Revista GPS Brasília 8

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A incrível história de um menino que se apaixonou pela ciência ao ler livros catados do lixo. Numa juventude sofrida, mas inspiradora, tornou-se médico e hoje transita em três hospitais, clinicando. Seu sonho? Tornar-se padre

Por Paulo Pimenta Fotos Celso Junior

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inha mãezinha Izaltina, você sofreu tanto com a nossa vida difícil, com nossa família L ZL\Z SOVZ TL\Z PYTijVZ - desde o dia em que meu pai Raimundo morreu muitas di J\SKHKLZ ]PLYHT 0VQL ]VJĸ está velhinha e frágil, mas eu resisti e lhe ofereço essa vitória da perseverança sobre a aridez da exclusão social e econômica. Tanto sofrimento não me impediu de ser médico. Eu vou te dar uma boa vida.” Assim começa o texto de agradecimento do convite de formatura do Dr. Cícero Pereira Batista, recém-formado em Medicina pelas Faculdades Integradas da União Educacional do Planalto Central (Faciplac). Quem o vê sob o jaleco branco e com o estetoscópio envolto no pescoço jamais conseguiria imaginar

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o quão difícil foi o caminho para chegar até ali. E poderiam até duvidar da história. Antes de chegar à Nova QNL, uma parte do bairro de Taguatinga, ainda pequeno, ele morou na Candangolândia. O número de pessoas na mesma casa demandou a mudança. Só de irmãos são 20, mas nem todos conseguiram sobreviver. No novo endereço, também conhecido como Chaparral, com altos índices de violência, o médico viu o corpo do irmão estendido no chão após ser assassinado, presenciou o sofrimento da mãe que lutava contra o alcoolismo e teve de lidar com a falta do pai que morreu quando ele tinha dois anos de idade. Mas o brasiliense de 33 anos foi além das expectativas daqueles que o viram rasgar sacos de lixo em busca de alimento, vigiar carros e desmaiar de fome em sala de aula. Muito mais que de comida, Cícero tinha fome de conhecimento. Foi em meio ao chorume produzido pela decomposição de restos orgânicos que ele encontrou os responsáveis pela mudança de vida: os livros. Nas ruas, além dos detritos encontrou várias obras literárias e pedagógicas. E disparou a ler. Um dia encontrou a carcaça de uma câmera Polaroid. Fez do objeto uma lente de aumento e passou a analisar os piolhos que tinha na cabeça, comparando com os livros. Ali nascia a paixão pela ciência. A irmã era a companheira de aventuras em busca da alimentação. “Eu não cata-

va lixo para vender, era para comer. Eu precisava sobreviver”, desabafa. O garoto levava uma panela vazia para a escola e pedia o que sobrava da merenda para que a família tivesse com o que se alimentar. Quando chegou à oitava série, fez um concurso para [LU[HY LU[YHY UV LUZPUV WYV Zsionalizante e a área escolhida foi Enfermagem. Cícero passou LT ZLN\UKV S\NHY ) LZJVSH cava em Ceilândia e ele morava em Taguatinga. Se não havia condições para comer, que dirá de pagar o transporte público. Todos os dias Cícero caminhava cerca de 40 minutos. Como o curso era matutino e vespertino, sobravam apenas as noites para ele revirar o lixo. O que encontrava era apenas os restos do resto. Algumas vezes chegou a passar mal e desmaiar dentro da sala de aula, o que motivou professores e colegas a preparar uma cesta básica e entregar para ele em uma sacola transparente que era levada para casa misturada com a timidez. “Eu não falava que estava com fome. Falava que tinha anemia. Eu tinha vergonha, era muito orgulhoso”, lembra.

PERSPICÁCIA A curiosidade matou o gato. Na verdade, os cachorYVZ +HKH UV]V SOV[L X\L Bolinha, cadela de estimação, tinha e não sobrevivia, Cícero utilizava para experimento. Dissecava o bicho e comparava ao que via nos livros de

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