Folhas Soltas do GAP nº5

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Colocar algumas peças sobre a questão palestiniana Gisandra Oliveira

Anarquistas contra o Muro (AATW)

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Fonte: René Berthier

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Anarchist Communist Initiative

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Kobi Snitz

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Maciel Santos

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Guy Davidi e Alexandre Goetschmann

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Dois estados para duas nações - são demasiados estados! Na origem

A economia política da ocupação israelita

Um muro de segurança civil ou de dominação económica

Folhas Soltas no quadro das Jornadas Libertárias do Porto - 201 5 (9 de Outubro no Gato Vadio: video-conversa com Ashley Bohrer, membro dos Anarquistas contra o Muro). A questão Palestiniana, embora justa, é uma causa perdida com um ingrato sabor amargo. Se uma bandeira, o nacionalismo, a criação de mais um estado são assuntos incompatíveis com o pensar anarquista, como é que a solidariedade internacional se constrói na distância? Como é que se luta contra a opressão, repressão e expulsão do povo palestiniano? Como é que os Anarquistas contra o Muro (AAtW) lidam com incompatibilidades ideológicas? Onde nos situamos nesta luta?


Colocar algumas peças sobre a questão Palestiniana Gisandra Oliveira Porto, 201 5 Uma inteligência partilhada da situação não pode nascer de um texto só, mas de um debate internacional. E para que o debate aconteça é preciso colocar algumas peças. (Aos nossos amigos, 201 5,1 4)

1 . Procurar estabelecer laços no panorama actual Com alguma apreensão, mas sem emitirmos pios mobilizadores de uma legítima preocupação, nem estilhaços de acções directas, vemos a Europa consolidar, com algum secretismo (expondo agora de forma evidente os seus procedimentos anti-democráticos), o TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership) ou a PTCI (Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento). Trata-se de um acordo comercial entre a União Europeia e os Estados Unidos da América que está a ser arquitectado, desde Julho 201 3, entre a Comissão Europeia e o Governo norte-americano com a participação de corporações multinacionais. Esta parceria entre a União Europeia e os EUA, além de favorecer o poder dos interesses corporativistas; ameaçar os direitos das trabalhadoras e o direito ambiental; também ameaça invalidar as recentes medidas tomadas na UE1 ; e limitar, impedir e até criminalizar qualquer expressão política e mobilização solidária na luta pela liberdade dos povos. Entre estas, as possíveis acções da sociedade civil de se poderem exprimir através do Boicote, Desinvestimento e Sanções2 em solidariedade com o povo palestiniano. Apesar das políticas europeias reforçarem o policiamento e a criação de dispositivos de protecção nas fronteiras3, numa lógica em que a condição de 1 - Linhas Directrizes, publicadas no Jornal Oficial da UE (201 3/C 205/05), relativas à “elegibilidade das entidades israelitas, estabelecidas em territórios ocupados por Israel desde 1 967 (...)”. Consultável em linha: http://www.eeas.europa.eu/delegations/israel/documents/related-links/201 3071 9_guidelines _on_ eligibility_of_israeli_entities_en.pdf 2- BDS (Boicote, Desinvestimento, Sanções) é um movimento, iniciado pela sociedade civil palestiniana em 2005, que tem vindo a ser uma fonte de preocupação crescente para o actual governo de Israel e tem levado Israel e os EUA a tomarem as respectivas contra-medidas políticas e legais. O Apelo do movimento BDS encontra-se consultável em linha: http://www.bdsmovement.net/call 3- Estes dispositivos constituem barreiras que podemos percepcionar como um prolongamento do muro de separação, cuja construção foi iniciada em 2003 pelo governo de Israel, já que constitui um impedimento ao movimento de pessoas e bens dentro desses limites, mas não entre Israel e o resto do mundo. 3


refugiado perdeu definitivamente o seu rosto humano, sabemos que a nossa pertença ao mundo não acaba numa linha imaginária às portas do Mediterrâneo, desde o mar do Norte, passando pelo Golfo de Biscaia, pelas Colunas de Hércules e as Ilhas Gregas. Não podemos esquecer que as políticas securitárias decididas pela União Europeia revestem várias formas e manifestam-se de várias maneiras, contudo todas elas procuram propagar a ideia de uma “ameaça comum”, validando as próximas “manobras” da NATO. Esta “operação musculada” chamase “Trident Juncture 201 5” 4. As três pontas deste “tridente”querem reforçar o estado de excepção paulatina e ardilosamente implementado nos Estados Europeus. Uma das propostas, que vai decorrer em Lisboa no fórum industrial (1 9 e 20 de Outubro 201 5) 5, propõe o aumento do orçamento e dos investimentos militares alegando a necessidade da “defesa” através de operações com “efeitos dissuasores”, que verá, a 5 de Novembro de 201 5, a realização de um “evento marítimo pesado” 6. Espanha, Itália e Portugal constituem o “tridente” que promove a ficção da “ameaça comum” a que a NATO chama “potenciais inimigos”. Mesmo se as lutas que nos são mais próximas levam-nos a uma postura de territorialização e priorização das urgências, deixando-nos contaminar natural e necessariamente pelas agendas partidárias, pelo ritmo político institucional ou pelo que os media trazem à custa do voyeurismo social, não nos podemos pensar em termos anarquistas7 separadas das grandes movimentações políticas europeias, mas também não nos podemos alhear das lutas mundiais como o movimento Zapatista, ou as lutas de Kobane/Rojava e muito menos da questão Palestina/Israel 8 por vários motivos. Sobre esta última, podemos de imediato destacar três razões. Primeiro, porque forçámos a entrada das suas Histórias nos anais da história do Ocidente e do Mundo. Segundo, porque a nossa humanidade enforma os laços solidários diante da opressão, repressão, segregação e destruição actuais como passadas. E finalmente, porque tudo contra o que lutamos no geral- uma ordem social encostada a um sistema de dispositivos9 4- Notícia consultável em linha: http://www.publico.pt/politica/noticia/portugal-acolhe-em-201 5-exercicioda-nato-que-paises-do-leste-reivindicavam-1 668596 5- Notícia consultável em linha: http://www.act.nato.int/industryforumNotícia consultável em linha: http://www.act.nato.int/industryforum 6- Notícia consultável em linha: http://www.act.nato.int/trident-juncture-1 5 7- Aqui o termo remete para 4 princípios gerais e básicos: autonomia, autogestão, internacionalismo e acção directa. 8- O termo Palestina/Israel remete para o território do tempo do mandato britânico (1 920-1 948), posto que a situação actual se definiu dentro dos limites desse território, cujo futuro político prescindiu da consulta da população sendo atribuído aos Britânicos como uma das esferas de influência na região nos acordos Sykes-Picot em 1 91 6. 9- A palavra dispositivo remete para o pensamento de Foucault, retomado por Agamben (2007, 31 ) como sendo “tudo aquilo que de uma forma ou de outra tem a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, moldar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres vivos”. 4


manobrados e regidos pelo capitalismo e o Estado - encontra-se em jogo quotidianamente na Palestina/Israel. Mesmo na distância geográfica que nos separa do Médio Oriente, podemos encontrar múltiplas razões para uma actuação mais regular e sistemática contra a máquina capitalista, os instrumentos dos Estados e as engrenagens securitárias.

2. Quando as palavras estão contaminadas Trazer a questão Palestiniana para a cena anarquista no Ocidente revela certas reticências e apresenta algumas dificuldades. As reticências formulam-se principalmente em torno da linguagem, enquanto as dificuldades envolvem percepções políticas e noções ideológicas. Em torno da linguagem, a questão Palestiniana está contaminada por dispositivos regidos pelo paradigma ocidental que insistem em querer tratar do assunto. É uma máquina oleada pelo direito internacional, envolvendo a Convenção de Genebra, o Tribunal Penal Internacional e a ONU, que só funciona e se aplica no quadro da noção de Estado. Uma máquina composta por Estados que votam e vetam alegremente num tabuleiro geopolítico em que só há lugar para os interesses de alguns. Uma engrenagem selectiva que legitimou o seu direito universal à ingerência internacional através de recortes fronteiriços, pressões e sanções económicas e de intervenções militares. De um modo geral, uma das dificuldades do anarquismo, sobre a questão palestiniana, prende-se com o sistema implementado pelas democracias liberais, tal como a representatividade. Nesta perspectiva, a causa palestiniana tem vindo a ser terreno eleito, embora naturalmente pouco gratificante, das agendas políticas partidárias das esquerdas europeias, através de grupos ou associações com um pé nos parlamentos e outro nos dispositivos humanitários institucionais ou não. No contexto português, curiosamente, o grupo parlamentar de amizade Portugal Palestina é o único grupo que tem no seu seio membros de todas as cores políticas presentes no Parlamento1 0. Não sendo um terreno para ganhos eleitorais concretos é relativamente fácil manter laços para divulgação, informação e até para realizar acções conjuntas com estes grupos. Como é de esperar, cada grupo partidário tem tendência para veicular as ideias dos seus homólogos palestinianos. Assim, a grande diferença ideológica reside essencialmente, do ponto de vista anarquista, em trabalhar com as decisões da sociedade civil palestiniana e dos comités de resistência popular, contra a opressão e a ocupação. Contudo, em traços gerais, tudo gira em torno de uma palavra: auto-determinação. Se num dicionário a palavra auto-determinação, aplicada ao campo político, significa a livre escolha de um estatuto político e de um desenvolvimento 1 0- Comunicação de Bruno Dias, Presidente do Grupo Parlamentar de amizade Portugal – Palestina, a 28 de Maio de 201 5, na Assembleia da República num encontro com a Delegação do Parlamento Palestino. 5


social, económico e cultural, nesta máquina neoliberal, a auto-determinação concebe-se dentro da noção de Estado, portanto enquanto auto-determinação nacional, envolvendo um povo e um território. Todos os processos de autodeterminação vão ao encontro de noções fixadas por entidades e organismos que apenas concebem os direitos das pessoas dentro dos limites constrangedores e limitadores dessas noções. Assim, não existem mecanismos que contemplem as legítimas reivindicações de uma população a, simplesmente, viver a sua vida nas suas terras, sem se submeterem a uma forma de organização política de acordo com o que essas mesmas entidades reconhecem como adequada. Mas, para que haja auto-determinação dos povos, terá de haver “povo”, algo que ligue as pessoas entre si, as pessoas que constituem esse grupo, essa comunidade, esse povo. Muito sucintamente, no caso europeu, os povos agruparam-se dentro de limites territoriais que mais tarde se definiram como Estados. No caso de Israel, o ser judeu é algo que, ao nomear-se como tal, definiu-se na opressão e subverteu os princípios falseados do racismo e, em particular, do anti-semitismo, contudo é importante realçar que o ser judeu transcende o judaísmo enquanto religião. Enquanto o ser palestino é definido em

relação à realização do ser judeu na Palestina, portanto inseriu-se também na categoria de povo oprimido. Por um lado, a comunidade judaica, através do movimento sionista1 1 e as suas ramificações, acabou por estabelecer o seu território na Palestina, com base num colonialismo moderno, na ocupação e, continua as suas práticas expansionistas. No caso palestiniano, o povo formulouse como um todo no quadro de resistências à contínua opressão e repressão exercida pela soberania israelita sobre um território que habitavam e habitam. O dispositivo1 2 imperialista, implantado no Médio Oriente e em particular 1 1 - O movimento sionista é composto por várias correntes e apresenta diferentes definições. Por exemplo, para Noam Chomsky, na entrevista intitulada “Israel in global context”, datada de Junho 1 997, o “sionismo significava uma oposição a um estado Judeu. O movimento sionista só se revelou oficialmente a favor de um estado Judeu por volta de 1 942. (…) Durante muito tempo, o movimento sionista opôs-se à criação de um estado Judeu, porque tal estado seria discriminatório e racista.». Consultável em linha: http://www.chomsky.info/interviews/1 9970609.htm 1 2- Idem nota 9. 6


na Palestina/Israel, tem vindo a ser reformulado pela ideologia política sionista1 3. Esta ideologia praticada pelos sucessivos governos de Israel tem características nacionalistas e proteccionistas muito vincadas. Se por um lado, as esquerdas viram a criação de Israel como a possível concretização de um grande projecto revolucionário, algo com cariz quase utópico, mas também algo que pudesse envolver a noção de refugiado1 4, como uma condição inovadora questionando a noção de estado-nação, a partir dos anos 80, este sonho foi perdendo consistência com as evidências da violência das práticas dos governos sionistas. Ainda assim, uma estranha mistura de esperança, entre realismo e ilusão, apesar de enquadrada no sistema definido pelas democracias ocidentais, permanece, como quando Alain Badiou escreve em 2006 que a fundação de Israel «foi um contraacontecimento, parte de um contra-acontecimento maior: o colonialismo, a conquista brutal por parte de gente vinda da Europa de uma nova terra onde vivia já outro povo. Israel é uma mistura extraordinária de revolução e reacção, de emancipação e de opressão. O estado sionista tem de se tornar o que continha em si de justo e de novo. Tem de se tornar o menos racial, o menos religioso e o menos nacionalista dos Estados. O mais universal de todos eles.» 1 5. Por outro lado, verificamos que as circunstâncias históricas da criação do Estado de Israel formularam-se com base no estado de excepção1 6 que persiste até hoje. Ao formular um estado de ameaça contínua, que necessita de um exército permanente ao serviço da defesa, que funciona num vazio legal, legitimando acções ilegais, 1 3- Tendo em conta que a palavra sionismo envolve várias definições e percepções sensíveis, é preciso especificar que a utilizamos neste texto como a prática de uma ideologia política expansionista e opressora. Não estamos a invalidar uma aspiração histórica, nem o legítimo desejo de segurança que o sionismo representou e representa para um grupo de pessoas de confissão e/ou de cultura judaica, mesmo se esta aspiração e desejo apenas se enquadram na noção que contestamos no geral de estado-nação. O sionismo formulou-se principalmente na Europa Oriental no contexto dos progromes (Rússia 1 881 -1 882), do anti-semitismo, das opressões e repressões. Teve vários teóricos e pensadores como: Léon Pinsker (Rússia, 1 821 -1 891 ) teórico da soberania nacional judia; Aaron David Gordon (Rússia, 1 856-1 922), profeta inspirado por um regresso à natureza e ao trabalho agrícola; Theodor Herzl (Austro-Hungria, 1 860-1 904) fundador do sionismo político; Bernard Lazare (França, 1 863-1 903) a favor de um sionismo anarquista e internacionalista; Martin Buber (Áustria, 1 878-1 965) a favor de um estado único, ético e pacífico; Ber Borochov (Rússia, 1 881 -1 91 7) teórico do sionismo marxista e Yossef Haïm Brenner (Rússia, 1 881 -1 921 ) por uma identidade judia secular liberta da tutela religiosa. 1 4- Sobre a noção de refugiado, Hannah Arendt e Giorgio Agamben, trouxeram-nos uma pequena luz, em que a condição de refugiado funcionaria como um paradigma de uma nova consciência histórica que envolveria o declínio do estado-nação e potenciaria a formação de uma comunidade política ainda por vir. 1 5- Alain Badiou, “The question of democracy”, Lacanian Ink, nº28, Outono de 2006, p.59. 1 6- Segundo Agamben (201 0) o estado de excepção viu os seus mecanismos e dispositivos criados a partir da primeira guerra mundial para servirem como modelo de governo. O estado de excepção constitui um vazio de direito, em que os decretos surgem como força de lei, baseando-se, por exemplo, na ameaça constante e nas respectivas politicas securitárias. 7


validando a impunidade mundial e alimentando o capitalismo e o mercantilismo1 7, o Estado de Israel exerce a sua soberania1 8 - com variantes legais de acordo com o estatuto atribuído às origens de cada indivíduo- sobre toda a população na região. Embora a prática de um colonialismo tardio, que se revela como a forma mais elaborada do necropoder1 9, tenha consequências sociais desastrosas, também abre uma possibilidade inesperada em termos anarquistas nos Territórios Ocupados20 como podemos verificar com o trabalho desenvolvido pelos comités de resistência popular em conjunto com outros grupos e colectivos como os Anarquistas contra o Muro (AAtW)21 .

3. Colocar mais umas peças Temos frequentemente uma percepção ideológica preconcebida, ou generalizada de três assuntos prementes para o pensar anarquista relativamente à Palestina: o uso da bandeira; a questão do nacionalismo; a questão da criação de um estado Palestiniano. São três assuntos que resistem ao pensamento anarquista por serem incompatíveis, contudo, num contexto de opressão contínua merecem alguma atenção. Ainda que múltiplas insurreições, ou uma revolução social, sejam o ideal para derrubar o sistema que nos oprime, não podemos esquecer a realidade social e política que nos rodeia. Quer na revolução, quer na construção colectiva, o anarquismo surge como um meio, não um fim. Fornece-nos instrumentos e ferramentas para construir colectivamente formas de organização social em que o ser humano ocupa o espaço todo com a liberdade individual e colectiva, com a solidariedade baseada no princípio de apoio-múto e com princípios decisórios horizontais para todos os aspectos das nossas vidas. Se neste momento precisamos de anarquistas para todas as insurreições, para as revoluções ainda 1 7- Retomamos aqui a palavra mercantilismo como sendo “uma determinada organização da produção e dos circuitos comerciais segundo o princípio de que, em primeiro lugar, o Estado deve enriquecer pela acumulação monetária, em segundo, deve reforçar-se pelo aumento da população, em terceiro, deve estar e manter-se num estado de concorrência permanente com as potências estrangeiras.” (Foucault, 201 0, 29) 1 8- Aqui a palavra soberania, intimamente ligada à noção de estado-nação (um conceito em que não nos revemos ideologicamente), remete para a definição de Mbembe, partindo de Foucault, i.e., como sendo a expressão do poder e da capacidade de decidir quem pode viver e quem deve morrer. Ver Achille Mbembe, «Nécropolitique”, Raisons politiques, 2006/1 , p. 29-60. DOI: 1 0.391 7/rai.021 .0029. 1 9- Ver Achille Mbembe (op.cit, p.43). 20- Os chamados Territórios Ocupados remetem para a Cisjordânia, dentro do limite da linha verde – ou a fronteira antes da guerra dos seis dia em 1 967 – e para a zona dos Golãs território Sírio igualmente ocupado por Israel desde 1 967. 21 - Ler “Israeli anarchism: Statist dilemmas and the dynamics of joint struggle” de Uri Gordon em Dysophia nº3, Junho 201 2, pp.30-46, consultável em linha: https://dysophia. files.wordpress.com /201 2/05/dysophia3web.pdf 8


por vir, simultaneamente, também precisamos dessa construção colectiva. Enquanto as vozes populares dos povos submetidos aos Estados gritam por uma “democracia real”, as vozes palestinianas gritam pela água, gritam pelas suas casas e terras. Gritam contra a ocupação, contra o Apartheid, contra o muro, contra as detenções administrativas. Enquanto milhares de pessoas invadem as praças dos seus países, a fragmentação territorial e as barreiras que impedem a movimentação de pessoas e bens na Cisjordânia, levam a uma extrema organização e coordenação de cada comité de resistência popular em cada aldeia, campo de refugiado, vila ou cidade na luta por coisas muito simples e básicas, como o direito a viver. É importante esclarecer que o uso da bandeira palestiniana durante as manifestações é muito mais um acto de resistência e irreverência, obviamente reprimido, do que a expressão de um nacionalismo visto e concebido segundo o nosso ser “ocidental”. Quanto à questão do nacionalismo palestiniano, resume-se muito mais a uma identidade camponesa desapossada que, além de nunca ter tido a oportunidade de se pronunciar sobre o seu próprio destino, separou-se rapidamente da pura retórica nacionalista árabe e das elites locais para formar a sua identidade palestiniana na luta contra o sionismo22. Sem aprofundar as distinções teóricas elaboradas pelo anarquismo sobre as noções de estado-nação-pátria. Podemos ver duas grandes tendências anarquistas na abordagem ao nacionalismo. Para Proudhon e Bakunine, há que negar qualquer pertença nacional, como algo que aliena e manipula, e procurar uma pertença universal sem fronteiras. Para Kropotkine, o nacionalismo faz parte de um processo histórico para alcançar uma organização social ideal. Portanto, neste sentido, o nacionalismo seria um passo necessário para a auto-determinação e, depois, o internacionalismo. Mas para Kropotkine o processo de autodeterminação nacional não tem necessariamente que se inscrever num território definido e delimitado. Anarquistas como Bernard Lazare e Hillel Solotaroff, partindo do pensamento de Kropotkine, criaram uma ruptura com todos os princípios anarquistas ao introduzir a condição de uma comunidade judia, como um grupo homogéneo nacional pelas circunstâncias históricas comuns, principalmente quando mais tarde apoiaram a necessidade de um território para acolher essa comunidade: a Palestina. A questão em torno da criação de um estado palestiniano prende-se essencialmente com os discursos e princípios definidos pelas democracias ocidentais. Se inicialmente, houve o desejo das elites árabes, em negociações íntimas com os britânicos, para a criação de um grande estado árabe, a ideia de um território/estado palestiniano formulou-se no seio das manobras da 22- A palavra sionismo remete aqui para o sionismo político de carácter expansionista (ver nota 1 3). Ler o artigo de Maciel Santos, “Palestinianos desde quando? Um livro sobre os nacionalismos da Palestina”, Folhas Soltas nº3, Outubro 201 3, pp.1 1 -1 6. 9


SDN/ONU 23, i.e., uma entidade externa que dita as regras internacionais, principalmente com o aquiescer de alguns Estados que assinaram e “aderiram” aos seus princípios, cartas, declarações e que procuram auto-legitimar as suas decisões internacionalmente acrescentando sentido à própria noção de estadonação e validando a ingerência. Vemos que segundo o sistema actual, a única entidade que garante os direitos colectivos e individuais de um povo vivendo em determinado território é a submissão de uma população ao poder de um Estado. Ainda que o Estado, para ser reconhecido como tal deva apresentar as seguintes características gerais: 1 ) ter um território; 2) ter uma população permanente nesse território; 3) ter uma forma de organização politica; 4) manter laços diplomáticos com outros países. Curiosamente, estas características nem sempre contemplam os limites do território, nem o número de habitantes ou a deslocação em massa de populações e ainda menos indicam que a organização política terá de se enquadrar no paradigma democrático ocidental. O que é certo é que outra forma de organização social é possível, basta construí-la colectivamente. Contudo, não havendo ainda esta construção e sendo o paradigma ocidental de democracia amplamente implementado, se as aspirações do povo palestiniano estão direccionadas para formarem um Estado, será uma aspiração legítima, dadas as circunstâncias da opressão, ocupação e segregação, mas também as circunstâncias políticas, exactamente como as aspirações do movimento de libertação nacional sionista, ou outros movimentos de libertação, seguiram esse caminho. Na verdade, o movimento sionista tinha todos os instrumentos práticos e teóricos para seguir uma senda totalmente diferente, como a experiência dos kitubtzim deixou entrever. Contudo, não aconteceu, possivelmente por causa de interesses que ultrapassam a nossa compreensão e pelas circunstâncias históricas da 2ª Guerra Mundial. Um profundo nacionalismo de direita e extrema-direita apoderou-se da sociedade israelita e os resultados encontram-se facilmente através da expressão das forças políticas predominantes no governo. Neste contexto, a verdade é que uma aspiração do povo palestiniano por um Estado surge como aquela que vai garantir os direitos do povo palestiniano, mesmo que se submetendo a outro opressor. Surgem-nos imensas questões para as quais não temos respostas definitivas a longo prazo. Apesar disto tudo parecer incompatível com os princípios anarquistas, os grupos anarquistas em Palestina/Israel continuam a desenvolver um trabalho importantíssimo com os comités populares locais. Assim, na luta contra a opressão, quer seja local, quer na distância, como construir um compromisso refugiado por natureza e ideologia, mas empenhado no trabalho fundamental desenvolvido com as comunidades locais com base na solidariedade? Gisandra Oliveira 23- A Sociedade das Nações/Liga das Nações surgiu depois da 1 ª Guerra Mundial (1 91 9) e foi substituída pela ONU – Organização das Nações Unidas – depois da 2ª Guerra Mundial, em 1 945. 10


contra todas as formas de segregação, apartheid, detenção social e política, desviando-se especialmente dos valores democráticos, respeitando os direitos das minorias e da auto-determinação dos povos. O colectivo dos Anarquistas contra o Muro está particularmente envolvido na luta contra a construção do muro e da barreira de separação que o governo israelita iniciou em 2003. É para denunciar a mentira da mensagem securitária israelita que o colectivo se juntou no terreno à luta levada a cabo pelos diversos comités locais das aldeias afectadas pela existência do muro.

A luta contra a construção e a existência do muro estende-se a numerosas aldeias, directa ou indirectamente envolvidas apesar das represálias, da repressão e da violência do exército israelita contra a população palestiniana. A presença do colectivo no terreno favorece a criação de verdadeiros laços entre dois povos divididos pelas políticas dos Estados. Incentiva cada aldeia a envolver-se na luta global sobre todo o traçado do muro. Permite um ponto de vista crítico e alternativo à opinião pública israelita frequentemente alinhada pela política do seu governo. Os riscos sofridos pelo colectivo são grandes e custosos. Um custo que cada membro está disposto a pagar: ferimentos irreversíveis, anos de detenção ou expulsão do território, assim como um custo económico. Tradução GAP Fonte: René Berthier (2008, p.1 1 8). La Palestine au pied du mur. Paris: Éditions du Monde Libertaire. Este texto também foi publicado no Le Monde Libertaire, nº1 469, de 1 5 a 21 de Março de 2007. 11

Anarquistas contra o Muro

Anarquistas contra o Muro (AATW) é um colectivo que luta


DOIS ESTADOS PARA DUAS NAÇÕES ­ SÃO DEMASIADOS ESTADOS! Anarchist Communist Initiative / Iniciativa Anarquista Comunista Se o Estado de Israel e a Autoridade Palestiniana chegam a um acordo de “paz”, não será o resultado de um desejo de “segurança” por parte de Israel, nem de independência por parte palestiniana. Mais do que outra coisa qualquer, será uma parte da configuração dos interesses dos poderes internacionais já que tudo o resto é alheio ao seu modo de pensar. Os Acordos de Genebra, iniciados por políticos e homens de negócios, se forem assinados como pretendido (o que são duas coisas bem diferentes), serão a expressão desses interesses, como será qualquer outro acordo político que possamos imaginar. A fórmula mais apropriada para descrever o tratamento dos habitantes e cidadãos, que não estão incluídos na categoria de “judeus de pleno direito”pelo Estado de Israel é o APARTHEID: uma lei de separação chauvinista, que confisca a terra dos camponeses, restringe o movimento dos trabalhadores e até obstruí a capacidade dos capitalistas palestinianos em desenvolver a sua economia, enquanto, simultaneamente, tenta obter a cooperação dos lideres palestinianos. Algumas pessoas que se consideram activistas pela paz perguntaramse seriamente, além das respostas oficiais da esquerda, quais as razões para a política comum de todos os governos israelitas – esquerda como direita – relativamente aos palestinianos? Consideramos que não é simplesmente a conquista de um povo pelo outro, ao estilo dos impérios antigos, nem a expressão de uma crença bíblica na terra de Israel, nem emerge dos grupos de pressão dos lideres colonos, apesar disto tudo desempenhar um papel certeiro. A lei do apartheid deve ser vista como algo que serve vários poderosos interesses. Primeiro, serve a economia Israelita – ou seja os capitalistas israelitas - ao fornecer uma força laboral barata principalmente utilizada pelas pequenas e médias empresas de manufactura e construção. Os “Israelitas Árabes”, submetidos à lei militar de 1 948 a 1 966, desempenharam esse papel e até os habitantes das regiões ocupadas em 1 967. Apenas recentemente, como se fosse o resultado da Intifada el-Aqsa e a importação massiva de trabalhadores imigrantes, o acesso 12


livre a essa força trabalhadora foi interrompido. As grandes empresas israelitas tiraram proveito da ocupação de 1 967, principalmente, porque lhes abriu um grande mercado de consumidores sem competição. O aparelho militar, extremamente poderoso em Israel, e o seu pessoal privilegiado sempre gozaram das suas carreiras no governo e na indústria depois de acabar o serviço militar e têm um grande interesse em prolongar o apartheid (e o conflito) para assegurar as suas posições e os seus direitos. É do interesse dos Estados Unidos de América, ajudados pelos serviços prestados pelo Estado de Israel na região e no mundo inteiro desde os anos 1 950, que Israel permaneça em estado de ameaça permanente para que continue de precisar do seu apoio. Um lembrete: as negociações sérias sobre a criação de um Estado Palestiniano apenas começaram há 1 5 anos, por volta do final da primeira Intifada. Quase nenhum dos dirigentes sionistas de esquerda e da esquerda radical até agora (que parecem ter sucedido em reescrever a sua história de um modo quase Orweliano) imaginaram tal acordo. Até no início do período de Oslo, ainda falavam de autonomia. A OLP e a esquerda anti-sionista falaram da criação de um Estado secular para todos os cidadãos. De facto, a Autoridade Palestiniana não existia de todo, até Israel ajudou a instalar a OLP nesse papel. O acordo de paz a favor de dois estados para duas nações apenas entrou na agenda quando, a seguir à Primeira Intifada e com as mudanças na economia mundial, começou a servir os interesses dos capitalistas Israelitas e norte-americanos. O que significa tal paz? Se continuarmos a descrição da situação na extensão de Israel enquanto apartheid e se a comparamos ao que existia na África do Sul, podemos ver que esta PAZ significa a submissão da Intifada a uma liderança clientelista palestiniana que serviria Israel. Uma PAZ assim, frequentemente chamada “normalização”, relaciona-se com os processos ocorrendo pelo mundo inteiro com o rótulo de globalização e a iniciativas de cooperação comercial regional desenhadas para culminar numa “zona de comercio livre para todos os países do Mediterrâneo”. Pelo mundo inteiro, acordos semelhantes conduziram à destruição das economias locais para proveito das multinacionais, à violação dos direitos humanos básicos, à deterioração do estatuto e condições das mulheres e crianças, à violência social e à destruição do ambiente. Será que este acordo e paz trarão o fim da violência? Não acreditamos 13


que sim: as dificuldades económicas e o fosso social vão aumentar, o problema dos refugiados vai continuar sem solução e a legitimidade do apoio económico dado ao grande número de desempregados da Faixa de Gaza e outras partes da Cisjordânia (como aconteceu parcialmente depois dos Acordos de Oslo e de novo recentemente). Neste caso, terão de contar com o “seu” estado – um mini-estado dependente - que muito provavelmente não estará à altura da tarefa. Os estados agem dentro de um sistema de interesses e as pessoas comuns como nós não estão incluídas na lista das suas prioridades. Se queremos trazer qualquer mudança para algo melhor, diminuir os fossos e parar a matança mútua, temos de não nos comportar como marionetas obedientes dos lideres políticos, financiados pelos europeus e pelos americanos, que apenas recorrem ao ambíguo protesto democrático. Temos de agir para eliminar as partições nacionais e acima de tudo resistir às forças militares que causam matanças mútuas e contínuas. Não precisamos de promover um programa político, quer seja o dos acordos de Genebra ou de qualquer outra alternativa. Pelo contrário, devemos colocar na agenda as nossas exigências para um modo de vida e de igualdade totalmente diferente para todos os habitantes da região. Mesmo se agimos de forma independente (local), temos de nos lembrar sempre que, enquanto houver Estados e enquanto o sistema capitalista continuar de existir, qualquer melhoria que consigamos alcançar será sempre parcial e sob ameaça permanente. Portanto, temos de encarar a nossa luta como parte de uma luta levada a cabo pelo mundo inteiro contra o capitalismo mundial e apelar a uma mudança revolucionária baseada na abolição da opressão de classes e da exploração e procurar a construção de uma nova sociedade – uma sociedade sem classes anarco-comunista. Uma sociedade em que não haverá coerção de Estado, onde a violência organizada será abolida, o chauvinismo inexistente e onde todos os outros males da era capitalista serão eliminados. Anarchist Communist Initiative / Iniciativa Anarquista Comunista

ESTE FOLHETO FOI DISTRIBUÍDO POR ISRAELITAS TRAIDORES NACIONAIS ANARQUISTAS haifa_anarchists@yahoo.com

NEM GOVERNANTES NEM GOVERNADOS

Fonte: "We are all anarchists against the wall" [http://olympiarafahmural.org/wpcontent/uploads/201 0/03/anarwall-Booklet_EN.pdf] 14


Na origem Excerto de Kobi Snitz, militante dos Anarquistas contra o Muro Há cerca de quatro anos, alguns e algumas militantes israelitas juntaram-se para formar um grupo de acção política para se opor à chamada “ barreira de separação” (o muro) do Estado de Israel. As acções, que marcaram o início deste grupo e que continuam até hoje, baseiam-se na não violência e na propaganda pelo acto. Deixam os pequenos discursos e a institucionalização aos outros. O grupo formou-se no acampamento de Masha onde, com militantes internacionais e palestinianos, se montou um protesto no traçado do muro na aldeia de Masha. Enquanto se resistia à construção, cortou-se e destruiu-se partes da cerca de arame farpado. Durante uma acção semelhante, em Dezembro 2003, um militante israelita foi baleado nas duas pernas pelas IDF (Forças de Defesa Israelita) com balas verdadeiras a queima-roupa. Até então, dada a mediatização do ocorrido, o grupo que mudava de nome a cada acção, fixou o seu nome no que fora escolhido para aquele dia: Anarquistas Contra o Muro. (AAtW – Anarchists Against the Wall) Em Israel, como alhures, a palavra anarquista é frequentemente utilizada de forma negativa. Em Israel, o seu sinónimo mais próximo é provavelmente “satanista”. Mas este amálgama serve dois objectivos: por um lado, liberta o grupo de se preocupar com a sua imagem, algo que muitas vezes paralisa a acção política e, por outro lado, revela a determinação do grupo em fixar os seus alvos e acções. Esta autonomia reforça o grupo, porque oferece aos membros activos e potenciais a possibilidade de agir em função das suas convicções, sem estarem forçados a tomar uma posição pragmática num debate em que os termos são ditados de antemão pelos outros.

O início de uma luta comum

A final de 2003, início de 2004, comités populares foram criados em várias aldeias palestinianas sujeitas a perderem grande parte das suas terras por causa do muro. Estes comités, destinados a resistir contra o muro, manifestavam-se quase todos os dias. A experiência do acampamento de Masha permitiu convidar israelitas a participarem nestas manifestações. Assim começou a parceria entre os AAtW e os comités populares de várias aldeias. Os AAtW entraram num período de actividades intensas. Havia manifestações em várias aldeias quase todos os dias e, com um grupo de uma dezena de israelitas, os AAtW conseguiram marcar presença nas manifestações para as quais foram convidados. Claro que cada manifestação também tem o seu número de israelitas não 15


convidados, tal como o exército, ou a polícia das fronteiras. A presença de militantes israelitas nestas manifestações reduz substancialmente a violência do exército, que admite não disparar sobre as massas, quando suspeita da presença de israelitas numa manifestação. Apesar disto, mesmo com níveis de violência reduzidos, mesmo com a presença de israelitas, nove palestinianos foram mortos durante manifestações contra o muro. Muitos outros foram feridos, ou detidos, e muitos passaram meses em prisão.

As realidades

Uma verdadeira resistência israelita contra o muro é difícil devido ao extremo racismo da sociedade israelita. Uma oposição ao muro é incompreensível ou entendida como um incentivo às mortes de Israelitas. Assim os AAtW são sempre marginalizados e sujeitos a perseguições legais, assim como a ataques violentos durante manifestações. Até hoje, os membros dos AAtW foram detidos inúmeras vezes; houve 63 acusações e uma militante ficou detida vários meses. A actividade habitual dos AAtW envolve um contacto constante com a excelente advogada do grupo, Gaby Lasky, mas também um conhecimento íntimo com enfermeiros e enfermeiras de um grande centro de urgências médicas de Telavive. A pressão do perigo de riscos físicos é difícil de gerir por um grupo de militantes relativamente aberto à chegada de outras pessoas e à presença de simpatizantes nas acções e manifestações. Os AAtW colocam-se frequentemente a questão de como podem ser mais prudentes sem abandonar os parceiros palestinianos. Por outro lado, não há certezas de que seja possível tomar precauções eficazes que possam reduzir os riscos durante as manifestações. (...)

As dificuldades de uma luta comum

Outro aspecto original do trabalho dos AAtW reside na luta travada em conjunto com os palestinianos. Não é fácil, pois não se pode esperar que aceitem e confiem imediatamente nos israelitas. Além dos riscos da presença de espiões, ou de provocadores, a cooperação com os israelitas envolve um grau de “normalização” que se traduz em ajustar-se às condições da ocupação. Os militantes israelitas carregam influências culturais que podem não ser bem aceites em certas partes da sociedade palestiniana. Assim, apesar de não haver uma plataforma formalizada, os AAtW insistem sobre alguns princípios no trabalho comum. O primeiro princípio é que, apesar de ser uma luta conjunta, como os palestinianos são sempre os mais afectados pelas decisões, são eles que tomam as decisões importantes. Os israelitas têm a responsabilidade particular de respeitar a autodeterminação palestiniana, e esta estende-se ao respeito dos costumes sociais e a não se envolver em questões de política interna palestiniana. Uma questão mais delicada reside na normalização versus os benefícios dos laços 16


sociais. Há diferentes modelos culturais e seria autoritário querer mudá-los. O único princípio é de respeitar os pedidos dos comités populares. Os detalhes acima podem deixar a impressão de que as dificuldades da luta conjunta são mais importantes do que são na realidade. Pois na verdade, a luta comum enfrenta uma única e principal dificuldade que tem a forma do Estado de Israel. (…) Tradução GAP Fonte: René Berthier (2008, pp. 1 1 9-1 23). La Palestine au pied du mur. Paris: Éditions du Monde Libertaire. Este texto também foi publicado no Le Monde Libertaire, nº1 469, de 1 5 a 21 de Março de 2007.

A economia política da ocupação israelita Maciel Santos Shir Hever é um economista israelita para quem os anos 1 990 foram “uma década de transformação”. Desiludido com as limitações da “economia dominante” que lhe ensinavam na Universidade de Telavive e com o processo de Oslo, extinto de vez com a entrada de Sharon na esplanada das Mesquitas, resolveu estudar criticamente a “economia da ocupação”. Como depressa percebeu, adoptar como objeto de pesquisa “os aspetos económicos das relações entre as autoridades israelitas e os palestinianos ocupados” constituía um “nicho de mercado académico”. Não só havia poucos estudos que lhe pudessem servir de referência como o conceito de “exploração” em “economia” traça rapidamente um cordão sanitário à volta de quem o utiliza, especialmente na universidade israelita. Em 201 0, Hever publicou o resultado dos seus cinco anos de investigação1 . A primeira parte do livro sintetiza os dados disponíveis da “economia da ocupação” e a segunda discute as interpretações avançadas pelos estudos críticos, marginais como se viu. Os seis primeiros capítulos da primeira parte representam sem dúvida a secção mais original e importante do seu trabalho.

1 . A rentabilidade de um projeto colonial O contributo de Hever beneficia muito do modo como considera a geografia política da ocupação. Usa a expressão “Territórios Palestinianos Ocupados” (TPO) para designar o agregado da Cisjordânia e da Faixa de Gaza mas acrescenta imediatamente que a expressão induz em erro. Diferenciar Israel dos territórios associa o estatuto de “ocupação” a uma situação transitória (o que 1 - Hever, Shir, The Political Economy of Israel’s Occupation – Repression beyond Exploitation, 201 0, Pluto Press. 17


está longe do que pensa sobre o assunto o governo de Israel) 2. Além disso, oculta o facto de a realidade política ser só uma: a área militarmente controlada pelo Estado de Israel inclui, sem qualquer solução de continuidade, o que está dentro das fronteiras de 1 948 e todos os territórios ocupados, de 1 956 em diante. Existe “um só governo, um só exército dominante e uma só população registada” . Acontece é que esta população está dividida entre vários estatutos políticos e jurídicos, pelo menos seis: 1 ) os cidadãos plenos, 2) os judeus de ascendência árabe (os “Mizrahim”), 3) os palestinianos com cidadania de Israel, 4) os beduínos, 5) os palestinianos da Cisjordânia e 6) os palestinianos de Gaza. Há até mais que seis estatutos porque recentemente os árabes com estatuto de “residência israelita” (habitando principalmente em Jerusalém Oriental) foram diferenciados dos outros, domiciliados em áreas fora do Muro em construção. Um só poder dominante sobre populações com estatutos políticos diferenciados é uma ocupação de tipo colonial 3. Foi nessas situações que, como se sabe, se desenvolveu o quadro jurídico do “indigenato”, oposto à “cidadania”. Mas é preciso ver mais de perto o colonialismo moderno. Nos últimos 1 50 anos, as ocupações coloniais estiveram associadas à exportação de capitais e portanto às expectativas de encontrar nesses territórios taxas de lucro superiores às da origem. O principal factor para que isso aconteça é a força de trabalho “colonial” ter custos menores para a sua reprodução, o que aumenta a taxa de mais-valia4. No entanto, taxas de mais-valia superiores à média nem sempre dão taxas de lucro superiores à média. No caso das ocupações coloniais, há até uma contradição permanente entre ambas: para explorar a força de trabalho barato é preciso estender o Estado dominante para as regiões dominadas, o que obriga a aumentar as despesas improdutivas (duplicação dos aparelhos político-militar, judiciário, hospitalar, escolar, etc.). A ocupação colonial faz assim aumentar a parte do capital público que produz abaixo da taxa média de lucro (ou até sem lucro). A taxa média de lucro resultante combina portanto os super-lucros que o capital privado faz nas regiões de salários baixos com os lucros (baixos ou nulos) dos capitais públicos, sem os quais não há investimentos privados. Dito de outra forma, há uma diferença grande entre os lucros antes e depois de impostos a não ser que se encontre alguém para pagar as despesas “improdutivas” do Estado colonial. 2- A ocupação dos territórios no seguimento da guerra de 1 967 foi ilegalizada pela comunidade internacional através da resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU. O governo de Israel nunca admitiu ter a intenção de anexar os territórios, mas o seu discurso oficial vem acumulando cada vez mais contradições a esse respeito. 3- Hever usa poucas vezes essa designação. 4- A taxa de mais-valia (mv’) é a relação entre o trabalho pago e não pago. Define-se como mv’ = mv / v, sendo mv = mais-valia (o tempo de trabalho não pago) e v = capital variável (o trabalho pago, isto é, o valor adiantado pelo salário). Difere da taxa de lucro (r), que se define como: r = mv / v + c, sendo mv e v definidos como na taxa de mais-valia e c = capital constante (bens de capital não incluídos nos custos da força de trabalho). 18


Os grupos de interesse com atividade nas colónias esforçavam-se por conseguir que os restantes capitais metropolitanos contribuíssem para esses encargos. Mas como isso ocasionava conflitos sérios entre diferentes estratos da burguesia, os estados coloniais encontraram um expediente. Tratava-se do chamado “imposto indígena”: ao cobrar impostos sobre os camponeses, as administrações coloniais faziam-lhes pagar a sua própria ocupação. É das sociedades camponesas que saem os trabalhadores baratos mas, uma vez que estas sociedades se reproduzem fora do circuito do capital, podiam pagar impostos sem que se corresse o risco de haver aumentos de salários5. O imposto sobre os camponeses diminuía deste modo a carga fiscal sobre os lucros e a taxa geral de lucro aumentava.

1 .1 Fatores “atrativos” nos TPO A “economia da ocupação” israelita encaixa no modelo colonial uma vez que inclui:

a) níveis salariais diferenciados por critérios políticos

Já não resta quase nada da sociedade camponesa da Palestina (as deportações e as ocupações de terras acabaram praticamente com ela), mas os diferentes estatutos políticos da população são suficientes para dar ao conjunto Israel /TPO uma configuração colonial. Por exemplo, o salário médio de um trabalhador palestiniano corresponde a 57,7% do salário médio de um cidadão judeu israelita. Mas nem sequer existe um salário médio palestiniano, porque a ocupação vai criando estratos sobre estratos: os trabalhadores da Cisjordânia recebem 51 % do salário médio diário pago aos palestinianos a trabalhar em Israel (fronteiras de 1 948) e os de Gaza apenas 46%.

b) custos de reprodução da força de trabalho não pagos pelo capital local

A força de trabalho palestiniana tem custos muito baixos. Como é isso possível se praticamente desapareceu a sociedade camponesa no conjunto Israel/Palestina? Através da ajuda internacional que desde 1 948 tem poupado despesas ao estado e aos capitais de Israel. A ajuda internacional (que inclui a agência da ONU – UNRWA e as muitas ONG’s que canalizam as doações públicas e privadas) satisfaz boa parte das necessidades alimentares, sanitárias, educativas, etc. da população palestiniana. As transferências (exclusivamente de ajuda “humanitária” porque Israel não permite outro tipo de cooperação) aumentam significativamente depois das crises militares, como aconteceu no seguimento das operações israelitas de 1 948, 1 967, 1 989, 2000. Nesses anos, a 5- Isto não quer dizer os trabalhadores assalariados não paguem impostos. No entanto, assumido o custo da força de trabalho em qualquer mercado, a economia clássica mostra, desde Ricardo, como todos os impostos adicionais sobre os salários acabam por ser, direta ou indiretamente, pagos pelo capital. 19


ajuda internacional pode chegar a percentagens muito elevadas do PIB dos territórios ocupados. Para se fazer uma ordem de grandeza, vale a pena transcrever a seguinte tabela de Hever, que mostra como a destruição de equipamentos, levada a cabo pela invasão israelita dos TPO em 2001 -02, foi imediatamente seguida por grandes aumentos da ajuda internacional: Quadro 1 - Dependência palestiniana da ajuda internacional

Fonte: Hever, 201 0: 31

Mesmo considerando que a diminuição do “PIB palestino” depois das destruições israelitas faz aumentar as percentagens da ajuda, estes dados permitem deduzir que os salários pagos em Israel aos trabalhadores palestinianos representam muito pouco do rendimento palestiniano. Se nos anos acima todo o rendimento palestiniano viesse apenas da soma destes salários e da ajuda internacional, a parte dos salários pagos pelo capital israelita representaria apenas 1 2% do que seria preciso para manter uma classe trabalhadora palestiniana. A tabela acima permite também deduzir que o estado de Israel beneficia de uma dupla impunidade nas destruições que provoca nas infra-estruturas palestinas: para além de não ser processado pelos doadores (UE, ONU, EUA, Japão, Estados Árabes, ONGs), os governos sionistas sabem que os montantes da ajuda nunca deixarão de lhes poupar despesas que de outro modo teriam de suportar, sob pena de a força de trabalho palestiniana não se poder reproduzir. Para os capitais israelitas, há ainda mais a tirar da ajuda internacional aos palestinianos. O controlo que os outros estados coloniais exerciam sobre as respectivas economias camponesas – obrigando-as a comprar bens das firmas metropolitanas – também está presente. Nas antigas colónias, os mercados locais estavam protegidos por pautas aduaneiras que favoreciam as exportações da metrópole; no caso dos TPO, a ajuda internacional também transita obrigatoriamente por Israel e é em Israel que geralmente se converte em bens. Pautas aduaneiras proibitivas garantem que as compras não se façam nos países vizinhos. Para além de mais receita fiscal, isto abre um mercado suplementar às 20


empresas israelitas, que são assim pagas por terceiros para satisfazer a procura palestiniana.

c) transferências de capitais metropolitanos para suportar os custos do estado colonial

No entanto, e ao contrário do que dizem muitos meios de comunicação (em Israel e nos países ocidentais), os TPO não são a região do mundo que recebe mais ajuda internacional. Essa posição é geralmente ocupada pelo estado de Israel, que recebe transferências: - dos Estados Unidos (principalmente para fins militares) - das comunidades judaicas do mundo inteiro - da Alemanha, a título de compensações pelo Holocausto Só dos Estados Unidos, Hever calcula que, entre 1 973 e 2008 (excluindo portanto tudo o que foi recebido nos 26 anos entre a independência e 1 973), Israel recebeu cerca de 200 biliões de dólares americanos6. As transferências alemãs, embora não sigam diretamente para o governo israelita, podem ser estimadas numa média anual de 732 milhões de dólares; isto é, só elas são superiores à média anual da ajuda recebida pelos TPO nos anos “normais” (antes da 2ª Intifada). As doações das comunidades judaicas não são fáceis de estimar, o que não quer dizer que sejam pequenas. Tudo somado, não admira que o estado de Israel seja habitualmente o maior recipiente da ajuda externa mundial, ultimamente ultrapassado apenas pelo Iraque.

1 .2. Os custos nos TPO e a rentabilidade Considerados isoladamente, estes três pontos (salários desiguais, baixos custos salariais e transferências externas) seriam fatores para haver taxas de mais-valia e de lucro mais altas nos TPO que nas economias “metropolitanas” da Europa ou dos EUA. No entanto, é preciso considerar os encargos do aparelho político (as tais “despesas improdutivas” para o capital) que nos territórios coloniais atuam sobre a taxa de lucro em sentido contrário. Hever diz que estas despesas se podem dividir em duas rubricas: subsídios aos colonatos israelitas (os colonatos fazem ocupação privada, mas cada colono custa ao estado de Israel 2 vezes mais que os outros cidadãos) e os custos militares/policiais diretamente a cargo do Estado. Para o período 1 970-2008, calcula o acumulado (com juros) da primeira rubrica em de cerca de 1 04 biliões de NIS 7 e o da segunda, em cerca de 31 6 biliões de NIS (respetivamente, 23,9 e 75,5 biliões de dólares). Simplificando, avalia-se o custo anual da ocupação em 26,3 biliões de NIS (cerca de 6,84 biliões de dólares). Esta soma é verdadeiramente abissal e permite imediatamente 6- Hever acrescenta aos montantes transferidos a taxa média de juro. Hever, 201 0: 33. 7- New Israeli Shekel, a moeda (única) do agregado Israel/TPO. 21


concluir que sem as transferências do exterior, a ocupação nunca poderia ter avançado tanto. Mais: não pode seguramente continuar na mesma escala. É que a ser assim (isto é, se o número de colonos continuasse a crescer à taxa de anual de 7,1 %), o orçamento israelita de 2038 teria de gastar metade das suas receitas para suportar a ocupação. Como diz Hever, isso nunca se viu em nenhuma potência colonial. O volume destas despesas improdutivas encaixa mal no modelo colonial: os lucros coloniais nos TPO custam demasiado. Afinal, a resistência palestiniana está longe de ser simbólica e pesa cada vez mais, a ponto de tornar a exploração irracional. Sendo assim, que diabo de ocupação colonial é esta que parece saída do mundo pré-capitalista? Os fatores que tornam esta ocupação atípica são os seguintes:

a) a escala da exploração é baixa

Para calcular a taxa de exploração, tem de se começar por apurar a massa da mais-valia apropriada. O governo e os capitais privados de Israel beneficiam de uma mais-valia palestiniana através de dois agregados: os impostos (diretos e indiretos) e a a exploração de uma força de trabalho barata. Para o período 1 9702008, Hever calcula que o acumulado destes agregados seja de 39,64 biliões de NIS, o que dá uma média anual de 1 ,01 bilião de NIS. Outros autores apresentam estimativas superiores: para o mesmo período, um acumulado de 58,9 biliões de NIS, o que elevaria a média anual para 1 ,84 biliões de NIS. É preciso lembrar que o agregado da mais-valia obtida com os palestinianos inclui receitas muito variadas: impostos pagos pelos palestinianos e pelas ONG, salários retidos, quotizações sindicais (os palestinianos que trabalham em Israel descontam para a central sindical Histadrut, embora dali não recebam qualquer proteção), para a segurança social, etc. O divisor da taxa de exploração são os custos salariais. Quantos são os trabalhadores palestinianos e que massa salarial implicam? Segundo vários institutos de pesquisa, o total de trabalhadores palestinianos em Israel era, em 2005, de 60.000. Apenas metade deles tinham “residência israelita”, o que significa que a outra metade vinha dos TPO. Com base nos diferentes salários médios diários associados aos vários estatutos da população palestiniana e assumindo um tempo de trabalho anual “europeu” 8 , pode-se tentar uma estimativa da taxa de mais-valia obtida com esta força de trabalho:

8- Se for assumido que cada assalariado palestiniano trabalha um total anual de 2.1 81 horas (tal como os franceses de 1 981 , isto é, 273 dias de 8 horas), está-se a subestimar o efeito dos horários mais longos em contextos não europeus; em contrapartida, está-se a sobrestimar o total de dias trabalhados – a quantas interdições de trabalhar em Israel não estão sujeitos os trabalhadores dos TPO em cada ano? 22


Quadro 2 - Exploração anual nos TPO: massa e taxas de mais-valia obtidas com assalariados palestinianos (média anual do período 1 970-2008)

Hever, 201 0: 61 -62;68. Valores em dólares constantes de 2008 convertidos em NIS

Com os números de Hever, numa jornada de 8 horas cada assalariado palestiniano trabalha em média 3,1 horas para o capital e 4,9 para si próprio; com os de Bichler-Nitzan, a divisão da jornada faz-se com partes sensivelmente iguais (respetivamente 4,3 e 3,7 horas). Comparativamente com outras situações coloniais, estas taxas de mais-valia são baixas e não devem pesar muito na acumulação de capital em Israel. As companhias israelitas mais rentáveis têm coeficientes de capital elevado. Em 2006, 46% das exportações israelitas (não contando com a lapidação de diamantes) eram faturadas pelas firmas“high-tech” do ramo farmacêutico, como a Teva Pharmaceutical Industries (capitalização de 51 ,5 biliões de USD), a Israeli Chemicals (capitalização de 1 4,3 bilões de USD) ou as que produzem equipamentos militares. Estas companhias não podem ser as que mais palestinianos empregam proporcionalmente: a força de trabalho palestiniano é pouco qualificada, o que a torna menos compatível com ramos industriais de composição técnica alta. Mais de 28,3% dos palestinianos na faixa etária 20-24 anos tem apenas 9 anos de escolaridade; a percentagem de pouco qualificados aumenta com a idade e chega a 80% na faixa 55-64 (ainda activos). Por exemplo, na área de Jerusalém os palestinianos representam apenas 31 % da população mas 50% da força de trabalho com salários mais baixos (a outra metade são emigrantes judeus recentes). É certamente na agricultura, na construção civil e no setor dos serviços que se pode encontrar a maior percentagem do emprego palestiniano. Em Israel, diz Hever, associa-se frequentemente os conceitos de “trabalho manual” , “trabalho sujo” e “árabe”. Outro indicador do relativo desinteresse pela mais-valia palestiniana é o diferencial nas taxas de desemprego (quase 20% mais entre os 9- A massa salarial assume que metade dos trabalhadores ganha pela taxa diária paga em Israel e a outra metade pela taxa mais baixa dos TPO, a dos trabalhadores de Gaza. Este pressuposto maximiza o cálculo da taxa de mais-valia (é pouco plausível pensar que metade da força de trabalho palestiniana ganhe pela tabela de Gaza porque as restrições à entrada destes trabalhadores são agora quase totais e já não investimentos israelitas na Faixa.) 23


palestinianos que entre os judeus) 1 0. É também verdade que, devido à pressão sobre os desempregados para aceitarem reduções salariais ou para trabalharem gratuitamente em programas comunitários (políticas que o governos israelitas inspirados no Wisconsin Program americano têm vindo a aplicar), a tendência é para o aumento da taxa de exploração em todo a área Israel-TPO. No entanto, trata-se do crescimento da taxa média de mais-valia e não do diferencial positivo da taxa de mais-valia empregando palestinianos. Em resumo, sem produções rendeiras (de que beneficiavam muitas produções coloniais tropicais) e em face da deriva israelita para produções de alto valor acrescentado parece não haver vantagens decisivas em explorar a força de trabalho palestiniana1 1 .

b) os custos totais são muito altos, logo a taxa média de lucro é muito baixa

Isto porque, como se viu, os custos para ter acesso a esta força de trabalho barata são desmesurados, e apesar dos aumentos de produtividade também terem chegado às despesas “improdutivas” da guerra. Atualmente, os orçamentos militares de quase todos os estados representam percentagens menores do PIB que nas décadas da chamada “Guerra Fria”. Com dizem os entendidos, há agora “melhores” armas, não mais armas. Está também em curso a tendência para privatizar parte destas rubricas. Em Israel, uma boa parte da “segurança” é feita por empresas privadas (até os check points que infernizam o quotidiano dos habitantes dos TPO estão a ser privatizados!) Mas é claro que nada disto impede os custos da ocupação dos TPO de serem os mais altos do mundo, seja qual for o critério de medida e seja quem for que vista a farda. Há empresas de segurança a operar por todo o lado, dos restaurantes aos parques de estacionamento e com elas os encargos de capital de todas as firmas disparam. Face a estes números astronómicos, o valor do capital produtivo parece quase irrelevante. Hever não informa sobre os ativos de capital das firmas israelitas mas fazendo a suposição absurda de que elas trabalham sem capital constante (equipamentos, matérias primas, bens intermediários), as taxas de lucro seriam aproximadamente assim: 1 0- É verdade que no diferencial de desemprego também entram fatores ideológicos, como a discriminação dos árabes e o que resta dos dogmas sionistas. No entanto, a abertura da economia israelita ao investimento estrangeiro, menos sensível a estes preconceitos, torna este indicador do desemprego significativo. 1 1 - Isso pode em parte explicar uma “anomalia” israelita que Hever assinala: o comportamento aparentemente inesperado dos trabalhadores israelitas. Em vez de apoiarem a segregação total como faziam os seus homólogos sul-africanos relativamente aos trabalhadores negros - o que neste caso significaria serem favoráveis à solução dos dois estados e ao fim do espaço comum Israel-TPO - a classe trabalhadora israelita vota nos partidos nacionalistas, favoráveis ao projeto colonial integrado. 24


Quadro 3 - Taxa média de lucro (capital constante excluído) nos TPO - média anual do período 1 970-2008

Hever, 201 0: 61 -62;68. Valores em dólares constantes de 2008 convertidos em NIS

Estas taxas de lucro não são evidentemente as que figuram nos balanços das firmas israelitas (se o fossem, a bolsa de Telavive não sairia tão cedo do vermelho). Representam apenas - com um largo erro por excesso que resulta da omissão de todos os ativos fixos e circulantes com excepção dos salários e dos “custos de segurança” - o que o capital mundial lucra quando se empregam palestinianos no complexo Israel-TPO. É claro que para as companhias israelitas onde há vantagem em empregar trabalhadores não qualificados, os 60.000 palestinianos com salários asiáticos são uma benesse, independentemente de os super-lucros serem raros nas firmas agrícolas ou da construção. Mas que para isso aconteça, os contribuintes americanos (fora os outros) têm que desembolsar a fundo perdido 5,6 biliões de dólares por ano. Alguma coisa aqui não bate certo. Então fazem-se investimentos de alto risco numa economia de guerra para obter retornos que, tudo somado, ficam abaixo do que se consegue com qualquer miserável título de divida pública? Uma conclusão destas remete imediatamente para o significado desta estranha economia colonial e portanto para a 2ª parte do estudo de Hever.

2- Quem lucra com a economia politica da ocupação israelita? Hever refere várias vezes a desproporção entre a dimensão da área IsraelTPO (29.000 km2, mais ou menos o tamanho da Bélgica) e a sua importância mundial. Basta considerar os 200 biliões de dólares da “ajuda” americana dos últimos 36 anos para se pensar imediatamente numa geopolítica mais ampla e na impossibilidade de esse dinheiro ter chegado para ajudar a explorar 60.000 árabes pouco escolarizados. Também não é nenhuma revelação a relação que existe entre o investimento norte-americano no “porta-aviões” israelita e o controlo da área produtora de petróleo do Médio Oriente - pouco mais de 2,2 milhões de km2 onde se concentram 57% das reservas mundiais de petróleo e 40% das reservas de 25


gás. 1 2 Já se sabe alguma coisa sobre a influência das multinacionais do petróleo na condução da política externa americana, tanto a pública como a subterrânea1 3. Não é preciso ir buscar, como Hever faz citando o estudo de BichlerNitzan, uma hipotética correlação entre guerras no Médio Oriente e lucros das companhias de petróleo1 4. Se for considerado o acumulado dos lucros das supermajors1 5 (e apenas o diferencial relativamente ao que seriam os lucros destas companhias se tivessem de comprar o Arabian Light a um cartel de produtores num mercado concorrencial), então os biliões gastos para manter um pequeno “Estado cão de pastor” a desequilibrar a política regional representam verdadeiras economias de capital. Aqui sim, há super-lucros e possibilidades de rendas mais ou menos permanentes. Mas o que é bom para Exxon-Mobil ou para a Chevron/Texaco não é certamente bom para os cidadãos israelitas. Porque razão se obstinam eles em validar governos que levam Israel a cumprir este triste papel na ordem mundial, cujos reflexos na política interna israelita são cortes nos programas sociais e o consequente agravamento das desigualdades? Só um exemplo: Israel ocupa atualmente o 50º lugar num conjunto de 53 países quanto ao grau de igualdade de oportunidades escolares. Hever vai mais longe. A economia de guerra está a minar o próprio projeto sionista, que assentava numa solidariedade “étnica”, agora totalmente estilhaçada pelo consumismo (alimentado pelas transferências externas) e pelas diferenças de classe. Os tempos não estão para virtudes cívicas: a taxa de recrutamento militar está a baixar desde a década de 1 980 (apesar do recrutamento ser obrigatório, os esquemas para as isenções proliferam) e parece que menos de metade dos cidadãos israelitas (49%) acaba por se alistar. Isto para não falar na abstenção eleitoral (record nas eleições de 2009) e nos escândalos governamentais de corrupção, crónicos na última década. Mas o mais importante é que a prosperidade da economia israelita assenta na base muito frágil da dependência externa. É verdade que a “ajuda internacional” a Israel parece uma mina sem fundo (entre 1 970-2008 o acumulado de todos os custos militares da ocupação representou apenas 55% das transferências americanas). É verdade também que toda a “ajuda”, e muito particularmente a que se destina aos palestinianos, reforça as reservas de divisas do banco central de 1 2- Chevalier, M., Les grandes batailles de l’énergie, 2004, Paris, Gallimard, p. 327. 1 3- Entre muitos, Baer, Robert, Or noir et Maison Blanche, 2003, Paris, Gallimard; , Laurent, Eric, La guerre des Bush, 2003, Paris, Plon; Scott, Peter Dale, American Deep State, 201 4, Maryland, Rowman &Littlefield. 1 4- Até porque a conclusão principal desse estudo – a da correlação entre guerras/ lucros – se baseia nos retornos bolsistas e não nos diferenciais da taxa de lucro real das empresas. Bichler, S.; Nitzan, J, Cheap Wars, “Economy of Occupation”, vol. 1 0, 2007, Jerusalem: Alternative Information Center. 1 5- Expressão usada para designar as sete maiores companhias petrolíferas. 26


Israel e o saldo da balança de pagamentos. Mas se a prosperidade vem cada vez mais de fora, o que aconteceria em resultado de uma campanha de boicotes, sanções e desinvestimento? Hever diz que em 2003, sob o efeito de um hipotético cenário de ruptura das exportações, o banco de Israel teria reservas em divisas para pagar 208 dias de importações; em 2006, esse número já estava em 1 60 dias. A combinação de uma dependência externa e de um igualmente crescente isolamento internacional (decisões do Tribunal Penal Internacional e da ONU sobre o muro, extensão da campanha de boicotes, desinvestimento de algumas companhias internacionais, queda de 25% do turismo entre 1 995-99) aproximam a trajetoria israelita da sul-africana durante o processo de extinção do apartheid. Face a isto, que saídas há? A solução dos dois estados ou a do estado democrático, pluri-comunitário? Hever argumenta que, no caso da solução dos dois estados, só a compensação a pagar aos colonos entretanto instalados na Cisjordânia (tomando como base o que se pagou aos que foram evacuados da faixa de Gaza) chegaria às dezenas de biliões de dólares. Isto sem falar nas compensações a pagar aos palestinianos. Estas últimas parecem um pouco ficcionadas (note-se que, dada a atual correlação de forças, indemnizações desta ordem nunca estiveram na mesa das negociações). Em todo o caso é inegável que o estado de Israel não tem condições (nem intenções!) para pagar nada disso salvo se contasse com o reforço da “ajuda” americana nesse sentido. Mas continuaria ela a vir, caso Israel perdesse a sua utilidade para os interesses geopolíticos americanos? Inversamente, pode-se perguntar (o que Hever não faz) se estes interesses não seriam melhor defendidos por um estado integrado e “normalizado” que desmontasse a bomba de relógio deste conflito secular. Afinal, foi essa política seguida pelo grande capital na África do Sul, ao acabar com o fantasma do apartheid. Aqui, tal como na discussão de rebuscadas explicações sociológicas para explicar a ocupação israelita, o trabalho de Hever é menos convincente. Contudo, o seu contributo para demonstrar que a “economia da ocupação” está a prazo compensa as confusões teóricas da 2ª parte. Maciel Santos

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Um muro de segurança civil ou de dominação económica G u y Davi d i e Al exan d re G oetsch m an n

O muro construído pelo governo israelita sobre as terras da Cisjordânia tem várias funções. Para alguns, estamos na presença de um escudo de protecção civil contra qualquer possível infiltração terrorista, para outros, o muro é apenas uma franquia com a finalidade de estender novas construções em territórios confiscados e, para uns quantos outros, trata-se de uma membrana selectiva de mão-de-obra barata. Sob a égide das políticas de segurança nacional escondem-se muitas outras estratégias que são do domínio da economia política. Com efeito, uma simples abordagem à evolução do recurso à mão-de-obra palestiniana em território israelita permite fazer o levantamento do dinamismo de uma estratégia de guerra de que o muro é uma das armas principais, uma estratégia reduzida em termos de emprego, de salário e de produto nacional. Quando Israel se apoderou dos territórios palestinianos da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, a economia palestiniana baseava-se principalmente nos rendimentos de seu sector primário. De 1 967 até aos acordos de Oslo (1 993), Israel conduziu uma política económica de sentido único nos territórios ocupados, com leis proteccionistas impedindo o desenvolvimento industrial palestiniano e submetendo a mão-de-obra palestiniana aos mercados israelitas. É assim que a força de trabalho, oriunda dos territórios ocupados e obrando nas indústrias israelitas, se tornou a principal força económica que constitui o produto nacional bruto palestiniano. No final deste período, 1 1 5 000 trabalhadores palestinianos, representando um terço da força de produção dos territórios ocupados, trabalhavam em solo israelita, os seus salários alimentando milhares de cidadãos dependentes da economia israelita. 28


Com a entrada da economia israelita nos mercados mundiais deu-se uma inflação dos produtos de consumo básico nos territórios ocupados. Consequentemente, muitos agricultores palestinianos abandonaram o cultivo das suas terras para entrar no sector secundário israelita em pleno crescimento, para poderem ir ao encontro do súbito aumento dos preços e do perigo iminente de empobrecimento. O abandono das explorações agrícolas e a estagnação dos métodos de desenvolvimento, que lhes podiam estar associados, são as consequências das sanções emitidas pelo governo israelita sobre os produtos agrícolas importados

dos territórios ocupados; pelas subvenções do Estado ao lobby agrícola israelita; pelo absoluto controlo israelita na gestão dos recursos de água assim como a regulação desigual do seu preço. Nestas condições, a agricultura palestiniana não podia competir com o seu vizinho, nem munir o seu povo de rendimentos decentes. Durante os 26 primeiros anos da ocupação, a mão-de-obra palestiniana à procura de um trabalho rentável foi principalmente empregue nos sectores 29


industriais e no desenvolvimento de Israel. O aumento dos salários da mão-de-obra palestiniana ultrapassando os da Jordânia, ou do Egipto, assim como problemas relativos à segurança nacional fizeram com que os territórios ocupados perdessem progressivamente interesse para verdadeiros investimentos. A indústria têxtil israelita encontrou um parceiro mais vantajoso na Jordânia do que nos territórios ocupados, enquanto simultaneamente, o abandono das terras agrícolas pela mão-de-obra palestiniana favorecia o sequestro dos subsequentes terrenos para a construção de novos colonatos. Apesar da lei emitida em 1 970 pelo governo israelita, visando a igualdade dos trabalhadores e respeitando, de acordo com a lei internacional, os direitos sociais dos trabalhadores palestinianos, esses mesmos direitos foram espezinhados pelos promotores do trabalho sob o olhar indiferente da opinião pública israelita. Durante muitos anos, a mãode-obra palestiniana pagou do seu salário os impostos e as taxas dos cidadãos israelitas. Um capital que enchia as caixas pensionistas ou outros seguros sociais ou de saúde de Israel. A primeira Intifada de 1 987 apoiou-se nesta lesão generalizada dos direitos sociais da mão-de-obra palestiniana, mais do que em verdadeiras reivindicações nacionais. Segundo testemunhos dos campos de refugiados da Cisjordânia e de Gaza, uma grande parte dos revoltados de 1 987 tinham trabalhado em Israel. No início dos anos 90, a mão-de-obra dos territórios ocupados representava 7% da força laboral de Israel. Paradoxalmente, a economia do país tornava-se dependente desta mão-de-obra acessível, barata e indefesa, ocupando os sectores industriais, que foram abandonados pelos cidadãos israelitas, devido às condições de trabalho muito violentas. Em 1 993, o governo de Rabin decidiu abrir as portas aos emigrantes de ultramar para substituir a mão-de-obra palestiniana, esta decisão dependia do projecto de separação dos dois povos em conflito, oferecendo assim a Israel a legitimidade de impor um recolher obrigatório nos territórios ocupados. No limiar da segunda Intifada (2000), 1 1 0 000 trabalhadores palestinianos trabalhavam em Israel, representando um quarto da força laboral produtora dos territórios ocupados. No seguimento do fecho total dos territórios, a taxa de desemprego dos territórios ocupados foi multiplicada por dez. Entre 1 999 e 2002, o número de trabalhadores palestinianos em Israel diminuiu de 1 1 3 000 a 30 000. Com o início da construção do muro e a inacessibilidade às 30


zonas industriais israelitas, situadas ao longo da linha verde, um dos únicos rendimentos dos palestinianos passou a ser o trabalho nas colónias. Os salários diminuíram de 75% e as garantias de pagamento tornaram-se aleatórias. Durante o primeiro semestre de 2007, 68 000 palestinianos trabalhavam nas colónias representando um décimo da força laboral dos territórios ocupados, o resto permanece, desde 2000, ainda à espera da implementação de um ambiente favorável ao trabalho. A política económica israelita desenvolvida nos territórios ocupados flutua entre a manutenção de uma situação humanitária “respeitável” e a exploração da força de trabalho barata seleccionada nos diversos postos de controlo situados ao longo do muro. Apenas o trabalhador palestiniano com um cadastro criminal virgem pode, eventualmente, ter acesso ao mundo do trabalho em território israelita. O acesso ao mundo do trabalho aparece portanto como uma arma de repressão judicial cujo muro serve de tribunal.

Tradução GAP Fonte: Berthier (2008, pp.1 24-1 26). La Palestine au pied du mur. Paris: Éditions du Monde Libertaire.

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