Ed especial semana euclidiana

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Antes dos versos REPRODUÇÃO

* MÁRCIO JOSÉ LAURIA A Sr.ª Nelsy Lousada Brandão solicitoume que escrevesse a apresentação do primeiro livro póstumo de seu marido, Adelino Brandão. Tomei conhecimento do texto em CD, fiz as emendas que me pareceram necessárias e as comuniquei à família do escritor. Não constava do CD nenhuma indicação quanto ao título que seria dado à obra, muito menos por qual editora seria ela publicada. Recebi posteriormente atenciosa correspondência do editor Martin Claret, de São Paulo, que me enviou as páginas ainda soltas do livro e o pedido de uma leitura crítica final. Lançado em outubro de 2005 na Coleção “A Obra-Prima de Cada Autor”, da própria Martin Claret, Ondas, de Euclides da Cunha, sai em texto integral num volume muito elegante e cuidado, que certamente cumprirá o objetivo de tornar acessível toda a produção poética da juventude do autor de Os Sertões. A seguir, meu pequeno prefácio, como figura no corpo do livro organizado e anotado por Adelino Brandão. Desde logo a confissão de furto: o título desta nota introdutória foi usado por Euclides da Cunha em seu atualíssimo pre-

fácio a Poemas e Canções, de Vicente de Carvalho, em 1907. A inesperada morte de Adelino Brandão, ocorrida a 21 de novembro de 2004, interrompeu brilhante carreira de educador, sociólogo, jornalista, ensaísta, ficcionista. Trabalhador infatigável e pesquisador arguto, Adelino Brandão tem lugar privilegiado na rarefeita galeria dos euclidianos, tais e tantas foram suas preocupações em torno da vida e da obra do malogrado autor de Os Sertões. Que eu me lembre, Adelino jamais deixou, nos últimos cinqüenta anos, de ter alguma obra de caráter euclidiano em andamento. A última delas, talvez, encontrada quase pronta, aqui está. Inata vocação de professor, Brandão sempre quis dar a seus escritos um caráter de praticidade que aproveitasse a todos, especialmente aos jovens. Este, no meu entendimento, o objetivo primeiro deste livro, em que se colige e explica toda a produção euclidiana em versos. Não seria este o lugar apropriado de se fazer a possível distinção entre poesia e verso. Poesia, produziu-a superiormente Euclides nas páginas vibrantes de Os Sertões ou na sua notável autobiografia moREPRODUÇÃO ral de “Judas-Ahsverus”, inserta em seu livro póstumo À margem da História (1909). Versos, nem sempre com carga poética, fê-los Euclides desde tenra idade, até a maturidade plena. Repositório significativo dessa incursão euclidiana pelos caminhos da metrificação e da rima é Ondas, ainda agora objeto da mais acurada curiosidade acadêmica. Quando presidente do Grêmio Eucli-

des da Cunha, de São José do Rio Pardo, tive sob custódia a caderneta com os poemas originais de Ondas e vivi um de meus grandes momentos de pura emoção, de que já dei notícia em meu livro Ensaios Euclidianos. Foi no manuseio e detido exame daquele objeto de dez por quinze centímetros, contendo 155 páginas numeradas a mão e a lápis. Desde a capa, marrom com aspecto de couro, tudo faz presente o homem Euclides da Cunha, anterior e superior à glória, como se nem o tempo nem a morte houvessem posto fim a um espírito que, em 1883 e 1884, povoou aquelas páginas com demonstrações matemáticas, poemas e sonetos, exercícios de autocrítica, desenhos geométricos e figuras humanas. Mal se lê na capa, no alto, Euclydes Cunha; no meio, Ondas, e ao pé, 1883 – Novembro e Dezembro, dando ao conjunto um nítido aspecto de livro, um livro que o adolescente Euclides gostaria então de ver publicado, com as primícias de seu talento. Na primeira página, recoberta por cerradas demonstrações matemáticas feitas a tinta, está lançado a lápis 900$, possivelmente o preço da própria caderneta enquanto coisa comercial – novecentos réis. A última indicação, uma espécie de conclusão, é “Formula geral das equações ás differenças” e “ A equação ás differenças só contem termos de grau par”. O anverso da página apresenta-se em branco. Na seguinte, numerada como 3, lê-se Ondas, /primeiras poesias -/de/ Euclydes Cunha - / - Rio de Janeiro - / - 1883-, como se tudo estivesse pronto para a impressão, exceto a inusitada indicação 14 annos. Mas não é propriamente do valor de Ondas que pretendo falar: como bem ressaltou Manuel Bandeira na apresentação da obra na edição Aguilar da Obra Completa de Euclides da Cunha (1966), “o próprio Euclides teria cedo reconhecido que o verso não seria o seu apto instrumento de expressão literária. Tudo o que em sua alma havia de belo, forte e ardente, de poder transfigurador poético, está é na sua prosa máscula, um tanto bárbara, às vezes, mas sempre magnífica – na prosa de Os Sertões, sobretudo.” Chamou-me a atenção, isto sim, a injustiça que Euclides cometeu consigo mesmo, quando anos mais tarde, relendo os originais de Ondas, lançou breves e contundentes críticas ao seu escrito inaugural. A primeira manifestação da injustiça está evidente na dura advertência que lança ao longo da primeira contracapa, destinada a um eventual leitor: “Eu tinha

15 annos! Contem (=contém), pois, a tua ironia, quem quer que sejas —” Na página 3, retoma a crítica, continuando depois dos 14 annos originais: “de edade / Obsm. (= observação) fundamental para explicar a serie de absurdos que ha nestas paginas. / 1906 – Euclydes”. Evidente que nenhum autor deixaria de notar, passados vinte e dois anos, que a sua focalização da vida, a sua marca estilística, a sua experiência acumulada lhe dariam condições de escrever “melhor” ou ao menos diferente do que o fazia na sua longínqua adolescência. Exatamente por ter escrito Ondas em tenra idade (aos dezessete anos, a não ser que 1883 seja tomado apenas como a data da compilação e passagem a limpo de poemas produzidos em diversos anos anteriores), é que Euclides adulto haveria de, quando menos, nada observar de modo assim acre. Para os verdes anos em que foram escritos, os versos de Ondas são admiráveis, tanto pela forma cuidada quanto pelos temas que focalizam, tudo exigindo incomum cultura e acuidade de seu inexperto autor. Quanto às outras produções em verso abrigadas neste livro pelo espírito euclidiano de Adelino Brandão, creio serem tãosomente versos de circunstância em que Euclides, em diversas fases da vida, exercitou sua capacidade de escandir, de rimar, de submeter-se, enfim, aos rigores das leis da metrificação vigentes ao tempo. O essencial de sua mensagem ao mundo está, mesmo, em Os Sertões e em algumas páginas de suas obras ditas menores. Uma palavra final de reconhecimento ao ingente trabalho de pesquisa com que Adelino Brandão, em notas de rodapé, procurou esclarecer os leitores de hoje, pouco afeitos a figuras literárias, a metaplasmos, às múltiplas referências históricas e mitológicas, tão presentes nestes textos euclidianos. São José do Rio Pardo, 15 de março de 2005

Adelino Brandão era educador, sociólogo, jornalista, ensaísta, ficcionista

* Márcio José Lauria é professor, escritor, crítico literário e advogado. Membro do Conselho Euclidiano, é considerado um dos maiores especialistas da obra de Euclides da Cunha.


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Euclides da Cunha: de herói trágico a mito triunfante REPORTAGEM

* CARMEN CECÍLIA TROVATTO MASCHIETTO

O culto a Euclides da Cunha identifica São José do Rio Pardo. A celebração que hoje se pratica representa o ápice de um processo social iniciado há cem anos. Originalmente imaginado como um lutuoso momento de pranto ao escritor, com o tempo foi transformado em apoteótica comemoração. Euclides da Cunha morou na cidade de 1898 a 1901, momento de criação de Os Sertões, enquanto, como engenheiro, reconstruía uma ponte que desabara sobre o rio Pardo. Cidadãos esclarecidos, conscientes de que naquele período realizara na cidade obras significativas, desejaram lembrá-lo, no terceiro aniversário da sua morte, sensibilizados pelas circunstâncias em que ela ocorrera. Encaminhando-se em grupo até a margem esquerda do rio, ao lado da ponte e do casebre, ali teceram por algum tempo lembranças do morto ilustre e das obras que realizara na cidade: a Ponte e o Livro. Repetindo-se anualmente, esse ritual acentuou o significado da data e reforçou a importância do lugar. Conquistando a adesão de novos participantes, as celebrações posteriores adquiriram o feitio de romaria anual. Ponte e Casebre, consagrados como lugares de memória, passaram a ponto de encontro e de reflexões sobre Euclides, congregando admiradores e amigos, fieis romeiros dedicados a manter viva a memória do escritor. As celebrações evoluíram com o tempo, envolvendo várias gerações, diferentes circunstâncias históricas, impedindo que as lembranças desaparecessem. A comemoração euclidiana é hoje um legado cultural reconhecido nacionalmente, uma tradição festiva, presente no calendário cívico da cidade e do Estado de São Paulo. Estudos sobre memória demonstram que construções sociais desse tipo não são obra de indivíduos isolados ou de coletividades, não sendo ingênuas ou objetivas. São grupos sociais que lembram e

Ponte e casebre (foto), consagrados como lugares de memória, passaram a ponto de encontro e de reflexões sobre Euclides

decidem o que deve e como deve ser lembrado, de acordo com interesses e pontos de vista particulares. Demonstram ainda que comemoração é uma reconstrução humana do passado, que, consciente ou inconscientemente, seleciona, interpreta e distorce os fatos, dependendo da época, das circunstâncias, da vontade do grupo organizador (Halbwachs, 1970; Le Goff, 1990). Sendo reconstruções humanas do passado, as comemorações euclidianas devem ser entendidas como fenômenos sociais e históricos, elaboradas e controladas por pessoas com diferentes formações, com orientações ideológicas e estéticas específicas, que tiveram de atender múltiplos interesses e compromissos, fatores que interferiram no seu modo de ser, em diferentes momentos da sua trajetória. A compreensão plena desse legado cultural exigirá uma investigação sobre os mecanismos utilizados no decorrer dos anos para selecionar, interpretar e distorcer o passado, sobre os grupos organizadores que se sucederam, sobre as relações sociais estabelecidas, a

dinâmica e a visualidade dos seus ritos e mitos, as identidades e papéis que foram formados, os interesses e compromissos atendidos. Como um processo social em evolução, as comemorações euclidianas acompanharam as transformações sociais, políticas, econômicas, ideológicas e os modismos de cada época. Criaram e modificaram ritos, mitos, símbolos; pessoas se sucederam e foram renovadas; identidades e papéis foram sendo construídos. Algumas criações se solidificaram e permaneceram como tradição intocável. Outras desapareceram. Antropólogos interpretam eventos comemorativos como representações, teatralizações, dramatizações destinadas a emocionar e influenciar pessoas, a chamar a atenção para fatos e lugares, a reforçar crenças, a consolidar a fé em algo que foi construído e imaginado no passado (DAMATTA, 1997). Que fé, crença e que passado os ritos e mitos da comemoração euclidiana têm procurado eternizar? Que fatos, lugares e que memórias têm sido selecionados, interpretados e distorcidos, ao longo de

todos esses anos? Estas questões costumam instigar e incomodar pessoas ligadas ou não à comemoração, obrigando-as a discuti-las, analisá-las e entendê-las. Encaradas como questionamentos saudáveis, sinalizam ao grupo organizador se algo deve ser mudado ou reforçado, se a dinâmica da festa deve ser repensada, redefinida, atualizada ou mantida. A possibilidade desse diálogo construtivo é um dado positivo, permitindo maleabilidade, fortalecimento, dinamismo, fatores indispensáveis para a renovação do processo criativo que movimenta a celebração. Questões desse tipo geram tensões e pressões, colocando frente a frente grupos conservadores e grupos inovadores, embate indispensável que evita perigosas distorções ou fossilizações do passado. Os ritos falam, transmitem mensagens, ressuscitam memórias, glorificam, criticam, intrigam, de forma explícita ou veladamente. Os ritos euclidianos não falam apenas de Euclides da Cunha. Têm destacado pessoas, fatos, lugares, coisas, verdades, mitos, conferindo-lhes sentidos, significados, que podem ser lidos, interpretados, entendidos, nas performances dos desfiles, nas cenas da romaria, nos ciclos de estudos, nas conferências, nos debates de professores, nos espetáculos populares, nas disputas intelectuais e esportivas, nos eventos sociais. Essa é a função dos ritos. Devidamente interpretados, os ritos revelam o foco e os objetivos da festa, os grupos de poder, os interesses embutidos, as ideologias subjacentes, as verdades e mitos explicitados ou que estão sendo construídos. Dramatizando o passado imaginado e reconstruído, os ritos da comemoração têm provocado emoções, sentimentos, sensações, influenciado pessoas, levando-as a associar coisas reais, naturais com manifestações sobre-humanas, extraordinárias, conferindo-lhes sacralidade, transformando-as em mito. (continua)


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Euclides da Cunha: de herói trágico a mito triunfante (continuação) Os ritos da comemoração euclidiana transfiguraram o escritor e suas obras em mitos sagrados. A ponte é um símbolo, um emblema, figurando no escudo e na bandeira da cidade. A cabana de zinco, relíquia sagrada, está resguardada num relicário. Ponte e Cabana são monumentos, documentos, patrimônios históricos invioláveis. Os Sertões, Bíblia da nacionalidade, é fonte infindável de estudos e reflexões. Euclides da Cunha é modelo, exemplo, homem-símbolo de São José do Rio Pardo. O desejo e a necessidade de preservar a memória de Euclides explicam os motivos da comemoração. Essa motivação exterior, no entanto, não explica a essência dos mitos que se criaram. Estes tiveram motivações internas mais profundas, de natureza sentimental e afetiva, que mobilizaram e sensibilizaram o psiquismo das pessoas e o imaginário coletivo, provocando transfigurações que possibilitaram o aparecimento de mitos sagrados. Antropólogos afirmam que o mito vem sempre associado a situações míticas, a situações conflituosas de natureza psíquica, presentes na própria sociedade, ainda que de forma inconsciente (Caillois, 1979). Levando-se em conta a história da vida e da morte do escritor, constata-se que o personagem Euclides da Cunha, em São José do Rio Pardo, foi associado à figura do herói injustiçado. Do herói que, por ter praticado um ato infeliz, para solucionar um conflito que atormentava sua vida, acabou vítima de uma injustiça, merecendo ser protegido, defendido, justificado, pela sociedade. Impressionados e sensibilizados com as ressonâncias perturbadoras decorrentes da morte trágica de Euclides, morto num duelo com o amante de sua mulher, amigos e admiradores procuraram uma jus-

tificativa para essa tragédia. Abalados sentimentalmente pelo escândalo, pela morte humilhante, por uma sequência de fatos e atos moralmente reprováveis, que vieram a acontecer - adultério, traição, infidelidade, vingança, assassinato, injustiça -, apelaram para o ritual e o simbólico, transformando a memória de Euclides da Cunha num mito. Como homem, transgrediu normas e interditos, sofrendo sanções sociais. Como mito, foi um herói: aquele que encontrou uma solução justa, recorrendo a um ato heróico, para resolver um conflito moral (presente no psiquismo da sociedade), merecendo ser justificado como vítima, diante das circunstâncias (Caillois, 1979). Por muitos anos essa imagem mítica de tragédia grega foi cultivada, cultuada e propagada pelas comemorações. Discursos proferidos junto ao rio tratavam Euclides como vítima, como herói humilhado, cujos amigos, naquele momento, promoviam uma vindita moral, honrando sua memória. Desejavam com aqueles gestos apagar da sua história o que consideravam um estigma. São José do Rio Pardo, berço de Os Sertões, transfigurou-se em polis vingadora, cidade santa que acolheu o herói e assumiu a meritória missão de defendê-lo, protegê-lo, eternizá-lo, atraindo para esse culto notáveis oradores. Logo perceberam que isso era bom para a cidade. Essa imagem, defendida por um grupo de remanescentes contemporâneos de Euclides, apoiado por elementos de uma sociedade rural, patriarcal, aristocrática e arcaica, entrou em declínio com o enfraquecimento do poder, dos valores e crenças desse grupo social, em ritmo acelerado de extinção. A imagem retrógada, enlutada, triste, divulgada pelo grupo fundador da comemoração, tornara-se incompatível com as aspirações de grandeza e superioridade de uma nova

sociedade, que, em grande parte, havia se beneficiado das ressonâncias dessas celebrações. A partir dos anos quarenta, um novo grupo social assume o controle das comemorações, decidido a renová-las mediante a inclusão de novos eventos e de novos membros da sociedade. Apostaram também na divulgação das obras do escritor, atraindo promissores estudantes do segundo grau do recém-inaugurado colégio público da cidade. Fortalecida, a comemoração logo entrou em franca evolução, adotando uma dinâmica liberal, moderna, democrática, graças ao trabalho desenvolvido pelos novos organizadores, portadores de formação superior, com mentalidades abertas e experiências culturais adquiridas em sociedades mais evoluídas. Os novos organizadores ampliaram o calendário comemorativo, inventando as Semanas Euclidianas. Novos rituais festivos foram criados, com desfiles de estudantes, fanfarras, alegria, competições intelectuais e esportivas, bailes, atividades culturais e sociais variadas, que facilitaram a interação e a integração de gerações, de grupos sociais, estimulando o desenvolvimento educacional, cultural, social e econômico da cidade. Durante as Semanas Euclidianas, Euclides da Cunha passou a ser celebrado como herói triunfante, honrado em palestras, debates, conferências, divulgação de suas obras, sempre comemorado com muito brilho, alegria e charme, também em bailes, que marcaram os anos dourados, e, mais recentemente, em espetáculos de cor, som, luz, vibração e muita pirotecnia, que encantam e espantam definitivamente os ranços e lembranças de tragédias do passado. As Semanas Euclidianas continuam transformando a cidade e a sociedade, agradando ou desagradando, sendo

aprovadas ou desaprovadas, unindo pessoa e cidades, facilitando encontros e a criação de novas identidades, motivando a juventude a seguir o exemplo patriótico de Euclides da Cunha. O que assombra em São José do Rio Pardo é que, após mais de 100 anos, o fantasma de Euclides da Cunha continua a impressionar e a estimular a imaginação fértil e a criatividade impressionante de sucessivos organizadores, que não deixam morrer a chama que alimenta o culto euclidiano.

BIBLIOGRAFIA ABREU, Regina. O Enigma de Os Sertões. Rio de Janeiro: Rocco. 1998. CAILLOIS, Roger. O Mito e o Homem. Lisboa: Edições 70, 1979. DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. DEL GUERRA, Rodolfo José. Conhecendo Euclides da Cunha. Ano 100 (18981998): Coleção Municipal, v. II, 1998. ELIADE, Mircea. Aspectos do Mito. São Paulo, Lisboa: Edições 70, 1970. HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1970. LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora Unicamp, 1990. TROVATTO, Cármen. A tradição Euclidiana: Uma Ponte entre a História e a Memória. São Paulo: Arte & Ciência, 2002. * Carmen Cecília Trovatto Maschietto é mestre em Memória Social e Documento, pela Universidade do Rio de Janeiro, UNIRIO. Graduada em História e Pedagogia, pela F. F. C. L. de São José do Rio Pardo. Diretora do Campus São José do Rio Pardo da Universidade Paulista, UNIP. Membro do Conselho Euclidiano, de São José do Rio Pardo (carmen.trovatto@terra.com.br)


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A questão ambiental brasileira a partir de Euclides da Cunha REPRODUÇÃO

MARCOS DE MARTINI Ler Euclides da Cunha não é novidade para ninguém, possibilita uma série de interpretações sob os mais diversos assuntos tratados pelo escritor em suas obras. Existe um Euclides da Cunha historiador, geógrafo, sociólogo, ecologista e tantos outros mais. De todos esses Euclides, talvez aquele que por último tenha sido interpretado por seus estudiosos mais afeiçoados seja aquele Euclides que apresenta uma visão ecológica muito consciente e avançada para a época em que viveu. Não que essa visão fosse de importância menor em relação às demais. Mas, simplesmente, pelo fato que o mundo moderno começou a pensar ecologicamente, através de ações de grupos defensores do meio ambiente e práticas governamentais, nas últimas décadas do século XX. Antes disso, como no final do século XIX vivido por Euclides, preponderava a visão de um mundo abundante e inesgotável em seus recursos naturais. Ir contra esse paradigma, dizia a voz preponderante, era para alguns poucos pensadores “desocupados” com questões mais relevantes. Felizmente, a despeito da falta de uma política internacional coordenada, essa conscientização ambiental vem tomando forma na medida em que as pessoas, grupos de ambientalistas e alguns governos, preocupados cada vez mais com o mal que se avoluma e se aproxima, despertaram para a necessidade de se preservar o mundo em que vivemos sob o risco irreversível de torná-lo inabitável. Isso tudo, infelizmente, ainda soa como catastrofismo para muitos que pensam a curto prazo. A despeito dessa irresponsabilidade, os exemplos de reações da natureza diante da secular ação predatória da espécie humana não deixam dúvidas do caminho que estamos trilhando. Agora, voltemos ao finalzinho do século XIX, época em que Euclides da Cunha em suas andanças pelo Brasil, em especial pelo Rio de Janeiro e São Paulo, pôde constatar uma situação de degradação ambiental que se fazia sob a região da Mata Atlântica em nome dos interesses

econômicos que norteavam a país, principalmente através do café, nosso ouro verde. Certamente, em suas viagens para o interior de São Paulo, concomitantes ao período em que residiu em São José do Rio Pardo, durante a reconstrução da ponte metálica, Euclides da Cunha teve a oportunidade de comprovar os resultados ambientais desastrosos que a lavoura do café imprimia, de maneira avassaladora, a esse trecho tão especial de nossa flora, hoje reconhecido internacionalmente pela sua biodiversidade. Essa constatação, transformada em uma análise histórico-geográfica, com fundamentos ambientalistas, foi expressa nos artigos “Fazedores de Desertos” (O Estado de São Paulo de 21 de outubro de 1900) e “Entre as Ruínas”, posteriormente reunidos no livro “Contrastes e Confrontos”, publicado em 1907. No artigo “Fazedores de Desertos”, Euclides nos conduz por esse mundo de uma beleza natural até hoje decantada, mas que, a seu tempo, sofria devido a uma ambição desmedida, associada à falta de conhecimento técnico mais apurado que pudesse minimizar os efeitos da exploração da terra. Assim Euclides descreve esse mundo do interior paulista: “Daí o quadro lastimável descortinado pelos que se aventuram, nestes dias, a uma viagem no interior - varando a monotonia dos campos mal debruados de estreitas faixas de matas, ou pelos carreadores longos dos cafezais requeimados... quase sem folhas ou em varas, dando em certos trechos, às paisagens, um tom pardacento e uniforme, de estepe”. (CUNHA, 1975,p.127) Diante desse quadro, Euclides deixa transparecer claramente sua visão ecológica, descrita de uma maneira que bem comprova seu conhecimento e preocupação. Ele não apenas a descreve. Não poderia fazê-lo sem aprofundar em detalhes que eram desconhecidos para a grande maioria dos moradores daquelas paragens. Recolhendo alguns trechos em Fazedores de Desertos, temos essa descrição contundente:

Floresta Amazônica: Euclides denunciou a exploração desumana e desarticulada dos recursos da selva

“Porque há longos anos, com persistência que nos faltou para outros empreendimentos, nós mesmos a criamos. Temos sido um agente biológico nefasto, e um elemento de antagonismo terrivelmente bárbaro da própria natureza que nos rodeia. É o que nos revela a História. Foi a princípio um mau ensinamento do aborígene. Na agricultura do selvagem era instrumento preeminente o fogo. ...Renovavam o mesmo processo na estação seguinte, até que, exaurida, aquela mancha de terra fosse abandonada em caapuera, jazendo dali por diante para todo o sempre estéril; ...O selvagem prosseguia abrindo novas roças, nova derribadas, novas queimas e novos círculos de estragos... Veio depois, o colonizador e copiou o processo. ...Ora, tais selvatiquezas atravessaram toda a nossa história.” (CUNHA, 1967, p.127) Além da força destruidora da lavoura cafeeira, ao processo de devastação so-

mava-se a ação das estradas de ferro, abertas para atender as necessidades da expansão da economia pelo interior paulista. A partir de uma determinada distância, tornava-se praticamente antieconômico o plantio do café, já que não haveria como realizar seu escoamento para os pontos de embarque para o exterior, a fonte de consumo do produto nacional. Nas áreas mais próximas do litoral, o transporte ficava sobre as costas das mulas, que, em longas e penosas caminhadas, escoavam a produção. Mas, com o avanço desmedido para o interior, em busca de novas terras, afastando-se cada vez mais das antigas rotas traçadas pelas tropas, as estradas de ferro se fizeram mais do que necessárias. Em terras paulistas, o primeiro avanço da modernidade ocorreu com a ligação Santos-Jundiaí. A partir do ponto final dessa malha, (continua)


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A questão ambiental brasileira a partir de Euclides da Cunha REPRODUÇÃO

(continuação) uma série de outras redes foi sendo construída para atender, em primeiro lugar, a necessidade do transporte do café para o porto de Santos e o afluxo de novos moradores arrebatados pela ânsia da riqueza repentina prometida pela lavoura. A partir de Campinas, novas linhas patrocinadas por senhores do café abriam amplas perspectivas para a expansão da lavoura cafeeira. Sob o olhar de Euclides da Cunha, foram essas as palavras: “É o que observa quem segue, hoje, pelas estradas do Oeste paulista. Depara, de momento em momento, perlongando as linhas férreas, com desmedidas rumas de madeira em achas ou em toros, aglomeradas em volumes consideráveis de centenares de esteres, e progredindo, intervaladas, desde Jundiaí ao extremo de todos os ramais. São o combustível único das locomotivas. Iludimos a crise financeira e o preço alto do carvão-de-pedra atacando em cheio a economia da terra, e diluindo cada dia no fumo das caldeiras alguns hectares da nossa flora”. (CUNHA, 1967, p.128,129) Agora, além das derrubadas e queimadas exigidas pela onda verde, a natureza passava a ter mais um predador. As ferrovias passavam a ser os grandes devoradores das florestas do interior paulista. Já no artigo “Entre as Ruínas”, Euclides descreveu, com a perspicácia característica, o processo de degradação vivido na região do Vale do Paraíba, rota de entrada do café pelas terras paulistas, a partir do desmatamento, degradação das terras e seu abandono. Uma vez esgotada a fertilidade superficial das terras, os cafeicultores repetiam a técnica secular, praticada desde os tempos coloniais, em busca de áreas férteis para o plantio de novas lavouras de café. O resultado dessa exploração, hoje mais conhecido, foi uma região sugada ao seu extremo por uma prática imediatista, que trabalhava com a perspectiva da abundância das terras e de seus recursos. O resultado dessa ação, assim foi descrito por Euclides da Cunha: “Ressaltam a cada passo expressivos traços de grandezas decaídas. Os mor-

“A modernidade dos trilhos tinha uma fome insaciável de madeira para dormentes, lenha e carvão”

ros escavados, por onde trepa teimosamente uma flora tolhiça, de cafezais de 80 anos, ralos e ressequidos, mal revelando os alinhamentos primitivos; cintados ainda pela faixa pardo-avermelhada dos carreadores tortuosos, por onde subiam, outrora, as turmas dos escravos... Sem mais a vestidura protetora das matas, destruídas na faina brutal das derribadas, desagregam-se, escoriados dos enxurros, solapados pelas torrentes... depois das chuvas torrenciais, e expõem agora, nos barrancos a prumo,...a rígida ossamenta de pedra desvendada, ou alevantam-se despidas e estéreis ...”. (CUNHA, 1967, p.131,132) Euclides irá intensificar sua visão ambientalista a partir de sua visita às terras amazônicas, conhecendo e denunciando um crime social em meio à exploração desumana e desarticulada dos recursos da selva. Infelizmente, a sua morte repentina abortou aquilo que seria a produção mais relevante sobre a temática ambiental. O Euclides dos sertões também olhava para a devastação nas áreas de floresta. Enfim, a ânsia dos interesses econômicos, sobrepondo-se ao meio ambiente, não

foi reduzida no decorrer do século XX. E foi esse ambiente de devastação, uma vez denunciado por Euclides da Cunha, que fez com que outro escritor de profundo sentimento nacionalista, Monteiro Lobato, denunciasse alguns dos problemas vividos pelo país. Em 1920 lança o livro “A Onda Verde e o Presidente Negro”. No capítulo “A onda verde”, expressão diretamente ligada a Monteiro Lobato, o autor repete a análise sobre os efeitos danosos da expansão da lavoura cafeeira sobre as terras paulistas, outrora denunciados por Euclides da Cunha. Assim registra Lobato: “A quem viaja pelos sertões do chamado Oeste de São Paulo empolga o espetáculo maravilhoso da preamar do café. Aquela onda verde nasceu humilde em terras fluminenses. Tomou vulto, desbordou para São Paulo e, fraldeando a Mantiqueira, veio morrer, detida pela frialdade do clima, à beira da Paulicéia. ...A região era todo um mataréu virgem de majestosa beleza. ...Sua ambição feroz preferia à beleza da desordem natural a beleza alinhada da árvore que dá ouro... derrubou, roçou e queimou a maravilhosa

vestimenta verde do oásis. Desfez em decênios a obra prima que a natureza vinha compondo desde a infância da terra.” (LOBATO, 2008, p. 19,20) Essa visão de militância é dividida, em certos momentos, com uma visão de real valorização da lavoura cafeeira e sua importância para São Paulo. Assim relata Monteiro Lobato, associando as estradas de ferro e a onda verde: “É de enfunar o peito a impressão de quem pela primeira vez navega sobre o oceano verde-escuro. Horas a fio, num Pullman da Paulista ou num carro da Mogiana, a cortar um cafezal só - milhões e milhões de pés que ondulam por morro e vale até se perderem no horizonte confundidos com o céu... Para quem necessita revitalizar as energias murchas e esmaltar-se de indestrutível fé no futuro destas regiões do sul, nada melhor do que um raid pelo mar interno da Rubiácea. Mas a árvore do ouro só produz à custa do sangue da terra. É exuberante na produção da baga vermelha, mas insaciável de húmus.” (LOBATO, 1975, p.20) Mas não tarda muito para voltar à carga contra essa prática que leva a exaustão das terras paulistas pela prática irracional da lavoura cafeeira, Lobato decreta: “Mas a árvore do ouro só produz à custa do sangue da terra. É exuberante na produção da baga vermelha, mas insaciável de húmus.Polvo com milhões de tentáculos, o Café rola sobre a mata e a soverte.” Passam-se as décadas. O café encontra seu freio não na reação de uma natureza revolta diante de séculos de exploração desmedida. A própria ambição descontrolada provoca a crise de 1929 e seus reflexos funestos por terras brasileiras, em especial, pelo interior de São Paulo. Outros escritores debruçaram-se sobre essa história que está diretamente ligada à própria história do Brasil. Foram-se os escravos, chegaram os imigrantes, junto com a esperança da posse da terra, as grandes propriedades, os barões do café, a ação dos grileiros, a fragmentação decorrente das crises econômicas e tantos outros elementos atrelados à lavoura cafeeira. (continua)


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A questão ambiental brasileira a partir de Euclides da Cunha Assim, sob o olhar da análise econômica, Caio Prado Júnior constituiu-se em um dos nomes de maior peso para o entendimento do Brasil. Em sua obra referencial, História Econômica do Brasil, Caio Prado norteia toda nossa história a partir da implantação do sistema colonial português. Ao trabalhar o capítulo “Evolução Econômica”, o autor elabora uma análise sobre os prejuízos causados pela lavoura cafeeira na região do Vale do Paraíba. Apesar de quase meio século entre os artigos de Euclides da Cunha e a obra de Caio Prado, os fundamentos ambientais se aproximam muito. Vejamos o escreve Caio Prado: “A causa é sempre semelhante: o acelerado esgotamento das reservas naturais por um sistema de exploração descuidado e extensivo. Isto será particularmente sensível no caso que temos agora presente. Esses terrenos de fortes declives onde se plantaram os cafezais não suportarão por muito tempo o efeito do desnudamento de florestas derrubadas e da exposição do solo desprotegido à ação das intempéries. O trabalho da erosão foi rápido. Agira-se sem o menor cuidado e resguardo; a mata foi arrasada sem discernimento, mesmo nos altos; plantou-se o café sem a atenção a outra ideia que um rendimento imediato. O desleixo se observa na própria distribuição das plantas... perpendiculares à encosta; não havia disposição mais favorável à ação da erosão. O resultado de tudo isto foi desastroso: bastaram uns poucos decênios para se revelarem rendimentos aceleradamente decrescentes, enfraquecimento das plantas, aparecimento de pragas destruidoras. Inicia-se então a decadência com todo seu cortejo sinistro: empobrecimento, abandono sucessivo das culturas, rarefação demográfica.” (PRADO, 1990, p.175) Não menos importante foi a leitura de Celso Furtado em “Formação Econômica do Brasil”, quando descreve o processo de formação da lavoura cafeeira, um dos momentos mais importantes da vida econômica brasileira. “Havendo abundância de terras o sistema de subsistência tende naturalmente a crescer... Reunidos em grupo abatem as árvores maiores e em seguida usam o fogo como único instrumento para limpar o terreno. Aí, entre troncos abatidos e tocos não destruídos pelo fogo plantam a roça. Para os fins estritos de alimentação de uma família, essa técnica agrícola é suficiente.” (FURTADO, 1971, p.120) Mais recentemente, o reconhecido brasilianista Warren Dean, publicou, em 1996, “A ferro e fogo. A história e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira”. O professor de história na Universidade de Nova York, falecido em 1994, perpassa pela ocupação desse espaço desde os tempos mais remotos de nossos ancestrais ameríndios, que ele chama de “invasores humanos”. No capítulo “O café desaloja a floresta”,

A ambição descontrolada provocou reflexos nas terras brasileiras

Warren Dean avalia o peso que a lavoura canavieira teve nas terras paulistas até a introdução econômica do café. Estabelece a relação entre a riqueza natural da Mata Atlântica e sua justa adequação aos interesses do café. Seu esplendor seria a causa natural de sua morte. “O café é mesial, isto é, exige solos que não sejam nem encharcados nem secos. ...A Mata Atlântica estabilizara-se nessas áreas, ao longo de milhares de anos de incipiente intervenção humana, um solo raso mas moderadamente fértil e um tanto ácido. Este material e a biomassa da própria floresta podiam, por um certo tempo, suprir os nutrientes essenciais. Era precisamente este o perigo para a Mata Atlântica: acreditava-se que o café tinha de ser plantado em solo coberto de floresta “virgem”. (DEAN, 2004, p.195) A demonstração de uma natureza fértil, com árvores de porte exuberante era o aval para a derrubada e queima, abrindo espaço para o café. “As posturas municipais normalmente exigiam que os troncos derrubados em estradas ou cursos d’água fossem removidos. O restante era deixado a secar... ,todo o amontoado de floresta derrubada era incendiado. ....Durante muitas horas as cinzas caíam como chuva. O fogo ardia durante dias e depois fumegava por muitos outros... Chegavam , por fim, as chuvas, que adicionavam ao esterco gorduroso do húmus e do solo os nutrientes liberados do rico leito das cinzas.” (DEAN, 2004,p.198) Na análise de Warren Dean, a devastação da floresta, acrescida de um trabalho sem técnica, produzia um resultado ainda pior. “Assim, os pés de café eram alinhados da forma mais desastrosa imaginável. ...Descendo as fileiras, as chuvas cavavam sulcos, formando gargantas entre elas, carregando o húmus e a camada superficial do solo com rapidez e eficiência. Nunca houve a prática de girar os troncos para formar barreiras contra a erosão. ...Só depois que as chuvas começavam a expor as raízes é que se faziam pequenos esforços para fazer talu-

des para impedir o deslizamento.” (DEAN, 2004, p.200) No capítulo seguinte, “Instrumentos da Devastação”, Warren Dean acrescenta outros elementos cúmplices na devastação da Mata Atlântica, em especial nas terras paulistas ligadas ao café. Primeiramente ele enfoca o rápido crescimento populacional observado e a decorrente urbanização da região que passou de um milhão de pessoas em 1808, para 6,4 milhões em 1890. Essa explosão certamente causou uma alteração forte sobre a região atlântica. Decorrente desse crescimento populacional houve a necessidade da expansão da produção de gêneros alimentícios, o que sabemos não inclui o café. A criação de animais, notadamente bovinos, forçava o preparo de vasta área para pastagem, além de muita madeira utilizada na delimitação das propriedades, como mourões, currais e estábulos. Nas cidades, cada vez maiores, havia a necessidade de grande consumo de carvão e lenha. Comerciantes avançavam sobre novas áreas de florestas, aquelas que ainda não haviam sucumbido à faina dos cafeicultores, para suprir as necessidades urbanas crescentes. Dean estima que no final do século XIX, o Rio de Janeiro consumia 270 mil toneladas de lenha por ano. “A cidade era também grande consumidora de lenha e carvão. Vendedores de lenha e fabricantes de carvão normalmente compravam os lotes que limpavam, embora às vezes trabalhassem por contrato. Havia também um ativo comércio atacadista de madeira.” (DEAN, 2004, p.211) Cidades crescendo, as propriedades rurais necessitando de ferramentas de maior tecnologia; abria-se um outro campo de devastação das áreas florestais. Nas olarias, a fabricação de tijolos e telhas; nas fundições, oficinas e forjas, todas necessitando de grandes quantidades de lenha e carvão para tocarem seus fornos. Mais uma vez a natureza sofreria com mais um ataque de devastação. De todas essas novas incursões huma-

nas que agrediam a natureza, depois da agricultura, a de maior peso na devastação foi a prática pecuarista. A maneira com que as pastagens eram preparadas inicialmente e, de tempos em tempos, as queimadas que eram feitas para a recuperação da forragem, acabavam, na maioria dos casos, extrapolando em muito as áreas inicialmente demarcadas. Warren Dean também vê um outro elemento de grande impacto devastador: a ação expansionista das linhas férreas pelo interior paulista. A modernidade dos trilhos tinha uma fome insaciável de madeira para dormentes, lenha e carvão. De todos os lados vinham as ações que acabavam, de alguma maneira, prejudicando as reservas florestais, colaborando para que chegássemos à situação atual, em que grande parte da vegetação atlântica foi destruída. “A ferrovia foi um imenso avanço na paisagem desembaraçada de quaisquer rastros além dos de pés humanos e cascos de gado e montaria. ...A derrubada de floresta, porém, se aceleraria, agora que o instrumento de penetração da fronteira se tornara acessível. ...As ferrovias fariam suas próprias demandas à floresta, porque exigiam grandes quantidades de dormentes... Embora as vias férreas que corriam para os portos queimassem carvão importado, as do interior normalmente queimavam lenha. O corte da lenha tornou-se, portanto, uma boa oportunidade econômica para proprietários de terra ao longo das vias.” (DEAN, 2004, p.226) Feita essa relação entre os quatro autores e parte de suas obras, Euclides da Cunha, Monteiro Lobato, Caio Prado Júnior e Warren Dean, percebe-se que cada qual, a seu tempo, usando de argumentações peculiares, olharam para uma mesma região e a interpretaram. De modo geral, nas partes mais específicas, traçaram o mesmo caminho em suas análises, basicamente seguindo, com desdobramentos que o espaço da obra e o tempo permitiram, os caminhos abertos por Euclides da Cunha. Mais uma vez mostra-se o valor das análises feitas por Euclides da Cunha, pontos de referência para tantos outros estudiosos desse Brasil em transformação. Referências Bibliográficas: CUNHA, Euclides. Contrates e Confrontos. São Paulo: Cultrix, 1975. DEAN, Warren. A ferro e fogo. A história e a devastação da Mata Atlântica Brasileira. São Paulo: Cia das Letras, 2004. FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1971. LOBATO, Monteiro. A Onda Verde. Brasiliense. São Paulo: Editora Globo, 2008. PRADO JR, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1990. * Marcos De Martini é professor e mestre.


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A Guerra de Canudos além de Os Sertões PAULO HERCULANO Muitas têm sido as perspectivas com que se tem observado a Guerra de Canudos – e, sob todos os aspectos que se mire este formidável acontecimento histórico, tão esclarecedor sobre o Brasil e o povo brasileiro, “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, destacam-se pela eloquência do seu discurso amplamente descritivo e pela profundidade com que perscruta a alma brasileira. Todavia, Euclides valeu-se de fontes primárias para escrever sua obra prima, obras que, muito embora tenham sido publicadas antes mesmo de 1902, ano em que foi publicado “Os Sertões”, acabaram ofuscadas pela magnitude do Livro Vingador. Portanto, em que pese a grandeza de “Os Sertões”, é certo que não foi o primeiro livro a respeito do histórico evento fratricida ocorrido no nordeste brasileiro, e que opôs as forças nacionais contra os jagunços liderados por Antônio Conselheiro. Em comum com seus antecessores, “Os Sertões” têm sua gênese a partir de relatos inicialmente originados para a imprensa da época e, depois, convertidos em livros. Em todos os textos, transbordam o ufanismo nacionalista, a narrativa nada imparcial e a linguagem excessivamente adjetivada – muito mais do que deveria ocorrer em se tratando de textos jornalísticos, aliás. Aos poucos, Antônio Conselheiro, Pajeú, Beatinho, João Abade, Moreira César, Artur Oscar, dentre tantos outros personagens daquele acontecimento épico, vão ganhando forma como personagens de um dos principais acontecimentos da história de nosso país. Se ainda

1897: mulheres e crianças presas durante os últimos dias da Guerra de Canudos

hoje são lembrados, certamente a longevidade de suas memórias e a permanência de seus feitos se devem a Euclides da Cunha. Muitos foram os intérpretes da Guerra de Canudos. Não apenas hoje, passado pouco mais de um século do combate, mas também imediatamente logo após o confronto, foram muitas as publicações a respeito – invariavelmente, relatos de testemunhas do combate, na condição de repórteres de guerra que condensaram e ampliaram o objeto das reportagens. A este respeito, imprescindível a leitura de “Os Sertões como livro-reportagem: a correspondência entre as reportagens sobre Canudos e o Livro Vingador”, de Bárbara Alessandra Ramos Dal Fabbro. Muitas foram as fontes pré-”Os Sertões” sobre a Guerra de Canudos – todavia, nenhuma delas com o mesmo impacto do livro euclidiano. Citam-se, exemplificativamente, “Os jagunços” (1898), de Afonso Arinos; “Última expedição a Canudos” (1898), de Emílio Dantas Barreto;

“O rei dos jagunços” (1899), de Manuel Benício; “A campanha de Canudos” (1900), de Aristides Milton; “Descrição de uma viagem a Canudos” (1900), de Alvim Martins Horcades; “A guerra de Canudos” (1902/1903), de Henrique DuqueEstrada de Macedo Soares. Todos eles, à exceção apenas do livro de Aristides Milton, podem ser encontrados na biblioteca da Casa de Cultura Euclides da Cunha para pesquisa. Não foram poucos os relatos a respeito da guerra de Canudos, feitos logo após o confronto. Jornalistas travestidos de escritores, buscaram descrever o confronto – todavia, suas obras pós-guerra foram, apenas, uma versão ampliada da narrativa jornalística que, pouco antes, fizeram sobre o fato. Neles, os mesmos erros de interpretação, a mesma linguagem militar, a mesma postura de vestir a farda antes de escrever sobre que viram e ouviram no front. Valho-me, no caso, da preciosa lição de Regina Abreu, no ótimo “O Enigma de Os Sertões”: “A Guerra de Canudos foi o acontecimento jornalístico de maior importância no ano de 1897, no Brasil. Os mais destacados jornais do país comentavam o fenômeno. Euclides não foi, portanto, o único a escrever sobre a guerra num importante jornal. Havia nessa época grande diversidade de jornais, quase todos movidos por forte conteúdo ideológico. Muitos eram porta-vozes de partidos políticos. Os artigos eram muito mais opinativos do que informativos. (...)” Pretendemos fazer uma breve análise destas obras publicadas imediatamente logo após a Guerra de Canudos e, portanto, precederam a “Os Sertões”, que as superou totalmente. Fazer uma análise comparativa entre estes trabalhos e o livro de estreia de Euclides da Cunha seria por demais difícil e fugiria aos propósitos do presente texto. Contudo, penso que uma leitura, mesmo que rasa, sobre o que se publicou acerca da Guerra de Canudos antes de 1902 serviria para uma

base, superficial que seja, sobre o panorama do Brasil da época. Pois iniciemos por “Última expedição a Canudos”, do coronel Dantas Barreto, lançado em 1898. O exemplar usado para a pesquisa pertenceu a ninguém menos do que o sempre merecedor de toda reverência, Oswaldo Galotti, cujo acervo foi incorporado à Casa Euclidiana há alguns anos. Desde a primeira página, a anotação manuscrita do dr. Galotti: “Este livro é citado em Os Sertões. É uma das fontes usadas por Euclides”. Há um pouco de “Os Sertões” na “Última expedição a Canudos” – claro, embora aquele seja posterior a este. Dantas Barreto inicia com uma visão do que chama de “feição moral e intelectual de Antônio Conselheiro”. Vale a leitura do trecho: “(...) um indivíduo, aliás de vistas penetrantes, que tinha o poder de equilibrar a existência dessa gente de todas as condições, ignorante certamente em sua grande totalidade, de modo a constituirse ali um centro forte, independente e ameaçador.” (página 6) Euclides, porém, vai além ao examinar a figura de Antônio Conselheiro, a quem chama de “gnóstico bronco”, “paranóico indiferente” – enfim, um “degenerado”. O discurso euclidiano, hiperbólico por essência, não se contém a umas poucas palavras sobre o personagem central do arraial, da própria guerra e, certamente, uma das figuras mais interessantes da história nacional. Releiamos Euclides, pois. As transcrições de trechos de “Os Sertões”, aqui, têm como origem a edição crítica de “Os Sertões”, de Walnice Nogueira Galvão (Editora Ática, 2ª edição, 2000): “(Antônio Conselheiro) Era o profeta, o emissário das alturas, transfigurado por ilapso estupendo, mas adstrito a todas as contingências humanas, passível do sofrimento e da morte, e tendo uma função exclusiva: apontar aos pecadores o caminho da salvação. Satisfez-se sempre com este papel de delegado dos céus. Não foi além. Era o servo jungido à tarefa dura; e lá se foi, caminho dos sertões bravios, largo tempo, arrastando a carcaça claudicante, arrebatado por aquela idéia fixa, mas de algum modo lúcido em todos os atos, impressionando pela firmeza nunca abalada e seguido para um objetivo fixo com finalidade irresistível.” (pág. 134/135) E logo mais adiante: “Parou aí indefinidamente, nas fronteiras oscilantes da loucura, nessa zona mental onde se confundem facínoras e heróis, reformadores brilhantes e aleijões tacanhos, e se acotovelam gênios e de (continua)


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A Guerra de Canudos além de Os Sertões os maiores perigos, ou que cedesse, a quem quer que fosse, uma linha sequer de um plano por ventura traçado em sua conducta.” (página 21). Era um “fanactico pela Republica.”

(continuação) generados. Não a transpôs. Recalcado pela disciplina vigorosa de uma sociedade culta, a sua nevrose explodiria na revolta, o seu misticismo comprimido esmagaria a razão. Ali, vibrando a primeira uníssona com o sentimento ambiente, difundindo o segundo pelas almas todas que em torno se congregavam, se normalizaram.” (pág. 135) Como se vê, o texto de Euclides é infinitamente mais lapidado. Palavra por palavra esculpida com o preciosismo e o perfeccionismo de quem toma de um canivete e corrige milhares de erros, letras e vírgulas, caprichosamente refeitos à mão. Claro, Euclides teve a seu favor o passar do tempo e, com isso, a melhor reflexão sobre os fatos e os acontecimentos daquele singular combate. “Os Sertões” não foram escritos “no calor da hora”, mas após alguns (poucos) anos depois do evento, o que certamente possibilitou a Euclides um maior aprofundamento sobre a questão, um estudo mais detalhado, para o que contribuíram decisivamente seus amigos rio-pardenses e o próprio período em que viveu nesta cidade. Outro aspecto que merece especial atenção é a divergência da visão dos autores a respeito da figura dos próprios soldados. Dantas Barreto, tenente-coronel duran-

Euclides, porém, depois de apresentar o cenário histórico pós-proclamação da República, concentra-se no surgimento de Moreira César, elevado a herói nacional após conter revolução no Sul do país. Porém, o texto euclidiano, muito melhor trabalhado, chega mesmo a divertir o leitor com uma visão que antagoniza o herói republicano e seu tipo físico: Soldados combatentes da Guerra

te a Guerra de Canudos e que, depois, chegaria a Ministro da Guerra do Governo Hermes da Fonseca, confere aos soldados um aspecto de heroísmo, chamando-os de “víctimas do dever e do patriotismo, os apóstolos mais ardentes da fé republicana”. Enquanto Euclides tem uma postura bem menos reverencial aos colegas de farda – lembrando sempre que o próprio Euclides seguiu carreira militar e, portanto, ao tratar da Guerra de Canudos, faz um mea culpa e uma releitura sobre o papel do Exército no confronto. Dantas Barreto repete o tom castrense ao tratar da formação de Canudos – que, segundo ele, “parecia constituir a força demolidora das instituições republicanas do Brazil.” O tom de confronto entre a recém instaurada República e Canudos permeia a

narrativa de Dantas Barreto. Para ele, Canudos “visava o desmoronamento do grande edifício de 15 de novembro, trabalhosamente desenvolvido até a morte do marechal Floriano Peixoto, o seu mais enérgico e genial architecto”. Portanto, pela leitura dessas obras pré”Os Sertões” já se percebe o clima que havia no Brasil, bem como o pensamento da elite militar sobre o pobre arraial baiano e seu líder. Pode-se dizer que Euclides desconstruiu essa visão deturpada, mostrando que não se tratava de uma insurgência contra a República e cumprindo aquilo a que se propôs na Nota Preliminar – a denúncia daquilo que fora, na significação exata do termo, um crime. Porém, justiça seja feita, Dantas Barreto também tratou de um tema muito em voga no Brasil daquela época e que, de certa forma, foi uma das justificativas para a guerra: a possível presença de armas no arraial, bem como a participação de monarquistas infiltrados ou mesmo como mantenedores de Canudos. Abaixo, trecho de uma carta, citada por Dantas Barreto. A carta teria sido encontrada pelo general Artur Oscar e enviada, dentre outros documentos, ao governo. O autor seria Esequiel Profeta de Almeida: “A co-participação dos monarquistas, portanto, nos acontecimentos de Canudos, foi toda platônica, os factos não demonstraram outra coisa até agora. E, apesar das promessas que encerravam uma das cartas citadas acima, as armas e munições que existiam na cidadella do fanatismo, não iam além das que os jagunços houveram das diligências e expedições destinadas a batel-os; dos desertores de Sergipe e Alagoas, tudo aliás em numero tão considerável, que nos produziram os maiores estragos. O mais eram armas e munições de caça, que já não se empregam senão em lugares remotos do interior. Nada, além disso, está provado que houvesse ali.” (página 14) A propósito, convém uma breve atualização do tema: pelo que se vê, desde sempre a mera suspeita de posse de armas e munições em poder dos inimigos tem motivado verdadeiros genocídios entre as populações mais pobres – no Brasil e no mundo. E se falamos de Artur Oscar, vejamos como Dantas Barreto trata de outra figura que mereceu atenção especial de Euclides da Cunha em “Os Sertões”, e façamos uma rápida análise comparativa entre ambos. Tratemos, agora, das diferentes leituras acerca de Moreira César: Para o coronel Dantas Barreto, Moreira César “não era homem que vacillase ante

“O aspecto (de Moreira César) reduzialhe a fama. De figura diminuta – um tórax desfibrado sobre pernas arcadas em parênteses – era organicamente inapto para a carreira que abraçara. Faltava-lhe esse aprumo e compleição inteiriça que no soldado são a base física da coragem. Apertado na farda, que raro deixava, o dólmã feito para ombros de adolescente frágil agravava-lhe a postura.” E segue Euclides fazendo uso de sua peculiar linguagem metafórica, exibindo os contrastes entre o poderoso e fragílimo Moreira César. Enfim, tanto num quanto noutro, são os mesmos personagens, o mesmo cuidado descritivo, o mesmo pormenorizar dos avanços e retrocessos das tropas republicanas, a mesma linguagem militar – contudo, em Euclides, a força do texto ganha uma força maior, uma sonoridade na leitura que melhor nos agrada e, claro, uma capacidade de se cativar o leitor que explica o motivo pelo qual seu livro ofusca o de Dantas Barreto, que nem chega a ser um mau trabalho afinal de contas. Dantas Barreto precede a Euclides, porém, no método de narrar o confronto, detalhando todos os movimentos militares, o avanço das tropas sobre a região de Canudos e, ao final, a invasão ao arraial. Ao final, Dantas Barreto como que comemora a vitória do exército de que era parte e do qual foi cronista: “O exercito que no dia 6 de setembro de 93 amparou as instituições da República e reuniu-se em torno do grande Marechal Floriano para vingar o princípio da autoridade, foi o mesmo que em 1897 destruiu os elementos subversivos dos longínquos sertões da Bahia, e é a impavida sentinella que vigia attentamente os traidores e os inimigos da Patria.” Portanto, como se vê e se lê, nada comparável à assunção de culpa de Euclides num de seus trechos mais famosos e que, igualmente, busca transmitir ao leitor uma visão conclusiva sobre tudo o que lera até ali: “Fechemos este livro. Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dous homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.” (continuação)


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A Guerra de Canudos além de Os Sertões (continuação) Temos, pois, um exemplo cabal de como um mesmo fato pode ser retratado de forma tão divergente. Com relação aos demais livros pré-”Os Sertões”, que talvez até tenham servido como fontes primárias para a obra prima euclidiana, muito há que se analisar. São relatos contemporâneos de Euclides, feitos por observadores que tiveram o mesmo ponto de visão: militares que acompanharam os últimos momentos do combate e que transformaram tudo o que presenciaram em livros. Porém, merecidamente ou não, justamente ou não, ofuscados pela grandeza colossal de “Os Sertões”. “Os Jagunços”, de Afonso Arinos, é ainda anterior – 1897. Dentre os antecessores de “Os Sertões”, talvez seja o mais citado dentre os demais. Trata-se de um romance, escrito em forma de folhetim para o jornal “Comércio de São Paulo”. “Os Jagunços” apareceu em volume no mesmo ano de “Pelo Sertão”, também do mesmo autor, Afonso Arinos, que assinou seu livro com o pseudônimo de Olivio de Barros. “O Rei dos Jagunços”, de Manoel Benício, é outro trabalho costumeiramente citado na bibliografia sobre a Guerra de Canudos além de “Os Sertões”. Trata-se de uma crônica histórica e de costumes sertanejos sobre os acontecimentos de Canudos e sugere o próprio Antônio Conselheiro como o “Rei dos Jagunços”, relatando desde a família dos Maciéis, de que se originou o Conselheiro, até as santas missões, contando a história da evangelização desde a colonização, com a Companhia de Jesus – acontecimento histórico também tratado por Euclides, aliás. Assim como Euclides, o livro lança um olhar sobre o folclore nordestino, expressões típicas dos sertanejos da época e

Antonio Conselheiro, morto durante a Guerra de Canudos seus costumes mais tradicionais de dança e cantos. Depois, Manoel Benício reserva um especial capítulo para tratar dos militares e políticos da época e, finalmente, começa a tratar da guerra propriamente dita, dede a primeira expedição até a última. Sobre “Descrição de uma viagem a Canudos”, de Alvim Martins Horcades, pouco se tem a dizer. O autor, líder acadêmico enviado a Canudos pelo “Diário de Notícias”, de Salvador, faz um relato raso sobre o conflito, porém interessante pelo ponto de vista historiográfico. De qualquer forma, penso que são mais valiosas as anotações de Adelino Brandão às margens do livro – muito embora, reconheça-se, Martins Horcades denuncie a degola promovida ao fim do combate, praticada contra crianças, mulheres e idosos feitos prisioneiros de guerra. Por fim, temos “A Guerra de Canudos”,

do tenente Henrique Duque-Estrada de Macedo Soares, um interessante depoimento sobre o conflito sob o ponto de vista militar, de alguém que efetivamente participou da Campanha de Canudos. Duque-Estrada, tenente de infantaria do Exército brasileiro, faz uma ampla análise sob uma perspectiva militar, social, econômico-financeira e literária. Lançada em 1902, “A Guerra de Canudos” tem a seu favor o amadurecimento que somente o tempo pode proporcionar e, neste contexto, se assemelha a “Os Sertões” de Euclides da Cunha. Ambas são obras escritas ou publicadas passado algum tempo, embora pouco, desde o fim do conflito nordestino. Também merece destaque o estudo feito por Duque-Estrada sobre outros livros ou documentos, igualmente contemporâneos de Euclides da Cunha. Por exemplo, cita “Tragédia épica” (1900), do poe-

ta Francisco Mangabeira, além de um relatório de guerra do general Savaget, apresentado ao general Artur Oscar – ambos personagens relevantes na historiografia militar do combate. Com acesso ao arquivo do Exército, Duque-Estrada faz referências ainda a telegramas dos ministros da Guerra Gen. Argolo e Machado Bittencourt. Portanto, uma obra que merece reconhecimento pela pesquisa e por ser um verdadeiro diário de guerra, relatando a rotina do Exército e a mobilização das tropas no cenário do conflito. Enfim, desnecessário dizer que muitos foram os livros, estudos e pesquisas sobre a Guerra de Canudos – e a magnitude de “Os Sertões” está diretamente associada a permanência dessa guerra na história nacional, bem como de seu principal protagonista, Antônio Conselheiro. Antes, porém, de “Os Sertões”, Canudos já tinha sido objeto de muitos estudos a respeito. Contudo, nenhum deles permaneceu por tanto tempo e com uma força tão significativa para a Cultura nacional quanto a obra-prima de Euclides da Cunha. A Guerra de Canudos é gigantesca, pelo seu significado e pelas suas conseqüências. Contudo, seus cronistas de época, fazem valer a máxima de que “a história sempre é contada a partir do ponto de vista do vencedor” – são relatos que, como regra, tornam os soldados agentes heróicos da recém-nascida República, e os sertanejos seriam um bando de monarquistas inconformados com o novo regime. Euclides desloca o foco para uma nova perspectiva historiográfica ao redimensionar a importância dos combatentes, soldados ou jagunços, e denuncia um crime que, rigorosamente falando, ainda hoje é praticado contra os brasileiros. * Paulo Herculano é advogado e professor dos Ciclos de Estudos Euclidianos.


D-12- 10 de agosto de 2013

A ponte de Euclides: monumento nacional ameaçado RODOLPHO JOSÉ DEL GUERRA São José do Rio Pardo será alvo de atenções em São Paulo, de 14 a 17 de maio de 1984. No saguão da Secretaria do Interior, estarão expostos documentos e fotos de nossa ponte metálica, desde o movimento reivindicatório da população, em 1890, ao preocupante relatório nº 18.589 do IPT (Instituto de Pesquisas e Tecnologias do Estado de São Paulo S/ A), de 1983. Estarão expostas também todas as edições de Os Sertões. O importante acontecimento encerra-se em São José, dia 16 de maio, na festa de aniversário da ponte metálica, que completará 83 anos. Durante a reunião para traçar planos para a exposição, realizada na semana que passou, com a presença da representante daquela Secretaria, o relatório do IPT passou de mão em mão. Nossa ponte está ameaçada pela corrosão e por uma trinca em uma viga, no vão central. E é preciso salvar este monumento que nos caracteriza, como a Torre Eiffel sugere a França e as pirâmides, o Egito... Euclides, preocupado e precavido, deve ter se remexido no túmulo, depois da inspeção, informações e aconselhamentos do idôneo IPT: “(...) o ideal seria a imediata interdição da ponte para veículos pesados (...) Entretanto, se esta interdição for considerada (...) impossível (...) sugerimos como medida paliativa e temporária (...) que: a ponte seja limitada a veículos de até 12 toneladas de peso máximo (...) evitan-

do-se o tráfego simultâneo de mais de um veículo deste porte sobre a ponte, com velocidade máxima de 20 km/h.” No éden, Euclides deve estar apreensivo, aguardando soluções. Ele, que acarinhou sua ponte, pedindo aos amigos daqui que a visitassem no seu primeiro aniversário, em 18 de maio de 1902, e que se lembrassem do amigo ausente, teve atitudes inesperadas de protetor. A queda da ponte, na madrugada de 23 de janeiro de 1898, sob a responsabilidade do engenheiro Montmorency, muito marcou Euclides, que a reconstruiu. Certa feita, um ano depois de inaugurada, ao tomar conhecimento de uma notícia boateira, que dizia de uma fenda que punha em perigo a segurança da sua ponte metálica, não esperou resposta da carta que escrevera a Escobar. Dizem que chegou a São José antes dela, em agosto de 1902. Respirou aliviado ao verificar que a frincha não passava de um risco profundo de colher de pedreiro... E agora, a trinca é realidade. Ela e corrosões estão registradas, fotograficamente, no relatório. E serão mostradas na exposição promovida pela Secretaria do Interior. Quem sabe poderão sensibilizar secretários de Estado que a visitem... Enfim, nossa ponte é um dos raros monumentos brasileiros que assinalam a Segunda Revolução Industrial. Um monumento que se erigiu no mesmo período em que o engenheiro Eiffel erigia a sua famosa torre, construída em Paris para a exposição de 1889. Hoje, a torre Eiffel recebe a atenção das autoridades francesas, que a prote-

gem contra a ferrugem, preparando-a para o seu centenário. Hoje, a ponte de Euclides, em São José do Rio Pardo, corroída pela ferrugem, e trincada, está esquecida, podendo desaparecer... Nossa Prefeitura, financeiramente impotente para os grandes reparos, antes da interdição, está procurando os setores responsáveis pela preservação... Aciona os meios de comunicação, tentando encontrar uma firma que invista na reforma da ponte histórica, preservando mais um marco da memória nacional... Neste momento, unamo-nos! É preciso preservar o que nos distingue, nos orgulha, nos projeta... Não assistamos impassíveis à morte de um monumento! Não deixemos que outra catástrofe, como a de 1898, se repita nestes poucos anos que antecedem o centenário

da nossa ponte, por negligência das autoridades... Façamos abaixo-assinados. Escrevamos ao presidente, a governadores, ministros, senadores, deputados, secretários... Sensibilizemos os meios de comunicação, até que os responsáveis e os homens de boa vontade acordem para a importância cultural e histórica deste monumento, que pertence ao Brasil e ao mundo... “A Ponte de Euclides: monumento nacional ameaçado”: este será o grito de guerra da exposição de maio, em São Paulo. E estará impresso na capa dos convites da mostra. “A Ponte de Euclides: monumento nacional ameaçado”: esta é uma realidade que exige a união de todos. * Rodolpho José Del Guerra é euclidiano histórico, professor, escritor, historiador e cronista


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