pós-guerra. Em 1919, os conservadores (Partidos Unionista, Evolucionista e Centrista) uniram-se sob a égide do novo Partido Liberal, uma máquina eleitoral embrionária de oposição ao Partido dominante. Pela primeira vez na história 14


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eleitoral da República o Partido Democrático seria derrotado e o seu monopólio parecia em perigo (1921). Os governos liberais, contudo, cairiam após uma insurreição da Guarda Nacional Republicana, que explicitamente pretendia provocar a dissolução do parlamento eleito em 1921. A partir daí, a representação conservadora voltaria a dividir-se em vários partidos (“Governamentais”, Nacionalistas, “Populares”), e as pressões ideológicas autoritárias aumentaram. Apesar de algumas dissensões (os “Reconstituintes”, à direita, em 1920, e depois a “esquerda democrática”, em 1925), o Partido Democrático sobreviveu como partido dominante do sistema. Mas a sua máquina clientelar “assimétrica” sofreu pesadas baixas entre os votantes urbanos, enquanto que a manipulação e a violência em torno dos actos eleitorais cresceram bastante. A “indefinição” da sua política enquanto esteve no governo seria igualmente reforçada pelo aparecimento de duas tendências no seio da estrutura partidária, uma moderada e outra mais à esquerda, que surgiram nas eleições de 1925. Tendo sobrevivido à crise económica e social do pós-guerra, as eleições de 1925 reconduziriam o Partido Democrático no governo, mas nessa altura já os campos de batalha política se achavam fora do parlamento. A emergência da representação directa de uma federação de associações patronais (UIE), com um programa vincadamente antidemocrático, que usava as eleições e o parlamento como veículo de expressão, era disso sintoma. Os anos de 1919-1921 foram considerados pelo Estado e pelo patronato da indústria, comércio e serviços urbanos como os anos da “ameaça vermelha”. O período áureo dos anarco-sindicalistas da CGT, que conheceram então a primeira cisão comunista, foi marcado por uma vaga de greves que afectaram muitos sectores, em especial o funcionalismo público e o comércio. À medida que as mobilizações sindicais decresciam, aumentava o terrorismo; organizações clandestinas, como a “Legião Vermelha”, eram popularizadas nos jornais conservadores. O Partido Democrático deu novo ímpeto ao Partido Socialista, abrindo a sua máquina eleitoral e os seus lugares no parlamento, em sucessivas tentativas de uma “integração política” falhada. Como já atrás ficou sublinhado, as associações patronais mais afectadas por estes movimentos, quase exclusivamente urbanos, desenvolveram as suas federações e aumentaram significativamente a sua intervenção política. Mas no final de 1922 já a “ameaça vermelha” tinha acabado e as confrontações laborais iam diminuindo. Os estudos sobre a politização das associações patronais, bem ilustrada pelas actividades da União dos Interesses Económicos a partir de 1924, provam sem grande margem para dúvidas que o conflito económico “interburguesia” desempenhou um papel mais importante do que o conflito burguesia-operariado. Um factor importante na união da nova extrema-direita dos anos 20 foi o “adiamento” da clivagem república/monarquia. Nesta união tiveram bastante 15


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relevância as influências externas do fascismo italiano e da ditadura de Primo de Rivera, bem como a geração de jovens integralistas sorelianos (3). Os resultados desta nova extrema-direita eram já visíveis em organizações como a Cruzada Nun’Álvares, cuja reorganização nos anos 20 incluía sidonistas, católicos, integralistas e fascistas. O papel de grupos como os integralistas foi mais importante em termos conspirativos e propagandísticos por uma opção ditatorial do que o do Centro Católico, que estava mais ligado à hierarquia da Igreja e que por isso se mostrava mais cauteloso. Os integralistas tinham um apoio considerável no seio das Forças armadas e foram um dos elementos de radicalização antidemocrática no seio dos grupos conspirativos. Mas a presença de integralistas e de católicos em organizações como a Cruzada Nun’Álvares e a sua influência entre os militares mostra como um importante sector da direita radical civil apoiou o golpe, ao fornecer aos militares um programa político que transcendia “a ordem nas ruas e no governo”. Os partidos republicanos conservadores e os pequenos grupos de notáveis ligados a grupos de interesses haviam-se habituado a usar meios extraparlamentares para a obtenção do poder desde os anos 10. Depois da guerra houve governos de coligação, e até alguns governos conservadores, mas sempre em situações de crise. A radicalização dos pequenos partidos republicanos conservadores foi um factor crucial na queda da República, levando-os a apelarem aos militares, quando o Partido Democrático voltou a alcançar a vitória nas eleições de 1925. Algumas figuras carismáticas emergiram então deste espectro de partidos, aderindo ao pedido da pequena e elitista extrema-direita no sentido de uma intervenção militar, bem como da constituição de grupos organizados no seio das forças armadas. Cunha Leal, um dirigente do Partido Nacionalista, foi um desses líderes, que pelo menos desde 1923 vinha advogando a intervenção militar e a negociação de uma posição política post factum com as facções militares. A intervenção militar na política republicana e a persistência de facções organizadas no interior das forças armadas precede o período do pós-guerra. A principal diferença entre as intervenções do pré-guerra e o golpe de 1926 é, talvez, a multiplicação de “tensões corporativas” entre o Exército como instituição e o governo, primeiro, e a sua crescente “unidade” na intervenção na arena política, depois (4). Procurar as raízes do golpe de 1926 através da análise das conspirações imediatamente anteriores e dos muito personalizados actores militares é uma (3) Manuel Braga da Cruz, Monárquicos e Republicanos sob o Estado Novo, Lisboa, 1987. (4) José Medeiros Ferreira, O Comportamento Político dos Militares. Forças Armadas e Regimes Políticos em Portugal no Séc. XX, Lisboa, Estampa, 1992. 16


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ratoeira événementielle. De facto, como escreveu um historiador americano, Portugal vivia “no reino do pronunciamento” desde 1918 (5). A situação de pré-guerra civil de Dezembro de 1918 a Fevereiro de 1919 foi particularmente devastadora para o Exército, conduzindo à criação de “juntas militares” por todo o país, bem com à reabertura da “questão do regime”, com a proclamação da monarquia no Porto. O regime sidonista também conseguiu atrair um crescente número de jovens cadetes e de oficiais associados a um segmento da direita radical civil, envolvida em várias conspirações no início dos anos 20. Mas existiam vários pólos de tensão entre civis e militares surgidos durante os últimos anos da República que devem ser igualmente considerados. O Partido Democrático viu-se confrontado com um novo Exército depois da guerra. As forças armadas haviam ficado com o dobro dos efectivos que contavam em 1911, além de novos dirigentes com o prestígio ganho na frente de batalha e uma nova dimensão ideológica militarista. O principal problema, contudo, eram os dois mil oficiais milicianos teoricamente temporários. Numa altura em que por toda a Europa os corpos de oficiais eram reduzidos através da desmobilização, em Portugal o governo incorporou os oficiais milicianos no quadro. A desconfiança nas forças armadas levou ao reforço de pessoal e de armamento pesado da GNR, especialmente entre 1919 e 1921. A GNR foi “fortalecida como uma defensora urbana do Estado” contra o operariado e contra o Exército, “tornando-se em mais um elemento da burocracia associada ao controlo dos Democráticos do governo” (6). Nasceria assim uma segunda tensão “corporativa”. Um primeiro-ministro do Partido Democrático seria mais tarde obrigado a enfraquecer a GNR, tanto para desencorajar insurreições dentro da força policial como para acalmar o Exército. Em 18 de Abril de 1925, alguns oficiais levaram a cabo a primeira tentativa aberta de golpe, em nome das próprias forças armadas. A resistência de algumas unidades e da GNR fez a insurreição abortar. Alguns meses mais tarde um tribunal militar enviou os envolvidos no golpe de volta aos quartéis. O apelo a um interregno militar na política parlamentar estava no seu auge. Se existe alguma diferença entre este golpe e o de 1926, ela estará provavelmente no crescimento de apoio político na forma de uma “coligação anti-sistema”. No caso português, o liberalismo republicano foi derrubado por um Exército dividido e politizado, fundamentalmente a partir da intervenção portuguesa na Primeira Guerra Mundial, sofrendo apelos golpistas de facções organizadas no seu interior, que iam desde os republicanos conservadores, aos católicos-sociais e à extrema-direita integralista e correlativos apêndices fascistas, particular(5) Douglas L. Wheeler, Republican Portugal. A Political History, 1910-1926, Madison, The University of Wisconsin Press, 1978, p. 193 (6) Idem, p. 185. 17


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mente influentes juntos dos jovens oficiais. Ainda que produto de grupos conspiratórios, os meandros do golpe eram do conhecimento da opinião pública e dos partidos. As fracturas entre as várias componentes golpistas foram às vezes mais importantes do que a resistência do governo. O eixo analítico mais apropriado para a análise da queda do regime republicano remete para as relações civis-militares no âmbito de uma crise de legitimidade da I República. O apelo aos militares foi uma constante na vida política da República no pós-guerra, por parte da oposição ao partido dominante, o partido democrático. Quase por definição, o sistema político republicano não teve uma “oposição leal”, já que era patente para os actores políticos que a possibilidade de chegada ao poder por via eleitoral era nula. O movimento conducente ao 28 de Maio, dada a heterogeneidade dos elementos que se movimentavam nos bastidores da intervenção militar, aproximou-se de dois dos padrões apontados por Juan Linz para a queda dos regimes liberais. Com efeito, tratou-se um golpe militar que cooptou parte da elite política do regime liberal (que, tal como muitos dos militares, tinha como objectivo expresso o futuro restabelecimento de uma ordem constitucional reformada), integrando também a “oposição desleal”, e que excluiu do poder o partido dominante (7). O produto foi uma ditadura militar que afastou rapidamente uma parte da componente republicana, em golpes posteriores, e que viria a ser incapaz de se institucionalizar.

Um fascismo tardio e dominado? Michael Mann teve como critério central a escolha de casos em que os movimentos fascistas chegaram ao poder. No caso português é já em plena transição para o Estado Novo que a tensão entre um fascismo nativo e outros segmentos das elites e movimentos políticos autoritários se desenrolou, com a vitória dos últimos. Não é fácil “ler” a sequência vertiginosa de acontecimentos políticos nos primeiros anos da ditadura militar auxiliados por algumas das tipologias habitualmente utilizadas pelos estudiosos da direita no período entre as duas guerras. Algumas das razões remetem, como atrás foi assinalado, para a natureza do sistema político republicano e para a consequente incipiência da própria representação partidária da direita sob o regime derrubado. Por outro lado, a natureza militar do regime transportou para a ribalta não só as tensões corporativas inerentes à instituição militar, que atravessaram muitos dos confli-

(7) Juan J. Linz e Alfred Stepan (orgs.), The Breakdown of Democratic Regimes, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1978, p. 82. 18


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tos, como determinou ainda a formação de verdadeiras facções políticas no interior das forças armadas. Apesar destas limitações é possível delinear uma tipologia tripartida do espectro político-ideológico da direita portuguesa que pode ter alguma utilidade analítica para o estudo das suas atitudes políticas nos primeiros anos da ditadura militar. A primeira, que definimos como liberalismo conservador, estava representado nos partidos republicanos conservadores. Apelaram aos militares e apoiaram o golpe na perspectiva de um “estado de excepção” que lhes permitisse a reforma da Constituição de 1911 num sentido presidencialista, limitador do parlamentarismo. Pensavam acima de tudo na remodelação do sistema partidário através da criação de um forte partido conservador com o apoio do aparelho de Estado, apto a enfrentar, reposta a legalidade constitucional, o partido democrático. A segunda, que definimos como conservadorismo autoritário, era acentuadamente antiliberal. A sua proposta era a da construção de um regime autoritário que eliminasse o velho sistema de partidos da República, introduzindo eventualmente um partido único de vocação “integradora”. Alguns propunham mecanismos de representação corporativos e outros governos de “competência técnica”. Ideologicamente, filiavam-se quer no corporativismo católico quer num corporativismo republicano difuso, onde não estava ausente algum revisionismo autoritário. Nele se moviam católicos, monárquicos e republicanos autoritários. E, finalmente, a direita radical. A sua proposta era de ruptura total com o sistema liberal, apontando para a construção de um Estado nacionalista baseado no corporativismo integral. Os traços de fascização deste sector eram crescentes desde o pós-guerra, visíveis nas tentativas de criação de um partido de massas aproveitando a nova conjuntura da ditadura militar e na opção de modelos mais carismáticos de legitimidade. O seu principal suporte ideológico tinha origem no Integralismo Lusitano, ao qual se juntaram outras componentes de origem republicana e sidonista. A nova situação criada pelos militares provocou no entanto uma alteração sensível no espectro político e muitas das atitudes dos actores políticos, particularmente os militares, dificilmente poderão ser percebidas à luz da tipologia atrás descrita. Os percursos erráticos multiplicaram-se e seria fastidioso referi-los em detalhe. No entanto, as posições expressas por algumas formações partidárias nos primeiros anos da ditadura podem ser mais bem analisadas se a tomarmos em consideração. 19


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Entre 1926 e 1930, a ditadura militar falhou sucessivos projectos de institucionalização e foi alvo de várias tentativas de golpe de Estado, quer da oposição pró-democrática (o mais forte dos quais a 7 de Fevereiro de 1927), quer da extrema-direita. Na ribalta do poder, republicanos conservadores, católicos e extrema-direita tentavam a sua sorte, a última escorada em jovens militares que constituíam como que um poder paralelo nos quartéis, movimento agravado com nomeação de muitos para postos de administração local. Ao nível governamental, no entanto, um núcleo mais coeso de generais conservadores, organizados em volta do general Carmona, foi progressivamente consolidando a ordem autoritária. Foi neste ambiente que Salazar, na sequência de uma crise financeira importante, foi nomeado Ministro das Finanças, negociando amplos poderes sobre os outros ministros.

O Nacional-Sindicalismo de Rolão Preto O pólo unificador de uma corrente fascizante no interior da ditadura militar foi o brevíssimo consulado do general Gomes da Costa, logo em 1926. Rolão Preto, em conjunto com jovens militares e outros expoentes da direita radical, tentou criar de imediato uma organização milicial de apoio ao novo regime, emergindo na ribalta política atrás da figura do velho general (8). Em Junho de 1926, Martinho Nobre de Melo, um ex-ministro de Sidónio de formação integralista e dirigente da Cruzada Nun’Álvares, apresentou um verdadeiro programa político para a nova ditadura. As “milícias” nacionalistas deveriam ser organizações paramilitares de tipo fascista. Em Julho, o general Gomes da Costa demitiu uma série de ministros, acumulou algumas pastas ministeriais e Martinho Nobre de Melo e o integralista João de Almeida chegaram ao governo, mas dois dias depois os generais exilaram-no nos Açores, demitiram os ministros e interditaram a organização. Esta primeira tentativa de fascização da ditadura militar morreu à nascença, dado o golpe dos generais Carmona e Sinel de Cordes, que exilou o velho general e neutralizou a remodelação ministerial por ele realizada por pressão deste grupo. Mas, nos anos seguintes, a extrema-direita, estreitamente associada ao “tenentes” do 28 de Maio, participou em várias tentativas golpistas até fundar uma organização mais estável, a Liga Nacional 28 de Maio, 2 anos mais tarde. A partir do derrube de Gomes da Costa, o sector mais radical da “família integralista” apostou na criação de um partido fascista susceptível de dominar a ditadura militar. Rolão Preto regressou então à propaganda do “sindicalismo nacional”. (8) António Costa Pinto, Os Camisas Azuis. Ideologias, Movimentos e Elites Fascistas em Portugal, 1914-1939, Lisboa, 1994. 20


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No final dos anos 20, o nacional-sindicalismo emergiu em Portugal, tentando atravessar transversalmente o espectro político da direita. Contando com um número significativos de jovens oficiais, que dispunham de peso assinalável nos quartéis e na administração local; dispondo de pólos locais organizados em alternativa ao partido governamental, cuja origem remontava ao período republicano; herdeiro de pequenas milícias criadas apressadamente por “barões” militares; começando a mobilizar alguns sectores da pequena burguesia e da rua, no contexto de um ditadura instável, mas já dominada pelo católico “ditador das finanças”; Rolão Preto viu chegada a hora da unificação deste sector num partido fascista. A alternativa dos fascistas seria no entanto rapidamente esmagada pelos “pactos constitucionais” entre as elites militares e Salazar, que conseguiu amalgamar os grupos conservadores na União Nacional, e dominar, por via administrativa e repressiva, os pólos de resistência fascistas. A tensão entre fascistas e outros grupos de pressão autoritários que dominavam a ditadura representou a manifestação em Portugal de um conflito que caracterizou a maioria dos processos de transição para o autoritarismo, com a presença de movimentos fascistas débeis (9). A sua resolução mais rápida a favor do novo poder autoritário em Portugal, com a consequente eliminação dos fascistas, é explicável por vários factores que se podem enumerar de forma sintética. Em Portugal existiam desde os anos 10 ideologias e movimentos políticos concorrentes, mais adequados para colaborarem com os dirigentes militares da ditadura, sem ameaçarem as suas funções, valores e posicionamento no novo regime. Como salientou Juan J. Linz, no quadro de uma transição em que os militares assumem um papel central estes, apesar de os seus sectores mais jovens poderem simpatizar com os fascistas, viram-se para as elites burocráticas e dos partidos conservadores e não para os fascistas (10). Foi este o caso da ditadura militar portuguesa. Foi a partir do Governo que um sector da elite civil, composta em grande parte por professores universitários de Direito, e dirigida pelo jovem Ministro das Finanças Oliveira Salazar, foi negociando, por vezes com grande tensão, a “constitucionalização” da ditadura e o progressivo afastamento dos militares. Os fascistas foram, neste processo, uma “quantidade negligenciável”. A existência de uma direita autoritária, escorada em instituições poderosas como a Igreja, o fundamental da hierarquia das forças armadas e de alguns grupos de interesses dos proprietários agrícolas e industriais, bloqueou espaço e função a este pólo radical e mobilizador. (9) Cf. Roger Griffin, The Nature of Fascism, London, Pinter, 1991, pp. 116-145. (10) Cf. Juan J. Linz, Fascism, Breakdown of Democracy, Authoritarian and Totalitarian Regimes: Coincidences and Distinctions, Mimio, 1986, p. 71. 21


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Parece não oferecer dúvidas que foi a transformação de um golpe de Estado militar numa guerra civil prolongada que permitiu, por exemplo, aos vizinhos fascistas espanhóis, cuja importância numérica e sociológica se aproximava dos seus congéneres portugueses, imprimirem uma marca importante na dinâmica de criação do franquismo. Em Portugal, uma intervenção militar com sucesso conduziu a uma ditadura preventiva e foram algumas crises de institucionalização que deram aos fascistas alguma capacidade de manobra. No caso português, portanto, quer a nível interno quer a nível externo, nenhum factor potenciou o papel dos fascistas. Em Portugal nenhuma variável internacional condicionou a espontânea decisão das elites governamentais de eliminarem um contestatário movimento fascista nativo. Muitas destas ditaduras utilizaram os fascistas “para certas funções como as de propaganda, controle dos mass media (...)”, etc. (11). Em Portugal, o processo de “integração” dos fascistas no novo regime de Salazar foi tímido e sofreu a prudência burocrática imprimida pela elite do “Estado Novo”, sendo estes canalizados para instituições secundárias do regime. Os recalcitrantes tentaram a sua sorte no golpe de 1935, mas grande maioria reconverteu-se ao regime, particularmente quando a Guerra Civil de Espanha introduziu alguma coreografia fascista.

Michael Mann, Salazar e o Estado Novo Michael Mann não era obrigado a apresentar uma tipologia dos regimes ditatoriais associados ao fascismo para justificar a selecção de casos, pois o seu critério foi a escolha daqueles onde os movimentos fascistas chegaram ao poder. Aliás, a sua obra só lateralmente estuda o poder político e o seu tipo de funcionamento nos novos regimes, mas, como estes estão indissociavelmente ligados ao tipo de crise e aos diferentes actores da queda das democracias, ele sentiu-se na obrigação de apresentar a sua tipologia (de regimes): “semiautoritário; autoritário semi-reaccionário; corporativista; e, finalmente, fascista” (pp. 73-79). No final, Mann não consegue captar o que é um regime fascista (a Alemanha e a Itália) porque estes “nunca se tornaram institucionalmente consolidados” e o que lhe interessa “não são tanto os regimes reais, mas os regimes futuros planeados pelos movimentos fascistas mais importantes”, já que aquilo que ele procura explicar é “o modo como estes ideais futuros despontaram e ganharam poder, no contexto dos regimes autoritários atrás definidos” (p. 79). O objectivo é legítimo, mas muitas ditaduras contemporâneas do fascismo, com a excepção do salazarismo e do franquismo, duraram menos e tiveram um grau de institucio(11) Idem. 22


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nalização incipiente. Como se enquadra o salazarismo na tipologia de Michael Mann? O regime institucionalizado sob a direcção de Salazar a partir da ditadura militar foi admirado por largas franjas da direita radical europeia, sobretudo pelas de origem maurrasiana e tradicionalista católica, pelo facto de as novas instituições do salazarismo exprimirem um origem cultural muito semelhante. Esta identidade transcendia o mero programa da “ordem” e não incluía, por outro lado, os aspectos totalitários e “pagões” que faziam cada vez mais confluir a Alemanha e a Itália. É nas origens ideológicas da direita radical e do tradicionalismo antiliberal, na importância do catolicismo antiliberal como cimento cultural, que encontram as origens ideológicas e políticas do regime de Salazar. Em 1936, já com o fundamental do sistema consolidado, Salazar autorizou então a criação de uma milícia, a Legião Portuguesa, e criou também organizações de juventude e de mulheres, na dependência do Ministério da Educação. Acentuou-se então uma coreografia mais fascizante nos rituais do regime. Resta um problema importante, o das relações com os militares. Este será sempre, na longa duração do regime, o mais sensível e o mais temido por Salazar, mas não há dúvida de que a subordinação da hierarquia militar ao regime era um facto em vésperas da Segunda Guerra Mundial. O processo foi evidentemente mais lento e as tensões foram inúmeras, mas o movimento de cooptação e controlo de elite militar foi o elemento central da consolidação do salazarismo. O salazarismo não afrontou a ordem internacional. A sua pulsão nacionalista repousava na herança do passado: o seu património colonial. A aliança com Inglaterra nunca foi questionada, mantendo o governo inglês um apoio discreto à ditadura. A posição geográfica e o evoluir da Segunda Guerra Mundial foram determinantes no não-envolvimento português, mas todo o esforço do salazarismo se concentrou na neutralidade e na continuidade do seu sistema de alianças. Dimensão central do nacionalismo do “Estado Novo”, a sobrevivência nas colónias foi a variável mais importante da política externa da ditadura. À medida que a cena internacional se tornou progressivamente desfavorável, o colonialismo transformou-se “gradualmente na quinta-essência do regime”, e “substitui-se ao corporativismo” no núcleo ideológico central do “Estado Novo” (12). Muitos estudiosos do fascismo que utilizaram o binómio autoritarismo-totalitarismo tenderam a salientar a dimensão não mobilizadora de regimes como o de Salazar. Tal posição, se apenas entendida como sinónimo de uma ausência de mobilização e enquadramento tendencialmente totalitário da população, é sem dúvida correcta. O “Estado Novo”, mesmo durante a “época do Fascismo”, foi profundamente conservador e confiou mais nos instrumento de enquadramento (12) Cf. Boaventura de Sousa Santos, in Manuel Braga da Cruz, O Partido e o Estado no Salazarismo, Lisboa, Presença, 1988, p. 45. 23


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tradicionais, como a Igreja e as elites de província, do que em organizações de massas. Não deixou no entanto de acautelar os seus interesses no campo das suas relações com a sociedade, criando todo um aparato cultural e de socialização inspirado directamente no fascismo. O corporativismo ficou incompleto no aparato político e institucional mas constituiu, pelo menos, o modelo cultural oficial do “Estado Novo”. Uma concepção eminentemente “organicista” dominou a visão que o regime tentou projectar de si próprio e do país. No campo da propaganda, dir-se-ia que era o projecto da direita radical integralista com a bênção do catolicismo social de matriz tradicionalista que estava em aplicação. Foi aliás no campo cultural que as semelhanças com regimes como o de Vichy foram mais evidentes. O projecto cultural do salazarismo procurou, como outros de regimes semelhantes, uma “restauração sistemática dos valores da Tradição.” (13). A maior atenção foi dada a todo um movimento “etnográfico-folclórico” que passou por uma verdadeira revitalização (na maioria dos casos pura invenção) de grupos folclóricos locais, restauração dos símbolos da reconquista cristã e sua utilização social, por concursos como “a aldeia mais portuguesa de Portugal”, movimento que culminou, já no início da década de 40, com a “Exposição do Mundo Português”, reproduzindo as formas tradicionais e os hábitos das populações de todo o “Império”. Outro revelador importante foi o da promoção do cinema português que, com uma clara vocação popular, remete também para a apologia dos sadios valores da honestidade cristã e da família pobre mas honrada. Em 1936, no entanto, foram criadas duas organizações inspiradas no fascismo, que não se adivinhavam nos projectos iniciais do regime. A primeira foi uma organização oficial de juventude, de carácter paramilitar, a Mocidade Portuguesa (MP). A segunda teve objectivos diversos e a autorização para a sua criação representou a introdução de uma coreografia fascista, na conjuntura da guerra civil de Espanha. A Legião Portuguesa constitui-se em 1936 como uma milícia anticomunista, com funções paramilitares e de informação policial, e enviou voluntários para combater ao lado de Franco (14). Nela se agrupou, sob estreito controlo estatal, parte da minoria fascista, devidamente enquadrada por oficiais do exército. No fundamental, o regime não compartilhou das tensões de mobilização dos congéneres fascistas e promoveu a apatia. Isolando o pequeno universo urbano, não confiando sequer na mobilização da sua pequena burguesia, ele contou com dois grandes agentes no universo do “Portugal profundo”: a notabilidade local e a Igreja. Entrelaçando habilmente a administração e o partido, que agregava a notabilidade local, o regime conta com as elites tradicionais (13) Cf. Christian Faure, Le projet Culturel de Vichy. Folklore et révolution nationale, 1940-1944, Lyon, 1989, p. 7. (14) Luís Nuno Rodrigues, A Legião Portuguesa. A Milícia do Estado Novo, 1936-1944, Lisboa, Estampa, 1996. 24


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para manter a ordem social. A coadjuvação da Igreja bastou para manter a província numa ordem que se queria imutável. Note-se que o regime não precisou sequer de criar ou transformar sindicatos rurais no âmbito do sistema corporativo, dada a sua inexistência no Norte e Centro do país. No Sul latifundiário, onde um proletariado agrícola apresentava baixos índices de religiosidade, a polícia estava mais atenta, no resto do país rural não era preciso. Salazar disse um dia a Henri Massis, que o seu objectivo era “fazer viver Portugal habitualmente!” (15). Esta maitre-mot que tanto encantou o seu adepto francês, para lá da demagogia consciente que encerra, resume bem a permanência tradicionalista do salazarismo. Do ponto de vista das origens culturais e da ideologia, expressas no discurso oficial, as ditaduras mais próximas do salazarismo foram obviamente aquelas onde maurrasianismo e catolicismo dominaram, casos de um sector dominante do franquismo, de Vichy ou do regime de Dolfuss (16). No entanto, se estendermos o campo comparativo aos processos de transição ao autoritarismo e aos seus agentes fundamentais, a queda do liberalismo e a ditadura militar que se lhe seguiu fez parte integrante do ciclo autoritário dos anos 20, sobretudo de iniciativa militar, mas com um apoio decisivo dos partidos autoritários de direita, casos também da Hungria logo em 1919, e da Polónia, da Grécia e da Lituânia, nesse mesmo ano de 1926. Mas o “Estado Novo” de Salazar foi, de todas as ditaduras europeias nascidas nos anos 20, a mais institucionalizada e a de maior longevidade. O segundo elemento é, para o que interessa aqui, menos importante. Sem os severos constrangimentos internacionais, muitas das ditaduras dos países periféricos da Europa do Sul e de Leste teriam provavelmente sobrevivido com características muito semelhantes às da ditadura de Salazar. Regimes como os de Pilsudski, na Polónia, Smetona, na Lituânia, e mais tarde, Dolfüss, na Áustria ou Horthy, na Hungria, nasceram como parte integrante da mesma vaga autoritária do pós-guerra e apresentaram características bem próximas das que presidiram à institucionalização do autoritarismo português. Condicionantes mais externas do que internas foram responsáveis pelo “congelamento” da institucionalização destes regimes, deixando incompleta a “engenharia política” em formação. Todas estas ditaduras foram implantadas na sequência de golpes de Estado tradicionais; representaram um compromisso entre conservadores civis e militares; criaram sistemas políticos de partido único ou com um partido hegemónico; os partidos fascistas foram ou parceiros menores na coligações que tomaram o poder ou estiveram ausentes. Em graus variáveis, as elites e movimentos políticos que inspiraram estas ditaduras foram influenciadas pelo fascismo, mas os princípios, os agentes de institucionalização (15) Cit. por João Medina, Salazar em França, Lisboa, 1977, p. 50. (16) Vide António Costa Pinto, Salazar’s Dictatorship and European Fascism. Problems of interpretation, Nova Iorque, SSM-Columbia University Press, 1995. 25


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e o tipo de ditadura que fundaram extravasou largamente a especificidade do fascismo. Como a maior parte dos regimes autoritários da Europa do Sul e de Leste, o salazarismo sofreu uma influência decisiva do fascismo italiano, mas não conheceu nem a especificidade do “movimento” nem a viragem mais totalizante da segunda metade dos anos 30. Como outros regimes, o salazarismo enviou missões de estudo a Itália e adquiriu modelos, que alterou e adaptou. Os estatutos do corporativismo, a propaganda, a organização oficial de juventude e de mulheres, são exemplos de instituições criadas com base no modelo fascista, e significaram a adopção de certos requisitos da política de massas por parte de regimes essencialmente reaccionários. Mas estas instituições mantêm-se, por um lado, limitadas e em coexistência com outras, não visando um domínio exclusivo e, por outro, desconhecem o controlo do partido fascista. Não é por isso de estranhar que o exemplo do salazarismo fosse o passepartout das afinidades quer de ditadores quer de movimentos de direita radical do período, muitas vezes sinceramente, outras vezes desejosos de evitar a identificação com o fascismo. Michael Mann distingue 4 graus ascendentes de autoritarismo dentro da família e inclui o salazarismo no grupo dos “regimes corporativistas”, ditaduras que desenvolveram o “estatismo, mobilizaram um nacionalismo orgânico e, mais importante, começaram significativamente a inspirar-se no fascismo e na sua ideologia” (p. 77). Mas o fascismo introduziu “uma descontinuidade, invertendo o fluxo do poder ao acrescentar ao corporativismo um movimento de massas “a partir de baixo”, centrado no paramilitarismo e no eleitoralismo, à medida que aumentava os poderes de coerção a partir do topo” (p. 78). O Estado Novo de Salazar ficou-se pelo primeiro. Para concluir, Michael Mann produziu um excelente estudo comparativo, integrando os mais recentes estudos empíricos e oferecendo hipóteses interpretativas relevantes, sendo de longe o estudo mais marcante sobre as condições de crescimento dos movimentos fascistas produzidos nas últimas décadas.

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Preâmbulo

Concebi originalmente este estudo do fascismo como um único capítulo num livro genérico sobre o século XX, o terceiro tomo do meu The Sources of Social Power. Mas o meu terceiro tomo continua por escrever, porque o fascismo passou a absorver cada vez mais toda a minha atenção, durante sete anos. O meu “capítulo fascista” era para ter sido escrito primeiro, dado que na altura estava a passar um ano num instituto madrileno com uma bela biblioteca sobre a luta, no período entre as duas guerras, da democracia com o autoritarismo. Foi então que a minha investigação sobre o fascismo se avolumou num livro inteiro. Apercebi-me, desanimado (pois este não é um tema agradável para se trabalhar durante anos), que ela tinha de se expandir mais ainda. Já que as acções dos fascistas e dos seus simpatizantes culminaram no assassínio em massa, eu tinha de me dedicar a um segundo conjunto de bibliografia, sobre os acontecimentos centrados na “Solução Final” ou “Holocausto”. Depressa percebi que esses dois conjuntos de bibliografia – sobre os fascistas e os seus genocídios – pouco tinham em comum. O fascismo e os assassínios em massa cometidos durante a Segunda Guerra Mundial têm sido na maior parte mantidos em compartimentos académicos e populares separados, preenchidos por diferentes teorias, diferentes dados, métodos diferentes. Em geral, esses compartimentos conservaram-nos segregados de outros fenómenos bastante semelhantes de limpeza assassina que têm vindo a ocorrer regularmente no período moderno – da América do século XVII à União Soviética de meados do século XX, e ao Ruanda-Burundi e à Jugoslávia do final desse século. 27


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Todas estas três formas principais de comportamento humano profundamente deprimente – o fascismo, o “Holocausto”, e, mais genericamente, a limpeza étnica e política – partilham uma conhecida semelhança. Essa semelhança foi conferida por três ingredientes essenciais que no fascismo se revelam mais abertamente: nacionalismo orgânico, estatismo radical, e paramilitarismo. Com a minha inclinação empírica, senti que tinha de os discutir com algum pormenor, ainda que idealmente toda a família devesse ser debatida em conjunto. Isso teria dado origem a um livro de umas mil páginas, que talvez poucos lessem – e que nenhuma editora publicaria. Por isso dividi a totalidade do meu estudo em duas partes. Este volume é sobre os fascistas, e centra-se na sua subida ao poder na Europa entre as duas guerras mundiais. O volume seguinte, The Dark Side of Democracy: Explaining Ethnic Cleansing, é sobre todo o continente da limpeza étnica e política moderna, desde os tempos coloniais, passando pelo genocídio dos Arménios e pelo genocídio nazi, até à actualidade. A fraqueza desta divisão em dois livros é que as “carreiras” dos piores tipos de fascistas, em especial os nazis, e também as dos seus colaboradores, ficam dispersas em dois volumes. A sua ascensão é seguida neste livro, as suas acções finais no meu outro livro. A vantagem desta divisão é que as acções finais desses fascistas surgem a par de outras com quem partilham uma genuína semelhança familiar – milícias coloniais, as Forças Especiais Turcas de 1915, os Angka cambojanos, os Guardas Vermelhos, a Interahamwe hutu, os Tigres de Arkan, e por aí fora. De facto, o discurso popular, especialmente entre os seus inimigos e vítimas, reconhece esse parentesco ao denunciá-los a todos como “fascistas!” – um termo insultuoso algo vago, porém justificado. Pois são homens e mulheres brutais que usam meios paramilitares criminosos para alcançar objectivos, ainda que toscamente verbalizados, de nacionalismo orgânico e/ou estatismo radical (ambas qualidades tipicamente fascistas). Os académicos tendem a rejeitar esse rótulo alargado de “fascista!” – preferindo reservar o termo (sem ponto de exclamação) aos que aderem a uma doutrina estruturada com bastante mais rigor. Porque também tenho pretensões de erudição, julgo que devo em última análise partilhar essa preferência pelo rigor conceptual. Mas os factos tanto podem partilhar a semelhança como a doutrina. Este livro é sobre fascistas tal como os académicos entendem a palavra; o meu outro livro é sobre criminosos e “fascistas!” no sentido mais popular e livre do termo. Ao escrever deste livro aproveitei profusamente os conselhos e críticas de colegas. Desejo agradecer em especial a Ivan Berend, Ronald Fraser, Bernt Hagtvet, John Hall, Ian Kershaw, Stanley Payne e Dylan Riley. Agradeço ao Instituto Juan March, em Madrid, pela sua hospitalidade durante o primeiro ano de investigação deste livro, e ao Departamento de Sociologia da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, pelas condições tão agradáveis que me proporcionou.

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