Contos que cabem no hall

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Adriana Porto Alegre Beatriz Dias Fernanda Vaidergorn Luisa Teperman Marina Schiesari



prefácio 6 portaria 11 não morrem 13 janelinha 15 buraco da fechadura 17 vizinhos 19 mármore de carrara 21 aviso aos passageiros 23 malboro vermelho 25 relógio 27 jarro de mil histórias 29 estamos reformando 31 convite 33 eu 35 10 minutinhos 37 quadro 39 chaves 41 online 43 ferreira gullar 45 comunicado 47 nono andar 49 enigma 51 do lado de lá 53 sumiço do hall 55 babuska matrioska 57 notas das autoras 59


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“Você viu?” Eu não tinha visto. “Eu troquei os quadros para mudar a paisagem”. Eu realmente não tinha visto. Ninguém tinha. Fui reparar no quadro que ela estava falando. Vermelho. Não sei qual tinha antes dele. O quadro combina com a parede, tão vermelha quanto. Sentei na poltrona. Estranho pensar no espaço do Hall de entrada. Às vezes me pego pensando nas transformações que aconteceram e como um ambiente pode ser modificado. Não sei se param para pensar na história desse lugar, se é um lugar de história. Agora digo que sim, tem muita história. Talvez tenhamos que voltar um pouco no tempo. Me pergunto até onde na história preciso voltar... talvez pensem que eu voltei demais. Mas sentado agora, nessa poltrona, acho que tenho tempo para pensar. Hall... Hall não é nem português! Como veio parar aqui? E quando veio parar aqui? Acho que o melhor jeito de descobrir de onde veio seria pelas informações que temos: o nome. Voltemos, então, para a época medieval inglesa... Considero que aqui foi onde tudo começou. O hall era o ambiente oficial, servia como divisor entre o mundo externo e o espaço privado. Além da transição clássica, que sempre esteve presente como função desse espaço, o aposento demarcava a vida pública dentro do ambiente doméstico. As atividades que ali aconteciam estavam diretamente atreladas às relações de poder, por conta de ser um ambiente onde o representante era visto pelo povo; na chegada da corte, nos momentos de reivindicações e festividades. Desse modo, começamos a história desse recinto com uma importância oficial e pública da monarquia; um jeito de mostrar seu domínio frente aos vassalos e inimigos. Precisava mostrar im-


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portância e imponência, garantindo um lugar grandioso. O fato de estar localizado, na maioria das vezes, em regiões de clima temperado, significava, também, um espaço de abrigo com suas lareiras e paredes grossas. Pensamos, agora, como esse ideário arquitetônico foi repassado e reinterpretado para os países colonizados pelos ingleses. O american way of life possibilitou a ressignificação do hall, mas para uma vida doméstica mais comum e principalmente privada. Esse espaço abriga casacos de frio e chuva, sapatos e introduz os convidados previamente selecionados à sua residência. Americanizado e globalizado, o hall muda seu sentido pela legitimação dos bens privados, ou seja, ao invés de ser uma área impositiva simbolicamente se torna impositiva visualmente. Qual o valor desse quadro vermelho combinando com a parede vermelha? Ele foi escolhido por alguma razão. Mas por que ela se orgulhou disso? Estamos no Brasil, right? O Brasil, cuja política sempre flertou com as práticas neoliberais e globalistas dos Estados Unidos, inconscientemente - ou não - incorporou o hall de entrada como referência estética. Assim como no modelo americano, é possível ver esse espaço em diversos estabelecimentos, sendo unifamiliares, multifamiliares e até comerciais. Esse aposento, mesmo com atividades reduzidas, se manteve presente na vida ao longo de todos esses anos, tão presente que na maioria das vezes não paramos para reparar nele. A forma como conhecemos o hall hoje, ao invés de se tratar da casa do representante da comunidade, abriu a possibilidade de dar poder ao próprio host - que, ao receber, também está apresentando sua posse a partir de seus regimentos. O hall de fato se efetivou como um ambiente inevitável no cotidiano burguês. Devia sentar mais aqui.


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Sentado. Ele passava muito tempo assim. Poderia até se considerar uma pessoa entediada. Mas não se considerava. Às vezes dormia. Acordava só com a campainha. Às vezes comia. Na verdade comia sempre. Observava. Isso ele fazia muito. O dia no trabalho só começava às sete da noite. O começo era mais agitado, mas a agitação também dependia do dia da semana. Fins de semana, quando não folgava, costumavam ser mais interessantes. Além do "oi" ou "opa" cotidiano, novos rostos apareciam e, de vez em quando surgiam novas conversas enquanto fitava os outros esperarem o elevador. Ele chegava mais cedo, quase sempre. Depois de cumprimentar os colegas do outro turno, ia se trocar. Mesmo que ninguém o visse, precisava estar de terno e gravata. Talvez não fosse a roupa mais confortável para passar a noite toda, sentado, observando. Às sete em ponto seu companheiro de turno chegava, nunca um minuto antes, nunca um minuto depois. Às sete em ponto também os anteriores saiam. E então ficavam os dois, sabendo que, certamente, essa seria a maior interação do expediente. Era segunda-feira. Por conta da animação do fim de semana, os fluxos acabavam, quase por completo, às onze horas. Depois desse horário era muito raro ver alguém. Sabia que as próximas horas seriam entre ele, os quadros, as plantas e as encomendas esquecidas pelos moradores. Um diálogo silencioso demais. Para ele, sem dúvida, essa era a pior parte.

portaria


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Fico o dia todo aqui. Todo dia o dia todo. Passam, não me tocam. Param, não me olham. Carregam similares a mim nos braços prontas para serem entregues. Elas parecem usar das mais belas vestimentas, das terras mais distantes. Chegam cheias de graça, prontas pra animar o dia mais triste de alguém, facilitar a melhora de um doente ou até mesmo sintetizar um sentimento não falado. Parabéns, melhoras ou te amo. E eu? Sou escolhida pra parecer elas porém durável - “o melhor custo benefício” - não demando energia. É isso que dizem. Até esquecem de mim. Quando reparam, se perguntam “sempre esteve aqui? É de plástico ou verdadeira?” Eu também sou de verdade! Acham que não me machuca esse tipo de pergunta, afinal não posso murchar - não morro! Fico ali delicada fazendo “a indiferente”. Não sou indiferente! Eu sei, não devia me iludir e achar que a vida delas é perfeita. Nenhuma é... Mas fingem bem. Aquelas pétalas vibrantes respingando os resquícios de água do último vaso, o embrulho de papel fino e amassável, o gesto de serem exibidas pelos outros. Passam e impactam. Fico tentada em ter uma vida e se viva, viver assim. Felizmente essa simpatia não precisa durar muito. Sorte delas, elas vão, são recebidas, frequentam, se despedem e deixam de existir. Nem viva e nem morta, não abastecida e mal agradecida, sei o que faço no hall: vivo minha inacabável crise existencial.


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nĂŁo morrem


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Nunca fui uma dessas pessoas que fica amiga dos vizinhos, não sei se por falta de interesse meu ou por falta de vontade deles. Não me considero uma pessoa particularmente grossa ou mal educada, talvez só um pouco desinteressada pela vida alheia. Mas me tira do sério essa falsa simpatia que alguns vizinhos parecem agregar em seu comportamento. Só porque dividimos tal espaço - talvez melhor categorizado como cubículo confinado entre as portas de entrada e o elevador - significa que temos alguma coisa em comum. Eu e meu vizinho só compartilhamos uma coisa além de nosso hall: nossos momentos no chuveiro. Sei que isso pode parecer estranho, mas no canto direito do cômodo olhando para o elevador, em cima de uma mesinha de estilo rococó que herdei de algum parente distante o qual nem me lembro o nome, e nem ele e nem eu tínhamos onde mais colocar, se encontra uma janelinha. Ela é bem alta, talvez um metro e oitenta acima do chão, mas não é por menos, porque atrás dessa janelinha está o box do chuveiro do meu vizinho.

janelinha


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Aquele espaço em que acreditamos estar protegidos, onde podemos ser o nosso eu mais verdadeiro. Podemos cantar como se estivéssemos nos apresentando para uma plateia de mais de quinhentas pessoas, podemos treinar para uma palestra na qual estamos nervosos em discursar e é o melhor lugar para relembrar o nosso dia e sorrir ao lembrar de algo bom e se sentir envergonhado ao perceber que fez algo constrangedor. Mas tudo isso simplesmente não importa, porque ninguém pode nos ouvir. Porém não é assim para o meu vizinho e para mim. Nós dividimos nossos momentos mais íntimos. Então mesmo quando estou saindo do elevador em nosso andar e, coincidentemente, ele está saindo de seu apartamento, sei que apenas um “oi” é suficiente para o nosso convívio. Porque mesmo que não pergunte sobre o seu cachorro ou indague sobre quando seu sobrinho irá visitá-lo novamente - o que convenhamos, ninguém de fato se interessa - sei que não precisamos de tudo isso. Porque nossa conexão é superior a qualquer conversa fiada.


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Fui deixada aqui há um tempo. Eu era uma precaução, ainda sou.

buraco da fechadura

Mas ninguém nunca precisou. Eles não são muito esquecidos, até agora nunca esqueceram. Só me esqueceram. Sempre que alguém chega e demora algum tempo revirando suas coisas, uma esperança cresce dentro de mim. “Chegou minha vez”, penso. Mas sempre acham a minha igual e somem para dentro. Não entendo a diferença, se somos iguais, por que eu vim parar aqui? Fazemos o mesmo tipo de rotação horária para abrir, anti-horária para fechar. Meio enterrada, meio para fora, atrás de uma planta que nem é uma boa companhia. Eu vejo o cotidiano, todo dia, várias vezes, mas não o vivo. Queria ser usada, pelo menos uma vez, para saber como é. Se me tentassem poderiam gostar de mim, poderiam me adotar como a principal, de todo dia, e colocar outra aqui no meu lugar.


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Moram lado a lado há sete anos. Sabem os nomes uns dos outros, se têm filhos ou não, a profissão não têm certeza, mas poderiam dar um bom palpite, sabem a hora que os outros saem de casa e quando voltam, sabem quando recebem visitas. Um recebe os pais uma vez por mês, os outros costumam receber os amigos todas as segundas quartas do mês. Eles gostam muito dos vinhos que veem o outro carregar, o outro adora as músicas que tocam durante o jantar. Poderiam ser bons amigos se não fossem apenas

vizinhos.


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“Muito bom, muito bom!

Queria primeiramente agradecer a presença de todos aqui. Estamos todos muito tristes com o falecimento do Sr. A. Vasconcelos, porém ‘a grana tem que rodar’ não é mesmo? Sentem-se, peguem seus números de identificação e comecemos este Leilão! Iniciaremos com esta linda porta de jacarandá que infelizmente não pôde ser carregada até aqui, mas vejam bem pelas fotos sua

elegância e imponência! Ouvi R$20.000? Reparem bem nos detalhes de marchetaria em ouro e marfim desenhando flores pelas suas bordas. R$ 25.000? A maçaneta em madrepérola ... R$ 25.500?

Vendido! Para aquele homem com gel no cabelo! Próximo item: agora vemos esta linda mesa de decoração. Olhe só esta madeira refinada, vinda das montanhas húngaras e trazida junto dos barcos vikings. Peça rara, não é mesmo? Olha esta conservação ... sem marcas de água, machucados na madeira, nenhum sinal de uso... Ideal para apresentar um ar histórico ao seu hall! Dou-lhe uma, dou-lhe duas… Vendido! E agora?Ah agora, este papel de parede trançado com as mais ricas fibras do Egito! Lembro-me de que o Sr. A. Vasconcelos sempre pedia que passássemos as mãos para sentir cada trama!

Extremamente valioso! Por último e não menos importante, trouxemos o famoso jarro de mil histórias …


mรกrmore de carrara

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AVISO AOS PASSAGEIROS ANTES DA SAIR DO ELEVADOR VERIFIQUE SE O HALL ENCONTRA-SE PARADO NO MESMO ANDAR.


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Eu odeio o meu vizinho. Eu sei que todo mundo fala que odeia o vizinho, mas eu realmente não suporto ele. Eu me esforcei, tentei gostar dele; tentei ser simpática; até sorria para ele no elevador. O santo não bate. Não bateu quando a gente se conheceu e não bate agora. Tá, esquece essa coisa de santo, a culpa é dele. Ele que insiste em fumar longe das janelas, o que obviamente faz com que a fumaça venha pro meu hall, meu apartamento. Talvez seja nosso hall, mas é meu apartamento. Se eu quisesse sentir o cheiro do cigarro, eu fumava. Entra tanta fumaça aqui, que eu poderia me considerar uma fumante assídua, dessas pessoas que fuma há mais de vinte anos, meu pulmão poderia até ir parar naqueles rótulos das embalagens antifumo. Será que todos os vizinhos têm dificuldade de criar essas normas de boa vizinhança? Às vezes aperto aleatoriamente os botões do elevador. Nesses momentos esqueço dos conflitos diários. O do sétimo andar tem as paredes cobertas com papel de parede em tom areia capaz de realçar tanto o azul como o bordô das duas portas. Um vaso de cobre no canto direito do aparador branco combina perfeitamente com o quadro pendurado acima do móvel - está pendurado de maneira não convencional, mas que você perceber que foi muito bem pensado sabe? E tem um cheiro que varia entre aromatizador de lavanda e café coado às quintas-feiras à tarde. Enfim, acho que é tudo questão de sintonia e bom senso. É um saco que, de todos os vizinhos que eu poderia cair, caí bem com esse traste.


malboro vermelho

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relógio

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Cheguei cedo demais. Sabia que não estaria lá. Não sei porque achei que me deixariam subir, afinal já estive lá tantas vezes. Na verdade, eles sabem de mim e sabem de você. Sentei. Estranho, nunca ficamos aqui. Engraçado, essa situação cabe perfeitamente a nós. Minha intensidade precisando desacelerar para acompanhar seu ritmo. Parece uma brincadeira, eu corro, fico ofegante e paro; você chega calmo e eu começo a correr novamente. E quando você não chega? Fico aqui, encaixada nesse cômodo formal de objetos descaracterizados e desconfortáveis enquanto encaro minha própria imagem no espelho. Realmente. Ofegante, duro muito pouco e parada, viro nada.


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Um jarro de cerâmica. Ninguém sabe muito bem a sua origem, e cada vez que ela é questionada, as histórias são as mais diversas: “Ah, esse vaso foi meu tataravô que trouxe de uma expedição feita na China no século XVI, quando era colonizada pelos portugueses.” “Que nada! Esse vaso eu que comprei em um saldão de antiquário lá no Brás.” Algumas histórias mais floreadas que outras. Mas meu avô sempre dizia com muito orgulho que era um vaso de extrema importância para a família, e que corria um mito pelas gerações que dentro dele havia a chave de um mistério a ser desvendado. A realidade é que meu avô gosta mesmo de contar histórias e eu nunca sei dizer


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se são verdade ou mentira. Quando minha mãe casou pela segunda vez, ela e meu padrasto foram morar em um apartamento desses de prédios com vários blocos. Lá, mesmo que sejam muitos apartamentos por andar, cada um tem o seu hall privativo. E meu padrasto, nunca muito crente de fantasias – acho que na verdade ele não tem muita paciência pra essas histórias – colocou o jarro nesse hall. A uma distância da vista, mas sem a necessidade de se desfazer dele. Toda vez que eu vou lá e passo pelo hall fico observando o jarro um pouco. Pensando se de fato deve haver uma chave e algum mistério dentro dele. Mas aí eu entro no apartamento e logo esqueço.

o jarro de mil histórias


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Quando abro a porta do elevador vejo o meu hall.

estamos reformando. Falo no plural porque a ideia não foi minha. Meu vizinho de porta se mudou para cá há um ano mais ou menos. A primeira vez que encontrei ele foi no elevador. Esse cara desconhecido estava esperando o elevador, devia ser a visita de alguém. Foi por isso que o cumprimentei normalmente, como sempre faço e continuei mexendo no celular, como todo mundo faz. Sabia que estaríamos no elevador e o silêncio ia permanecer até o “tchau, tchau”. Entramos no elevador e ele apertou o 12. Eu não apertei nada. O homem ficou me encarando. Não estava esperando ninguém, logo, devia ser o novo morador. Já fazia três semanas que ele tinha se mudado. Eu sempre parto do princípio que a pessoa que chegou no lugar tem

que ir cumprimentar, ele chegou depois, então achei que essa aproximação tinha que partir dele. “Você mora no 121?”, ele perguntou no elevador. “Sim, você é o novo morador né?”, respondi e perguntei. Ele se apresentou, eu também me apresentei. Chegamos no nosso andar, ficou aquela situação um pouco constrangedora de cada um entrar no seu apartamento e dar tchau ao mesmo tempo. Desde da nossa apresentação, nos encontramos só ocasionalmente pelo prédio. Nossa maior interação começou há um mês quando ele decidiu que queria reformar o hall. O que para mim só está dando dor de cabeça. Não porque é uma grande reforma, seria até impossível, considerando que ele deve ter uns três metros quadrados.


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Mas porque não era uma coisa que eu queria ficar pensando sobre. Qual era o problema com o hall antigo? Quando eu me mudei para cá ele já estava ótimo, havia umas flores em um vaso laranja que deveriam estar lá há anos e davam uma vidinha pro espaço, foi ótimo não ter que pensar no que colocar nele. Falei para o meu vizinho que ele podia fazer do gosto dele, que eu era uma pessoa eclética, que gostava de tudo.


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convite


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Aperto o botão do interfone. – Vou no oitavo andar, no aniversário do Francisco. Escuto o portão destrancar e adentro o pequeno prédio, revestido de pastilhas azuis e janelas de madeira. Entro no elevador. Aperto o botão do respectivo andar.Meus batimentos só aceleram, e tenho certeza que se alguém estivesse do meu lado conseguiria ouvir meu coração praticamente saltar do peito. Chego ao andar e escuto a eloquência da música escapar por entre as frestas da porta fechada. Só preciso tocar a campainha. Estamos sempre nos esbarrando por entre os corredores, trocando olhares fugidios.Lembro de todas as vezes que nos beijamos nas festas anônimas. Pouquíssimas foram as palavras trocadas nesses momentos. Mas dentro de mim, me saboto imaginando profundas frases apaixonadas. Podíamos pelo menos ter conversado um pouco antes dessa festa. Antes dessa situação toda. Não conheço mais ninguém que estará aqui. Eu nem sei porque ainda me submeto a esse tipo de encruzilhada. Aquele cabelo macio, a camisa com cheiro de algodão, a boca com gosto suave … – Você também veio pro aniversário do Fran? Me dei conta que permaneci muito mais tempo que o espaço comportava. Apertei o botão da campainha


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e Uma superfície plana, límpida. Seus entusiastas a vendem como ferramenta para expansão do espaço. Quase algo astronômico e metafísico. Um olhar desleixado mal percebe a sua barreira física. “O outro lado” sempre tão inalcançável, sempre tão almejado. A grama do vizinho é mais verde.


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u Um território paralelo de vida independente. Raras as exceções, há uma brecha temporal e uma breve interação. Ajeitar a camisa um pouco aqui, pentear o cabelo com as mãos ali. Mas nunca, um olhar profundo direto ao olho do outro. E assim passam os dias, os meses, os anos sem dar-se conta que o outro paralelo é seu próprio reflexo.


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Minha mãe me deixou ficar sozinha em casa. Já faz muito tempo que peço para ela me deixar ficar sozinha, mas ela falava que eu era muito nova. Mas ontem eu fiz seis anos e meio. Minha mãe sempre fala que ninguém comemora os meio anos. Mas agora que tenho seis anos e meio sou muito mais velha que uma menina de seis anos. Então minha mãe deixou eu ficar em casa enquanto ela vai pro mercado. Até agora tá tudo bem, não sei porque ela tava preocupada. Ela já saiu há cinco minutos, pelo menos eu acho que foram cinco minutos, eu acabei de ganhar um relógio de ponteiros da Barbie e estou aprendendo a ler as horas ainda. Tá, agora já passaram dez minutos e minha mãe falou que voltaria em dez minutinhos, então ela já deveria ter voltado, mas ela não voltou, acho que tô vendo as horas do jeito certo, meu vô falou que toda vez que o braço da Barbie mexesse é porque passou um minuto e o braço já mexeu dez vezes então já passaram dez minutos. Será que tô olhando pro braço certo? Lembro que tinha um braço que era dos minutos e outro que era das horas será que já passaram dez horas cadê minha mãe acho que vou lá fora talvez tenha algum adulto não tem ninguém aqui na verdade nunca tem ninguém só tem minha porta de casa e a do meu vizinho e as janelas do chuveiro do meu vizinho meu vizinho ele é adulto como ele chama mesmo eu não conheço muito ele será que vou falar com o meu vizinho ou ele é um estranho porque minha mãe sempre fala pra eu não falar com estranhos então acho que eu não devia falar com ele mas ao mesmo tempo pode ter acontecido alguma coisa com ela e eu vou ficar aqui sozinha para sempre acho que eu devia ir falar com meu vizinho.

10 minutinhos Minha mãe chegou.


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Todos os dias Augusto, antes de entrar em casa, olha para o quadro que emerge assim que a porta do elevador é aberta. Uma tela renascentista que já estava pendurada quando se mudou. Os vizinhos, um casal de senhores, disseram que a pintura foi herdada de uma tia avó que morava no sul da Itália e já morrera há tempos. Ele, a princípio, não gostava da tela. Objeto velho e antiquado. Quadros de pinturas com mais de um século de vida não deveriam permanecer por aí, pensava ele. São temas obsoletos demais para a contemporaneidade. Ainda assim, a mulher desenhada de fisionomia robusta e olhar carinhoso que colhia flores em um vasto campo onde ao fundo está um casebre de madeira, lhe traziam uma calma intrigante. A cada dia que passava, Augusto se delongava um pouco mais à frente da tela antes de adentrar em seu apartamento. Aquele olhar desacelerava sua respiração e deixava seu fim de dia extraordinariamente tranquilo. Trocou as aulas de yoga por 30 minutos em frente à tela. Largou a terapia e passou a dedicar 1h30 de suas terças-feiras em frente à tela. Aos domingos à tarde puxava sua poltrona para o hall e lá ficava, tranquilo. Os vizinhos, numa mistura de preocupação e estranhamento, cogitaram tirar o quadro do espaço, e tocaram a campainha de Augusto para informar-lhe sobre a decisão. Augusto havia sumido. Não fora encontrado em lugar algum. “Evaporou!”, constataram os vizinhos.


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quadro

Anos depois, o neto do casal reparou em um elemento diferente no quadro central do hall. Ao fundo, sentado tranquilamente em uma cadeira de balanรงo, na varanda do casebre de madeira, um homem contemplava a paisagem bucรณlica.


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chaves Finalmente em casa. Procuro pelas minhas chaves, reviro minha bolsa incessantemente. Foram dez minutos mergulhando minhas mãos em cada centímetro da desordenada bolsa e então desisto. Toco a campainha e nada, ela ainda não chegou. Recosto-me na parede ao lado da porta para aguardar e aos poucos vou escorregando até que por fim sento-me no assoalho. O espaço é suficiente para que, apoiando minhas costas na parede eu possa esticar minhas pernas. Penso no sofá que está a cerca de um metro do meu corpo, cujo alcance é impedido por uma porta de cor monótona e formato igualmente sem graça. À medida que os minutos vão passando, os incômodos vão crescendo. Desenrosco a bolsa do meu corpo e a coloco de lado, em seguida tiro os meus tênis. Aquele casaco que estava na cintura já passou para trás do meu pescoço para tornar-se uma almofada improvisada. Se foi a primeira hora e a meiacalça se transforma em uma espécie de espartilho apertando meu estômago. Tiro a meia calça. Escorrego um pouco mais até que minha cabeça apoiada no casaco inclina-se para o teto e eu passo a observar cada canto do espaço. A porta do lado oposto é da mesma monotonia, exceto pela maçaneta em outro formato que consegue ser ainda mais sem graça. Buscando conforto, me viro de lado apoiando agora minha cabeça nas minhas mãos enquanto dobro meus joelhos para que eu possa me encaixar no espaço e começo a folhear o jornal que me foi dado na saída do metrô. Após passar pela sessão de esporte e culinária, me envolvo em uma matéria sobre um diretor que está prestes a estrear uma nova peça de teatro com tema polêmico. Ouço então o barulho do elevador. Ufa! Olho para cima e meu rosto cora no mesmo instante. “Pois é, esqueci minhas chaves… Eu sou sua vizinha. Muito prazer”, digo enquanto me ponho de pé em um segundo e ao mesmo tempo chuto todos os objetos estranhos ao espaço para o canto, na esperança de que eles desapareçam. Após os comprimentos a outra porta se fecha e agora o conforto jamais será atingido novamente.


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online


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[11:56, 31/05/2019] Francisco: cadê você? [12:01, 31/05/2019] Helena: to entrando no elevador, não vai dar para conversar. [12:01, 31/05/2019] Francisco: eu disse que não daria certo tomar essa decisão, EU DISSE! [12:02, 31/05/2019] Helena: você precisa entregar quando o documento? [12:02, 31/05/2019] Francisco: ontem, precisamente às duas da tarde. [12:03, 31/05/2019] Helena: calma, tá tudo bem, eu tô chegando em casa e já vou te encaminhar isso. [12:03, 31/05/2019] Francisco: VOCÊ TÁ ENROLANDO PARA FAZER ISSO HÁ UMA SEMANA. [12:03, 31/05/2019] Helena: não precisa gritar comigo. [12:03, 31/05/2019] Francisco: é sério, assim que você chegar em casa não esqueça de recolher as cartas com a vizinha, e me encaminhar o comprovante do pagamento do condomínio. [12:04, 31/05/2019] Francisco: e além disso carregando...


homenagem ao escritor que sobre nós poetiza as estranhezas da vida banal. pequenas alterações foram feitas no texto original de 1989. GULLAR, Ferreira. O Jarro. In: A estranha vida banal, 1989.

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ferreira gullar

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Era um hall e era de tarde. No século XXI. Nunca havia antes percebido com tanta clareza o século XXI. No meio do hall, como no meio do século, estava o jarro – com água e flores. Meu amigo falava, e eu ouvia. Ele falava e eu ouvia no século XXI. Era realmente impressionante. Estávamos próximos à janela aberta para a tarde e, entre nós dois, o jarro de flores. Que flores não sei, nem nos importava. A cara de meu amigo se confundia com as petúnias de cor, umas azuis outras brancas, os seus óculos, seu nariz. E como que sufocado nelas, afirmava: – Agora, imagine você, a polícia acha que o assassino … Asa e sino, azul e branco, palavra e flor. – Como? Era uma mastigar de flores nossa fala. O vidro dos óculos brilhava entre os talos, e a órbita ocular, detrás, era um olho conhecido, que falava, que ajudava a boca. – Não acredito que a moça fosse tão ingênua assim. Ela aceitou o convite. – Claro! Mas claro mesmo era o século XXI, presente em tudo. “Estas flores estão durando e, como minha carne, fazendo o século.” – Moça direita não vai ver coleção de selo em apartamento de rapaz. – Toda moça, qualquer que seja, é direita. E todo rapaz. O tufo de flores parecia sair de dentro do paletó de meu amigo: uma camisa de flores. A cabeça tentando explicar: – Não estou querendo dizer que … Quando ele se recostou de novo na poltrona, não o vi mais. Só a sua voz chegava a mim por cima do jarro florido, como de outro lado de um muro. – Agora tudo vale, não há mais um limite, não há mais valores. Que século este! O jarro é que parecia dizer outra coisa em seu murmúrio azul e branco.


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COMUNICADO: REUNIÃO EXTRAORDINÁRIA

ASSUNTO EM PAUTA: O MISTERIOSO DESAPARECIMENTO DOS CAPACHOS

É quinta-feira, 20h. Reunião de condomínio, evento chato que se encerra sempre sem decisão alguma tomada por falta de quórum. Mas ultimamente está sendo diferente, é a segunda reunião com quase cem por cento dos condôminos presentes. O assunto que tanto convém a todos? O sumiço dos capachos. Sim, todos eles! Alguém está roubando os capachos e esse problema precisa ser resolvido com imediatismo. – Essa situação está insustentável. – Vamos com calma Cintia! Pelo menos são apenas capachos… – Agora são os capachos, o que vem depois? Vão roubar os vasos dos nossos halls? Ou entrar nos nossos apartamentos? – Como se você se importasse com os vasos, né Ricardo? Qualquer coisa que você coloque naquele hall vai virar um cinzeiro! – Eu me importo com o tapete que coloco na minha porta. Mas de que adianta investir se sei que em uma semana ele não estará mais lá? E nem me fale sobre roubar nossas decorações, aquele meu castiçal é herança de família, eu iria na justiça se roubassem minha relíquia! – Eu ouvi uma história do prédio 243 que começou assim, sumiu um quadro aqui, uma tapete ali e semanas depois fizeram um arrastão no edifício todo! Isso é claramente um aviso para tomarmos precauções urgentes. – Sem contar que nossas crianças já não podem circular nas ruas, agora vão perder a possibilidade de brincar pelo prédio? – Considerando todas as opiniões apresentadas e de acordo com a votação feita, é para a segurança de tudo e todos que câmeras de segurança serão instaladas nos nossos halls íntimos.


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nono andar A visão turva típica de uma madrugada de sexta-feira. As pernas com vida própria, ou a falta dela, que não conseguem seguir em linha reta. Era bom estar em casa, pensava, já listava mentalmente todas as coisas da geladeira que poderiam ser engolidas em uma só garfada. Mas ainda não estava em casa, esse era o percurso mais difícil. Precisava manter uma postura sóbria para o porteiro e chegar no elevador sem fazer estardalhaço. Entrar no elevador foi um alívio, porém, se ver no espelho nem tanto. Chegar no andar era melhor ainda. Ver a porta de metal se abrir e saber que em pouquíssimo tempo estaria deitado e pronto para se recuperar. Ao chegar não reconhecia a porta de casa nem o penduricalho preso nela. Apesar do tamanho ser o mesmo todos os objetos estavam posicionados de forma estranha aos olhos. A cor do aparador tinha mudado, não combinava com o tom verde da parede, ela também não deveria estar em verde. Os olhos piscam várias vezes, não era possível tudo ter mudado. Dando passos para trás, retorna ao lugar anterior que tinha dado acesso a esse espaço estranho. A porta se fecha e o número que aparece nela não era o que deveria ser. O painel de andares começa a ser observado, e a descoberta do estranhamento vem rápido. Em menos de quinze segundos estou em casa.


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enigma

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Muito se fala sobre o menino do último andar. O elevador nunca subia até o décimo segundo, mas todos o viam circulando pelo prédio. Quando se mudou todos foram até o seu andar para tentar descobrir qual era o seu mistério. O novo morador nunca utilizava o elevador. Não foi possível solucionar o enigma, não tinha nada no seu hall, era vazio, branco.


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Paralisada, fiquei horas deduzindo tudo que poderia encontrar do outro lado da porta. Para cada possível cenário, elaborei um plano de ação. Se fosse morte imediata, teria de ser firme e pedir ajuda. Se tivesse sangue demais, teria de primeiro socorrer e depois acalmar alheios. Se fosse sumiço, teria de assumir as rédeas e fazer as ligações. Após analisar as dificuldades, repassei toda a lista para me assegurar de que estava pronta. Se no momento não me sentisse completamente segura, eu aguardaria que viesse aquela sensação antecedente ao pulo na piscina gelada. Demorei intensos respiros para suspirar um tanto de coragem e tocar na maçaneta. Toquei-a dedo por dedo até a palma envolver todo o maciço. Segurei com força. Puxei. Saí pronta para receber todas as emoções. Olhei para os lados. Onde estão as pessoas? E a gritaria? Como posso ajudar? Devo me desviar de algo? Ou será que estão se escondendo de mim? Silêncio absoluto. Quatro portas fechadas, pequenos tapetes, vasos inteiros, mesa em pé, quadro alinhado, chão impecável, elevador subindo. Era só mais um dia prestes a começar.


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do lado de lรก


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Os moradores do 14A brigam muito, todos sabem disso, seja pela finura das paredes ou porque já presenciaram uma dessas brigas no hall ou no elevador. E vou te dizer, não tem nada pior do que se ver confinado em um espaço como esse enquanto um casal discute a relação. Você não tem pra onde fugir e obviamente não pode opinar, e, de súbito, nos vemos tão envolvidos nessa discussão que quase parece que somos uma das personagens, começamos a torcer por um dos lados. O morador do 14B foi um dos mais afetados pelas brigas do casal. Ouvia as coisas mais íntimas e presenciava os momentos que não deveria ter presenciado. Até que as brigas cessaram, foi um dia inteiro na expectativa do começo de uma nova briga, mas ela não veio. A noite passou tranquila também, sem nenhum grito ou xingamentos. Na manhã seguinte a ansiedade para saber o que tinha acontecido já estava no limite. Ao sair para o hall viu que os móveis tinham desaparecido junto com as discussões.

o sumiço do hall O marido não tinha apenas se separado da mulher, como tinha levado junto todo hall de entrada.


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babuska matrioska era uma vez um hall com um quadro do hall.


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notas dos autoras Através da catalogação visual, análise comportamental e estudo de simbologias, este livro busca desvendar o hall burguês contemporâneo por meio da linguagem literária.Desenvolvido por Adriana Porto Alegre, Beatriz Dias, Fernanda Vaidergorn, Luisa Teperman e Marina Schiesari, orientado por Thiago Benucci e acompanhado por Vitor Pissaia, Maria Basile e Julia Park, este livro conclui um semestre de trabalho com 24 contos.




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