Paralelo - Unfolding Narratives: in Art, Technology & Environment

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BR 2009

Marcelo Rezende é escritor e editor, e atua como curador de projetos de mídias digitais.

A TEMPERATURA DAS COISAS

Em agosto de 2009, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) divulgou o resultado do mais recente censo sobre o uso de aparelhos celulares no Brasil, indicando que três Estados no país haviam rompido a barreira de um telefone por cidadão. São Paulo e Rio de Janeiro foram duas das esperadas e previsíveis localidades. Mato Grosso do Sul, localizado na região Centro-Oeste, um estado que no imaginário brasileiro é ainda “selvagem”, “idílico” e em plena “natureza”, aparece ao lado dos dois maiores centros urbanos da nação. A população estimada no país é de 191.480.630. Os celulares são hoje utilizados por 161.922.375 pessoas. Esses números contêm uma infinidade de significados, e o mais evidente entre eles é a acelerada transformação da sociedade brasileira nos últimos 15 anos, na qual mudanças de ordem política, social e econômica promoveram uma alteração no modo como a nação se relaciona com a imagem, a história e a informação. 206

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Marcelo Rezende

Os números ajudam a compreender as mudanças estruturais sofridas. Divulgada em meados de 2008, a pesquisa “A Nova Classe Média” (realizada pelo Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas) mostrava que essas transformações se intensificaram nos últimos sete anos. A partir de 2002, a probabilidade de ascensão da classe C para a classe A nunca foi tão alta, assim como as chances de declínio para a classe E jamais se mostraram tão baixas. A classe média brasileira passou de 42% para 52% da população. O mesmo estudo promove uma comparação. Nos Estados Unidos – nação que tem sido o modelo de riqueza e desenvolvimento para a política nacional ao menos nas últimas cinco décadas – 53% da população se definem como membros da “classe média”. Para os critérios brasileiros, a classe C é composta por famílias que possuem um rendimento entre R$ 1.064 (€ 398, US$ 581) e R$ 4.561 (€ 1.710, U$ 2.492) mensais. Em números absolutos, cerca de 23 milhões de pessoas passaram de uma classe para a outra. Em 1978, em seu curso “La Préparation du Roman” – mais exatamente na terceira aula do curso ministrado no Collège de France, em Paris –, Roland Barthes fala a seus alunos, e faz um desvio do tema do curso a fim de promover um comentário sobre a situação social do mundo quando os anos 80 começavam a aparecer no horizonte, enviando sinais no mínimo contraditórios se pensados em relação à década anterior, profundamente marcada por um desejo e uma pulsão política “revolucionária”, nos mais diferentes sentidos que a palavra, no período, poderia representar. Naquele instante, para Barthes, o pior se multiplicava, e por uma razão. A classe média (a pequena burguesia, na gramática marxista) não havia conquistado, historicamente, o domínio do Estado ou da circulação da riqueza. Logo, não havia tomado o poder político nem o econômico. Mas

de alguma forma ela estava conseguindo se mostrar decisiva e influente de um modo tão sutil quanto perverso: havia conseguido fazer de seus valores (morais, estéticos etc.) os valores comuns de todas as classes. Não importa qual o lugar na pirâmide social. Os valores da classe média estavam se tornando, Barthes anunciava a seus alunos, os valores da sociedade ocidental. A partir desse ângulo, os números em torno da realidade brasileira provocam questões de difícil resposta. Sobretudo quanto a algo impossível de ser de fato quantificado em números: o imaginário. Qual seria o imaginário dessa nova classe média, surgida no início do século 21 e durante a revolução digital? Para a mesma pesquisa realizada pela FGV, há algumas coisas, nesse mar de dúvidas, que já se sabe. A primeira, a de que essa nova classe média difere da classe média tradicional ao se comportar de modo diferente quanto à informação recebida e os meios que a fornecem. São pessoas que desconfiam do que é noticiado por jornais e revistas. Não se identificam com os projetos, o gosto e instituições valorizadas pela classe na qual acabam de entrar. Surgiram em um outro tipo de ambiente. Há então agora um novo, fluido e desconhecido imaginário, que ajuda a (re)formar uma imagem que o país tem em relação a si mesmo e suas relações com o mundo. Durante esse processo, diferentes estratégias procuram mapear os efeitos dessa situação inteiramente inédita, na qual várias situações sociais e culturais se apresentam, indicando uma certa “temperatura” das coisas. O país se encontra urbano, contemporâneo, internacionalizado, rico, tecnológico e globalizado, para no instante seguinte se perceber ainda arcaico, primitivo, selvagem, isolacionista, deficiente e miserável. As duas esferas coexistem, e procura-se construir uma cadeia de comunicação entre uma e

outra realidade, entre um e outro pensamento, e é nesse contexto que tem se realizado a produção contemporânea brasileira, com sua mais potente matéria-prima: a reinvenção das redes sociais. Elas são construídas das mais diferentes maneiras. São ações coletivas ou individuais fazendo uso de estratagemas para promover uma alteração em um fragmento do tecido social. A tecnologia, nesta situação, se mostra uma ferramenta de interação entre variadas partes. Trata-se de uma “inteligência” fazendo uso de toda técnica a sua disposição a fim de atingir um determinado objetivo, que é a experiência artística acontecendo em meio à dimensão política de um novo imaginário que se forma. Nos debates em torno do pensamento e do saber gerados nessas condições se encontra a possibilidade de um real exame sobre os limites e as chances para a construção de novas relações sociais aptas a gerar uma até então inédita compreensão da experiência democrática, e de que modo é possível construir uma saudável negociação com o espaço de vivência e de convivência.

Marcelo Rezende é autor do romance Arno Schmidt (Planeta, 2005) e do ensaio Ciência do Sonho – A imaginação sem fim do diretor Michel Gondry (Alameda, 2005). Curador da exposição Estado de Exceção (Paço das Artes, 2008) e cocurador dos projetos Comunismo da Forma (Galeria Vermelho, São Paulo, 2007), e À la Chinoise (Microwave International Media Arts Festival, Hong Kong, 2007). Foi editor do projeto 28b, uma das plataformas da 28a Bienal de São Paulo (2008).

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