A ocupação do tempo e do espaço na poética urbana de Francis Alÿs

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ele ao realizar duas visitas à Lima com um intervalo de apenas um ano. Nesse ínterim, percebeu a “higienização” promovida pela legislação municipal para dissipar os enjeitados do sistema (ambulantes, pedintes etc.) do centro histórico da capital peruana ou, se quisermos, de seu bairro mais turístico. Alÿs sentiu então a necessidade de documentar e alertar para o desaparecimento desses modos de vida paralelos, informais, e que são um componente tradicional nas metrópoles latinas, segundo o artista (2007). A presença dessa população “indesejada”, afinal, é uma afronta aos padrões tecnológicos e culturais de cidade moderna importados da Europa e dos Estados Unidos, uma recusa voluntária ou compulsória da população que não se enquadra nos moldes socioeconômicos estabelecidos pelo sistema. Enquanto a prefeitura buscava “revalorizar” a área (um processo acompanhado de diversas ações, como incentivo a artistas, designers e arquitetos a tomarem conta do bairro, para que a região central se tornasse uma espécie de SoHo nova-iorquino da época), Alÿs fazia o movimento contrário. O artista alisava o discurso e a prática dominantes. Não apenas corro-

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borava para sublinhar o necessário movimento de resistência a esses processo e resgate ao direito à cidade por sua população, como apontava para a situação política dissensual, presente em ambas as situações (Turista e Vivienda para todos). Nas palavras de Rancière, “o sem-teto abandona sua identidade consensual de excluído para se transformar na encarnação da contradição do espaço público: aquele que vive materialmente na rua e que, por esta mesma razão, está excluído do comum e da participação nas decisões sobre os assuntos comuns.” (2005, p. 63). Simultaneamente, na perspectiva do regime estético das artes proposto por Rancière, ao se colocar como “um trabalhador – o turista” Alÿs produz um ruído na cotidianidade mexicana. Manipula as formas de fazer, de dar visibilidade e de, consequentemente, produzir um pensamento político que, já na sua base, é estético. O artista provoca uma leitura comparativa que evidencia o reducionismo da situação, onde uma pessoa é lida por sua função no sistema socioeconômico. Não apenas Alÿs destoa fenotipicamente dos que o cercam, mas sua função naquele local gera perturbação. Alÿs desconcerta os acordos, nos levando a refletir sobre os conceitos de função, ocupação e trabalho, bem como o uso do tempo e do espaço na cidade. Rancière escreve que “o choque dos heterogêneos pretende aguçar


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