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3.2 – facetas da adjetivação em Dia de São Nunca à Tarde

Dia de São Nunca à Tarde

outra questão importante a considerar no emprego do adjetivo é a posição que ele tem com relação ao seu substantivo: ele pode vir posposto ou anteposto.

mais comumente, ele se apresenta posposto, e seu valor é objetivo, referencial. Vejam os casos, acima, dos adjetivos em “batatas fritas” e “casa materna”.

nesses dois adjetivos, não há nenhum valor subjetivo agregado: em geral, vão ser lidas de forma neutra, objetiva, a menos que a casa materna e as batatas fritas criem emoções e lembranças especiais.

Quando anteposto, o adjetivo adquire um valor subjetivo, e quase sempre mais emocional:

... não passa de um pobre filho de uma lavadeira…

Vocês certamente já explicaram a seus alunos a mudança de significado do adjetivo “pobre”, quando posposto e anteposto: posposto, ele significa “sem dinheiro”; anteposto, quer dizer “infeliz”.

Pois bem: isso, que a gramática normalmente explica com relação a alguns adjetivos (pobre, grande, e mais alguns), acontece, em alguma medida, com todos os adjetivos: antepostos, eles sublinham um valor, uma interpretação subjetiva de quem fala.

“Gabriel faz que vai mas não vai, abre as pernas, as douradas pernas,…”

É claro que esse adjetivo, anteposto, sugere o encantamento de quem está olhando — no caso, frei tanajura.

3.2 – facetas da adjetivação em Dia de São Nunca à tarde

agora, vejamos que valor o adjetivo joga, na novela de roberto drummond. lembremos que ele está na fala ou no pensamento de alguma personagem, expresso, mais comumente, na voz do narrador, ou indica o aliciamento que este procura fazer dos leitores. e nesses dois momentos o adjetivo toma as cores mais importantes na trama da novela. e os adjetivos são numerosíssimos! na mão de um professor (ou um editor) inexperiente, o corte deles seria inevitável!

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Dia de São Nunca à Tarde

muitas vezes, o narrador usa ironicamente o adjetivo, sobretudo anteposto, mesmo que a ironia envolva também simpatia, como no caso citado de frei Vicente cometendo um delito. Às vezes, essa ironia vem com o uso de algum adjetivo incomum, ou inadequado ao substantivo, como se se divertisse um pouco com a emoção da personagem. assim, o narrador lembra os incríveis “fulvos cabelos” da louca nordestina, descendente de holandeses; em “corpo louro e hollywoodiano”; em “mágico conversível branco”; em “conversível encantado” da mãe dos gêmeos; em “chegada mágica”; em “nervosismo bom”; em “corte indeciso” do cabelo dos gêmeos — tudo sobre a chegada da família trazida no carro conversível, cinematográfico.

essa ironia é clara, quando o narrador repete inúmeras vezes o mesmo adjetivo para o mesmo substantivo, como se quisesse nos lembrar das características mais que conhecidas da personagem ou da coisa a que ele se refere. desse modo, frei Vicente (ou algum traço dele) é mencionado como: “nosso muito amado diretor”, “sua explosiva, napolitana paixão pelo futebol”, “santo e bom frei Vicente”. o “conversível branco” é citado inúmeras vezes. na cena do banho de gabriela, no capítulo 21, aparecem os adjetivos “louro (loura)” e “nu (nua)”, juntos ou separados: seis vezes, o primeiro, e cinco vezes, o segundo. os “temíveis” e antropófagos índios correm a narrativa toda.

daqui a pouco, vamos ver esse uso irônico, divertido e simpático, em um capítulo todo.

e vocês devem ter-se divertido com a descrição da mãe dos gêmeos: “a mãe de gabriel, que é linda e loura e perfumada e sexy e elegante como as estrelas de Hollywood, vem dirigindo o conversível branco”, numa sequência de cinco adjetivos, mais a comparação, que funciona como remate da descrição apaixonada, sem vírgulas, como se o entusiasmo quase atropelasse a frase…

esta profusão de adjetivos, de que demos apenas alguns exemplos, quase desaparece no capítulo final: nele, resolução e desfecho da narrativa, cabe ação rápida, e o adjetivo só vai aparecer nas últimas linhas, numa estrutura de oração adjetiva, que se repete, assim como se repetem, poeticamente, palavras do campo semântico de canção. o texto diz:

“Tom Zé começa a cantar e é uma canção de unir os homens, de dar fé e esperança aos homens, diante dos últimos acontecimentos — fé aos humilhados, aos ofendidos, que eles continuam a existir na face da terra; a canção diz:

Foi só um sonho que morreu Outros sonhos serão sonhados.

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