Não sou este tipo de garota - Siobhan Vivian

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ABA E

ste era seu último ano do colégio. Entrar na universidade, ser presidente do

conselho estudantil e passar todos os dias com sua melhor amiga era tudo o que Natalie havia planejado. Ela sempre foi estudiosa, a melhor da classe. Não era o tipo de garota comum na Academia Ross, pois se preocupava muito com sua reputação. Talvez até demais. Então, para sua surpresa, no início das aulas, uma caloura a reconhece por tê-la tido como babá anos atrás. Desse reencontro surgirão muitos acontecimentos em que Natalie será obrigada a fazer difíceis escolhas para os dilemas de sua vida no ensino médio, como qualquer adolescente. Seu último ano será repleto de decisões, indecisões, julgamentos e paixões, tornando-se inesquecível. Seus planos sofrem uma reviravolta e sua vida fica de pernas para o ar, tudo o que ela não desejava inicialmente.

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Siobhan Vivian

Não sou este tipo de

Garota Tradução Marsely de Marco Martins Dantas

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Agradecimentos

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brigada a David Levithan e a todos da Scholastic, Rosemary Stimola, Nick Caruso,

Brenna Vivian e a todos do incrível clã da Vivian, Emmy Widener, Lynn Weingarten, Caroline Hickey, Lisa Greenwald, Tara Altebrando, Brenna Heaps, Morgan Matson, Rachel Cohn e Brian Carr. Obrigada também a Andrea Mondadoro, convidando-me ao lugar certo (sua sala de aula), na hora certa (almoço).

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Prólogo

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o primeiro dia do meu último ano do ensino médio, passei por acaso em frente ao auditório durante a reunião de orientação aos calouros. Dava para ver o brasão da Academia Ross gravado nos vitrais das duas enormes portas de madeira e uma delas estava aberta. Lá dentro, havia apenas o número de alunos necessário para ocupar somente as primeiras fileiras dos assentos duros e desconfortáveis, e o vazio dava ao lugar um ruído oco que com certeza fazia com que os calouros se sentissem ainda menores e mais impressionados. Foram necessários apenas três minutos para me dar vontade de gritar. Na minha visão de veterana, a orientação aos calouros é uma perda de tempo colossal. Ou, pelo menos, a maneira como a escola a faz é, forçando os alunos novos a repetir palavra por palavra o Manual de orientação da Academia Ross, todos ao mesmo tempo, sob a orientação do conselheiro mais próximo da morte. Não havia muitos sins no Manual de orientação da Academia Ross. Era praticamente uma repetição de nãos, desde "não usar telefone celular durante o horário escolar" até "não correr em ritmo inadequado pelos corredores". Mais da metade dos alunos lutava para ficar acordada, enquanto o restante se concentrava em sutilmente, ou não tanto, examinar um ao outro. Se fosse por mim, as coisas seriam bem diferentes. Em primeiro lugar, separaria a orientação dos calouros por gênero. Para os garotos, apenas uma apresentação simples, feita no máximo em dez minutos. Na verdade, seria bem provável que a reunião de apresentação fosse cancelada e eu apenas entregasse um comunicado. Pois havia somente três coisas a fazer para que um garoto vivesse uma experiência de sucesso no ensino médio: fazer a lição de casa, usar camisinha (para o caso de se dar bem) e passar desodorante nos sapatos de couro da escola todas as noites, pois o suor dos pés junto com as meias de poliéster têm um efeito inacreditável no nível de popularidade. 5


Obviamente, as coisas seriam mais complicadas para as garotas. Faria uma orientação no estilo daquelas palestras sobre dirigir embriagado que assustam logo de cara, em que os policiais estacionam um carro destruído no gramado da escola e um palestrante conta como matou acidentalmente seu melhor amigo ao voltar para casa depois de uma festa. Exceto que, em vez de comentar sobre os perigos de dirigir embriagado, arrumaria um palestrante que falasse francamente sobre o perigo dos garotos do ensino médio. Conheço uma garota que seria perfeita para isso. Ela estava na minha classe no primeiro ano. Era legal. Amigável até mesmo com os alunos esquisitos. Popular, mas não a ponto de deixar os demais enciumados, e bonita de um jeito que facilmente passaria despercebida. Poucas semanas após começar o ensino médio, pagou o preço da popularidade. Arrumou um namorado. Chad Rivington tinha quase o dobro da sua altura — um tamanho intimidador até ser visto se enfiando em um fusca azul-bebê enferrujado, caindo aos pedaços que ele amava mesmo assim. Ele era um veterano com notas decentes, bons dentes e ocupava uma posição no time de basquete da escola. Em outras palavras, era um tesouro para qualquer garota, de qualquer ano, especialmente para uma caloura. Eles se conheceram na enfermaria — ela com enxaqueca, ele alardeando um enorme corte de papel na esperança de fugir da aula de espanhol II. No fim da semana, já eram um casal. No fim do mês, eram o casal. É claro que tinham intimidade. Mas ela ia com calma, preferindo trocar beijinhos doces durante caminhadas sobre as pilhas de folhas secas de outono em vez de partidas de luta livre quase sem roupa no apertado banco de trás do carro de Chad. No aniversário de dois meses de namoro, Chad pediu que ela cabulasse a aula de álgebra para encontrá-lo no vestiário masculino para uma comemoração secreta. A garota jamais havia feito algo do tipo, mas parecia uma ousadia divertida e excitante. Embora nenhum dos dois ainda tivesse dito "Eu te amo", ela sentia isso toda vez que Chad entrelaçava seus dedos aos dela. Uma semana antes, depois de tomar suas primeiras três cervejas em uma festa, ela quase deixou escapar. Mas decidiu guardar para uma ocasião especial: o aniversário de dois meses. Depois de olhar por trás dos ombros, a garota entrou de fininho no vestiário masculino e foi na ponta dos pés até a última fileira de armários. Chad a cumprimentou com um sorriso. Um pouco depois, antes mesmo de dizerem "oi", já estavam se beijando. Parecia que o uniforme escolar dela tinha sido feito sob medida para um encontro apressado como aquele. As mãos dele deslizavam por ela toda. Todinha. E pela primeira vez no relacionamento deles, ela não se preocupou com o local que as 6


mãos percorriam. Era romântico e sexy, e tudo dentro dela estava derretendo. Chad era mais experiente nessas coisas, e ela finalmente permitiu-se curtir o momento. Eles teriam ido até o fim se estivessem no quarto de Chad, ou até mesmo em seu carro. Mas estavam no vestiário fedorento e o fim da aula de ginástica estava se aproximando. E a cada passo ouvido, assobio ou até mesmo um ruído animado que penetrava no ambiente, o perigo de ser descoberta invadia a névoa de insensatez da garota. — Não posso — disse subitamente. — Não aqui. Não agora. Chad tentou convencê-la com palavras, com beijos. Mas agora ela não estava mais se derretendo por dentro, pelo contrário. Afastou-se da boca de Chad e disse que era melhor voltar para a aula. 0 rapaz ficou muito desapontado — uma postura familiar em seus últimos encontros, só que um pouco mais enfática dessa vez. Ele implorou que ela ficasse. Afinal de contas, ela mal havia tocado nele e ele estava muito excitado. Nada mais justo do que terminar o que haviam começado, certo? Ela insistiu que tinha de voltar à aula de álgebra. Suavemente. Desculpando-se. E quando percebeu como Chad continuava chateado, inclinou-se para beijá-lo. Um beijinho na ponta do nariz, para deixar tudo bem. Ela sentiu três palavras querendo sair de sua boca, prontas para serem ditas. Mas Chad virou o rosto. A garota se sentiu mal ao voltar apressada para a aula. Sentiu-se ainda pior depois dela, quando viu alguns rapazes tirando sarro de Chad perto da árvore dos fumantes. Ele foi para o carro sem nem mesmo acenar para ela com a cabeça. A garota não sabia que a inabilidade de Chad transar com uma caloura tinha se tornado a piada do momento. Uma responsabilidade social. Até mesmo o próprio Chad brincou sobre isso durante semanas, pensando que seus amigos iam dar um tempo se ele participasse da brincadeira. Então, ele reclamava por "ficar na mão" após levá-la de carro para casa, ou imitava estar transando com a porta do armário, zombando da própria frustração depois que a garota o abraçava de manhã ou enquanto estavam no pátio. Coisas assim. Mas a participação de Chad apenas incentivava os comentários dos demais. A provocação ficava cada vez menos engraçada e cada vez mais pessoal. Foi um dos amigos de Chad que sugeriu a pegação no vestiário. "Use o aniversário", disse o cara. "Não tem como dar errado". Para Chad, todo mundo na escola estaria com os olhos grudados no relógio durante a quinta aula. Todos esperavam que ele conseguisse. E quando apareceu decepcionado, inventou uma desculpa que o isentava totalmente de culpa. Quando a garota chegou na escola no dia seguinte, os sussurros a atingiam como flechas envenenadas em suas costas. Garotos que tinham sido gentis com ela em festas e veteranas que tinham acabado de aceitá-la no grupo agora pareciam distantes e reticentes. Até mesmo alguns 7


de seus próprios colegas, aqueles que ela havia ajudado a adentrar no exclusivo mundo escolar superior, de súbito passaram a ignorá-la. Ela não conseguia entender. Pelo menos não até ver Chad, que olhou na outra direção, enfatizando sua culpa, para que não tivesse de falar com ela. Em seguida, por onde ela passava, todos começaram a fungar. Sempre que ela is para qualquer lugar, alguém fungava. Não parou para pensar no assunto. 0 tempo frio estava no ápice. Mas a ação ficava se repetindo. Funga. Funga. Funga. Onde quer que ela estivesse. Ela só percebeu o que estava acontecendo na hora do almoço, quando um dos amigos de Chad foi até o quadro branco e escreveu o nome dela ao lado da entrada de iscas de peixe. "Ela me deu nojo", imaginava Chad dizendo. "Quase morri de rir, ela fedia tanto." Tão idiota. Tão impensado. Tão mentiroso. Mas foi a gota d'água. Chega. Era o fim. Para ela era o fim. A onda inicial de provocação foi diminuindo depois de alguns meses, como qualquer outra frase de slogan de efeito. Chad nunca se desculpou. Talvez tivesse limpado a consciência admitindo para alguém que tinha apenas feito uma piada ridícula, mas ele não disse nada à garota. E outra pessoa passou a ser alvo das fofocas quando uma novata supostamente participou de um ménage à trois1 no chuveiro da casa de seus pais com dois colegas de classe de Chad. Mas para a garota aquilo provocou mudanças. Em forma de andar, na freqüência com que levantava a mão na classe, no que ousava colocar em seu prato no almoço. Ela nunca mais foi a mesma novamente. Não mesmo. Era a isca de peixe. É por isso que confiar em garotos era igual a beber e dirigir. Claro, alguns correm o risco. 0 fato de se tomar uma ou duas cervejas nunca parece perigoso no começo. Mas, para mim, era óbvio: por que alguém iria querer correr o risco? Então, era isso. A orientação tinha de ser algo desse tipo. Tínhamos de informar coisas úteis em vez das regras de manutenção de armário. Ouvir uma história como essa era tão importante quanto saber seu tipo sanguíneo, ou se você é alérgico a picadas de insetos. Era o tipo de informação que poderia salvar a vida de uma garota.

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Relação sexual feita com três pessoas.

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Capítulo 1

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ra o começo do terceiro ano do ensino médio, e minha amiga Autumn estava se sentindo nostálgica. Ela tirava fotos enquanto pegávamos nossos horários no escritório de orientação pela última vez. Dizia ser intervenção divina o fato de que, embora tivéssemos duas aulas comuns, as demais eram perto o suficiente para que sempre pudéssemos andar juntas. Ficava falando do primeiro ano como se este tivesse ocorrido há décadas. Até mesmo a minha aparência depois da aula de natação – cabelos molhados como se fossem compridos blocos de gelo marrom, água da piscina derretendo sobre o meu casaco azulmarinho – conseguia deixá-la melancólica. — Você tá com cheiro de verão – disse, recostando a cabeça em meu ombro. – Queria que ainda fosse verão. Virei-me e cheirei meu casaco. Apesar de ter mandado lavá-lo a seco um pouco antes do início das aulas, já estava com cheiro de cloro, então eu o tirei e o amarrei na cintura. O técnico Fallon nunca dava tempo suficiente para o banho após a aula. Preferia nos fazer sofrer em mais uma volta de nado borboleta do que nos dar 30 segundos a mais para lavar a cabeça. Autumn tinha muita sorte por ter machucado o ombro há alguns anos e possuir um atestado médico que a mantinha fora da piscina. — Hei – disse. – Você pode me fazer uma trança quando chegarmos na sala? – Odiava o jeito que meu cabelo secava depois da aula de natação, formando vários nós idiotas. O cabelo de Autumn era na altura do ombro e dividido em duas metades loiras perfeitamente simétricas. Dava para fazer a risca sem nem mesmo olhar no espelho. — Vem cá – disse ela, tirando minha faixa de cabelo de casco de tartaruga antes de ficar bem atrás de mim – vou fazer agora. 9


Foi assim que passamos pelo corredor dos calouros; eu guiando Autumn pelo meu cabelo, como se fôssemos elefantes. Mantive a cabeça baixa, fazendo-lhe perguntas sobre as minhas anotações de filosofia oriental enquanto ela continuava o trabalho. Sentia minha cabeça sendo apertada a cada trançada. Nosso primeiro teste seria em 15 minutos. Tínhamos estudado pelo telefone na noite anterior, então era mais uma revisão, mas Autumn ainda estava errando algumas. — Não consigo acreditar – disse Autumn parando de andar, só que eu não percebi até minha cabeça ser puxada para trás. Ela suspirou e perguntou: - Nós éramos assim tão jovens? Dava para perceber que Autumn estava tentando absorver toda a alegria e as possibilidades que exalavam dos calouros à nossa volta. Ela estava completamente enfeitiçada pela imbecilidade deles, pela pele ruim e a estranha algazarra. Por fim, abriu um sorriso tão grande que o canto dos olhos ficou enrugado. Também sorri. Só que não estava relembrando o passado de tal forma que precisava me apegar a cada minuto do terceiro ano. Se as universidades dos nossos sonhos nos aceitassem, Autumn e eu iríamos viver em lados opostos do país em onze meses. A realista dentro de mim tinha de aceitar que as coisas não seriam mais as mesmas... Ou pelo menos não seriam nem de longe tão boas quanto eram agora. Autumn faria novos amigos. E eu tinha fé que também faria. Mas não era uma perspectiva que me deixava particularmente animada. — Nossa! – ela sussurrou. – Natalie, veja! Autumn apontou em direção a uma garota cujo corpo era cheio de curvas e seus cabelos encaracolados. A moça estava ajoelhada no chão, tentando pegar os livros no meio da bagunça de seu armário. A saia de preguinhas do uniforme caía para trás como se fosse o sino da igreja tocando. Um pequeno triângulo lilás mal protegia seu traseiro de todo o corredor. Apesar de não estar escrito em nenhum lugar do manual de orientação da Academia Ross, ainda parecia que toda garota da escola sabia que era necessário usar algo não tão revelador por baixo da saia do uniforme. Bermudas, shorts, leggins ou no mínimo uma calcinha moderna. Qualquer um sabia disso, menos essa pobre caloura sem noção. Fiquei pensando se devia ou não dizer alguma coisa. Mas só por um segundo, pois, se eu tivesse um pedaço de espinafre nos meus dentes, ou se meu zíper estivesse aberto, teria preferido que me contassem a ter feito papel de boba. Momentos constrangedores tinham uma vida útil surpreendente na escola. Em um minuto você é uma garota normal, e no outro você será conhecida como ―bunda de fora‖ pelos próximos quatro anos. Intervir era a coisa certa. Dei meu caderno para Autumn segurar. – Releia minhas anotações sobre o Método Socrático. Eu já volto. — Segui pelo corredor, minha trança se desfazendo a cada passo. Dois calouros já haviam notado o show gratuito e não paravam de olhar para a bunda da moça. Olhei feio para eles e fiquei bem na frente para bloquear a visão. — Ei – disse para a garota. – Posso falar com você um segundo?

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Ela se virou para olhar para mim, seu rosto bronzeado parecia um pouco mais claro ao redor dos olhos, provavelmente por ter tomado sol usando enormes óculos escuros. – Hum. Claro. – Seu tom era amigável e ao mesmo tempo desconfiado. — Sou Natalie Sterling — disse, achando que era melhor me apresentar primeiro. – Qual é o seu nome? Ela piscou os olhos um pouco e depois se levantou. Algo que, para o meu grande alívio, resolveu imediatamente o problema da sua escolha infeliz de calcinha. — Espera um pouco, você é Natalie Sterling? — Hum. Sim. – disse e então passei a ter um tom desconfiado. Seus olhos castanhos eram grandes e cheios de expectativa, brilhando como a sombra que havia passado. Ela esperou, não muito pacientemente, que eu a reconhecesse. – Você não sabe quem sou, sabe? – Seu jeito não parecia bravo. No máximo, animado. Minha mente passou pelos rostos do meu curso de verão preparatório para o SAT 2. Mas era óbvio que a garota era caloura, então não fazia sentido algum. Dei de ombros como que me desculpando. – Tem certeza de que não está me confundindo com alguém? — Tudo bem — ela disse fechando os olhos e balançando a cabeça para lá e para cá algumas vezes, bem rápido. — Não acredito que vou fazer isso — e então, depois de respirar bem fundo, começou uma dancinha, bem ali, na frente do armário. Suas pernas bronzeadas chutavam o ar como se fossem tesouras, e os sapatos batiam com tanta força no piso impermeável que todo mundo começou a prestar atenção. Minha própria deficiência em relação à dança fazia com que eu não percebesse se ela era boa ou apenas muito esforçada. De qualquer forma, ela se agitava tão fervorosamente que seus cachos saltavam como se fossem milhares de pequenas molas. Depois de um giro final, que honestamente não poderia ter sido mais rápido, abriu os braços e exclamou: ―Riverdance‖!3Só que disse isso com um terrível sotaque irlandês, parecendo mais Rivadaaaans! Foi aí que eu me lembrei. — Spencer Biddle? — A garota de oito anos que eu tomei conta durante um verão inteiro quando eu tinha doze anos? Que não usava o banheiro do andar de cima se não tivesse alguém do lado de fora da porta, que só comia macarrão com queijo se esse último fosse alaranjado, que dava o maior show de sapateado bem no meio da sala de estar? Seu peito pulsava enquanto ela tentava recuperar o fôlego.

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SAT (Scholastic Aptitude Test) – teste de avaliação de conhecimento exigido para entrar em curso superior nos EUA. 3

Riverdance é um espetáculo de sapateado irlandês, reconhecido pelo rápido movimento de pernas dos dançarinos e aparente imobilidade da cintura para cima.

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— Honestamente, estou aliviada por você não ter me reconhecido. Faz... O que? Quase seis anos? É melhor que eu esteja bem diferente mesmo. — Não se preocupe — disse, olhando bem para a maquiagem dela e imaginando seus cachos se transformando no rosto de uma garotinha de cabelos encaracolados despenteados. – Você está bem diferente. Spencer tirou meus cabelos molhados do ombro. – Eu mal te reconheci também. Quer dizer, olhe como você está grande e linda! – Era um elogio estranho, do tipo que a tia Doreen ou a vovó fariam. Não de alguém três anos mais nova que eu. – Sério, Natalie! – ela continuou – você foi a melhor babá que eu tive. Lembro-me de uma vez que você ameaçou fazer o Eddie Guavera comer pedra quando ele fez xixi nas flores que havíamos acabado de plantar ao redor da caixa de correio. Questionei: — Fiz isso mesmo? Spencer riu da mesma forma que costumava rir, soltando sopros silenciosos de ar que saíam do nariz como fogo rápido. — Todos os garotos da vizinhança tinham medo de você. Era demais! — A sua família não tinha se mudado para St. Louis? — Mudamos. Quando a minha mãe casou de novo. Mas ela se divorciou do meu padrasto, então voltamos este verão – concordei com a cabeça, apesar de achar estranho estar ali falando sobre divórcios com a Spencer. Estava certa que nossa última conversa tinha incluído apenas a minha opinião de que a pizzaria Lucky Charms tinha os piores recheios. — Alugamos um apartamento em frente ao Liberty River. Não é nada mau. Meu quarto tem armários enormes, cheios de espelhos e eu posso praticar minha dança. — Você dança na frente de qualquer coisa! Nas propagandas de televisão e também naquelas campainhas de vento que a sua mãe costumava pendurar na frente da varanda. — De repente, comecei a lembrar de como era irritante, na verdade, do ponto de vista de uma babá. Eu mal conseguia fazer a Spencer ficar sentada. 0 sorriso iluminado de Spencer transformou-se em uma ruga. — Espera aí. Se você não me reconheceu, por que veio falar comigo então? Tirei um fiapo de algodão da minha saia e de repente desejei que não soubesse a cor da calcinha da Spencer. Aproximei-me o suficiente para sentir o perfume de algodão doce que exalava dela e sussurrei: — Enquanto você estava agachada, dava para ver tudo. E tinha uns rapazes apreciando a vista. Ela abriu uma boca tão enorme que dava para ver todas as obturações. — Você tá brincando?

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Balancei a cabeça negativamente. Apesar de se sentir constrangida, Spencer conseguiu sorrir. — Sabe de uma coisa? Aqui na Ross também tem calcas femininas, mas suas pregas são horríveis e a cor parece de papelão. Na verdade, o melhor a fazer é vestir alguma coisa embaixo da saia — dei a ela um leque de opções, até levantei minha própria saia um pouco para mostrar meus shorts de lycra azul-marinho que eu sempre usava. Até mesmo por cima da meia-calça no inverno. Spencer concordou, mas começou a olhar por detrás de mim, tentando entender quais eram os garotos que estavam olhando para ela. 0 sinal tocou. Precisei correr para a classe para que pudesse me organizar e me concentrar antes da prova. — Com certeza nos veremos por aí, Spencer. E se tiver alguma dúvida sobre a escola, fale comigo. — Pode acreditar, definitivamente planejo explorar o fato de ser amiga de uma veterana! Todos os outros calouros vão morrer de inveja. Sabia que isso não era bem verdade, mas ouvir Spencer dizer fez com que eu me sentisse muito bem e saí apressada pelo corredor para evitar ser atropelada pelo time de futebol inteiro. Connor Hughes, alto e magro, com seu cabelo castanho ondulado encostado no colarinho da camisa, liderava o grupo de rapazes. 0 livro de jogadas estava em suas mãos e seus colegas de equipe orbitavam ao seu redor. Autumn fechou meu caderno e o devolveu para mim. — Não sei onde você arruma coragem, Natalie. Jamais conseguiria falar uma coisa dessas para uma desconhecida. Ergui a sobrancelha. — Ela não é desconhecida. Contei a história para Autumn, e ela olhou para o corredor. — Então, espera aí. Você ficou tão entretida conversando com a Spencer que se esqueceu de falar para ela sobre a calcinha? Virei-me e vi Spencer agachada novamente, sua bunda estava à mostra para quem quisesse ver. Os olhos dos jogadores de futebol que por ali passavam viraram para a esquerda, como se Spencer tivesse emitido um som agudo, em uma freqüência que só os garotos conseguissem detectar. Um deles, Mike Domski, tirou a prancheta das mãos de Connor e a abanou com toda força na direção do traseiro de Spencer, tentando fazer um vento forte o suficiente para que a saia dela se levantasse ainda mais. Os demais jogadores se amontoaram uns sobre os outros num ataque de riso. Uma sensação de amargor fez com que meu estômago contraísse. Spencer se virou e recostou no armário. Um olhar de constrangimento fingido, de falsa modéstia surgiu em seu rosto. 0 mesmo olhar que tinha me convencido há um minuto. — Parece que a Spencer cresceu e se tornou uma dama. É claro que era para ser uma piada, acho. Só que nenhuma de nós achou graça. 13


Capítulo 2

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u saí de casa supercedo na manha seguinte e peguei dois sanduíches e dois sucos de laranja na mercearia da rua Principal. Era o primeiro dia oficial de campanha para as eleições do conselho estudantil e eu queria pendurar meus cartazes antes que os outros começassem a brigar pelo espaço na parede. Quando cheguei à casa de Autumn, buzinei junto com a música que tocava entre uma notícia e outra da rádio. Do outro lado da rua, uma senhora de camisola me olhava por detrás da porta de tela. Balbuciei uma desculpa, constrangida. Autumn finalmente apareceu, atravessando descalça o gramado. Suas sandálias pretas estavam por cima dos livros, presas às mãos, um par de meias três quartos, cor de creme estava pendurado em seus ombros. Meus cartazes estavam presos debaixo do braço dela. — Cuidado! Não amasse! — adverti. Dava para ver que Autumn nem tinha se preocupado com o banho matinal, preferindo dormir vinte minutos a mais em vez disso. Eu sempre fui madrugadora, mas Autumn adorava dormir, então sempre procurava deixar um livro debaixo do travesseiro quando ela vinha dormir na minha casa. Ultimamente, leio apenas os manuais de preparação para o SAT4, mas foi assim que devorei a série toda de Goosebumps no ensino fundamental, ao lado da minha amiga que roncava. Autumn se agachou para abrir o vidro do passageiro e inclinou os livros, fazendo com que seus sapatos caíssem no banco. Seu rosto se iluminou quando viu o saco de papel branco. — Ooh! Café da manhã! — Sua recompensa por ter acordado cedo para me ajudar!

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Algo como o nosso vestibular.

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— Não preciso de recompensa — disse, jogando os livros no banco de trás, colocando meus cartazes por cima com delicadeza — afinal de contas, sou sua gerente de campanha oficial. — Queria que você fosse minha vice-presidente oficial — disse, baixinho. Autumn suspirou ao se jogar no banco do passageiro, prendendo o cinto de segurança com mais força do que necessário. — Natalie, você tem de deixar isso para lá. A idéia passou pela minha cabeça inúmeras vezes durante o verão e no último fim de semana ficamos acordadas até as três da manhã pintando os cartazes. Pintei um cartaz escrevendo o nome de nós duas, mas Autumn ficou reclamando que eu havia desperdiçado um cartaz perfeito. É difícil deixar boas idéias para lá. Ela deu uma enorme mordida no sanduíche e ficou com um pouco de ketchup no rosto. Dei um guardanapo para ela. — Olha — disse, entre uma bocada e outra — significa muito para mim você achar que eu, de fato, conseguiria fazer algo assim. Só que eu não preciso ser vicepresidente para ajudar em todos os seus projetos. Irei à todas as reuniões do conselho do mesmo jeito que tenho ido nos últimos três anos. — Não se trata de comparecer a reuniões. Estou falando de viver na potência máxima. Você sempre diz que é o tipo de pessoa que fica por detrás das câmeras. Mas isso não é verdade. É só uma desculpa conveniente para que não seja notada. Os responsáveis por analisar a admissão na faculdade não se importam se você participou de atividades extracurriculares. Eles querem ver habilidades de liderança, se você pode ser responsável por alguma coisa. Autumn abriu o suco e o devorou em cinco goles. Uma pequena parte de mim achou que ela estivesse pensando na idéia. Mas então ela mudou de assunto e perguntou: — Quais eram mesmo aqueles slogans engraçados que você criou? Estava tentando me lembrar deles hoje de manhã. Não podia forçar minha melhor amiga a se candidatar ao conselho estudantil. Sei que era algo que ela deveria fazer por si própria. Mesmo assim, sentia-me frustrada. Durante o restante do caminho para a escola, tentamos nos lembrar dos slogans divertidos que nos fizeram morrer de rir durante o fim de semana. Eram mais ou menos assim: "Votem na Natalie, ela sempre estará por perto!" Contudo, só eram engraçados por causa das ilustrações que os acompanhavam. O nosso carro foi o primeiro a chegar ao estacionamento dos alunos. A Academia Ross estava bonita; o sol nascia atrás dos muros de pedra, espalhando o orvalho pela grama espessa. Senti-me tão tocada pela beleza da escola que só percebi que todas as janelas tinham sido cobertas com um papel branco na metade do caminho. — Que estranho — disse. — Parece que o Kevin Stroop está levando o jogo muito a sério — disse Autumn.

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— Acho que sim. — Kevin Stroop era o bonitão do último ano e, pelo que eu soube, meu único concorrente. Estava contando com uma campanha fácil, principalmente por ter sido a vice-presidente ano passado, mas também porque Kevin tinha cometido um erro idiota de contabilidade que quase nos levou a falência. Tivemos de impor uma regra severa de apenas uma fatia por pessoa na noite da pizza que fizemos no fim do ano, e ninguém tinha ficado feliz com isso. Abri a porta principal e centenas de pedaços de papel saíram voando com a brisa de outono. Os papéis não estavam apenas nas janelas. A escola inteira estava coberta por eles, as portas do banheiro, os quadros de aviso, todos os armários e isso incluindo o de troféus. Um rolo de fita adesiva vazio ficou preso no meu sapato enquanto andava. Havia vários outros jogados no chão, espalhados pelo corredor. Sabia que Kevin não tinha coragem de aprontar uma coisa dessas. Tirei apenas uma das folhas de cima do bebedouro. Era uma folha de papel xerocopiada, havia várias bolas de futebol flamejantes desenhadas nela, e uma caricatura de Mike Domski fumando um cigarro ao lado de duas garotas de seios fartos usando biquínis. Infelizmente, o desenho não era uma fantasia doentia. Mike Domski realmente fazia com que as garotas gostassem dele. Claro, era jogador de futebol, e, sim, era popular. Mas o cara era totalmente desprezível, dando em cima de garotas burras só para se sentir mais esperto. E parecia que essa moda estava começando a pegar. Embaixo do desenho ele tinha escrito "Domski p/ Prez". E ele nem se incomodou em arrancar a página adequadamente — o canto inferior esquerdo estava rasgado e ele tinha xerocado com orgulho a margem espiralada que havia sido arrancada. — Mike Domski — disse em voz alta. — Você está de brincadeira — Autumn pegou o papel e fez uma careta. — Eca. Por que Mike Domski está concorrendo para o conselho estudantil? Na verdade, tive de parar um minuto para pensar — talvez para ajudar a entrar na faculdade? Ou ele está apenas sendo um imbecil? ...Mas isso era razão suficiente para alguém como Mike querer fazer isso. — Vou ficar tão satisfeita em ver você destruí-lo — disse Autumn enquanto examinava uma das paredes. — O que vamos fazer com todos os seus cartazes? Ele não deixou espaço para pendurá-los. Isso é ilegal! Você quer que eu vá procurar a Srta. Bee? — Não se preocupe — disse. E então pendurei meu maior cartaz bem em cima de vários dos sorrisos de caricatura do Mike Domski. Até a hora do almoço, os cartazes de Mike começaram a desaparecer. Talvez tivesse chegado aos ouvidos da Srta. Bee que a secretária da escola tinha caído na conversa dele, deixando-o usar a copiadora, e ela acabou considerando os cartazes contra as regras da eleição. Não foi isso, porém os garotos estavam arrancando de propósito. Vi uma fila de rapazes na 16


lanchonete pedindo para que Mike autografasse os cartazes, pois eles seriam "valiosos" algum dia. O que basicamente me deu vontade de vomitar. Durante o restante da semana, fiz o que pude para ignorar Mike Domski. Não foi difícil. Ele não participa de nenhuma das aulas do grupo avançado, e certamente não temos nenhum amigo em comum. Mesmo assim, à distância, observar a sua maneira artificial de gesticular sobre a candidatura me deixava louca. Também o modo como ele se comportava, fazendo decretos ridículos em linguagem arcaica, começando com doravante e concluindo com assim seja, e exigindo que as pessoas o chamassem de Prez. Mas eu fiquei calma e controlada, mesmo quando Mike se dirigia diretamente a mim. Nem me incomodava muito com aquilo. Provavelmente porque eu era uma das raras pessoas na Academia Ross que viam Mike como ele realmente era: um cabeça de bagre completo que fazia tudo para arrancar risadas do público. O ensino médio era o melhor que Mike Domski ia conseguir na vida. Dava para vislumbrar o futuro totalmente deprimente escrito bem ali, na cara do imbecil. Ele entraria em uma faculdade medíocre, se apaixonaria por uma dançarina grávida, perderia todo o dinheiro em um daqueles esquemas da internet de ganhar dinheiro rápido. Eu até sentiria pena de Mike Domski, se ele não estivesse agindo como um completo cretino. Mas Autumn odiava ver o Mike tirando sarro de mim, e não importava o quanto os insultos eram idiotas, eles a deixavam com muita raiva. Como dessa vez na lanchonete, quando Mike ficou bem embaixo de um dos cartazes que havíamos pintado juntas, fazendo sinal de positivo com as duas mãos e gritando algo como "minha péssima caligrafia". As bochechas de Autumn ficaram vermelhas de raiva, refletindo o bife mal passado em seu prato. Ela não tirou os olhos do bife, cortando um pedaço de gordura sem parar com um garfo de plástico que estava prestes a quebrar diante do seu toque mortal. E então, sem aviso prévio, levantou-se com tudo, batendo com tanta força na mesa que meu refrigerante caiu por toda a folha do laboratório. — Deixe-a em paz — disse, enfatizando cada palavra em uma voz tão brava quanto alguém tão doce como Autumn consegue pronunciar. Olhei para ela esboçando um sorriso, chocada pela sua coragem de dizer alguma coisa. Ela estava tremendo inteira. Meu coração ficou partido ao ver como Autumn era uma boa amiga. Se já era difícil para qualquer pessoa fazer algo do tipo, para ela era muito pior. Mike reagiu como se Autumn tivesse aparecido de súbito, fingindo surpresa e medo. Aproximou-se todo cheio de pompa da nossa mesa, aspirando o ar como se fosse um cão de caça guiado pelo cheiro, e parou bem na frente dela: — Ei, isca de peixe! Não tinha sentido seu cheiro por aqui! Aquelas palavras sugaram o oxigênio de toda a lanchonete. Não consegui me mexer. Não consegui olhar para Autumn. Só sentia o silêncio que emanava dela bem ali, ao meu lado, e rezava para que ela se lembrasse de respirar. Sempre me perguntei quando o restante da escola ia entender que a piada não tinha mais graça. Ou talvez eu apenas tivesse esperança de que isso um dia acontecesse. Mas, naquele momento, finalmente compreendi que jamais aconteceria. Alguém ia dizer aquilo no nosso 17


encontro de vinte anos de formatura, e Autumn teria de explicar a situação ao marido dela. Isca de peixe arrancaria a risada de alguém, em algum lugar, pelo resto de nossas vidas. Era fácil demais. Malvado demais. E era extremamente injusto que alguém como Mike Domski jamais compreendesse o quanto aquelas palavras haviam destruído a minha bela amiga. A raiva cresceu dentro de mim como lava. Procurei o objeto mais próximo e o atirei em Mike. Era o meu pedaço de pizza, e pegou bem no meio do peito dele, deixando uma marca triangular de óleo, molho de tomate e flocos de pimenta em sua camisa antes de cair com tudo nos sapatos de veludo marrom. — Opa! — disse com minha voz nada ressentida. Alguns respiraram fundo, e teve até quem achou graça. Mike entortou os lábios. — Droga! Sabe de uma coisa? Joguei fora o manual do conselho estudantil que a Srta. Bee me deu. Mas tenho certeza de que há uma seção inteira sobre as regras da eleição e esse tipo de coisa pode desqualificar um candidato. Vou te dizer uma coisa, Natalie, vou ver se ela tem mais um para me dar e conto para você. Revirei os olhos quando Mike foi embora. Mas, na verdade, por dentro eu entrei em pânico. Será que tinha arruinado tudo apenas para defender a honra de Autumn? Será que tinha dado a eleição inteira de bandeja para Mike Domski, algo com que vinha sonhando e trabalhando nos últimos três anos? Os olhos de Autumn se encheram de lágrimas. — Que é isso! — disse, colocando nossas coisas na minha mochila. Não queria que ela se humilhasse mais ainda. — Vamos para a biblioteca. — Sinto muito, Natalie — ela sussurrou — espero não ter te colocado em encrenca. Vou morrer se você for desclassificada! Autumn andava tão devagar que a segurei pelo braço e a empurrei pelo corredor. — Você não tinha que me defender — resmunguei. Se ela tivesse ignorado Mike como eu, aquilo não teria acontecido. Ela balançou a cabeça e disse, resoluta. — É isso o que melhores amigas fazem. — Autumn enxugou os olhos com uma das mãos e com a outra apertou a minha com força, da mesma forma como eu sempre apertava a dela.

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E E E

Capítulo 3

N

ão sou o tipo de pessoa que procura encontrar o lado positivo em todas as coisas, mas é inegável que uma coisa boa resultou do original fracasso da isca de peixe: ele salvou a minha amizade com a Autumn.

Autumn e eu nos conhecíamos há séculos por causa da natação. Tínhamos 6 anos quando nossas mães nos matricularam. Autumn freqüentava a Academia Ross desde o maternal, mas eu ia à escola pública, então nunca a tinha visto antes. Prestei atenção nela logo de cara. Os cabelos loiros eram claros, como o interior de uma casca de limão, e iam até a cintura. Gostava da forma como flutuavam na água, e observava com total fascinação o jeito como ficavam verdes durante as aulas, por causa do cloro. Mas não foi só por isso que prestei atenção nela. Era porque Autumn era a nadadora mais agitada da piscina. Ela espalhava mais água do que qualquer outra e sempre parecia estar meio aflita. Quando o salva-vidas nos colocou em dupla, reclamei, pois toda aula terminava com uma corrida de pranchinha, e os vencedores podiam escolher uma bala no enorme pote de balas que ficava no escritório. Eu sabia bem que Autumn e eu não tínhamos chance alguma, e não tivemos mesmo. Nunca conseguimos uma balinha sequer. Embora eu provavelmente fosse a nadadora mais rápida da piscina, nunca consegui ser rápida o suficiente para compensá-la. Eu até teria ficado brava... Mas Autumn era tão legal. Uma vez, dividi minha toalha com ela, pois ela havia esquecido a dela, e escutei obrigada um milhão de vezes. Também era surpreendentemente boba. Ensinou-me um jeito de fechar a mão na piscina que, quando apertada com forca, soltava um jato de água. Só que aquelas coisas não faziam de nós amigas, apenas garotas que nadavam juntas. Meus pais trabalhavam em empregos que exigiam muito deles — a mamãe tinha uma empresa 19


de arquitetura e o papai um consultório oftalmológico. Eles sempre chegavam exatamente às 14h55, e eu entrava no carro, mesmo antes de conseguir me secar direito. Com Autumn era diferente, assim que saía da piscina, já ia fazendo planos de brincar com uma das garotas, como se a aula de natação fosse um aquecimento para a diversão que viria em seguida. Foi só na última aula, quando o salva-vidas nos deixou pular do trampolim mais alto, que Autumn e eu nos unimos de verdade. Autumn ficou paralisada de medo, mas eu a forcei a subir a escada comigo. Principalmente porque nenhuma das outras garotas ia subir, talvez porque todas elas usavam maiô de duas pecas e um salto daquela altura faria com que a parte de cima saísse. Elas ficaram na parte rasa, rindo do estilo de natação dos garotos que se movimentavam como ninjas ou gritavam como o Tarzan. Eu não estava com medo, mas a sensação era de que nunca mais iríamos parar de subir. Lá no topo, nossos dedinhos enrugados se entrelaçaram com firmeza e eu contei até três antes de pular. Bem, eu pulei. Autumn meio que foi puxada por mim, gritando o percurso todo e ficando com a água ate o nariz quando afundamos. Ela saiu da piscina nadando cachorrinho, tossindo muito. Eu a segui, com uma sensação péssima, e decidi ficar sentada ao lado dela pelo resto da aula. Mas, em vez disso, Autumn foi correndo para a escada e continuou pulando sozinha. E toda vez saltava um pouco mais alto, um pouco mais longe. Adorei ver como ela testava a si mesma. Autumn tinha muita coragem, mas estava escondida lá no fundo. Tudo aquilo de que ela precisava era um empurrãozinho meu. Assim que nossas mães chegaram para nos buscar naquele dia, nos apresentamos como melhores amigas. Autumn e eu éramos definitivamente uma dupla estranha. Ela aparecia na minha casa de saia e sandália, mesmo eu tendo avisado que queria tentar fazer com que os garotos do quarteirão nos convidassem para brincar polícia e ladrão. Ela falava que eu era a pior manicure do planeta e que conseguia fazer as unhas melhor com a mão esquerda do que eu com a direita. Eu não era levada. É claro que as roupas que eu vestia vinham do meu primo Noah, mas às vezes eu até usava um vestido de verão, mesmo que não fôssemos para a igreja ou jantar fora. Eu tinha uma coleção de ursos de pelúcia que ficavam em uma rede de nylon pendurada em cima da minha cama e chorei como um bebe quando Christopher Clark jogou em mim uma cobra de jardim que tinha encontrado atrás da garagem. Mas antes de Autumn, nunca tinha feito amizade de verdade com uma garota. Não havia nenhuma na minha rua. Autumn era como água com gás, leve e borbulhante. Eu sempre soube disso, mas assim que me transferi para a Academia Ross, no ensino fundamental II, tive a certeza definitiva. Pela primeira vez, vi com que facilidade Autumn fazia amigos, muito mais fácil que eu. Tantas pessoas a cumprimentavam nos corredores. Lembro-me de me sentir com sorte por ter me 20


tornado amiga dela antes. Com sorte e um pouco assustada. Ela era convidada para noites do pijama. Havia sempre garotas que queriam sentar ao lado dela na hora do almoço. Apesar de Autumn sempre ficar comigo, podia sentir que ela estava se distanciando. Claro que não intencionalmente. Mas acho que dizer não aos convites e tentar conseguir para mim convites de piedade já estava ficando meio ultrapassado para nós. Autumn explicou que às vezes eu era meio sabe-tudo, mas ela disse isso de uma maneira muito mais educada e gentil. Eu não neguei. Meus pais eram do tipo intelectual, e esse tipo de coisa permeava tudo o que fazíamos em família. Tínhamos o nosso rádio da cozinha sempre sintonizado em estações culturais. Fazíamos charadas na hora do jantar. Dividíamos o jornal de domingo. E nossas viagens em família eram para centros científicos, expedições de fósseis ou monumentos históricos. Talvez isso fizesse de mim uma pessoa entranha, mas definitivamente me deixava mais esperta do que a maioria das pessoas que conhecia. Mas inteligência não necessariamente abre caminhos no ensino fundamental. Eu tinha convidado Autumn para ir comigo e minha família a um show de laser no planetário. Ela fez uma cara de decepção e então me explicou que tinha aceitado um convite da Marci Cooperstein para passar uma semana na casa dela no lago. Eu levei na boa, mas por dentro estava fervendo. Marci vinha tentando interferir na minha amizade com a Autumn há meses. Autumn se manteve distante de Marci, mas creio que a promessa de uso de Jet skis, churrascos e beliches era demais para resistir. Foram sete dias de pura tristeza para mim. Fiz minha mãe me levar à biblioteca quatro vezes, pois tudo o que eu fazia era sentar no meu quarto e ler. Naquela época, os outros garotos do quarteirão não eram mais amigos, eram só rapazes que se sentiam estranhos quando estavam por perto. Eu não tinha mais ninguém. Quando Autumn voltou, mais bronzeada do que jamais a tinha visto, dormiu na minha casa por quatro dias seguidos e me deu uma pulseira da amizade que fez especialmente para mim, cortesia do kit de bijuterias de Marci. E ela usou as contas mais legais — esferas de vidro lilases alternadas com pedras brilhantes furta-cor com o formato de minúsculos grãos de arroz. Toda vez que Marci via a pulseira, fervia de raiva. Usei até quebrar, e então recolhi todas as contas que consegui encontrar. Ainda guardo algumas na minha caixa de jóias. Acho que esse tipo de competição devia ter me preparado para o Chad, mas não foi o que aconteceu. Os rapazes não faziam parte da nossa equação. Nem falávamos sobre eles. Isso pode até parecer estranho, mas a nossa amizade tinha essa estranha inocência atemporal. E apesar de saber que podia competir com as Marci Coopersteins da vida, não era páreo para Chad. Ele deixava Autumn completamente hipnotizada. Uma vez, estava na casa dela praticando um diálogo para um projeto de Francês quando Chad ligou e a convidou para encontrá-lo com alguns amigos perto do Liberty River. Autumn 21


supôs que eu não quisesse ir, mas disse a ela que queria. Fiquei feliz ao ver como ela ficou animada pelo fato de querer acompanhá-la. Estava entusiasmada a ponto de gentilmente me encorajar a usar um de seus casacos e passar um de seus batons. Tive uma sensação esquisita quando Autumn pegou na minha mão e desviamos da calçada para um caminho estreito na mata. Seguimos por um caminho de terra, cheio de lixo e bitucas de cigarro. Fiquei bem desnorteada apesar de conseguir ouvir o rio, mas Autumn caminhava como se ela fosse ao mesmo tempo Lewis e Clark 5. Depois de algumas curvas e voltas, chegamos a uma pedra enorme, assentada em meio à água prateada. Alguns rapazes estavam sentados nela, tomando cerveja e soltando a fumaça do cigarro no céu do anoitecer. Éramos as únicas garotas por lá. Pensando bem, exagerei, definitivamente. Mas rapazes mais velhos, cerveja, escuridão e mata cerrada estavam muito além do meu domínio. Depois de dez minutos, fingi estar passando mal. Autumn sabia que eu estava fingindo, e me deixou voltar para casa sozinha. Depois disso, ela só convidou Marci. Achei que a tivesse perdido. Então aconteceu o incidente da isca de peixe, e eu fui a única pessoa que ficou ao lado dela. Para todo o restante da escola, ela ficou marcada. Os garotos tinham nojo dela, e até mesmo algumas garotas ficaram muito metidas e subitamente passaram a ser boas demais para serem suas amigas. Marci até chegou a rir algumas vezes das piadas que as pessoas faziam. Bem na frente de Autumn. Disse à Marci que ela era patética. E tomei seu lugar com muita alegria. Andava na frente de Autumn, ou começava a falar bem alto sobre absolutamente nada, usando o campo de força da melhor amiga para distraí-la dos fungadores e das caras de nojo. Acho que algumas pessoas tinham medo de mim. Fiquei conhecida como a nerd com intensidade assustadora que fazia qualquer coisa para proteger a isca de peixe. Algumas semanas depois, Marci pediu desculpas para Autumn em um bilhete escrito durante a aula de coral. Autumn mostrou para mim. Estava cheio de erros gramaticais. "Voce certa de estar brava comigo", Marci escreveu. Idiota. Achei que Autumn escreveria de volta para Marci, mas ela amassou o bilhete e jogou no vaso sanitário. Nunca senti tanto orgulho dela.

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Meriwether Lewis e William Clark formavam uma dupla de exploradores que liderou primeira grande expedição exploratória do continente norte-americano, partindo do leste e indo em direção ao oeste até a costa do oceano Pacífico, com posterior retorno. (NT.)

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Com a minha ajuda, Autumn transformou o lado negativo em positivo. Juntas, canalizamos nossa energia para o estudo. Autumn nunca foi uma ótima aluna, e naquele primeiro semestre do primeiro ano quase repetiu por causa do estresse com tudo o que aconteceu. Levávamos o almoço para a biblioteca e estudávamos ou fazíamos lição de casa juntas. Eu até consegui incluí-la no conselho estudantil. Mesmo assim, Autumn não se saiu tão bem a ponto de conseguir freqüentar as aulas avançadas, mas entrou na lista das honras comuns da escola, e, contanto que não fizesse nenhuma besteira no SAT, conseguiria escolher a faculdade de sua preferência. Depois de Chad Rivington, Autumn nunca mais teve outro namorado. Isso a salvou de várias desilusões inúteis. E eu, bem, tudo isso apenas me permitiu ser uma boa melhor amiga. O que era tudo que sempre quis ser, para começo de conversa.

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Capítulo 4

N

a segunda-feira, achei um dos meus cartazes preso na parede acima do meu armário. Na sexta-feira anterior, o mesmo cartaz estava pendurado próximo ao escritório central, com a fita adesiva original ainda presa a ele. Possuía a minha foto segurando

uma jaqueta em cada uma das mãos durante a doação de casacos para o inverno do ano passado e dizia: "Vote em Natalie, líder com experiência". Mike (obviamente) pegou uma caneta e fez alguns rabiscos às minhas custas. Ele havia feito um bigode em mim, desenhado dois pênis enormes (um em cada uma das minhas mãos) e vários pontos de interrogação flutuavam sobre a minha cabeça. Ele riscou a palavra líder e escreveu virgem por cima. E a palavra não vinha bem apertadinha antes de experiência. 0 corredor estava vazio, mas não ficaria assim por muito tempo. As salas de aula ainda estavam trancadas por causa do fim de semana, então não dava para pegar uma cadeira. Depois de pular algumas vezes em uma tentativa desesperada e sem sucesso de alcançar o cartaz, resolvi ir direto ao escritório da Srta. Bee, andando tão rápido que minhas meias três quartos começaram a escorregar. Eu esperava uma retaliação por parte do Mike Domski depois do incidente da pizza na sexta-feira, é claro. Sabia que ele ia querer me envergonhar da mesma forma como eu o envergonhei. Mas o ataque dele era pior do que qualquer mancha de óleo. Era degradante. A Srta. Bee estava em sua mesa, assoprando a fumaça que saía da xícara de cerâmica que tinha em mãos. Apesar de ter 60 e poucos anos, a Srta. Bee era bronzeada, bonita e esbelta e estava usando um vestido solto preto, uma trança com contas de vidro vermelhas e turquês, e fivelas de couro cor de mel. Seus cabelos brancos espessos eram cacheados na altura da testa, parecendo a crista de uma onda do mar, caindo nos ombros. Ela tinha uma pilha de papéis e 24


pastas à sua frente. Levou alguns segundos e uma pequena tossida fingida para ela perceber a minha presença. A Srta. Bee olhou para cima e disse: — Natalie. Que bom. Queria falar com você hoje. Entre. E feche a porta. Estava muito brava para me sentar, então fiquei em pé no escritório com a maçaneta pressionando as minhas costas. — Mike Domski desenhou em um dos meus cartazes — minha voz tremia, e eu parecia uma criancinha. Tinha ódio por Mike me dar nos nervos dessa forma. — Você tem certeza de que foi ele? — Sim — disse, olhando para o relógio na parede bem acima dela. Se não agíssemos rápido, os alunos iam começar a chegar e olhariam para o cartaz, rindo de mim. — Você o viu fazendo? — Não — respondi, sentindo meu rosto queimar — mas sei que foi Mike. E ele escreveu coisas terríveis sobre mim — pensei em contar a ela que tipo de coisas, mas estava com medo demais. — Entendi — disse a Srta. Bee colocando a xícara na mesa. — É verdade que você jogou um pedaço de pizza em Mike Domski sexta-feira passada? — Meu queixo caiu. — Sim, é verdade. Todo semestre, deixava minha orientadora louca preenchendo formulários para que pudesse freqüentar todas as aulas de história ministradas pela Srta. Bee, até mesmo as eletivas, como o Vietnã e os anos de 1960, que eram bem mais difíceis do que as outras, como cerâmica. Contudo, eram incrivelmente interessantes. Ela complementava as palestras com fotos pessoais, com recordações e até lia trechos de seu diário pessoal. Eu sempre quis impressioná-la. E agora, graças a Mike Domski, tinha feito exatamente o contrário. Ela tirou os óculos, cuja armação era preta e angular, e os guardou em uma bolsinha de seda. — Apesar de você estar chateada, devo admitir que estou feliz em ouvir essa história do cartaz. Estava preocupada com o fato de talvez ter de puni-la, mas já que Mike Domski também decidiu percorrer um caminho não tão digno nessa campanha, as infrações podem ser canceladas mutuamente — disse, inclinando-se até sua cadeira ranger. — Posso to dar um conselho de amiga, de garota para garota? — Fiz que sim com a cabeça. — Garotos como o Sr. Domski sentem-se intimidados por mulheres poderosas, Natalie. A única forma que ele tem de diminuir você é simplesmente o fato de você ser mulher. Mas você deve se manter forte e equilibrada assim como tem sido nos últimos três anos do ensino médio. Não deve permitir que ele ganhe a eleição de você. 25


Uma onda de energia tomou conta de mim. A Srta. Bee estava certa. Mike só conseguia recorrer a golpes baixos porque eu o superava em todos os outros aspectos. A Srta. Bee abriu uma gaveta e começou a procurar por algo. — Queria poder dizer que você não vai encontrar um milhão de outros Mike Domskis durante a sua vida, mas isso simplesmente não seria verdade — ela me entregou um panfleto brilhante. — Haverá uma conferência de liderança para jovens mulheres em Boston durante o feriado da primavera. Vai tratar exatamente desse tipo de desafio. A pessoa que administra a conferência foi minha colega de quarto durante o mestrado, e pode ser que eu consiga um desconto para você. No mínimo é uma oportunidade de se relacionar com algumas das mulheres mais incríveis e inspiradoras no auge de suas carreiras. Se você ainda não fez as malas para Cancun, acho que seria uma ótima experiência formativa para você. — Obrigada — respondi. Mas, na verdade, isso nem chegava perto do que eu sentia naquele momento. Caminhei até o meu armário com a cabeça erguida. O corredor começou a ficar cheio de alunos, a manhã começava a chegar ao auge da agitação. Achei uma lata de lixo vazia que pudesse ser virada para que eu subisse em cima para alcançar o cartaz e retirá-lo. Mas não precisei fazer isso. Alguém tinha passado na minha frente.

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Capítulo 5

N

o dia da eleição, sentei-me no meio de Mike e Kevin em frente a biblioteca. Kevin estava um pouco mais distante, mas Mike estava tão dolorosamente próximo que os braços das nossas cadeiras conseguiam se tocar.

Sua perna esquerda pulava para lá e para cá, parecendo uma mancha caqui, e o assoalho rangia tão alto que soava como um golpe em minha testa. Ele fazia de propósito, é óbvio, qualquer coisa para me irritar. Minha saia de preguinhas espetava minhas coxas, dando-me a maior coceira, mas eu não saía do lugar, nem um centímetro. Não queria arriscar tocar em Mike acidentalmente, nem mesmo que nossos uniformes se tocassem. Parecia que a escola inteira havia se reunido ali para ouvir o resultado. Connor Hughes sentou-se na fileira da frente, com a gravata solta ao redor do pescoço, virando-se quando alguém atrás dele começava a cantar, "Dom-ski, Dom-ski". Várias outras vozes uniam-se ao coro. O ambiente todo ficou barulhento e subitamente tive dificuldade de engolir a bala que estava em minha boca. Em um mundo perfeito, essa competição não existiria. O candidato mais qualificado venceria. Mas Mike Domski tinha muito mais amigos que eu, muito mais. Rapidamente tentei me preparar, caso as coisas não saíssem do meu jeito. Vislumbreime tendo de sorrir, apertando as mãos de Mike, pois é assim que um perdedor educado faz. Esfreguei as mãos nas pernas, estavam úmidas e frias. Por mais difícil que fosse, recusava-me a dar a Mike a satisfação de me humilhar na frente de todo mundo. Ia me proibir de chorar caso perdesse. Eu me afogaria por dentro antes de permitir que uma única lágrima rolasse pelo meu rosto. Isso seria exatamente o que ele iria querer. Natalie Sterling chorando por causa de uma eleição do conselho estudantil. 27


Perder nem seria a pior parte. O ruim seria ter de sair do conselho estudantil. Não queria isso, claro, mas o que mais poderia fazer? Decidi que a melhor atitude seria escrever uma carta de demissão à Srta. Bee em vez de falar pessoalmente com ela, assim nem tentaria me convencer a ficar. Não ia fazer isso comigo mesma. E por mais que soubesse o quanto a Srta. Bee ficaria desapontada, ela não desejava que a minha participação custasse a minha dignidade. Eu sabia o que aconteceria: Mike ficaria entediado com toda a responsabilidade e o trabalho e jogaria tudo para cima de mim. Ele tentaria fazer de mim sua secretaria particular, alguém em quem pudesse mandar. E para mim, absolutamente, não havia meio de lidar com isso. A Srta. Bee estava sentada no escritório da biblioteca. Dava para vê-la pelo vidro, de cabeça baixa, contando as cédulas. Seu cenho parecia mais cerrado do que o comum, o que me deixava preocupada por razões óbvias. Sentei-me ereta e tentei manter contato visual. — Nervosa? Mike me olhava de forma presunçosa, suas sobrancelhas grossas como taturana encontravam-se no meio da testa. Apertei os lábios e o ignorei. Um sorriso passou pelo rosto dele, e ele esfregou o queixo com a barba por fazer. É claro que Mike não ia se incomodar em barbear-se para o dia da eleição. — Tenho de dizer, Natalie, seu nível de intensidade é ardente — disse, batendo no colo estou até sentindo uma movimentação bem aqui.

Olhei para Kevin Stroop, que mantinha seu olhar preso ao chão. Podia até ter sido uma estratégia de campanha. Enquanto Mike e eu brigávamos, Kevin ganhava tudo, mas eu duvidava disso. O mais provável era que Kevin tinha medo de Mike Domski, ou ele não estava nem ar em ver um cara que dizia coisas repugnantes para uma garota. Não que eu precisasse que Kevin me defendesse. Eu podia dar conta disso sozinha. — Pare de falar comigo — disse, o que foi bem mais curto do que a resposta dura que esperava dar a ele. — Ei, deixa disso, Natalie. Só estou brincando com você — falou, esboçando um sorriso major. — Você jamais me deixaria de pau duro. Você é como um... Antídoto para o tesão. A raiva percorria todo o meu corpo, então segurei firme os braços da cadeira. Mike Domski queria me ofender, e o melhor que conseguia fazer era me chamar de feia. Precisei de todo o meu autocontrole para não lançar a maior e mais tímida cusparada bem no meio dos olhos dele. E eu teria feito isso se não fosse a Srta. Bee movimentando-se em meio à multidão, com a mão levantada chacoalhando um pedaço de papel — Muito bem! Obrigada pela paciência de todos! Vamos lá! Spencer apareceu na porta ao lado de outras garotas. Quando nossos olhares se cruzaram, ela acenou e me mandou um beijo, um gesto mais constrangedor do que 28


reconfortante. Tentei encontrar o rosto de Autumn no meio da multidão, mas, como não consegui, fiquei olhando para a parede à esquerda, em que os retratos dos antigos presidentes do conselho estudantil da Academia Ross estavam pendurados. A maior parte era composta de retratos de garotos de blazer, com um sorriso que revelava uma ambição descarada e indesculpável. Só havia algumas garotas, todas carrancudas, nada de sorriso. Senti a semelhança logo de cara. A Srta. Bee ficou na frente da biblioteca. O cheiro apimentado do seu perfume me reconfortava, só um pouquinho. — É maravilhoso ver tantos de vocês interessados no conselho estudantil este ano. Nossa primeira reunião será na segunda-feira, e espero que aproveitem esse entusiasmo para se inscrever em pelo menos um de nossos comitês. Esperei. Um sorriso vazio congelava em minha face enquanto ouvia os nomes dos vencedores. David Goss ganhou como secretário. Dipak Shah, como tesoureiro. Martin Gedge, como vice-presidente. Sorri para Martin para parabenizá-lo, e ele me retribuiu com um olhar de preocupação que me rachou ao meio. A biblioteca abafada sentia o morno aplauso das pessoas que esperavam pelo evento principal. A Srta. Bee pigarreou e o local ficou em silêncio. Tudo quieto, exceto o meu coração, que batia louca e aceleradamente. — E na eleição para o nosso novo presidente do conselho estudantil, tivemos o resultado mais apertado da minha história como orientadora. O vencedor, por apenas alguns votos, é Na... Alguém dentre os simpatizantes de Mike começou a vaiar, e eu não consegui ouvir o restante do meu nome. Não que isso tivesse importância. De algum lugar do fundo da sala, Autumn veio rapidamente em minha direção, impedindo a passagem da multidão com a sua enorme mochila. O cabelo dela estava na frente do rosto todo, e ela gritava o máximo que conseguia. Levantei-me, sorrindo tanto que até doía. Autumn me abraçou com muita força, e balançamos tanto que quase caímos no chão. Pulamos para cima e para baixo, sem parar, nós duas, gritando e rindo. Percebi que Mike estava de pé com seus amigos. Connor sorriu para mim. Creio que achou minha comemoração engraçada. Mas Mike não conseguia esconder sua repulsa. Separei-me de Autumn e fiquei bem na frente dele. Sabia que minha camisa branca estava com enormes marcas de suor na parte das axilas, mas eu não estava nem aí. Depois de rapidamente prender meu cabelo em um rabo de cavalo, estendi a mão e esperei o aperto de Mike. — Você não vai me parabenizar? — disse no tom mais sarcástico que consegui. Todos os amigos dele estavam ouvindo. Connor Hughes. Todo mundo. E eu estava adorando cada segundo. 29


Mike olhou para a minha mão e tirou sarro. — Parabéns por ser o tipo de fracassada para quem esse tipo de coisa é realmente importante. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Autumn me tirou de perto e perguntou: — Tudo bem, Srta. Presidente? — e começou a massagear minhas costas como se fôssemos lutador de boxe e treinador depois de uma longa luta. A biblioteca começava a esvaziar, mas ainda havia vários alunos que ficaram por perto para me parabenizar. O momento pareceu-me tão adequado, tão Belo. Como o destino. Como todos aqueles momentos que alteram a nossa vida devem ser: fáceis.

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Capítulo 6

M

ais tarde, naquela noite, fui buscar Autumn. Era para ser, pelo menos para ela, uma sexta-feira típica – alugaríamos algum filme da nossa lista (estávamos tentando completar a lista dos 100 melhores filmes da AFI 6 que eu havia recortado e

plastificado com todo critério no escritório da minha mãe), seguida por lanches, depois máscaras faciais ou manicure e então por qualquer programa sem graça na televisão que assistiríamos até cair no sono. Só que eu tinha ouvido no rádio durante o café da manhã que Um Bonde Chamado Desejo estava passando em um pequeno cinema independente em uma das cidades vizinhas. Na verdade, não era o próximo filme da nossa lista, mas a chance de ver um deles na tela grande era excitante demais para deixar passar. Além disso, tornaria a noite especial, considerando que eu tinha ganho a eleição há apenas algumas horas. Mesmo com o ar-condicionado do carro ligado, tudo parecia melado. O tempo em setembro sempre nos deixava sem saber, alguns dias eram quentes como o verão e outros frios como o outono. Buzinei e Autumn veio correndo de jeans e um agasalho que eu havia comprado para ela em uma das minhas visitas às faculdades. Senti-me um pouco mal, pois vestia uma saia de veludo vermelha, uma blusa preta de gola careca e as pequenas pulseiras prateadas que a vovó me deu quando fiz 16 anos. Não que eu precisasse me arrumar, mas esse cinema, em particular, era muito diferente do complexo dentro do shopping Center Summit. Eles serviam vinho e petiscos, como pipoca caramelada e barras de chocolate. Uma cortina de veludo vermelha escondia a tela até um pouco antes de o filme começar, e os trailers dos filmes eram em francês e italiano. 6

American Film Institute, uma organização independente e sem fins lucrativos de filme.

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Autumn soube que eu estava aprontando alguma coisa assim que me viu. – O que está acontecendo? – ela perguntou, sorrindo. – Aonde vamos? - É segredo – respondi, provocadora. - Mas você está tão bonita. É melhor eu trocar de roupa? Eu devia ter dito sim, mas se Autumn era tão lenta para se arrumar para a escola, quem diria quando tinha de realmente escolher uma roupa para sair. De qualquer forma, ela estava sempre bonita. Balancei a cabeça e disse: - Não se preocupe, você está ótima. Decidi pegar a estrada secundária e deixar Autumn sem saber – um labirinto repleto de montanhas e ruas sinuosas que faziam nossos estômagos revirar, mas eu acelerava na hora certa. Juntas, cantamos todas as músicas que tocavam, o meu rádio patético estava tão alto que os falantes chiavam. Sentia meu coração leve, animado pelo alívio de ter ganho a eleição e pela surpresa de Autumn. Não parecia que estávamos dentro do carro, tínhamos a sensação de estar flutuando. Autumn não parava de tentar adivinhar quais eram os nossos planos. Então, apontou para um lugar pela janela e ficou toda animada. - Nem me diga! Nós vamos festejar! – disse ofegante. Suas palavras não fizeram sentido para mim a princípio. Não estávamos nada perto do cinema. Tive de descer das nuvens e olhar ao redor para entender. Havia carros por toda a extensão do acostamento, estacionados com pressa, como se o estoque de cerveja fosse acabar a qualquer momento. Reconheci alguns por causa dos adesivos da Academia Ross. A música vinha de uma pequena casa da rua, apinhada de gente. Algumas pessoas estavam conversando no gramado, cobertos pela folhagem de outono que ninguém havia se importado em recolher. Tudo o que eu consegui dizer foi: - Você tá de brincadeira? – Como é que Autumn podia imaginar que eu a levaria a uma festa? - Então... não é isso que nós vamos fazer hoje à noite? – disse ao mesmo tempo em que a excitação se esvaía de seu rosto. Balancei a cabeça. Apesar de não querer estragar a surpresa, expliquei o que havia planejado. Tentei parecer animada ao descrever os petiscos sofisticados e a cortina de veludo, mas Autumn não pareceu interessada. Ela não parava de olhar para a rua enquanto passávamos pela casa em que havia a festa. 32


Finalmente, ela se virou para mim e disse: - E se a gente simplesmente entrar? - Por que faríamos isso? - Não sei. Para deixar todo mundo louco? Não no mau sentido. Seríamos como... Celebridades ou convidadas especiais ou algo assim. Além disso, nunca fomos juntas a uma festa antes, e parece ser algo que provavelmente devêssemos fazer antes de nos formarmos, certo? E você está tão bonita hoje. Não conseguia acreditar nas suas palavras. Se havia uma coisa no mundo todo que eu não queria fazer era aparecer de surpresa em uma festa de escola para a qual não tivesse sido convidada, cheia de pessoas de quem nem gostávamos. E Autumn estava iludida; achava que seria recebida de braços abertos. Sem falar que eu tinha feito planos melhores para nós. Mas nem precisei explicar tudo isso. O que fiz foi apontar para um garoto que estava ajoelhado na calçada, vomitando em um arbusto. - Uau. Parece mesmo que estamos perdendo a maior diversão. - Devíamos estacionar para ver se ele está bem, não acha? Olhei para o relógio. Ainda tínhamos um bom tempo para chegar ao cinema, mas eu estava preocupada com o fato de Autumn tentar sair correndo para a casa se parássemos para ver o garoto e eu acabasse tendo de correr atrás dela. Então, depois trancar as portas, parei o carro e abaixei o vidro. - Ei. Você aí, vomitando... está tudo bem? O garoto não disse nada, nem mesmo olhou em nossa direção. Em vez disso, acenou e fez sinal de positivo com as mãos. Virei-me para Autumn, dizendo: - Podemos ir agora? - Acho que sim – ela disse, rabugenta. Então, desligou o rádio, abriu o vidro e esticou o corpo para fora para sentir a música que a brisa trazia. ―Acho que sim‖ era uma resposta suficiente boa para mim. Não ficaria ali esperando, dando a Autumn a chance de mudar de idéia. Autumn gritou quando eu pisei no acelerador. Pisei no freio o mais rápido e forte que pude, fazendo com que o carro parasse de 33


repente. Os faróis do carro balançavam para cima e para baixo na rua escura. Quatro garotos bêbados estavam paralisados na frente do meu pára-choque. Mike Domski, Scott Philips, Paul Zed e James Rocker. - Olhe por onde você anda! – gritei, sentindo minha mão tremer ao apertar a buzina. O cheiro de borracha queimada pairava no ar. A movimentação dos rapazes iniciou-se com uma risada barulhenta ao perceberem que tinham acabado de escapar da morte. Tentei mover o carro para frente, mas fui impedida pela barreira humana, forçada a testemunhar sua comemoração embriagada. Eles se abraçaram mutuamente e disseram em coro: ―Caramba, mano!‖ Mike Domski jogou uma cerveja de lado e começou a subir no meu capô, fazendo movimentos sexuais. - Saia do meu carro – gritei. - Estou tentando! – gemeu. – Ah, Deus! Estou tentando! Depois de fingir ter levado o meu Honda ao orgasmo, os garotos voltaram para a festa rindo. - Parece que Mike já superou a perda da eleição – disse Autumn, tentando amenizar o clima e acrescentou: - Tem certeza de que você não quer ir? - Por que você não vai sozinha? – perguntei com raiva, mas não consegui evitar. - Deixa para lá – disse Autumn, soando como quem não ia sair do lugar. Alguém todo desarrumado deu alguns passos em nossa direção. Connor Hughes. Ele parou para ver dentro do meu carro com um olhar de curiosidade. O corpo dele exalava cerveja quente e amarga. - Há uma vaga no fim da rua – disse, apontando para a escuridão. Os dedos estavam enroscados nos buracos do casaco. Nossos olhares se cruzaram por uma fração de segundos. Os olhos dele eram azuis e lacrimejavam por causa da bebida e por estar fazendo sei lá o que mais. - Obrigada pela dica – disse com sarcasmo, então pisei fundo no acelerador. Autumn virou-se em seu lugar, e isso poderia ser interpretado como um convite. Olhei pelo retrovisor e não vi mais nada, apenas a noite. Meu batimento cardíaco começou a diminuir. - Vamos nos atrasar para o filme. Autumn ajeitou-se no banco, bufando de raiva: - Sabe, não há problema algum em ser 34


espontâneo. Nem me preocupei em responder. Apenas dirigi o mais råpido que pude para me afastar daquela casa.

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Capítulo 7

O

restante da minha semana foi um tédio. Autumn não dormiu na minha casa na sexta nem no sábado, mas apareceu no domingo para fazermos juntas alguns simulados para o SAT. Dava para perceber a sua falta de concentração. Sempre que olhava em

seu rosto, ela estava espiando pela janela da cozinha, mesmo com o cronômetro acionado, e pelo menos cinco páginas atrás de mim. Obviamente, os simulados não eram o mais legal a se fazer, mas o SAT seria em menos de um mês e queria que estivéssemos o mais preparadas possível. Não que tenha sido sempre assim, pois, apesar de ter praticado meu discurso incontáveis vezes, estava muito mais nervosa do que pensei que estaria para a primeira reunião do conselho estudantil na segunda-feira. Não parava de lembrar a mim mesma que o estresse da eleição já tinha passado. Eu havia vencido Mike Domski e agora podia finalmente começar a trabalhar. Antes de ir para a reunião, queria me refrescar e dar uma organizada em tudo. O lugar perfeito para isso era o banheiro feminino da sala dos professores. As outras garotas evitavam usá-lo por medo de serem pegas falando ao telefone ou fumando, mas a falta de uso significava que estava sempre mais do que limpo. As saboneteiras estavam sempre cheias de sabonete líquido cor-de-rosa, e constantemente havia papel higiênico e papel-toalha sobrando. Era o meu lugar predileto para fazer xixi. Era como um banheiro para garotas executivas. Mas eu não estava sozinha. Abri a porta e vi Spencer ajoelhada em cima do aquecedor. Ela estava se esticando toda até o teto, como se estivesse fazendo um estranho exercício de yoga. Sorri para ela e coloquei minha bolsa na bancada de uma pia seca. - Shhhh! Spencer fez sinal de silêncio, colocando o dedo na frente da boca e apontou a cabeça para o respiro do teto. Havia uma camada de poeira em cada uma das fendas. Ela sussurrou: - A Sra. Dockey está falando mal do diretor Hurley por ele não ter aprovado o 36


orçamento para os figurinos do musical da escola. Chegou a dizer que não pode estrelar O mágico de Oz com malditos lençóis e sacos de estopa idiotas! Tentamos segurar o riso, mas era praticamente impossível. A Sra. Dockey tinha uns 80 anos de idade e falava de uma forma completamente macia. Não dava para imaginá-la falando dessa forma. Contudo, levava suas produções teatrais muito a sério. Procurei minha escova na bolsa para dar um jeito nos nós do cabelo. Certifiquei-me de que a fita estava bem colocada em minha cabeça. Passei batom. Mais pronta que isso impossível, mas por dentro meu estômago revirava. Nunca tinha tido a chance de aparecer dessa forma, de ser líder. - Segui seu conselho – disse Spencer. – Viu? – Ela saiu de perto do aquecedor e levantou a saia, mostrando a roupa de baixo de cetim cor-de-rosa, com várias franjas no bumbum. – Na verdade, isso é parte da minha fantasia do can-can que apresentei no show Moulin Rouge. Sorri. Não aquele sorriso que mostra os dentes, mas aquele só com os lábios. Era... uma melhora relativa. Mas tinha que dar algum crédito a Spencer. Se ela usava roupas daquele tipo para dançar, provavelmente não ficaria nervosa em ter que apresentar um discurso ao conselho estudantil. - Então, parabéns por ter vencido a eleição. Algumas garotas do meu grupo estavam planejando votar em Mike porque ele é bonito, mas eu as forcei a votar em você. - Obrigada – disse, e coloquei a camisa para dentro da saia. - Vi o que Mike escreveu no seu cartaz – falou, balançando a cabeça com desaprovação. – Mas acho que você não pode culpá-lo por isso. Será que foi Spencer quem tirou o meu cartaz? Virei-me para ela e perguntei: - O que você quer dizer? Ela amassou os cachos do cabelo olhando no espelho, dizendo: - A tensão sexual faz os caras agirem como perfeitos idiotas. Ergui a sobrancelha. Com certeza havia tensão entre Mike Domski e eu, mas não tinha nada a ver com sexo, nem chegava perto disso. Spencer piscou para mim, como se eu estivesse sendo modesta. – Mike está louco para transar com você. É tão óbvio. Balancei a cabeça e falei: - Hmm, não, ele não está. Nós nos odiamos. - Mesmo? - Mesmo. 37


- Então, tá. Talvez ele te odeie por fora – concordou Spencer -, mas, por dentro, a coisa vai muito mais além. – Ela bateu o dedo na boca algumas vezes pensando. - Ele jamais vai conseguir ter uma garota como você. Você é muita areia para o caminhão dele, e ele quer morrer por causa disso. E toda a frustração explode, fazendo com que ele aja dessa forma. Honestamente, é bem típico dos garotos. Era legal ouvir Spencer dizer elogios sobre mim, mesmo eu não tendo a mínima idéia do que ela estava falando. Mas me dava nos nervos ouvi-la analisando Mike e a mim daquela forma. Quem era ela para saber de tensão sexual? Ela só tinha 14 anos. Fechei a mochila e a coloquei nos ombros. Não queria ser a última a chegar na biblioteca, parecendo irresponsável. Mas Spencer se inclinou na pia ao lado da minha, impedindo minha passagem. Queria conversar. E talvez fosse legal ser a garota por quem todos estavam esperando. Fazer uma entrada dramática. Acho que podia ficar mais alguns minutos. - Então, Spencer, como vão as aulas? – perguntei. - Bem legais. Gosto de tudo, menos de História da Civilização Moderna. - Fiz essa aula no primeiro ano. Na verdade, não é tão difícil, contanto que você não se atrase nas leituras. - O maior trabalho é a professora – Spencer reclamou. - O quê? Você tá brincando? A Srta. Bee é demais. É a melhor professora de toda a escola. Spencer olhou-me de forma questionadora. – Ela não gosta de mim. - Tenho certeza de que gosta – disse, mas, na verdade, havia uma parte de mim que achava que talvez Spencer tivesse razão. A Srta. Bee era uma professora difícil, e era bem dura com as meninas. Gostava disso nela, mas com certeza não aprovaria a travessura da roupa de baixo chamativa de Spencer. - Você tem de mostrar seu interesse em aprender. Se ela achar que você não está interessada, então não vai querer saber de você. – Temia que este fosse o maior problema de Spencer. Ela estava se concentrando nas coisas erradas. – Você já se inscreveu em algum clube? - Ainda não. Estou avaliando minhas opções. – Era algo estranho de se dizer, pois o que havia para ser avaliado por Spencer? Se você queria participar de um clube, era só participar. Não havia limite para esse tipo de coisa. – Queria mesmo que a escola tivesse um clube de dança. - Bem, se você fizer parte do conselho estudantil, pode fazer essa proposta para o corpo diretivo da escola. - Sério? Os alunos têm poder para fazer isso? – ela perguntou e eu concordei. – Isso é demais. Talvez eu vá à primeira reunião. É amanhã, certo? - É hoje. Na verdade, daqui a cinco minutos. – Como é que ela não sabia disso? 38


Spencer esta na biblioteca na sexta-feira quando a Srta. Bee anunciou a reunião. E havia anúncios pendurados por todos os corredores da escola, eu mesma os tinha pendurado. Ela fez uma careta. – Droga. Minha mãe vai me levar ao estúdio de dança em Main para que eu me inscreva em algumas aulas. - Não se preocupe. Você ainda pode participar do conselho estudantil mesmo se perder a reunião de hoje – disse, sorrindo. – E você me conhece, estão está numa posição privilegiada. - Ohh! Então você é a pessoa perfeita para me responder isso. É verdade que podemos usar roupas normais nos dias de jogos? Ouvi alguém dizendo isso no corredor. - Sim, desde que as cores sejam iguais às da escola. - Legal. Algumas das minhas colegas e eu estávamos pensando em desenhar nossas próprias camisetas. Sabe, para mostrar o espírito da escola. O entusiasmo dela era uma surpresa agradável. – Você definitivamente precisa se reunir com o representante da classe. Vamos decidir quem será hoje, na reunião; então ainda não sei quem é, mas me procure amanhã e te digo. Ele, ou ela, será responsável pela organização das decorações dos corredores para a turma dos calouros. Tenho certeza de que sua ajuda seria bem-vinda. O dia de abertura dos jogos é levado bem a sério por aqui – disse enquanto verificava se minhas anotações ainda estavam no bolso da minha camisa. – E planejei coisas bem animadas para as festividades deste ano, de verdade. Vai ser algo épico. - Legal – Spencer mordeu o lábio. – Desculpe, Natalie. Sinto como se estivesse desapontando você de alguma forma. Queria muito poder comparecer hoje. Também queria que ela pudesse. Não que o envolvimento com a dança não fosse uma boa, mas tinha a sensação de que Spencer podia se beneficiar mais participando de uma atividade escolar mais tradicional. Uma em que não fosse preciso usar figurinos sexies. – Bem, vou me atrasar e isso não seria nada bom. Spencer soltou um suspiro profundo e feliz. – Ainda não consigo acreditar na sorte que tive em ter você como babá, e agora, automaticamente, sou amiga da presidente do conselho estudantil. Com certeza, não dá para ficar melhor que isso. Senti que estava corando. - Boa sorte, Natalie! – ela disse, levantando a mão para fazer high Five7. Não consegui me lembrar da última vez que havia feito algo assim. Quando bati na mão de Spencer, o som foi maravilhoso.

7

Quando duas pessoas batem as suas mãos levantadas.

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Capítulo 8

A

s cabeças se viraram para me ver entrar na biblioteca. Ainda faltavam alguns minutos, mas a sala já estava cheia. Várias mesas de madeira foram unidas formando um enorme retângulo. Procurei um lugar vazio, até que me lembrei que o meu era aquele

bem na frente da sala. - Por onde você andou? – Autumn perguntou. - Estava conversando com Spencer no banheiro, tentando convencê-la a participar do conselho estudantil. Acho que ela se beneficiaria muito com isso – e então tive uma ótima idéia. – Acho que você deveria falar com ela, Autumn, dizendo-lhe como foi bom para você. Ela entortou a boca e perguntou: - O que você quer dizer? Dava pra ver que estava ficando brava, e achei que não era o melhor momento para começar uma conversa sobre o incidente da isca de peixe. – Deixa para lá – respondi. Pensei em pedir para alguém trocar de lugar para que Autumn ficasse ao meu lado na frente, mas antes que conseguisse fazer isso, ela pegou uma cadeira na última fila, perto da porta. O que era uma droga, mas provavelmente era o que devia ser feito. Não queria parecer estar favorecendo minha melhor amiga. E se ela quisesse mesmo se sentar na frente, teria que ter competido para o cargo de vice-presidente, como eu havia sugerido. Dipak estava em uma luta com as persianas de plástico da janela, puxando-as até caírem, expondo a biblioteca à fraca luz do sol de setembro. Lá fora, as copas das árvores – em tons de vermelho vivo, laranja e amarelo – queimavam o vidro espesso das janelas. Martin aproximou-se e disse: - Tem muita gente por aqui, não acha? Concordei e tentei não prestar atenção na pequena caspa que pairava em um tufo do fino cabelo preto de Martin. 40


A Srta, Bee fechou as portas e a conversa diminuiu. Ela acenou com a cabeça para que eu começasse. Levantei-me e segurei minhas anotações. - Olá a todos. Obrigada por virem – disse, projetando a voz da melhor forma possível, e então fui para o próximo cartão. Eu devia ter escrito mais de uma frase em cada um deles, mas minha caligrafia era muito feia e queria ter certeza de que conseguiria ler tudo. – Estou emocionada por ter sido eleita presidente do conselho estudantil da Academia Ross e declaro esta nossa primeira reunião aberta – algumas pessoas aplaudiram, o que causou uma boa sensação. - Vai ser um ano muito estimulante e agitado, com muitas expectativas a nossa frente. Todos os que participaram do conselho no ano passado sabem que minha responsabilidade é imensa – citei com orgulho a lista das muitas realizações de Will Branch, o presidente anterior. Além dos deveres comuns de presidente do conselho estudantil, Will também criou a sala dos veteranos com sofás de couro, militou contra a proibição de The chocolate War8, incitando uma reunião secreta do corpo diretivo e fazendo uma greve branca inspirada em Ghandi, e coordenou um jogo de basquete entre alunos e professores para angariar fundos para um aluno com leucemia. Will presidiu mirando alto, mas eu queria ir ainda mais longe. – Não se preocupem – falei -, também tenho idéias inovadoras. Incluindo... Nesse momento, a porta rangeu lentamente ao ser aberta, e Spencer enfiou a cabeça para dentro. Ela tentou entrar em silêncio, mas todos se viraram para olhar. – Desculpe! – falou, e foi pedindo desculpas para atravessar a sala, passando por vários assentos livres até encontrar um lugar para sentar, apertada, à mesa. Obviamente, não foi o melhor momento. Mas não conseguia ficar brava. Estava feliz por Spencer ter aparecido no fim das contas. Não só estar lá, mas ter forçado a sua presença na frente, local em que ficavam os alunos mais velhos. A garota era destemida. Sorri e fui para o próximo cartão. - Para as festividades de abertura dos jogos, decidi que meu primeiro ato como presidente do conselho estudantil será nossa primeira fogueira, que ocorrerá imediatamente após o time de futebol destruir o da escola Saint Ann. – Os cochichos imediatamente dominaram o ambiente. Era exatamente essa a reação que eu esperava. - Prometi trabalhar o máximo possível para elevar a Academia Ross a uma posição melhor, mas não posso fazer isso sozinha. Vou precisar que vocês se inscrevam no máximo 8

Romance juvenil publicado pela primeira vez em 1974 e adaptado para filme em 1998. Não há publicação em língua portuguesa. Favor tradutoras, será que a gente consegue fazer este?? rsrs

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possível de comitês e se unam a mim, que me ajudem. Juntos, sei que seremos capazes de realizar grandes coisas. Obrigada. – com um aceno de cabeça, sentei-me e ouvi mais uma rodada de aplausos. David pegou o meu lugar no palanque e explicou a lista de comitês que precisavam de membros imediatamente, começando com os de celebração aos jogos. Dipak falou sobre a situação da tesouraria: fraca. Resisti ao desejo de fazer cara feia para Kevin Stroop. E isso, explicou Dipak, poderia possivelmente anular meus planos em relação à fogueira. - Não me leve à mal – ele disse -, acho a idéia legal, mas como vamos pagar por isso? Precisaremos de autorização, comprar a madeira e... - Estamos isentos da tarifa de autorização – expliquei. – Já resolvi isso com o corpo de bombeiros do bairro. – Claro que tinha resolvido isso. Não teria sugerido a idéia se não tivesse pelo menos refletido um pouco, e não estava gostando do tom condescendente de Dipak. Não havia pensado, porém, em como pagaríamos pela madeira. – Vamos tentar conseguir um patrocinador para a fogueira – comentei. - Não sei se isso funcionaria de acordo com as regras da Academia Ross – disse a Srta. Bee. – Você sabe que o corpo diretivo não aprovou as máquinas de refrigerantes há alguns anos. Spencer pigarreou: - Podíamos vender kits para assar marshmallows e cachorros-quentes. Isso ajudaria a contrabalançar os custos. - Que idéia maravilhosa, Spencer – disse. Sério mesmo, estava impressionada. Dipak balançou a cabeça: - Contrabalançar é um bom começo. Mas, para começo de conversa, nem temos um fundo de caixa. A sala ficou em silêncio. Senti a minha idéia se esvaindo como fumaça. Autumn levantou a mão. Você não precisa acenar com a mão para ter a palavra em reuniões do conselho estudantil, mas era tão raro Autumn falar, que provavelmente nem tinha percebido isso. – E se falássemos com Connor Hughes? Talvez ele possa fazer uma doação. Tive vontade de dar um beijo nela. Era a solução perfeita. A família de Connor era proprietária da Fazenda Hughes de Árvores de Natal. Seria bem provável que tivessem várias toras para nos doar. O restante da reunião seguiu com leveza. Anotei todos os detalhes e adorei a forma como as pessoas ali me viam, como falavam olhando em meus olhos. Eu era o centro das atenções. 42


A Srta. Bee ficou surpresa quando Spencer levantou a mão para ser a representante dos calouros. E talvez tenha sido até um pouco exagerado, mas ela se inscreveu em quase todos os comitês e grupos. Depois da reunião, a Srta. Bee perguntou se poderia falar comigo um minuto. Ela me levou até a parede dos retratos, longe de todos os demais. - Adorei a idéia da fogueira, Natalie. Lembrei-me dos meus dias de faculdade. Você está mesmo pensando além. E estou ansiosa para ver os outros projetos que irá propor este ano. - Obrigada, Srta. Bee. Ela se aproximou um pouco mais. – Não queria te contar isso antes, caso algo terrivelmente injusto acontecesse e você não ganhasse a eleição. Mas houve apenas oito mulheres presidentes do conselho estudantil na história da Academia Ross, e nenhuma desde que eu voltei para dar aula aqui há onze anos. O que, honestamente, como uma mulher que se importa de forma profunda com esse tipo de coisa, fez com que eu me sentisse um fracasso completo. Virei-me para dizer alguma coisa, mas a Srta. Bee ficou ali em pé, admirando a parede com fileiras de retratos levemente empoeirados dos antigos presidentes do conselho estudantil. Levei um segundo para perceber que o retrato dela estava bem na minha frente. Sabia que a Srta. Bee tinha se divorciado do marido, um professor de filosofia há vários anos. Eles moraram no exterior e nunca tiveram filhos. Depois da separação, ela voltou para a cidade em que havia crescido, Liberty River, e começou a dar aulas na Academia Ross. Ela foi bonita no passado. Cabelos negros presos com fivela, olhos escuros, brincos de pérola. Em seu retrato mais ria do que sorria, uma sobrancelha arqueada com um tom travesso. Nancy Bee. A Srta. Bee apontou para o espaço vazio na parede ao lado do último retrato, o de Will Branch. Infelizmente, ele havia piscado na pior hora possível. Imaginava se em dez anos as pessoas iriam pensar que ele fosse cego. – É aqui que o seu retrato vai ficar, Natalie. É um clube exclusivo, mas sei que você será um membro maravilhoso. E será conhecida para sempre como a número nove. Parecia, no momento, a melhor forma possível de ser lembrada.

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Capítulo 9

T

odos os alunos da Academia Ross têm um endereço de e-mail fornecido pela escola. Olhei na lista para encontrar o de Connor Hughes e digitei uma pequena mensagem para ele sobre a madeira para fogueira e pedi que me enviasse, por favor, uma

mensagem em resposta para que pudéssemos discutir os detalhes. Pensei em passar-lhe o número do meu celular, mas decidi não fazer isso. Não precisava do meu número espalhado por aí dentre aqueles caras, sendo alvo de trotes no meio da noite após a bebedeira. No dia seguinte ele não havia respondido. Olhei no fim de cada aula até a hora do almoço, quando o vi na mesa de pingue-pongue da lanchonete com ninguém menos que Mike Domski e mais alguns parasitas como Marci Cooperstein. Spencer pegou no meu braço. – Lá está ele, Natalie. Vá falar com ele. – Estávamos organizando o material de arte e cobrindo as mesas com papel craft para deixar tudo preparado para os alunos pintarem os cartazes para a abertura dos jogos após a aula. Teria preferido falar com Connor quando ele estivesse sozinho, mas precisava saber sobre a situação da madeira o mais rápido possível, pois o sucesso da fogueira dependia disso. E não queria que Spencer pensasse que me sentia intimidada pela presença de Mike Domski. - Talvez seja melhor eu ir com você – Spencer estava toda animada com essa possibilidade. – Daria o meu braço esquerdo por uma chance de falar com Connor Hughes. Ele é... profanamente sensual. Parece que foi criado à base de leite e bolinhos caseiros de amora. Connor era mesmo bonito. Não havia uma coisa que se sobressaía nele, era como se todo o conjunto criasse uma bela harmonia. Seu jeito era muito tranqüilo, parecia não se importar com nada no mundo. E provavelmente não se importava. Mas Spencer e Connor? Ou Spencer e qualquer um daquele grupo, para começo de conversa? Péssima idéia. Terrível idéia. – Vá colocar esses materiais no armário e me encontre aqui – disse a ela. Spencer fez uma cara de decepção ao tentar colocar todos os materiais em seus braços, 44


mas assim o fez. E, depois de respirar fundo, fui falar com Connor. - Ei. Você recebeu meu e-mail? Connor terminou a jogada, batendo a bola com toda força antes de se virar para mim. A força do seu movimento fez o meu cabelo esvoaçar. – Sim. Recebi. Vou trazer a madeira na sexta de manhã, sem problemas. A voz dele era rouca, como se tivesse começando uma dor de garganta. E não parecia ter vindo de sua boca, mas de algum lugar mais quente, como se tivesse saído do fundo do peito. Parecia meio enferrujado, o que fazia muito sentido, pois Connor não era o tipo que falava muito. Mike jogou a bola para Connor, mas ficou presa na rede. Peguei-a para ele. – Ótimo. Estava preocupada se teria de pensar em um plano B. Todo mundo está muito animado com a fogueira. Pode até ser que vire uma tradição da escola – sei que pareceu forçado, mas não podia perder a oportunidade de esfregar isso na cara de Mike Domski. E, na realidade, esperava que o restante das pessoas ao redor da mesa mostrasse uma reação positiva. Menos Marci – a garota não me suportava -, mas os outros jogadores de futebol, pois seriam eles quem mais se beneficiariam. A coisa toda estava acontecendo praticamente por causa deles. Só que a expressão em seus rostos era de austeridade e de falta de entusiasmo. Mike Domski balançava a raquete para mim, tentando fazer com que eu saísse do caminho e o jogo continuasse. Só que eu não saí. Fiquei parada, pois sabia que aquilo ia deixá-lo com raiva. – A madeira

vai

chegar

aqui

na

sexta

de

manhã?

questionei

Connor.

Ou

à tarde? Só quero confirmar os detalhes com você para que possa coordenar tudo com o bombeiro, tirando de vez essa pendência da minha lista de coisas a fazer. Connor riu. Mas não de um jeito em que talvez estivesse se solidarizando com o tempo e o esforço que eu estava dispensando para que tudo fosse feito. Riu como se eu tivesse acabado de contar uma piada. – Pode considerar confirmado, RSVP feito ou coisa do gênero. – Então ele jogou a bola no ar para sacar. Mas acho que ele viu que eu estava brava, pois não sacou. Ele a pegou no ar em vez disso. – Sério, Sterling, prometo. Você receberá a madeira na primeira aula. - Mano – disse Mike, fingindo sussurrar -, Natalie quer a sua madeira, desesperadamente. Todos abafaram o rido, incluindo as garotas. - Não preciso da madeira de ninguém. Posso pagar pela minha própria madeira 45


retruquei, expondo a minha óbvia irritação. Foi só quando percebi que todo mundo estava morrendo de rir que entendi o que ele quis dizer. Saí de lá o mais rápido possível e fantasiei um trágico acidente em que os órgãos genitais de Mike pegavam fogo.

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Capítulo 10

N

a manhã da abertura dos jogos eu estava ansiosa demais para tomar café da manhã. Honestamente, era cedo demais para eu fazer isso. O céu ainda estava escuro quando peguei Autumn, que dormiu no banco do passageiro com a cabeça recostada no cinto

de segurança durante todo o percurso até a escola. Talvez seja a minha personalidade perfeccionista e obsessiva, mas tive que cuidar de todos os detalhes. Não queria dar nenhuma chance para o azar, não quando todo o sucesso da abertura dos jogos dependia totalmente de mim. Além do mais, havia elaborado um projeto bastante ambicioso para a sala dos veteranos. Então, durante duas horas antes do início das aulas, trabalhei como nunca em minha vida. Autumn tinha subido numa cadeira que pegou emprestada da sala do Sr. Darby, professor de literatura comparada. Esticando-se o mais que conseguia, ela levantava a ponta do papel crepom azul um centímetro por vez. – Você quer que eu pegue uma régua? – brincou. Ignorei a brincadeira, pois estava estressada demais e Autumn deveria saber como aquilo era importante para mim, e olhei no meu relógio. Só tínhamos quinze minutos para terminar tudo. Peguei um pedaço de fita adesiva com os dentes e prendi os cantos na parede. Depois levei as mãos à boca e gritei do corredor: - Vamos amarrar bexigas nas grades de todas as escadas, ok, Carlie? Carlie Glaskov, usando o uniforme de líder de torcida, manejava o botijão de gás hélio que eu tinha conseguido como doação do supermercado. Uma bexiga azul brilhante saiu do botijão, mas em vez de dar nó, ela o colocou na boca e aspirou, respondendo: – Entendi, Natalie! – A voz dela parecia a de um rato de desenho animado, e ela deu uma gargalhada tão grande que ficou até vermelha. – Vamos lá, veteranos! - Vamos lá, veteranos! – repeti, meio assustada. – Dá uma olhada nela, tá bom? – 47


sussurrei para Autumn e percorri o corredor, recolhendo pedaços de fita adesiva, fita de tecido e bexigas estouradas. Uma hora antes de evento, um grupo de veteranos que não fazia parte do conselho apareceu para ajudar na decoração. Ótimo para elevar o ego. Até mesmo membros da turma dos populares, como Carlie. Sabia que ele tinha votado em Mike Domski, mas ela tinha vindo mesmo assim. Cheguei ao fundo do corredor, abri a cabine do telefone público e me sentei no banco dentro dela. Olhei para o corredor e fiquei ali, admirando tudo. O corredor dos veteranos estava maravilhoso, parecia um doce colorido branco e azul-marinho. Cobrimos com fita cada centímetro daquele lugar: os armários, o chão, o teto. Parecia um cenário da fábrica de chocolates de Willy Wonka9 ou de um parque de diversões. Mas, na verdade, isso não era nada comparado à minha fogueira. Dipak veio pulando pela escada. - Ei, como estão os outros corredores? – perguntei. Não tinha conseguido vê-los. Dipak arregaçou as mangas do casaco do uniforme da Academia Ross e disse: - Bem, o segundo ano fez uma decoração cheia de penas. Rasgamos uns travesseiros e espalhamos tudo pelo chão. Mas estou meio preocupado que pareça que tenhamos matado alguma águia bem ali no meio do corredor. O pessoal do terceiro ano é fraco, só fizeram uns dois cartazes. – Mas eu estava mesmo bem impressionada com os calouros. Eles criaram jornais com manchetes sobre a vitória da Academia Ross – sorri ao vê-los. Spencer tinha dado várias dicas durante a semana toda sobre ter planejado algo muito especial. – Mas nenhum corredor ganha dos veteranos – ele disse -, ninguém nem chega perto. Era exatamente o que eu esperava ouvir. E agora só havia mais uma coisa a ser verificada: - Você viu se o Connor trouxe a madeira da fogueira? – perguntei. - Acho que ele ainda não chegou – Dipak deu de ombros. - Eu devia ter ligado ontem para lembrá-lo – odiava ter de depender de outras pessoas, sempre acabava me decepcionando. - Você tem o telefone de Connor? – Dipak perguntou, surpreso. - Não – admiti, sentindo-me um pouco insultada. Era tão improvável assim que o tivesse? – A Fazenda Hughes de Árvores de Natal está na lista telefônica. A Srta. Bee apareceu no corredor. Trajava um elegante vestido azul-marinho, sapatos 9

Willy Wonka é o personagem principal do filme A Fantástica Fábrica de Chocolate.

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de couro e salto alto e vários colares com enormes pérolas brancas, unindo igualmente os espíritos de animação e inteligência da escola. Pensei se alguém como a Srta. Bee teria calças de moletom. - Natalie, me diverti muito caminhando pelos corredores hoje. A escola está maravilhosa – disse, colocando a mão no meu ombro. – Creio que o bombeiro está planejando vir em algum momento durante a segunda e a terceira aula para dar uma última olhada na fogueira antes de assinar a autorização. Você sabe se já está tudo pronto? - Tudo vai ficar pronto – prometi. Pelo menos, esperava que estivesse. Um pouco depois, Autumn veio correndo. Ela empurrou meus ombros e me encurralou contra meu armário. - O que você está fazendo? – perguntei rindo. - Pintando seu rosto! – disse, pressionando a ponta de um lápis branco contra a minha bochecha. – Você ainda não entrou totalmente no espírito da escola do jeito que a presidente do conselho estudantil deve entrar. Estava tão ocupada com as arrumações que não tinha pensado muito no que vestir. Escolhi um agasalho azul, jeans e meus tênis de ginástica. Reparei que estava meio insosso. - Pare de se mexer – advertiu. - Nada grande demais, está bem? – disse, olhando para a pena que tomava um lado todo da cabeça de Autumn. - Shhhhh – ordenou Autumn. Deixei Autumn me pintar e curti a agitação, a febre e a excitação dos corredores. Senti-me no topo do mundo até que Martin apareceu e disse: - Natalie, temos um problema sério. - O quê? A madeira não chegou? - olhei ao redor para procurar por Connor Hughes e comecei a entrar em pânico. E se Connor tivesse planejado não trazer a madeira só para me deixar em uma situação ruim? E se tudo não passasse de uma grande piada às minhas custas, porque tinha ganho as eleições de Mike Domski? Martin balançou a cabeça: - Não, quer dizer, não sei se a madeira está aqui ou não. Mas o problema não é esse. Desviei-me do lápis de Autumn: - Qual é o problema? 49


- Nick Devito está com gripe. - E daí? - E daí que não tem ninguém para se vestir de Ross, a Águia, para o jogo de hoje à noite. - Não tem nenhum dos representantes dos calouros para fazer isso? - Vou tentar, mas muitos deles já estão fazendo parte de algum time ou banda. - E o Dipak? - Dipak tem claustrofobia. Ele fica com falta de ar dentro da fantasia. - E você? – perguntei, apertando os olhos. - Tenho que vender as mercadorias na hora do jogo. Respirei fundo e questionei: - Martin, você está me dizendo que eu tenho que ser Ross, a Águia, hoje à noite? - Sim, Srta. Presidente – afirmou com uma expressão séria. - Ei. Fique parada! – Disse Autumn, segurando meu rosto e ajeitando o lápis. – Prometa que você não vai ficar estressada e triste em todos os eventos do conselho estudantil este ano, certo? Está tudo bem. Os corredores estão lindos. Relaxe, vamos nos divertir! - Está bem, está bem – disse. Ela tinha razão. Era hora de curtir o resultado do meu trabalho. De repente, o barulho dos corredores começou a aumentar. Connor Hughes e outros veteranos do time de futebol, vestindo jeans e coletes de lã, todos ao mesmo tempo se aproximando de seus armários. Todo mundo aplaudiu. - Desculpe, Autumn – disse, afastando-me dela -, só mais um segundo. O lápis deu um escorregão até a minha orelha, mas eu nem liguei. – Connor! – gritei o mais rápido que pude, tentando abrir caminho para chegar até ele. – E a madeira? Connor virou-se e pareceu confuso, provavelmente por causa do rabisco no meu rosto. Mas ele fez sinal positivo: a madeira havia chegado. Tudo correria bem. Logo em seguida, mais barulho. Música. Um som dançante que já tinha ouvido no rádio, só que o ritmo estava mais rápido e grave. A multidão subitamente se separou. Autumn e eu fomos empurradas para trás até ficarmos pressionadas contra os armários. 50


Fiquei na ponta dos pés. Dez calouras marcharam pelo nosso corredor em duas filas, como se estivessem desfilando. Estavam sendo guiadas por Spencer. Ela tinha um ipod cor-derosa preso no braço e segurava dois falantes portáteis brancos, um em cada uma das mãos. Seu andar era como o de uma modelo em fuga. Autumn pulava, esforçando-se para ver. Será que ela não sabe que os calouros não podem caminhar pelos corredores dos veteranos no dia de abertura dos jogos? Claro, regras como essa eram ridículas. As pessoas podiam andar por onde quiserem. Mesmo assim, essas eram as regras. E parece que havia muitas que Spencer não conhecia. As garotas tinham os cabelos presos em rabos de cavalos com cachos de fita de cetim branco, e shorts brancos atoalhados que eram curtos demais para qualquer atividade atlética de verdade. Não reconheci todas elas, mas vi Susan Choi, que era outra das minhas representantes das calouras. Todas usavam o mesmo uniforme, a mesma camiseta baby look azul. Os sussurros e cochichos superaram os gritos de ―Voltem para casa, calouras!‖, conforme as garotas marchavam no ritmo da música. Ouvi algumas risadas, assobios, vaias. Fui empurrando até ficar na frente da multidão. As camisetas tinham duas bolas enormes, posicionadas bem na frente dos seios. E acima, a mesma palavra impressa no peito, fazendo um arco perfeito. ―Rosstituta‖. - Que diabos é isso? – Autumn balançou a cabeça. As garotas passaram e percebi que debaixo dos rabos de cavalo, os quais não paravam de se mexer, havia o nome e o número de um jogador de futebol impresso nas costas das camisetas delas. Domski 27 Philips 4 E nas costas de Spencer: Hughes 14. De repente, entendi tudo. Era como um exercício de quebra dos radicais da palavra do SAT. Academia Ross + Prostituta = ―Rosstituta‖. Essa percepção parecia estar saltando da minha cabeça e entrando na de toda multidão. Percebi a alegria nos rostos dos jogadores de futebol e as caretas nos rostos das líderes de torcida. 51


Subitamente, as garotas pararam. Spencer aumentou o volume da música no máximo. Elas mudaram o posicionamento e então começaram a dançar. A movimentação da maioria das garotas era tão estranha que dava só. Estavam tensas e nervosas, girando na hora errada, olhando o tempo todo para Spencer para saber o que fazer. Spencer era diferente, e, definitivamente sim, dançava bem. Seguia a coreografia com muita confiança, mantendo contato visual com o público, mesmo com os cachos do cabelo chacoalhando na frente do seu rosto. Seus movimentos eram extremamente precisos e sensuais. Ela era a estrela do show. A Srta. Bee pegou no braço de Spencer e a tirou de lá; nunca a vi tão brava. Algumas pessoas até vaiaram a Srta. Bee por ter parado a dança. A maioria rapazes, pelo que dava para ouvir. Ela olhou pelo corredor, provavelmente procurando por mim. Mudei de lugar para ficar escondida atrás de todo mundo. Era constrangedor demais e não queria me envolver naquilo. O corredor ficou quieto, só se ouvia a música. Todos estavam vendo o que ia acontecer. Senti dificuldade em respirar. - Essas camisetas são ofensivas demais, Spencer – disse a Srta. Bee -, sem falar que são completamente contra as regras da escola. Vocês devem trocar de roupa imediatamente. Parecia até câmera lenta ver o sorriso de Spencer. Só vi por um segundo, antes de o rosto dela ficar coberto. Ela tirou a camiseta bem ali, no meio do corredor. Usava um sutiã corde-rosa de algodão, com uma pequena rosa no centro, com o bojo dando tudo de si para elevar e turbinar uma pequena protuberância. O sorriso voltou ao mesmo tempo em que Spencer, sem camiseta, virava sua roupa para o lado de dentro. – Eu vou virar do avesso, Srta. Bee; problema resolvido. A agitação voltou ao corredor. Era energia pura e os calouros estavam se alimentando dela. As outras pegaram nas barras de suas camisetas também. Mas antes que mais alguém tirasse a roupa, a Srta. Bee levou a líder do grupo embora, segurando-a pelo braço. Quando Spencer passou por mim, deu uma piscadela.

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Capítulo 11

H

onestamente, não acho que vá chover – disse Autumn, sorrindo para o céu, como se isso pudesse intimidar as nuvens cinzentas.

– Isso é uma bela droga, com certeza. – Você não está se divertindo nada? – Autumn escondeu o sorriso, colocando os lábios no canudinho da Coca-Cola. – Quero dizer, você está demais. Revirei os olhos, esquecendo que ela não podia ver meu rosto pela pequena abertura da fantasia. – Não bastasse a marcha humilhante das Rosstitutas esta manhã, agora estou presa à carcaça de um animal empalhado. Ah, e para piorar, não se esqueça de que nenhuma previsão do tempo mencionou a chegada de nuvens cinzentas ameaçando destruir minha fogueira. Essa sim é a verdadeira definição de demais. É sério. Pode procurar no dicionário que você vai encontrar a minha foto. Embora o vento estivesse forte, ainda estava quente e pinicante dentro da fantasia conhecida como Ross, a Águia. Aquela cabeça enorme tinha cheiro de roupa suja, como aqueles cestos com roupa de baixo que não servem mais, ou meias furadas que acabam ficando muito tempo sem lavar. Ao perceber que ia passar mal se não respirasse ar fresco, tentei usar minhas asas para retirar a cabeça da águia. Autumn beliscou o meu bico. – Você não pode tirar a cabeça aqui fora! Há muitas crianças aqui! Você não se lembra como surtei ao ver Garibaldo sem cabeça, fumando um cigarro no estacionamento da Vila Sésamo? Nem sei como estou aqui hoje. – O que é pior? Isso, ou ver Ross, a Águia, morrer de insolação na lateral do campo? Poxa, Autumn. Estou com muita sede. Ela colocou o canudinho da Coca-Cola na pequena abertura da fantasia. – Bebe. O 53


jogo já está quase acabando. Enquanto eu tomava um pouco de refrigerante, a torcida ia à loucura. Autumn virouse, levando com ela o refrigerante, mas deixando o canudinho balançando na minha boca. Tive de cuspi-lo. – Desde quando você gosta de futebol? – perguntei, movendo-me para os lados, tentando localizá-la. Connor Hughes deu um passe longo que não chegou às mãos de Mike Domski. Um dos juízes apitou e o jogador do Saint Ann, responsável pela interceptação, tirou o capacete e gritou com os seus colegas até ficar roxo. Já Connor socou o chão de raiva. Ele ficou muito bravo, furioso. Não entendi o motivo, pois estávamos ganhando de vinte a zero. Ele havia participado dos três touchdowns10. A banda começou a tocar o grito de guerra da escola, e eu resmunguei: – Quantas vezes eles vão tocar essa coisa? Autumn bateu no meu ombro e disse: – Hora do show. Corri pela lateral do campo como uma boa mascote faria. Talvez tivesse até corrido mais rápido se não fossem as garras plásticas da águia amarradas no meu tênis. Não saí dando piruetas e socando o vento, como teria feito Nick Devito. Apenas balancei as asas e rezei para que não chovesse. O lado positivo foi que pude contemplar a minha pilha de madeira. Tinha de admitir... Connor tinha se superado. Na fogueira, havia muita lenha e galhos das árvores de natal de sua família, formando uma enorme pirâmide que praticamente superava o pé direito 11 da lanchonete. Bombeiros com uniformes amarelos brilhantes, botas e capacetes já estavam a postos. Dividiam seu tempo entre assistir ao jogo e vigiar o céu. Quando terminei minha volta ao redor do campo, os refletores foram acesos e os poucos insetos remanescentes do verão formavam uma nuvem escura junto à iluminação. Ao olhar para trás, vi Spencer e seu agora notório grupo de ―Rosstitutas‖ voltando para as arquibancadas com bandejas de nachos. A punição pelo episódio das camisetas ainda não tinha sido declarada; decisões e precedentes precisavam ser considerados. Mesmo triste com a Spencer, não me arrisquei a julgá-la. O que as ―Rosstitutas‖ fizeram não parecia ser tão ruim como brigar, roubar ou vandalizar a fachada da escola. Mesmo 10

O futebol descrito aqui se refere ao futebol americano.

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Pé direito de uma construção significa a altura entre o piso e o teto.

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assim, o castigo precisava ser rigoroso para coibir atitudes semelhantes no futuro. – Não sei por que está tão brava – Autumn me disse depois que as ―Rosstitutas‖ haviam passado. – Isso não tem nada a ver com você. Era bem possível que ela estivesse certa, mesmo assim aquilo me incomodava. Mais do que isso, me desapontava. Afinal, tentei. Tentei ajudar a Spencer no banheiro naquele dia, busquei envolvê-la no conselho estudantil, mas toda a minha boa vontade tinha ido por água abaixo. Como se não bastasse, desviou para si toda a atenção que deveria ter sido dada ao meu trabalho de decoração no corredor dos veteranos. As coisas que tornam alguém popular na escola chegam a ser irritantes. Caminhava em direção a Autumn quando Spencer apontou para mim e gritou. O grupo de ―Rosstitutas‖ veio correndo das arquibancadas, fez um círculo ao meu redor e caiu na risada. – É você aí dentro, Nick Devito? – Spencer disse suavemente. Não via a hora de dizer para ela que era eu naquela fantasia de águia. Queria que Spencer se sentisse uma verdadeira idiota, que ficasse envergonhada, mostrando a ela como seu comportamento era ridículo. Mas antes que eu pudesse dizer alguma coisa, ela agarrou uma de minhas asas e começou a dançar, forçando-me a ser seu par. Recuei, mas ela aproximou-se ainda mais, esfregando-se nas minhas pernas. – Não tenha medo de mim, Sr. Águia! – gritou – Não vou te machucar. À medida que tentava me soltar, escorreguei na grama molhada e quase caí de cara no chão. Algumas das ―Rosstitutas‖ que estavam perto de mim evitaram a minha queda. Foi então que avistei Autumn a poucos metros de distância. Ela observava a cena horrorizada. – Será que alguém pode tirar uma foto nossa com a águia! – gritou Spencer. Balancei minhas asas na tentativa de mantê-la à distância, mas as ―Rosstitutas‖ ficaram todas ao meu redor. Já sem forças, apenas torci para que esse pesadelo terminasse logo. – Capricha no zoom – disse Spencer instruindo Susan Choi, que estava com a máquina fotográfica. Felizmente, antes que a foto fosse tirada, ouvi a voz do diretor Hurley ecoando em nossa direção. – Muito bem! Chega, meninas! Voltem para a arquibancada – acenou suas mãos, dispensando as ―Rosstitutas‖. O diretor Hurley era o membro mais velho da Academia Ross. Careca, sério e com a postura de um oficial do exército, vestia paletó e gravata todos os dias. E naquele momento parecia mais irritado do que nunca. A Srta. Bee apareceu. – Essas garotas estão causando mais problemas? 55


– É por isso que rezei para que Martha e eu nunca tivéssemos filhas – lembrou o diretor Hurley. A Srta. Bee olhou para o céu. – Bem, se a minha opinião for válida, acho que aquelas que vestiram as camisetas deveriam ganhar uma semana de detenção. Já a líder do grupo deveria ser usada como exemplo e receber uma punição maior. – Três dias de suspensão? A Srta. Bee concordou. Puxa vida, suspensão. Toda a raiva que sentia da Spencer transformou-se em pena. Ela não era uma má pessoa, apenas desorientada. Uma mancha permanente como essa no currículo poderia afastar suas chances de estudar em uma faculdade descente. Tudo porque ela fez algo incrivelmente estúpido. Para quê? Impressionar o Connor? Então o diretor Hurley disse: – Vou chamá-las na diretoria segunda-feira bem cedo. Conto com sua presença, já que esse assunto também interessa ao conselho estudantil. – Sim, claro. Dirigi-me ao alambrado, mas Autumn já não estava mais lá. Até achei que tinha ido buscar uma garrafa de água. Mas não queria ficar ali parada, correr o risco de ser interpelada novamente. O único local seguro era junto ao banco de reservas do time. Enquanto me acomodava no banco, a torcida ia ao delírio. Mike Domski havia interceptado outro passe de Connor. O nosso ataque voltava para o banco e a defesa tomava seu lugar no campo. Os jogadores reservas eram incumbidos de abastecer com garrafas e toalhas aqueles que saíam do gramado. Bobby Doyle tirou o capacete e esticou os braços, alongando-se. – Está na hora de acabarmos com esse jogo. – Nunca vi alguém se alongar tantas vezes como o Bobby Doyle. Ele queria que as pessoas vissem os caracteres chineses tatuados em seu quadril, orgulhoso por ter feito uma tatuagem ainda menor de idade, apresentando a identidade do irmão mais velho. Achei fora de moda. Ouvi dizer que a maioria desses símbolos chineses nem correspondem ao significado que dizem ter. Nessas horas, eu gostaria de ter memória fotográfica. Poderia pesquisar esses caracteres e mostrar ao Bobby que não dizem ―força e coragem‖, mas algo ridículo como ―coelho gordo cintilante‖. Mike Domski fingiu socar Bobby como se ele fosse um saco de batatas. – Você não estaria tão cansado se não tivesse toda essa banha. Hoje à noite, só cerveja light. Bobby deu uma gargalhada. – Cara, você se esqueceu de que a festa é na minha casa? Que a cerveja que você mencionou, e que está agora gelando, é minha? E que a hidromassagem, 56


que liguei no almoço para ficar bem quentinha e aconchegante, também é minha? A família de Bobby Doyle era muito rica. Construiu uma casa de hóspedes só para ele. Era praticamente o ponto de encontro da nossa escola. Não era lá muito agradável, pois ele vivia como um porco, com latas vazias de cervejas por todos os lados e vários buracos de socos nas paredes. Pelo menos, foi o que ouvi dizer. – Só espero que essa história estúpida de fogueira termine logo – disse Mike. – Ei, Connor, você colocou querosene na madeira? – Connor concordou. – Tudo bem, já vi que terei de bancar o herói dessa história – começou a pular para cima e para baixo e a bater a mão contra a boca. A Dança da Chuva. Cerrei os punhos. Se o time de futebol fosse embora ainda no início da fogueira, juro que aprontaria o maior barraco. Até jogaria a cabeça da águia bem no meio da fogueira. Connor tirou uma barra de cereais de sua mochila. – Vamos, o jogo ainda não acabou. Mantenham a concentração. – Sabe de uma coisa, gostaria de cair de boca nos seios da Spencer – Mike disse às gargalhadas. Fiquei pasma. Oh, meu Deus! James Rocker encheu a boca de água, gargarejou suavemente e cuspiu toda a água: Ela não é tão gostosa assim. Mike suspirou: - Cara, o que importa mesmo é que ela tem fogo. Você viu como ela dança? Parece até uma stripper. O treinador Fallon aproximou-se com sua prancheta. – Perfeito, ainda temos dois minutos. Não quero ver ninguém amarelando agora. Connor queria continuar no jogo, mas acabou ficando no banco de reservas e começou a arrancar as travas da chuteira sem ao menos desamarrá-las primeiro. – Fala sério, Connor! – disse James – A Spencer mandou fazer uma camiseta com o seu nome, cara de sorte. - Isso foi a coisa mais idiota do mundo – disse Connor, dando de ombros. Mal pude acreditar. Connor e eu finalmente concordávamos sobre alguma coisa. 57


- Idiota, sim. Mas a Spencer e aquelas garotas estavam tentando nos enviar uma mensagem. Elas nos querem – disse Mike –, e se o Connor não está afim da Spencer, sou o próximo da fila. – Ela quer o Connor, não você – disse James. – Você acha que uma garota como ela vai ficar pura e casta esperando o Connor? Vai por mim, cara. Eu, Domski, vou furar esse bloqueio. E nenhum de você vai tentar me impedir. Senti meu revirar. O fato de a Spencer realmente gostar do Connor não tinha importância. Ela fez todos acreditarem que era do tipo de garota que ficaria com qualquer um. – Já que é assim, quero aquela baixinha de covinhas – disse James. Connor riu. – Você já tem namorada, cara. James agiu como se tivesse esquecido esse detalhe. – Esse foi o maior erro da minha vida. Ninguém deveria ter uma namorada fixa na escola. É como se estivéssemos amarrados. Escuta o que eu estou falando. Na semana que vem, vou terminar com a Melanie. Fiquei imaginando a pobrezinha da Melanie Walsh ao lado da mão do James nas arquibancadas. Ela praticamente venerava o James, sempre lhe escrevia bilhetes detalhados em quatro cores diferentes durante as aulas. Bobby olhou para as arquibancadas, tentando proteger os olhos dos refletores. – Aquela loira magrinha do primeiro ano daria para o gasto se não parecesse uma tábua de passar – brincou. James entrou na brincadeira. – Eu ficaria com ela em vez da Mindy Polchek. – Mindy estava no segundo ano. O pai dela trabalhou na mesma empresa de arquitetura que a minha mãe. – Bem, a Mindy faz ginástica entre outras coisas, mas é muito feia de rosto. Que pena não ter levado um gravador. Mostraria à Spencer e àquelas garotas exatamente o que aqueles rapazes, que tanto veneravam, pensavam delas. As ―Rosstitutas‖ eram vagabundas, para serem usadas e descartadas. – E a Sterling? – perguntou Bobby. Minha temperatura se elevou a mil graus. Eu não queria ouvir o que iam dizer sobre mim. Não queria ouvir suas piadas. Mas não consegui sair do lugar. Eu tinha de ouvir. Mike Domski colocou a língua para fora como se estivesse sufocando. – Ela é do tipo de garota traiçoeira que te cortaria as bolas do saco no meio da noite se tivesse a chance. Na verdade, não ficaria nada surpreso em saber que a Natalie Sterling tem um pau maior do que o meu. 58


Tive vontade de ir até lá e lhe dar um chute bem no meio das pernas. Mas seria mais vergonhoso para mim se soubessem que era eu quem estava lá o tempo todo, ouvindo todas as coisas nojentas que diziam. – Ela tem um rosto decente – disse James. Cruzei as minhas asas com orgulho. Mas onde estava com a cabeça, sentindo-me orgulhosa por um reles elogio? E que direito tinham esses caras de me julgar? Eu não era como a Spencer. Não havia me colocado como uma mercadoria para ser avaliada. Imagino como se comportariam se eu falasse sobre os braços extremamente peludos do Mike Domski, ou que o James era tão baixo que as garotas, para dançar com ele, precisavam usar rasteirinha, ou ainda das inúmeras marcas de catapora no pescoço do Bobby. Connor levantou a cabeça e fez cara de cansaço. – Meu, tudo bem. Você está bravo porque a Sterling te deu uma surra nas eleições. E, de quebra, te jogou uma pizza na cara. Aquela garota é durona. Eu não me meteria com ela se fosse você. Fui tomada por uma sensação de bem-estar. Talvez pelo choque, ou pelo orgulho de ver Connor Hughes me defendendo. Naquele momento, ouviu-se um grande trovão, do tipo que ecoa no peito. Algumas garotas gritaram de susto na arquibancada. Um minuto mais tarde, a chuva começou a cair, rápida e forte. Em um instante, minha fantasia ficou encharcada. Mas o que mais me preocupava era a minha fogueira. Precisava arrumar algo para cobrir a madeira ou o meu primeiro grande feito como presidente do conselho estudantil iria por água abaixo. Tentei correr, mas escorreguei na grama e caí de costas. A torcida gritou ―ohhh‖. Tentei me levantar, mas com aquela fantasia era impossível. O chão estava muito escorregadio e a fantasia grudava em mim como uma camisa de força. Senti alguém me levantando. – Cuidado, Devito. Quando me virei, lá estava Connor. Posso jurar que ele me reconheceu pela pequena abertura da fantasia. — Você está bem? – perguntou baixinho. Eu queria dizer sim, e obrigada. Mas congelei novamente depois de tudo o que ouvi. Soltei-me de suas mãos e fui em direção a Autumn, no meio da chuva. Seu cabelo estava encharcado, cheio de nós e colado ao rosto. Presenciei seu esforço na tentativa de cobrir a pilha de madeira com um tecido impermeável azul. Mas essa luta solitária para manter a madeira seca já estava perdida. Ninguém ofereceu ajuda. 59


Corri até ela e estendi a minha mão. — Desça. Não é seguro subir aí. — Estou quase lá. Vai do outro lado que... — Autumn, esquece isso. A fogueira já era – embora soubesse disso, era doloroso admitir. Autumn virou a cabeça para trás e a chuva escorreu pelo seu rosto. – Tem certeza? Acho que a chuva está parando. Ouviu-se outro trovão. Segurei a mão da Autumn, ajudando-a descer, e juntas corremos até o meu carro. No caminho para casa, tive vários calafrios. Não porque estava toda molhada, mas por causa da fogueira, porque a Spencer era uma idiota, porque estava chateada e enojada com os absurdos que ouvi e por talvez ter sido reconhecida pelo Connor. Contei para Autumn todas as coisas terríveis que havia escutado. Apenas deixei de fora o que o Connor disse a meu respeito, já que isso era irrelevante naquele momento. Sabia que ela ficaria chateada, mas ainda assim queria que soubesse de tudo. Pelo menos, faria com que incidentes como aquele na festa do fim de semana passado não voltassem a acontecer. Não devíamos nos associar a certo tipo de pessoas. Autumn sabia exatamente o que aquelas garotas queriam. Mas como explicar para a teimosa da Spencer que suas escolhas era realmente péssimas? E também para o resto das garotas? Gostaria que houvesse uma forma de ajudá-las como ajudei a Autumn. — É uma pena não podermos levar todas as garotas da escola à conferência das jovens mulheres que a Srta. Bee nos contou. Infelizmente é em Boston e começa só nas férias de verão. Autumn virou a cabeça. – E se você organizasse um encontro de mulheres na escola, por exemplo? Fazia mesmo todo o sentido do mundo. – Autumn, você é um gênio! Eu poderia usar o mesmo método. Palestras, discussões. Poderíamos organizar tudo juntas. Autumn roeu as unhas. – Conte comigo, Natalie. Mas não quero... Foi quando contei para ela sobre o primeiro dia de aula. Sobre as minhas idéias para mudar a orientação escolar dos calouros. Autumn seria a convidada palestrante de honra. Teria a chance de fazer algo bom, algo positivo. Autumn olhou para as unhas roídas, dizendo: 60


— Posso te perguntar uma coisa? Você não fica brava? — Sim. — Eles falaram alguma coisa de mim? — Não – respondi. Era a pura verdade. Achei que isso faria com que Autumn se sentisse melhor, mas não fez. Ela recostou a cabeça na janela, deixando escapar um longo suspiro. E começou a passar o dedo no vidro embaçado de uma forma lenta e triste. Havia algo muito errado com as garotas que eu conhecia.

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Capítulo 12

C

hoveu o fim de semana todo, e na segunda-feira o dia parecia triste e desanimador. O chão estava repleto de folhas escorregadias caídas das árvores, e uma névoa densa pairava no ar. Coloquei o cabelo para trás e caminhei pelo quintal, pisando a grama e sentindo a umidade infiltrar em meus sapatos, alcançando os meus dedos. Mas isso não me incomodou. Mal podia esperar para chegar à escola; tinha uma missão. Depois do primeiro sinal, fui direto para a diretoria e sentei no banco do lado de fora da sala do diretor Hurley. A maioria das ―Rosstitutas‖ já estava lá, esperando para ouvir o veredito. A secretária chamou uma por vez. Nenhuma delas olhou para mim, exceto Susan Choi, que simulou um sorriso meigo, o qual não retribuí. Ela se escondeu a maior parte do tempo atrás de um exemplar volumoso de O senhor dos anéis. Susan parecia uma boa menina. Quieta, estudiosa e obcecada por J. R. R. Tolkien 12. Percebi que sempre deixava o exemplar aberto e em cima do colo durante as reuniões do conselho estudantil. Não era do tipo ―Rosstituta‖. Spencer, por sua vez, demonstrava claramente possuir uma característica forte e magnética. Já havia percebido isso quando conversamos no banheiro. Por isso, intervir era uma necessidade. Spencer chegou por último, segundos antes do término da primeira aula. Ouvi sua voz antes mesmo de vê-la. Suas risadas e gritos ecoavam pelo corredor. Foi então que apareceu, correndo como se estivesse em perigo, mas movendo-se como se não quisesse escapar. Quando me viu, parou de sorrir. — Precisamos conversar – disse. — Você não tem que ir para a aula? Esperava conseguir um passe livre da secretaria. Mas mesmo que não conseguisse, ou se fosse punida por me meter onde não fui chamada, ainda teria valido a pena. – Para você, Spencer, tenho todo o tempo do mundo.

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Autor da saga O Senhor dos Anéis.

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Spencer deu de ombros e sentou-se no banco ao meu lado. – Sei que você deve estar brava comigo, mas não fiz nada errado. Sem tom desafiador me pegou de surpresa. Esperava remorso ou, pelo menos, medo de uma punição iminente. — Você ficou só de sutiã! – não consegui me segurar. – No meio do corredor! — Não, não fiquei. Era o meu maiô, não um sutiã. O maiô que usei durante a aula de natação. Não me convenci com suas explicações, mas continuei firme. – Aquelas camisetas eram muito ofensivas, Spencer. Uma prostituta? Para o time de futebol? Fala sério. — Era brincadeira! – esperou que me convencesse disso. – Tudo bem. Talvez o corredor não fosse o local ideal para trocar de roupa... e me desculpe por isso. Mas ainda acho que estão fazendo uma tempestade num copo d’água. Senti um aperto no estômago. Se a Spencer tentasse se explicar para o diretor Hurley e a Srta. Bee desse jeito, talvez fosse expulsa da escola. – Você precisa pensar em uma desculpa melhor, e rápido. Uma que realmente pareça sincera. Você entende o tamanho da encrenca que arrumou? – Meus olhos recaíram sobre ela. – Uma encrenca enorme – disse, repreendendo-a -, daquelas bem grandes! A porta do diretor abriu-se, e Susan Choi saiu. Com os óculos sobre a testa, enxugava os olhos vermelhos com um lenço de papel todo amassado. Susan nunca havia tirado menos do que A antes, e muito menos recebido uma semana de suspensão. Olhei para Spencer, como quem diz: ―Está vendo? A coisa é séria‖. Mas Spencer estava mais interessada em passar maquiagem na ―zona T‖ do rosto. A secretária espiou pela porta aberta e chamou seu nome. — Não se preocupe comigo – disse ao levantar-se -, sei tomar conta de mim mesma, juro. – Ela nem imaginava que ia acompanhá-la, mas foi exatamente o que fiz. – Natalie – sussurrou -, o que você está fazendo? O governo afirma que tomará medidas drásticas para garantir que nenhum brasileiro vá para a cama sem comer: Vai recolher todas as camas! Estou livrando a sua barra – disse, tomando a frente. Tinha visto a sala do diretor Hurley apenas uma vez, quando fui chamada com o resto do time de decatlo13 acadêmico para tirar uma foto com o troféu que ganhamos, para ser publicada no jornal da escola. Mesmo estando lá por um motivo positivo, ainda assim senti um calafrio na barriga. A sala cheirava como o mês de agosto, pesado e quente. As paredes de concreto foram pintadas de bege claro, provavelmente na esperança de tornar o que era uma cela de prisão em algo mais aconchegante. Não havia plantas, quadros, fotos, nenhum outro tipo de 13

É uma competição de atletismo composta por dez provas.

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decoração além de uma faixa enorme da Academia Ross, feita de algodão especial e com as letras bordadas à mão. A Srta. Bee estava em pé em um canto da sala, escorada em um conjunto de armários majestosos. Ficou surpresa ao me ver. — Esta é uma reunião particular – disse o diretor Hurley. — Sim, Natalie – a Srta. Bee acrescentou. – Passe na minha sala mais tarde e então conversamos. Ignorei os dois e sentei-me em uma daquelas cadeiras estofadas de couro, bem em frente à mesa do diretor. Com certeza uma atitude ousada, mas precisava me mostrar confiante. — Diretor, tenho algo a dizer – ele entrelaçou os dedos e acenou positivamente com a cabeça para que eu continuasse, provavelmente contrariando sua intuição. – O que aconteceu sexta foi terrível. O comportamento dessas calouras foi de extremo mau gosto. Mas se punirmos e isolarmos essas garotas, perderemos a chance de transformar esse acontecimento em um aprendizado verdadeiro, algo que seria benéfico a todas as garotas da escola. O diretor Hurley olhou para a Srta. Bee, sem saber exatamente o que dizer. Deixando escapar um sorriso tímido, ela disse: — Continue, Natalie. — A população feminina da Academia Ross obviamente está seguindo o caminho errado. Está mais interessada em obter a atenção da população masculina do que em suas próprias realizações. As garotas estão satisfeitas em serem rotuladas como objetos sexuais. O incidente com as camisetas foi exatamente isso, um apelo desesperado para serem notadas. É como se não acreditassem que podem ser reconhecidas por outras coisas, como seus objetivos, seus cérebros e não apenas por seus corpos – acho que meu discurso pareceu ensaiado, mas a verdade é eu ensaiei mesmo, pelo menos dez minutos na frente do espelho do banheiro. Precisava fazer com que o diretor Hurley me levasse a sério, queria que ele soubesse que pensei no assunto de maneira cuidadosa. Peguei na mochila o panfleto que a Srta. Bee tinha me entregado. — Gostaria de organizar um seminário para abordar esse problema. Seria obrigatório para as garotas em questão, e facultativo para todas as alunas da escola que quisessem participar. O rosto do diretor enrijeceu. – Um seminário? Isso não me parece uma punição apropriada. Tive de pensar rápido. – Na verdade, seria mais como uma atividade noturna. Faríamos workshops e debates e arrumaríamos patrocinadores para cada uma das horas que ficássemos acordadas, doando todos os ganhos a uma instituição de caridade ou abrigo feminino. Seria um Encontro Feminino, um simpósio de delegação de poder. - Um o quê? – Spencer perguntou. Censurei-a com o olhar. — Acho que seria uma ótima oportunidade para discutirmos os acontecimentos recentes e talvez aprendermos comportamentos e estratégias melhores para o futuro. Em vez de abafarmos esse incidente, abriríamos um diálogo sobre ele. Quero que nossas 64


garotas saibam que são muito mais do que meras mercadorias sexuais, que precisam ter objetivos e aspirações mais altos. O diretor Hurley virou-se para mim. – Você está disposta a realizar tudo isso? Por quê? Não havia me preparado para essa pergunta, e de repente não conseguia organizar meus pensamentos. Olhei para Spencer, que não fazia a mínima idéia dos meus motivos. Preocupava-me muito com essas garotas. E se pudesse ajudá-las, ou a qualquer outra pessoa da escola, faria com satisfação. — Porque isso é importante para mim, diretor Hurley. E não farei sozinha. Gostaria que Spencer me ajudasse. Mesmo não fazendo a coisa certa, ela mostrou liderança na sexta. Gostaria de dar a ela a oportunidade de usar essa liderança para o bem. E essa responsabilidade, além de talvez uma semana de detenção, seria uma punição perfeita, já que ela foi líder do incidente. Spencer olhou para mim. Apensar de tudo, mostrou-se lisonjeada com meus elogios. Percebi que o diretor estava pensando no assunto enquanto me observava fixamente. Decidi fazer o mesmo. Sabia que, se quisesse realmente organizar esse evento, teria de mostrar determinação. A Srta. Bee parecia estar muito orgulhosa. – Acho essa idéia fantástica, diretor Hurley. Natalie está se mostrando uma verdadeira líder. O último ano é extremamente trabalhoso, contudo ainda se oferece para ajudar as garotas da Academia Ross a encontrar um novo caminho. — Certo — disse o diretor com um suspiro. — Acho essa idéia um tanto incomum, mas se a Srta. Bee está de acordo, vamos tentar o seu seminário. Fora da sala, Spencer encurralou-me imediatamente. — Só para constar, ainda acho que não fiz nada de tão errado assim. Ela colocou as mãos na cintura e disse: — Não sou tão burra quanto você imagina, sei o que estou fazendo. De repente, lembrei-me dos chiliques que ela tinha quando criança. E que a melhor forma de lidar com eles era virar as costas e sair andando, e foi exatamente o que fiz. Saí pelo corredor, nem mesmo hesitei quando choramingou meu nome. Spencer era pior do que uma irmãzinha travessa. Mas isso não era obstáculo para fazê-la me ouvir. A primeira aula já havia começado. Apressei-me até o laboratório de química. Ao virar o corredor, avistei Connor Hughes curvado no bebedouro. Parte de mim queria voltar e pegar outro caminho, só para não cruzar com ele. Na hora, fiquei muito nervosa. Ainda não tinha certeza se ele tinha me reconhecido na fantasia, ou se sabia que ouvi tudo que disseram. Mas evitá-lo de propósito daria a ele controle sobre mim. Então, continuei andando calmamente, um passo após o outro. 65


Com o canto do olho, vi que ele levantou a cabeça enquanto a água ainda jorrava do bebedouro. O meu sentido de alerta guiou-me rapidamente pelo caminho; isso sempre acontece quando estou sendo observada. Foi só então que tomei consciência do meu andar (em marcha direta), da temperatura do meu corpo (extremamente acima do normal) e da minha respiração (quase insuficiente). Ao passar por ele, ouvi-o dizer: - Ei, Sterling, você não vai me agradecer? Se o ignorasse naquele momento, ficaria muito na cara. Então, parei. As salas de aula estavam todas com as portas fechadas. Estávamos sozinhos. - Por quê? – usei um tom defensivo, acusatório, mais do que havia planejado. Embora ele tivesse dito coisas boas a meu respeito naquele dia, estava longe de ganhar minha confiança. - Levantei cedo e recolhi a madeira da fogueira com meu caminhão. Fiz isso para te ajudar – mostrou-me suas mãos. Estavam levemente sujas e calejadas. – As madeiras estavam molhadas e escorregadias. Acabei ficando com algumas farpas nas mãos, farpas profundas. Podem me custar o próximo jogo. Quem diria, Connor me fazendo favores de repente? Mal podia acreditar. Quando senti que meu rosto começou a corar de vergonha, tirei o elástico do cabelo e deixei que caísse como uma capa sobre ele. - Você retirou toda a madeira sozinho? – perguntei. - Não, peguei alguns garotos para ajudar. - Olha só, não pedi para fazer isso. - Eu sei – falou. – Fiquei triste por seu pequeno evento ter dado errado. Meu pequeno evento? – Não precisava da sua ajuda – engrossei a voz. – Teria resolvido esse problema sozinha. Ele passou as mãos sobre os cabelos, ainda molhados do banho matinal. – Caramba! Só queria ouvir um obrigado. - Sabe de uma coisa, Connor? Aí vai uma lição importante. Nem sempre conseguimos o que queremos. Nem mesmo garotos como você – enquanto me observava desaparecer pelo corredor, amarelo, desnorteado, provavelmente como se sentia em suas aulas de reforço de matemática. Connor sorriu. Com certeza, nunca havia sido tratado daquela maneira por uma garota. Como muitas coisas na vida, me fez muito bem ser a primeira.

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Capítulo 13

N

o fim de semana, a Srta. Bee me chamou na sala dela para conversarmos sobre o seminário. Fiquei pensando se a Spencer deveria também fazer parte da conversa, mas na última hora decidi que não. Havia algo importante, algo pessoal, que precisava perguntar para a Srta. Bee. Recentemente havíamos feito uma reunião do conselho estudantil. Tínhamos vários projetos programados, como a venda das flores do outono e o baile de Halloween, para o qual precisaria de uma fantasia. Não usava uma desde os meus 13 anos, quando vesti uma fantasia de DNA. A Srta. Bee pendurou seu casaco vermelho de casimira. Sentei-me na cadeira em frente à mesa dela, na qual havia um álbum de fotos, do tipo que tem uma foto na capa. A foto mostrava a Srta. Bee sentada em uma mureta cor de areia, com vista para o mar mais lindo que já vi. - Barcelona – disse. – Minhas férias de verão. – Fiquei surpresa quando ela abriu o álbum e me deixou olhar as fotos, enquanto narrava a viagem. Naquele momento, A Srta. Bee deixou de ser uma professora e pareceu mais uma tia legal, do tipo que convence a sua mãe a deixar que você peça uma taça de vinho tinto em um restaurante elegante. Colocou os cabelos para trás e mostrou-me um par de brincos de ouro. Contou que havia barganhado de dez euros para três em um mercado ao ar livre. E quando a chuva chegou, decidiu ir a Milão. As fotos mostravam um céu cada vez mais escuro. – Quando você viaja sozinha – explicou com um piscar de olhos - , você está livre para ser imprevisível. Balancei a cadeira em entusiasmo e disse à Srta. Bee que era exatamente assim que planejava viajar pela Europa antes de a faculdade começar. A Srta. Bee concordou com a cabeça, e a sua aprovação foi tão boa quanto um abraço. Falamos sobre os países e as possíveis paradas pelo caminho. Cheguei até a tomar notas. Foi também a maneira perfeita de introduzir um assunto do meu interesse e disse: - Srta. Bee, a senhora poderia escrever minha carta de recomendação para a Faculdade. Sei que ainda estamos em outubro, mas gostaria de preparar tudo com antecedência. 67


Ela sorriu. – Claro, Natalie. Isso até me ajuda. Fico atolada de trabalho com essas requisições em março. Alguns alunos deixam sempre para a última hora. Se todos fossem responsáveis e atenciosos como você, o meu serviço seria bem mais fácil. Além disso, é um grande prazer tê-la em minhas aulas e trabalhar com você no conselho estudantil. Portanto, seria uma honra poder escrever a carta de recomendação mais bela de todos os tempos. - Srta. Bee, nem sei como agradecer por toda a sua ajuda e atenção neste ano. Obrigada. Seus olhos moveram-se do meu rosto aos meus ombros. E um sorriso esperançoso floresceu do seu rosto em seguida. – Então, como estão os preparativos para o seminário? Na verdade, estavam devagar. Tive muita lição de casa naquela semana, sem falar dos preparativos para o SAT. Mesmo assim, tentei mostrar serviço. Já havia escolhido para quais lugares iriam as doações e selecionado o cardápio para o seminário. A Srta. Bee continuava satisfeita. – Quero te ajudar – disse, puxando livros da estante. – Você precisa ler A mística feminina. E, principalmente, O mito da beleza, que será muito relevante para os seus debates. Ah! Folheie também a Bíblia da mulher e O segundo sexo. Baseei minha tese de mestrado nas obras de Simone de Beauvoir. Enquanto observava a pilha de livros no canto da mesa aumentar, tentei mostrar entusiasmo. Mas, na verdade, fiquei completamente assustada. Acho que a Srta. Bee entendeu, porque ergueu as sobrancelhas. – E a Spencer, está te ajudando, certo? Esse era o acordo. - Sim. – Menti. Eu sabia que Spencer iria me ajudar. Apenas não tivemos tempo de conversar ainda, e a culpa era minha. Estava muito ocupada. - Estou preocupada. Vi Spencer andando pela escola, toda feliz com a fama que conseguiu. Essa não é a atitude de alguém que se arrependeu. Francamente, ainda não entendi por que você escolheu proteger alguém como ela. Fiquei envergonhada. Por que a Spencer só dificulta as coisas? – Há muito tempo, fui babá de Spencer – expliquei. – Portanto, me sinto responsável por ela. É verdade que está fazendo péssimas escolhas, mas, no fundo, é uma boa garota. Se a Srta. Bee compreendeu meus motivos, não demonstrou. – Espere! Esqueci o livro mais importante de todos. Este é só para você, Natalie. – Peguei das mãos dela, sem imaginar como era pesado. Uma linda garota adornava a capa, sorrindo ao vento. Usava um boné de couro e exibia óculos de proteção sobre a testa. O título era East to the dawn: The life of Amélia Earhart. – Devorei esse livro durante as minhas férias. Acho que você e Amélia têm muito em comum. Você ouviu falar da Ninety-Nines? - Não. - Bem, Amélia fundou a Organização Internacional de Aviadoras conhecida como Ninety-Nines, tornando-se a sua primeira presidente. Essa organização ajudou a legitimar mulheres que perseguiam carreiras tradicionalmente masculinas, dando a elas diversas oportunidades. E isso me lembra muito seu seminário. A união faz a força, e tudo mais. Além 68


disso, o número nove se encaixa muito bem nessa história. - Obrigada, Srta. Bee. - Estou orgulhosa por tudo o que você está tentando fazer aqui, Natalie. Sempre soube que você era especial. Outras garotas da sua idade, bem... elas só pensam em garotos. Você, minha querida, é totalmente independente. Tem inteligência, e, francamente, me dá esperança de que o feminismo não morrerá com a sua geração. Sorri, colocando a mochila sobre os ombros. Pesava mais de mil quilos, embora, honestamente, pesasse muito menos do que a pressão escondida atrás do sorriso da Srta. Bee.

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Capítulo 14

N

a semana seguinte, Spencer e eu marcamos uma reunião antes das aulas para finalizarmos nossos planos a respeito do seminário e prepararmos as fichas de inscrição e outros materiais. Autumn também compareceu.

Dividi o material de leitura da Srta. Bee com elas, com a instrução de que deveríamos procurar citações ou mensagens inspiradoras para distribuirmos à população feminina da escola em forma de tiras de papel, como aquelas dos biscoitos da sorte. Spencer mordeu a ponta da caneta que segurava. – Natalie, você tem namorado? Autumn deu uma gargalhada que me deixou irritada. Ela não deveria ter deixado escapar sinais da minha inexperiência. Isso daria a Spencer uma oportunidade a mais de se gabar. De qualquer forma, não era da conta da Spencer. - Não, não tenho – disse orgulhosa. Pensei por um momento como ficariam surpreendidas em saber que Connor estava interessado em mim. Desde a noite da fogueira, percebi que ele vinha me observando. Não que isso me interessasse. Ele estava livre para olhar para quem quisesse. E eu, livre para ignorá-lo. - Aposto que você só namora universitários – Spencer desenhava corações em seu caderno. – Alguém que será um neurocirurgião brilhante ou um conselheiro de Estado. Ele provavelmente usa óculos, mas não do tipo nerd. Aqueles de metal fino que os modelos usam. Ooh! E aposto que ele é de outro país, como a Inglaterra, por exemplo. Poderia facilmente ver você namorando um cara com sotaque. Parei de escrever. – Não vou discutir isso com você – disse. Mas se eu quisesse namorar alguém, seria exatamente como Spencer havia descrito. Exceto que não seria da Inglaterra, e sim de Paris. E conversaríamos em francês o tempo todo. Afinal, já estudava francês na escola há três anos. Teria de ser útil algum dia. - E você Autumn? – Spencer continuou. – Tem namorado? - Quem, eu? – disse Autumn, abaixando a cabeça. – Não. Olhei para Spencer em reprovação, infelizmente ela não entendeu. Virou a cadeira na direção da Autumn. – Bem, mas isso não faz sentido. A Lisa, por exemplo, mesmo com aqueles 70


dentes de vampiro, já tem namorado. Mas você... é uma das garotas mais bonitas e legais da escola. Você seria facilmente eleita como rainha de qualquer baile de formatura. - Eu... tenho um histórico. - Como assim? Autumn e eu nos olhamos. Ela não queria ser minha convidada de honra no seminário, e tive de aceitar sua decisão. Mesmo assim, parte de mim queria que ela se abrisse com a Spencer. Autumn respirou fundo e fechou o livro à sua frente. – As palavras isca de peixe têm algum significado para você? Spencer parecia absolutamente confusa. – Humm... tipo uma comida desagradável que melhora um pouco com ketchup? Autumn sorriu. Então, contou a ela sua história, quase sem emoção. Era estranho vê-la contar tudo com tanto autocontrole. Spencer era o oposto. Seu sorriso foi diminuindo cada vez mais. - Portanto, o seu último namorado... – a pergunta da Spencer ficou no ar. Autumn mordeu os lábios e confirmou. – Mas não faz mal. Nunca teria as notas que tenho hoje para me matricular em uma boa faculdade se isso não tivesse acontecido. Deve ter sido para o meu bem, quer dizer, sei que foi. – Autumn não parecia muito convencida. Dei-lhe um beliscão amigável no braço para trazê-la de volta à realidade. Spencer via tudo de outra forma. – Não! – gritou. – Autumn! Aquilo foi provavelmente a pior coisa que você já fez. Nunca deveria deixar um idiota como esse fazer você se sentir mal consigo mesma. Além disso, afastar-se de garotos não é algo natural. Quer dizer, por que os adolescentes têm tantos hormônios se não devem ser usados? – cerrou os dentes. – Devíamos pegar o Chad Rivington e cortar as bolas dele. Balancei a cabeça em reprovação. Spencer não entendeu nada, nadinha. - Não há um único cara nesta escola que mereça, Autumn, nem nenhuma de nós. - Oh, eu sei que ninguém me merece nesta escola. Mas isso não significa que não possa me divertir com eles enquanto estiver aqui. Além disso, que universitário me namoraria? Gente! Só tenho 14 anos e não quero cair nas mãos de um pervertido. Autumn caiu na risada. – Não acho que foi isso que a Natalie quis dizer, Spencer. Spencer continuou não entendendo. Fui obrigada a mudar o discurso. Fechei meu livro e olhei direto em seus olhos. – Querida, o que vou te contar agora só não te contei antes porque não queria te magoar. Ouvi por acaso Mike Domski e outros rapazes dizendo coisas horríveis sobre você e as ―Rosstitutas‖, após o incidente de sexta. - Natalie – Autumn tentou me falar. 71


No início, Spencer não se sentiu intimidada. – O que, por exemplo? - Bem... alguém te chamou de stripper. E acho que foi o James quem disse que você nem era bonita. Depois disso, Connor deixou bem claro que não estava nem um pouco interessado em você. Já o Mike alegou que você faria tudo o que ele quisesse. Observei Spencer enquanto ela assimilava tudo. Já não tinha sido fácil ouvir o que aconteceu com a Autumn, mas aquilo foi ainda mais doloroso. Com certeza, foi difícil para ela saber o que as pessoas pensavam a seu respeito. A minha esperança era de que ela finalmente caísse na real e mudasse o seu comportamento. - Inacreditável – disse. – É por isso que o Mike Domski não larga do meu pé. Está sempre passando pelo meu armário ou me encontrando por acaso. Se ele pensa que é meu dono, então que se prepare. Essa era a atitude correta que esperava dela. – Veja. Devemos nos apressar se quisermos terminar tudo a tempo para as inscrições. Temos apenas uma hora. Quando terminamos as citações, fizemos a lista de atividades para o seminário. Copiei a maioria delas da internet e do panfleto que a Srta. Bee me deu. Tudo parecia estar dando certo. - Falta alguma coisa – disse Spencer, balançando o cabelo. – Algo essencial. Reli rapidamente nossa lista, parecia estar tudo certo. – O quê? - Alguma diversão, Natalie! Não tem nada de divertido nessa lista! Apontei para a atividade seis da lista. – E o teste de confiança? Spencer fez uma cara engraçada. – Você quer lotar o seminário de garotas da escola, certo? Então, precisamos dar a elas um bom motivo para passarem a sexta-feira à noite conosco. Queria dizer a ela que o seminário era mais sobre aprendizado e menos sobre diversão, mas Autumn me interrompeu. – A Spencer está certa – disse. – Deve ser uma noite educativa, mas também precisamos de diversão. Spencer mostrou um de seus cachos com o dedo. – Tenho uma idéia. Suspirei profundamente. Por outro lado, a Spencer só queria ser útil e participar. Sabia que precisava apoiá-la. – Tudo bem. Qual é a sua idéia? - Bem, fazíamos isso na escola de dança que eu freqüentava. Chamávamos de ―dança do moletom‖. Convidávamos todas as garotas da escola para uma festa dançante. Apenas garotas. Todas deveriam usar calças de moletom e camisetas do tipo regata. Ninguém precisava se preocupar com garotos ou com a sua aparência. Uma das garotas ficava de DJ, tocávamos músicas de bandas antigas e dançávamos juntas por algumas horas. Poderíamos fazer o mesmo, só que vestindo pijamas. Além disso, mataríamos um bom tempo dessa maneira. Autumn aplaudiu. – Adorei!

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Elas olharam para mim, esperando ouvir minha opinião. Sorri. – É uma ótima idéia. Spencer, você é um gênio. – Claro que exagerei um pouco, mas queria encorajá-la. Em resposta, ela me surpreendeu. – Quero pedir desculpas pelo que aconteceu no dia de abertura dos jogos – disse em tom sério. - Você não precisa fazer isso – disse, e fiquei feliz por ser verdade. - Sim, preciso. Em razão do meu comportamento, fomos forçadas a essa punição. - Mas isso não é uma punição – expliquei. – Uma punição seria a suspensão. Isso é um seminário, uma oportunidade... - Chame como quiser, mas isso não muda nada, me desculpe. E, Natalie, agradeço de coração por tudo que você fez por mim na sala do diretor. Defendendo-me daquela forma. - É isso que amigas fazem – foi a primeira vez que disse isso para alguém que não fosse minha melhor amiga, mas o significado foi o mesmo. Colocamos uma mesa no corredor principal da escola com as fichas de inscrição, vários materiais de leitura e citações inspiradoras de mulheres famosas por sua habilidade de liderança. Spencer insistiu em usar seu iPod para tocar músicas cantadas por mulheres. Com certeza, um toque especial. Os alunos começaram a chegar à escola, e um grupo de garotas veio direto para nossa mesa. A atração principal era a ―dança do pijama‖, mas algumas garotas pareciam genuinamente interessadas nas citações que Spencer e o restante das ―Rosstitutas‖ estavam entregando. Em quinze minutos, já tínhamos 30 garotas inscritas. Tudo corria muito bem, muito bem mesmo, até que o Mike Domski pegou uma caneta e tentou colocar seu nome na lista de inscritos. - Largue essa caneta – disse. Mike só entendia quando nos dirigíamos a ele como se tivesse 3 anos de idade. - Por quê? Só porque somos garotos? Isso não é discriminação? – tentei pegar a caneta de volta, mas ele não deixou. – Ah, agora entendi. Esse seminário de garotas é um decatlo vaginal. Garotos não entram. Queria soltar os cachorros em cima dele, mas Spencer agiu primeiro. É isso mesmo, Mike. Nada de croquetes, pintinhos, chouriços, testículos, imbecis e idiotas. Todos os adjetivos que te descrevem muito bem! – disse, arrancando a caneta da mão dele. – Portanto, parece que você não está convidado. A resposta de Mike? Ele mostrou o dedo do meio para a Spencer e foi embora. - Ponto pra você, Spencer – sussurrei, marcando um ponto no ar com os dedos. - Confie em mim. Sei como lidar com esses tipos – disse. – De fato, acho que vou infernizar a vida dele. Só por diversão, só porque eu posso. 73


Coloquei meus braรงos em volta dela. Nรฃo porque me importava com o jogo psicolรณgico que ela planejava usar com o Mike Domski, mas porque Spencer finalemnte comeรงava a me dar ouvidos.

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Capítulo 15

D

e jeito nenhum a Spencer usa isso para dormir.

Foi isso que pensei quando ela apareceu vestindo aquela camisola baby-doll xadrez verde e azul, com um laço branco onde as bordas apertavam suas coxas. Estava com o casaco de lã aberto e a ponta do cinto deslizando pelo chão, como se estivesse usando um vestido de festa que fosse bonito demais para ficar escondido. Talvez até se passasse por um, se não fosse pela almofada decorada em baixo do braço e pelo saco de dormir pendurado nas costas. - Natalie! – gritou. – Fiz uma lista com músicas incríveis para tocarmos hoje à noite! – Ela sacudiu um pouco o corpo, permitindo que uma das delicadas tiras de seu casaco caísse sobre o ombro. – registrou minha presença, Srta. Bee? - Spencer Biddle – Srta. Bee recitou sentada, riscando seu nome da lista de presença. – Como poderíamos te esquecer? – senti que a Srta. Bee estava tentando fazer piada comigo, mas não consegui achar engraçado. Spencer apressou-se para alcançar suas amigas. Havia cerca de 50 garotas presentes, mais as ―Rosstitutas‖ e outras alunas do conselho estudantil convocadas por mim. Esperava que mais garotas se inscrevessem, mas acho que Mike Domski as assustou com aquelas piadas sujas. Mesmo assim, fiquei satisfeita com o resultado. - Tudo bem, Natalie – disse a Srta. Bee. – Acho que você pode começar. Ficarei trabalhando em minha sala. Se eu não ficar por aqui, talvez as garotas se sintam mais à vontade para conversar. - Ótimo. Vou pegar a Spencer e... - Natalie, gostaria que você fosse a mediadora hoje à noite. Sei que a Spencer ajudou no planejamento, mas foi você que idealizou tudo. É você quem tem a experiência de liderança necessária. Eu não quero que esta noite se transforme em um mero pernoite divertido. Você tem uma missão importante para cumprir. - Sim, claro – concordei. 75


Atravessei o ginásio até onde todas estavam reunidas. Senti-me estranha de pijama, especialmente porque, ao contrário da Spencer, estava vestindo algo que realmente usava para dormir. A calça hospitalar do meu pai, que costumava ser marrom, mas que ficou cor-de-rosa depois de tantas lavagens, uma camiseta branca do tipo regata, um moletom de capuz e zíper bem largo e as minhas pantufas. Andei calmamente até as arquibancadas, dando às garotas algum tempo para que se acomodassem. – Oi, pessoal, obrigada pela presença. Temos muitos lanches e salgadinhos para servir mais tarde. Primeiro, gostaria de explicar algumas coisas – respirei fundo e sorri. Foi tempo suficiente para que Spencer tomasse minha frente. - Tenho uma declaração a fazer antes de começarmos. Gostaria que todas você se sentissem seguras em compartilhar seus sentimentos e pensamentos. Aqui não haverá julgamentos ou críticas. Sorri para a Srta. Bee que estava saindo do ginásio. – Muito bem colocado, Spencer – puxei-a para perto e sussurrei. – Por que você não me deixa começar e depois assume? – Spencer ficou confusa, e talvez, um pouco magoada. Com o queixo indiquei a ela um assento vago na arquibancada. – Não se preocupe. Spencer sentou-se ao lado de Autumn, parecia ressentida. - Acho que a melhor forma de começarmos a noite de hoje é discutindo o que aconteceu no corredor da escola duas semanas atrás. – Mal havia terminado de falar quando Spencer levantou a mão. Olhei por sobre seus dedos. – Acredito que muitas de vocês tenham pensamentos e opiniões diferentes e quero ter certeza de que todas terão uma oportunidade para falar – Spencer começou a balançar o corpo e a abanar a mão desenfreadamente. Quanto mais eu a ignorava, mais ela queria ser notada. – Spencer, por que não começa? Spencer levantou-se e encarou as participantes. – Devo dizer que fiquei surpresa com a reação das pessoas por causa das camisetas. Por que as garotas não têm permissão ou não são encorajadas a mostrar a sua sexualidade? - Não acredito que aquilo tenha sido sensual – falei para Spencer, da forma mais gentil possível. – Vocês só queriam chamar a atenção. Spencer sorriu. – Viram? Esse é o problema. É isso que deveríamos discutir hoje! Os garotos podem fazer de tudo sem qualquer punição. Mas nós, garotas, somos proibidas de ter necessidades sexuais. - Necessidades sexuais? Você está falando sério? Você só tem 14 anos. - A minha idade não tem nada a ver com isso – disse Spencer, mordendo os lábios. – Estou sentindo muita negatividade vinda de coe, Natalie. Você disse que não haveria críticas ou julgamentos hoje. - Tudo bem, vamos nos acalmar – o que soou ridículo, porque Spencer e eu éramos as únicas alteradas. 76


- Olha só, não faço nada que me deixe desconfortável. Estou sempre no controle. Seja como for, que direito tem alguém de dizer o que eu posso ou não posso fazer com o meu corpo? Não vou me sentir culpada só porque gosto de ser sensual. Não ficarei envergonhada. Parece que esta escola tem um grande problema com esse tipo de coisa. – Spencer olhou fixamente para Autumn, e todas perceberam. – Forçar as garotas a ficar envergonhadas por terem comportamentos que são naturais é um preconceito ridículo. Francamente, deveríamos mandar todos aqueles que nos julgam para aquele lugar. Algumas garotas concordaram, incluindo Marci Cooperstein, que estava sentada bem atrás de Autumn. Eu a vi apertar levemente os ombros de Autumn, que se virou surpresa. Uma sorriu para a outra, e eu queria vomitar. Melissa Sanchez levantou a mão e Spencer deu-lhe a palavra. – Meu irmão descobriu que masturbei um de seus amigos, e agora ele nem olha mais para mim. - Entenderam agora o que eu quis dizer? – indagou Spencer. – Isso está errado! Aposto que o seu irmão gostaria que uma garota fizesse isso para ele. Mas, por ser irmã dele, agora você não presta mais. Olhei para Autumn como que pedindo ajuda. Afinal de contas, ela estava sentada ao lado da Spencer. Se ela pudesse fazer alguma coisa... qualquer coisa. Tenho certeza de que ela me viu. Mas tudo o que fez foi olhar para Spencer e sorrir. Eu estava perdendo o controle da situação, então anunciei rapidamente: Agora que resolvemos isso, vamos iniciar nossas atividades com a divisão de grupos – coloquei algumas revistas femininas sobre a mesa. – Gostaria que vocês recortassem quaisquer imagens femininas positivas ou negativas que encontrarem. As garotas se dividiram em grupos. Spencer marchou até mim. – Por que você me interrompe cada vez que abro a boca? Estava dizendo coisas importantes. Arrastei-a até as portas, longe dos ouvidos. – Escute, sinto muito se te interrompi. É que temos muitas coisas planejadas e pouco tempo para realizá-las. Realmente quero que você sinta que tem todo o direito de se expressar. Mas também preciso que siga a minha liderança, ok? Spencer olhou diretamente nos meus olhos. – Não deveríamos fazer isso juntas? - Sim, mas você precisa expressar suas opiniões de forma que sejam benéficas ao grupo. Ninguém quer nos ver discutindo. Spencer jogou as mãos para o ar. – Tudo bem, Natalie. Qualquer coisa que você quiser, é você quem manda. Vou apenas ficar aqui e ser a garota malvada que está aqui para ajudá-la. - Não é isso que está acontecendo – disse, cruzando os braços. Por que a Spencer estava tornando tudo tão difícil? Nem tudo gira em torno dela. - Bem, mas não parece – retrucou. 77


- Veja, você pode conduzir o próximo debate. - Como você quiser – falou e depois saiu. Não pude acreditar. Como a Spencer não conseguia enxergar a grande oportunidade que havia recebido? - O que está acontecendo? – perguntou Autumn. – Por que você está maltratando a Spencer? - Não estou! – disse, passando os dedos pelo cabelo. – Ela está tumultuando tudo. Bem que você poderia ter me ajudado antes, se não estivesse ocupada fazendo as pazes com a Marci. Fala sério. O que foi aquilo? - Honestamente, não tenho a mínima idéia. – Autumn pareceu-me sincera. – Mas pensei que fosse exatamente isso que você queria com este evento. Suspirei, porque a Autumn não conseguia entender. Ela não tinha a Srta. Bee fungando em seu pescoço. Depois de alguns minutos, Spencer reuniu todos novamente nas arquibancadas. Fiquei ao seu lado para que pudesse intervir facilmente se ela dissesse algo de errado. Vamos começar com esta imagem. – Spencer mostrou parte de um ensaio com tema ―volta às aulas‖ em que a professora personificava uma mulher fatal. Ela estava em cima da mesa, vestindo meia arrastão e salto alto, com alunos rastejando pelo chão. - Alguém gostaria de comentar? Ninguém levantou a mão, portanto eu mesma fiz o comentário. – Acho essa foto muito preconceituosa. - Acha mesmo? – perguntou Spencer. - Ah, sim. É visível que esta mulher está sendo tratada como um objeto. - Mas você não acha que ela detém o poder nessa situação? Os garotos estão literalmente se jogando aos seus pés, implorando sua atenção. Olhei a figura novamente. Talvez a Spencer até tivesse razão, mas mesmo assim disse: - Na verdade, não. - Viram! Isso é exatamente o que eu quis dizer. Quando uma mulher ousa mostrar seu poder sexual, logo presumimos que está sendo vitimada ou abusada, quando, na verdade, somos nós quem controlamos a situação. Apertei os lábios com toda força. Em que momento o tópico da noite passou a ser: como a Spencer adquiriu o direito de se prostituir? Autumn levantou a mão: - O que você quer dizer com isso, exatamente? 78


Spencer sorriu e começou a oferecer os seus conselhos. – Tudo é uma questão de confiança. Você precisa saber quem você é, o que você quer, e então usar seus poderes femininos para dominar os meninos. Resmunguei. - Confesse, Natalie. Você já se sentiu querida alguma vez? Um cara olhou para você tão fixamente que se esqueceu de piscar? Dei de ombros, mesmo sabendo que a resposta era sim. Com o Connor. Mas não foi algo que eu tivesse sob controle, foi algo que eu tentei ignorar. Spencer continuou falando sobre como é bom termos o controle da nossa sexualidade e como usar esse poder para fazer com que os garotos nos venerem. Michelle Heller contou que induziu um rapaz a comprar seu vestido da festa de formatura porque ele queria desesperadamente ser seu par. Spencer pediu que todas as garotas presentes dessem uma calorosa salva de palmas a Michelle. Encontrei um lugar na arquibancada e fiz de conta que estava lendo um artigo de uma das revistas que ninguém se preocupou em pegar. Estava tão brava que nem enxergava as palavras, apenas os espaços em branco entre as linhas. Foi naquele momento que compreendi que a Spencer nunca iria mudar; fui burra ao tentar.

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Capítulo 16 lguém me acordou.

A

— Natalie? Abri os olhos e vi a Susan Choi agachando para falar comigo.

— Sim? — perguntei com voz sonolenta. Não tinha certeza de quando peguei no sono, mas isso não fazia nenhuma diferença. Tecnicamente, era minha função fazer com que pelo menos uma garota ficasse acordada durante a noite para que ganhássemos doações pelo nosso pernoite. Se ao menos a Spencer não tivesse, basicamente, arruinado a minha noite. Ela foi a DJ da ―dança do pijama‖ enquanto eu recolhia as embalagens e os restos de comida do chão. Ela organizou uma sessão de maquiagem enquanto eu recolhia as bolas de algodão e os cotonetes usados. Como se não bastasse, improvisou uma sessão de fotos das garotas de pijamas, para a qual não fui convidada a posar, deixando-me apenas a incumbência de manusear 15 câmeras de celular diferentes. Quando a Srta. Bee retomou ao ginásio, tentei mostrar um semblante de alguém que estivesse no comando. Mas quando ela foi se deitar, entrei no meu saco de dormir m protesto. Não porque o seminário não tivesse sido um grande sucesso, foi. Mas porque não participei dele. — Acho que a Spencer deixou alguns dos jogadores de futebol entrar — Susan sussurrou. — Fiquei acordada em silêncio. Outras garotas dormiam à minha volta, incluindo a Autumn, que dividia o travesseiro comigo. — Quê? Quando? — Shhhh — sinalizou Susan —, ainda há pouco vi a Spencer sair do ginásio, e depois mais duas garotas, uma de cada vez. — Onde está a Srta. Bee? — Ela está dormindo no sofá do escritório do ginásio. Natalie, é melhor você ir buscálas antes que a Srta. Bee acorde, senão seremos todas expulsas! 80


Minha vontade era virar para o lado e deixar a Spencer se dar mal. Mas sabia que não ia conseguir. Se a Srta. Bee descobrisse, nunca mais me respeitaria novamente. Sem falar no diretor Hurley. Se eu colocasse tudo a perder, poderia ser suspensa junto com a Spencer. Os corredores estavam escuros, salvo por algumas luzes de emergência próximas às escadas e a iluminação azul das telas dos monitores e televisores que não foram desligados para o fim de semana. Parecia o ambiente assustador e perigoso de um filme de terror. Passei pela ala de matemática, movendo-me o mais cuidadosa e silenciosamente possível em minhas pantufas e seguindo as risadas e gritos travessos que vinham do laboratório de ciências no fim do corredor. Sombras se mexiam do outro lado do quadro de avisos e das fileiras de armários, silhuetas de pessoas correndo. Entrei no corredor. Vários garotos desapareceram escada abaixo. Uma silhueta enorme, definitivamente de um garoto, fugiu para o banheiro feminino que ficava no meio do corredor. Três garotas estavam atrás deles. Tirei as pantufas e corri atrás delas o mais rápido possível, com os pés estalando no chão. Os estalos fizeram com que rissem e gritassem ainda mais alto. Segurei uma das garotas pela alga da camisola até que parasse. Mesmo assim, temi que a camisola rasgasse em minhas mãos. — Ei! Cuidado — gritou, excitada e envergonhada por ter sido pega. Sua feição mudou quando me viu. — Volte para o ginásio — disse a ela o mais firme possível. — Já — rezei para que ela realmente me atendesse. As outras garotas pararam e me olharam irritadas. Eram todas ―Rosstitutas‖. Uma abriu a boca para dizer alguma coisa, mas mudou de ideia ao ver meu olhar enfurecido. — Vocês querem realmente arrumar mais problemas para o seu lado? — perguntei. As três voltaram tristes para o ginásio. Virei-me e abri a porta do banheiro. A lua brilhava majestosa pela janela, e a iluminação era suficiente para mostrar Connor Hughes em cima do aquecedor, vestindo jeans, camisa de flanela e uma jaqueta de linho verde-escura. Ele não esperava que fosse eu a segui-lo e, realmente, parecia estar um pouco assustado. — O que você está fazendo aqui? — perguntei com reprovação. Connor desceu. — Esqueci de pegar um livro. — Deixe suas desculpas ridículas de lado. Você e os outros garotos precisam ir embora imediatamente antes que todos nós sejamos expulsos. — Deixe disso, Sterling. Estamos apenas nos divertindo.

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Observei o seu jeito de agir. A forma como ficava tão relaxado e casual. A forma como sorria para mim com o canto dos lábios. Ele mostrava confiança, era totalmente seguro de si. Naquele momento, entendi o poder verdadeiro que alguém como Connor possui. Poderia convencer uma garota a fazer qualquer coisa, menos convencer a mim a deixá-lo ficar ali. — Connor, estou falando sério. Ou você vai embora agora ou vou chamar a Srta. Bee. — Você não faria isso — disse, vindo em minha direção. Gargalhei. Ele esperava que eu desmaiasse ou algo parecido? Dei um passo na direção dele também, cruzei os braços e cheguei ainda mais perto. — É mesmo? Então pague para ver. Por alguns segundos nos entreolhamos, e uma sensação estranha tomou conta de mim, começou nas pontas dos pés e depois espalhou-se por todo meu corpo. — Gostei do seu pijama — ele disse. — Fique quieto — respondi. Ele sorriu sem graça, fazendo com que uma covinha aparecesse na face esquerda. — Você é bem durona, não é mesmo, Sterling? Gostava quando Connor me chamava pelo sobrenome. Algumas garotas ficariam insultadas, porque é assim que os garotos tratam uns aos outros. Mas eu não. Considerei aquilo um elogio. E também a palavra durona. Quis acreditar que ele estava sendo sincero, da mesma forma como foi naquele dia no banco de reservas. Mesmo assim, não conseguia pensar em outra razão para ele me dizer aquilo além da de querer me convencer a não chamar a Srta. Bee. Precisava mostrar ao Connor que não cairia a seus pés como as outras garotas da escola. Portanto, resolvi dar outro passo à frente e colocar as mãos na cintura. — Você não tem ideia de como sou durona - disse a ele. Ele deu outro passo. Bem grande, fechando o espaço que havia entre nós. E então ele me beijou. Agarrou-me e me beijou, e todo o corpo dele ficou tenso logo em seguida. Foi uma atitude ousada dele, me beijar sem nem ao menos pedir primeiro. Não podia deixar que escapasse. Portanto, quando ele se afastou, aproximei-me e o beijei com mais força ainda, camuflando a minha inexperiência com entusiasmo. Foi um beijo ardente. Não havia necessidade de permissão, definitivamente, precisava acontecer. Quando nos separamos, meu coração disparou loucamente. Queria beijá-lo outra vez. Mas, em vez disso, juntei algumas palavras e disse calmamente. — Agora faça o que mandei e saia daqui. Foi quando ele deu um passo para trás, abrindo um espaço entre nós. Senti a temperatura do corpo esfriar. — Tudo bem — ele disse, indo embora.

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Fiquei imóvel por alguns segundos. Quando saí do banheiro, Connor já estava no fim do corredor, reunindo os outros garotos e dizendo: — Vamos embora! Atrás de mim, ouvi uma porta se abrir. Quando virei, vi Mike Domski saindo do laboratório de Ciências e correndo para junto dos outros garotos. Tinha um enorme sorriso idiota no rosto. — Até mais tarde, Natalie — disse, zombando. Dei uma última volta pelos corredores da escola, para ter certeza de que não havia mais ninguém. Ao voltar ao ginásio, vi Spencer deitada em seu saco de dormir com os olhos fechados. Estava fingindo, mas resolvi não dizer nada. Um único momento tomava toda a minha mente, todo o meu corpo: eu, Natalie Sterling, havia acabado de beijar, e dispensar, Connor Hughes. Senti uma paz estranha carregando esse enorme segredo, pois sabia que ninguém no ginásio acreditaria. Nem eu mesma conseguia acreditar.

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Capítulo 17

P

osso falar com você um minutinho? — Spencer praticamente me encurralou em meu armário. — Quero que você saiba que não convidei aqueles caras para a escola, eles simplesmente apareceram. Aí tentei tirá-los de lá. Eu nunca faria nada que pudesse te causar qualquer tipo de problema, Natalie — disse, colocando uma das mãos sobre o brasão da Academia Ross em seu uniforme de moletom. — Juro.

Fiquei olhando para a Spencer. Ela parecia estar falando a verdade. — A Srta. Bee lhe disse alguma coisa? — Não, por quê? Você acha que ela sabe? Tinha minhas suspeitas. A Srta. Bee tinha sido fria comigo na manhã após aquele pernoite. Ela parecia mais interessada em achar água quente para o seu chá do que em falar comigo. Felizmente, a irritação dela era resultado de uma noite mal dormida no sofá do escritório do ginásio. — Acho que não. — Excelente, então tá tudo bem — sorriu Spencer. — Foi excitante, não foi? Foi. É, foi... Comecei a ver o Connor com mais freqüência. Ou talvez tivesse percebido mais a presença dele. De qualquer forma, depois daquela noite no banheiro, começamos a colidir um com o outro bastante. Parecia que estávamos brincando nos salões, na secretaria, na lanchonete. Connor olhava para mim e começava a rir... aquele tipo de riso travesso cheio de segredos... e eu o ignorava o mais rápido possível. Um dia nos esbarramos no estacionamento após a escola. Sua figura se destacava por causa das proteções que usava para o futebol, já que vinha do treino. Fiquei fora até mais tarde, trabalhando nos enfeites para o baile de Halloween e esperando por Autumn, que deixou um livro em seu armário. A maioria dos carros estacionados entre os nossos naquela manhã já tinha saído. Ficamos apenas ele e eu. 84


— Ei, Sterling — disse Connor. Ele estava sentado no pára-choque, tomando Gatorade e molhando os lábios que eu tinha beijado. Apesar das manchas da grama e do suor e toda aquela sujeira, ele estava lindo. Não respondi. Até podia ter entrado no meu carro, mas aí não teria graça. Então passei a colocar os livros, um a um, no porta-malas. — Você vem ao jogo desta sexta-feira? Virei-me para olhar melhor para ele e tive que proteger meus olhos do por do sol. — Por que eu faria isso? — Porque vou jogar - ele disse, estufando o peito. - E, de qualquer forma, isso não faz parte das atribuições como presidente do conselho estudantil? Você sabe, apoiar os times da escola. Ele sorriu, achando que estava conseguindo me convencer. Um fofo, de verdade. Mas Connor obviamente nem imaginava que eu era uma das melhores debatedoras na Academia Ross. E aí, por mais que ele tentasse defender seu ponto de vista, eu sempre iria rebatê-lo. — Isso não faz parte das minhas atribuições. Sinto muito — falei com sarcasmo. — Temos uma ótima chance nas eliminatórias. — Então, boa sorte! — falei sem emoção. Ele levantou e deu uns passos em minha direção. — Poxa, venha ao jogo! Fechei o porta-malas, furiosa. — Tenho certeza de que não faltarão lindas fãs — tentei ficar calma e olhando para o chão. Quando levantei o olhar, vi Connor praticamente em cima de mim. — Mas não é delas que eu gosto — disse, com os olhos fixos nos meus. Sua voz estava engraçada, como se estivesse conversando e gemendo ao mesmo tempo. Não consegui saber se estava tirando uma com a minha cara ou se estava se achando ridículo pelo que tinha acabado de confessar. De qualquer forma, minha temperatura subiu. Escutei uma das pesadas portas metálicas da escola se abrir. Era Autumn. Meu coração parou. — Tenho de ir — disse depressa e passei por baixo do braço de Connor. Ele também deve ter visto a Autumn, pois não disse mais nada, simplesmente voltou para o carro.

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Achar uma roupa legal para o Halloween pareceu mais difícil do que encontrar o Santo Graal14. E para um lugar que anunciava ser uma espécie de Halloween megastore, não havia muita escolha. — Espero que a gente consiga encontrar roupas iguais — disse Autumn. — Eu também — falei e pensei em Marci Cooperstein. Agora que as duas tinham feito as pazes, queria ter certeza de que Marci não viesse com ideias. Autumn era minha melhor amiga, e não ia permitir que Marci ficasse entre nós. Autumn lhe perdoou, mas isso não significava que elas pudessem retomar do ponto em que haviam parado antes daquela coisa toda da isca de peixe. Autumn disse: — Não acredito que a gente não tenha ido a um único baile sequer juntas. Parece até que estudamos em casa e nem vamos à escola! O fim do namoro de Autumn com Chad foi um pouco antes do baile de Halloween, quando éramos calouras, portanto nem fomos. Nos anos seguintes, parecia mais um aniversário estranho que nos fazia lembrar de tudo o que aconteceu. Nesse dia, fazíamos o nosso próprio programa. — Não ficaria muito entusiasmada com esse baile — disse. Ela fez uma cara feia e perguntou: — Por quê? — Bem, não quero que você se decepcione. Quer dizer, como um baile escolar pode ser tão bom assim? Vamos estar no ginásio, onde fizemos exercícios e suamos, e que tem cheiro de chulé. Sem falar que organizar um baile dá uma tonelada de trabalho, só para completar todas as minhas outras obrigações de sempre. — Você é muito negativa, Natalie. Desde o seminário, Autumn estava agindo de forma diferente. Mais alegre, acho. Sabia que deveria ficar feliz por ela. Mas por algum motivo, isso me dava mal-estar. — Não vejo fantasias para adultos - disse, entrando em outro corredor. — Tudo é para crianças. — Nem tudo - retrucou Autumn. Ela estava dedilhando uma enorme cortina feita de contas como se fosse um violão gigante. Uma luz rósea e fluorescente vinha daquela sala. Autumn entrou e fui atrás dela. — Muito bem - exclamei com cautela. — Pelo jeito você encontrou a sessão de adultos.

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Santo Graal ou Santo Gral é uma expressão medieval que designa normalmente o cálice usado por Jesus Cristo na Última Ceia. (N.T.)

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Autumn deu uma olhada nas prateleiras. — Então, você está procurando algo do tipo mocinha francesa, ou quem sabe... — e riu tanto que quase perdeu o fôlego. — O quê? — perguntei. Ela puxou um verdadeiro arco-íris de tubinhos da prateleira e pôs na sua frente. — Uma prostituta palhaça? Quem é que vai comprar uma coisa dessas? Mordi o dedo, dizendo: — Os irmãos Ringling15 dizem que sou uma garota muito má! Passamos os dez minutos seguintes morrendo de rir daquelas roupas de extremo mau gosto: várias roupas pareciam feitas para vagabundas e outras para seres andróginos. Alguns dos outros clientes pareciam estar irritados com a gente. Em sua defesa, devo confessar que nós estávamos praticamente gritando. Mas eu não estava nem aí. Havia um gostinho de passado, das épocas em que nós duas parecíamos tolas e não nos importávamos com isso. Eu não estava nem perto de encontrar uma roupa e isso me deixava louca. — Excelente! Então posso ser uma prostituta nojenta ou uma vagabunda de peitos grandes. — Espere um pouco. Esse aqui é até bonitinho. — Autumn segurava um vestido cintilante com um colorido azul e verde. Parecia um tanto grudento, mas pelo menos era longo, chegando até o chão. — Apresentadora de programa de televisão? — tentei adivinhar. — Não. — Autumn colocou subitamente uma peruca longa e loira e amarrou um Xale em volta dos ombros. Era uma rede solta e havia estrelas-do-mar cor-de-rosa e cavalosmarinhos verdes colados a ela. — É uma fantasia de sereia! O que você acha? Não é legal? — Autumn... — não sabia o que dizer. Honestamente, estava tão na cara... — Tudo bem — ela disse, com uma voz amarga, pendurando de volta no cabide. — Deixa para lá. Fiquei chateada, mas por que a Autumn estava me culpando por mostrar o óbvio? Que tipo de amiga seria se a deixasse usar aquela fantasia, especialmente porque ela estava tão desesperada para se divertir no baile? Seria como entrar na cova do leão, vestindo uma roupa feita de filé-mignon. — Vamos embora — disse. — Vamos fazer nossas próprias fantasias. Será divertido. — Mas você está superocupada com as tarefas do conselho estudantil — lembrou-me. — Você não vai ter tempo. Mal conseguimos sair desde a eleição e o baile é na semana que vem.

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Sete irmãos que transformaram sua companhia de teatro no maior circo dos Estados Unidos no fim do século 19. (N.T.)

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Fiquei incomodada, pois essa era minha maior preocupação em setembro, e era por isso que eu queria que Autumn tivesse aceitado ser a minha vice-presidente. Mas já era tarde para tanto. — Vou dar um jeito, prometo. — Então, o que seremos? Será que ainda dá para fazer duas fantasias que combinem? Eu disse que sim. E era a minha vontade, pelo menos até sairmos da loja, quando vi um boné marrom imitando couro e grandes óculos de proteção. Soube imediatamente: não ia bancar a prostituta ou algo do tipo no Halloween. Eu iria de Amélia Earhart.

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Capítulo 18

ssim que pisei no ginásio na noite de Halloween, mal consegui acreditar na beleza que contemplava. Já tinha ficado bonito quando terminei de decorar depois da aula, mas tudo estava muito melhor no escuro. Os corrimãos das arquibancadas estavam cobertos de teias de aranha. Os túmulos de papelão que havíamos feito na semana passada pareciam reais à meia-luz. Havia abóboras delimitando a área de dança do restante do ginásio e o DJ que contratamos trouxe as luzes piscantes e a máquina de fumaça. O ambiente todo estava no meio da névoa. Não dava para ver a marcação das quadras no chão nem os colchonetes e tudo o mais.

A

Autumn veio correndo em minha direção, dizendo: — Finalmente você chegou! — Não acreditei no que vi. Autumn estava usando a fantasia de sereia que vimos na loja. Antes mesmo que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela me deu o maior abraço, quer dizer, o maior abraço que ela conseguiu dar, pois eu estava em pé dentro de um avião de papelão preso aos meus ombros por suspensórios. — Sua fantasia está maravilhosa. Não acredito que você mesma fez. — Mas custou caro — disse, mostrando como meus dedos estavam feridos por cortar o papelão com uma tesoura cega. Apesar do meu machucado, estava amando a fantasia de Amélia Earhart. Tinha uma blusa de seda creme que comprei para usar nas entrevistas para a faculdade e calça marrom com a barra enfiada dentro das botas de couro. Cacheei as pontas do cabelo e prendi tudo pra cima em um coque. E ainda estava com chapéu e óculos de piloto de avião. Mas o avião impedia meus movimentos — devia ter feito asas mais curtas. — Não tive tempo de fazer a minha — admitiu Autumn, olhando para a sua fantasia justa. — Ah — não sei o que ela queria que eu dissesse. Ela já sabia que achava aquilo uma má ideia. Autumn chegou mais perto e disse, como os olhos arregalados: — Você está usando maquiagem? Dei de ombros, a alegria de Autumn me deixava constrangida. — Só batom. Acho que Amélia teria usado, então peguei emprestado da minha mãe para ficar mais autêntico. 89


Não era verdade. Amélia fazia o tipo andrógino. Mas gostei de usar a cor vermelhocereja e depois, com todo cuidado, de deixar a marca de batom no papel higiênico, com o formato de um beijo Nunca tinha usado batom antes. Só gloss, mas nada tão dramático. Não conseguia parar de pensar se Connor iria notar. — Não acredito que todas essas pessoas estejam dançando — gritei, pois não dava para falar com o barulho da música. Era uma imensa multidão de garotos e garotas pulando para cima e para baixo. — Eu sei. E não tem só garotas. Alguns dos jogadores de futebol também estão aqui. Então, os garotos do futebol tinham vindo. Não sabia se as músicas seriam ―legais o bastante" para eles. Era bem provável que só estivessem lá por causa da comida. Queria ver qual seria a fantasia de Connor, se é que ele tinha se dado ao trabalho de usar uma. Autumn pegou na minha mão e me arrastou para o meio do ginásio. Olhei em volta, mas, por causa das luzes, da fumaça e das fantasias, estava difícil identificar as pessoas. — Quer beber alguma coisa? — gritei novamente. Ela concordou e fomos juntas até a mesa de bebidas. Era lá que todos os professores estavam, vestindo suas fantasias. O diretor Hurley estava totalmente adequado com sua fantasia de oficial do exército e as botas pretas brilhantes, bem amarradas. A única professora sem fantasia era a Srta. Bee. E apesar de fazer com que todos os outros parecessem idiotas, senti um pouco de pena dela. Como se, por alguma razão, a Srta. Bee não conseguisse se vestir dessa forma mesmo que quisesse. Os olhos dela se iluminaram quando me viu. — Oh, Natalie! Adorei sua fantasia! Prometa que vai tirar uma foto comigo antes de a noite acabar — seu sorriso virou uma careta quando olhou por detrás dos meus ombros. — Queria que as outras meninas seguissem seu exemplo. O diretor Hurley e eu estamos pensando na possibilidade de criar regras para uso das fantasias no ano que vem. Virei-me e vi Spencer. Já esperava que sua fantasia fosse meio exagerada, e com certeza ela tinha se transformado em uma vagabunda da construção civil. Mas sua fantasia não parecia barata nem de plástico como as fantasias prontas que se compram em lojas de fantasia. Era bem feita, com certeza era uma de suas fantasias de apresentações de dança passadas. Imaginei que o armário de Spencer provavelmente tinha uma loja inteira de fantasias de Halloween. Ela trajava um minivestido justo em um corte de macacão. Usava uma regata branca por baixo, mas o modelo era como um espartilho, deixando os peitos explodindo para fora. A saia chegava bem embaixo do bumbum e quando ela se abaixava com a música, dava para Ver pedaços de um calção laranja brilhante. Um colete justo da mesma cor estava jogado de forma displicente em seus ombros. Usava capacete de peão de obra e um cinto cheio de ferramentas de plástico. E — vai saber onde ela arrumou aquilo —, para finalizar, usava botas de amarrar de salto alto no estilo Timberland. 90


Ela parecia uma stripper de verdade. Estava dançando no meio de dois jogadores de futebol. Um deles era Mike Domski, usando um uniforme de listras brancas e pretas de presidiário, com um par de algemas soltas se agitando em seu pulso. Dava para ver que o Mike estava ligadão na Spencer. Ele não conseguia tirar os olhos dela. E o outro cara que completava o sanduíche de Spencer era Paul Zed, que não usava fantasia, só uma enorme peruca afro. Os dois se empurravam para cima de Spencer, apertando-a no meio deles. Parecia que ela estava se divertindo como nunca. Atrás dela, percebi que Diana Berry estava dançando, uma garota que faz aula de francês avançado comigo. Ela usava um espartilho xadrez com meias arrastão brancas e mocassim de salto alto, fumando cachimbo. Ri tanto que quase derrubei meu copo. Depois que Autumn e eu estávamos longe do alcance de audição da Srta. Bee, disse: — A Diana está usando a versão piranha de Sherlock Holmes? Ooooh! Resolvo mistério... e então danço no seu colo! Pala sério, pensei que ela fosse mais esperta. — A Diana é uma garota legal — disse Autumn. Balancei a cabeça e perguntei: — O que isso tem a ver? — Ela só está se divertindo — respondeu como se tivesse jogando na minha cara. Como se não tivéssemos feito exatamente essas mesmas piadas semana passada. Ocorreu-me que talvez estivéssemos tendo algum tipo de conversa secreta. Como se aquilo não tivesse nada a ver com Diana. — Olha só para ela. — Diana puxava a barra da saia e dançava conforme a música, tentando manter o traseiro coberto. Tá, Diana era uma garota bonita e cheia de curvas. Mas a fantasia dela apertava em lugares estranhos do corpo. Ela parecia bem mais bonita usando o uniforme escolar, pensei. — Parece mesmo que ela está se divertindo? Ou parece que está desesperada querendo a atenção de qualquer um? Autumn torceu o nariz e questionou: — Você vai agir dessa forma a noite toda? — Dessa forma como? — Nenhuma. Deixa para lá. Só quero me divertir. — Eu também — não entendi o que estava acontecendo. Autumn praticamente bloqueou minha passagem quando tentei andar e sei que ela estava tentando arrumar briga por causa da fantasia da Diana. Foi então que vi Connor Hughes, também vestido de presidiário, vendo Diana dançar. Meu coração se despedaçou. Alguns garotos estavam sentados em uma pilha alta de colchonetes. Bobby Doyle sussurrou alguma coisa no ouvido de Connor, mas o que quer que ele estivesse ouvindo não era tão interessante a ponto de desviar o olhar de Diana. Tentei desviar o olhar, mas não consegui. É claro que garotos como Connor vão prestar atenção em garotas seminuas dançando na frente deles. Como não? Era praticamente instintivo. Primordial. Não existe imunidade a peitos e bundas para adolescentes. Mas senti-me 91


completamente idiota por ter passado batom. Fez com que me sentisse tão desesperada quanto Diana e todas as outras garotas. Fez com que sentisse raiva de mim até mesmo por ter tentado. Pois, na verdade, sabia que não devia fazer isso. Quando a música acabou, Diana foi para a arquibancada, arrastando seus saltos pelo caminho. Connor desviou o olhar para dar uma geral no ginásio. Foi aí que ele me viu. Respirei fundo e olhei por detrás dele, procurando uma pessoa invisível no meio da multidão. Queria que o olhar dele congelasse em mim. Ficasse em mim da mesma forma que tinha ficado em Diana. Mas só chamei a atenção dele por um segundo. Talvez nem um segundo. Na verdade, não dava nem mesmo para ter certeza se ele tinha me visto. Tudo aconteceu muito depressa. Uma sensação terrível se alojou na boca do meu estômago. Será que tinha imaginado as coisas com Connor? Sei que nos beijamos, mas ele sempre estava fazendo isso. Talvez tenha sido só uma ousadia. Ou talvez meu beijo seja muito ruim. Odiava a forma como estava me sentindo. Estúpida. Insegura. Usada. A música recomeçou. Todo mundo curtiu. Até Autumn. — Venha, Natalie. Vamos dançar! — Não sei essa coreografia — disse, procurando um guardanapo para tirar o batom. Autumn segurou minha mão dizendo: — Nem eu. Mas isso não significa que não podemos dançar. — Ela começou a se mexer no ritmo da música, balançando o meu braço. Era quase tão constrangedor quanto dançar. Soltei minha mão e falei: — Acho que vou só ficar por aqui. A mesa está meio bagunçada. E estou me sentindo um pouco mal por te chegado atrasada. Acho que vou ajudar. — Por favor! — Autumn implorou, tentando pegar meu braço novamente. — Dance comigo. — Dei um passo para trás e ela fez uma careta. — Vamos, não quero deixá-la aqui sozinha. — Eu estou bem. Vai lá. Autumn olhou feio para mim. Ela me conhecia muito bem. Queria contar para ela sobre essa história toda com Connor, mas não conseguia. Não com aquela fantasia ridícula. Não ouvindo um rap ridículo na potência máxima. — Então, tá. — Autumn retrucou e carregou sua cauda de peixe para longe. Marci Cooperstein já estava na pista, a fantasia dela era um lápis dançarino. Ela acenou para Autumn e elas praticamente se abraçaram quando Autumn correu em sua direção. Começaram a dançar, girando e fazendo movimentos coreografados e engraçados que o pessoal inventava o tempo todo. Tentei não sentir ciúme, mas senti. Estava morrendo de ciúmes. 92


Passei a me ocupar imediatamente, certificando-me de que os petiscos estavam sendo servidos e de que tínhamos gelo o suficiente na geladeira. Por cima do ombro, ouvia a galera gritar o tempo todo a cada nova música. Aquilo fazia com que me sentisse inacreditavelmente solitária. Quando não havia mais nada a fazer, fiquei observando Spencer. Os movimentos dela eram suaves e autoconfiantes, mesmo estando totalmenteridícula com aquela fantasia. Ela não dançava somente com um ou doiscaras, dançava com a escola inteira — meninos e meninas. Todo mundo olhava para ela, incluindo Connor. Eu vi. Apesar de todos os meus esforços, toda vez que tentava não olhar em sua direção, era exatamente onde meusolhos iam parar. Em um intervalo entre as músicas, Spencer veio até a mesa de petiscos, seguida de várias amigas. A testa dela estava toda suada. Ela pegou uma lata de Sprite da geladeira e a esfregou no rosto. Suas amigas foram ao banheiro, arrumar o cabelo e a maquiagem. Spencer se aproximou de mim e sorriu para a minha fantasia. — Você estátão... elegante — foi a palavra que ela decidiu usar, fazendo-me perceber o quanto estava inapropriada para a ocasião. Tentei sair de perto dela, mas bati nela com uma das minhas asas. Spencer ficou ao lado do meu avião de papelão e mordeu os lábios, como se estivesse decidindo dizer ou não uma coisa para mim. — Sabe, Natalie, você tem um corpo tão bonito. Sua bunda fica linda com essa calça. Por que você esconde isso de todo mundo? Não gostava da sensação de ser avaliada por Spencer. Fazia com que me sentisse pequena, mesmo sendo mais alta que ela. — Não estou escondendo nada. — Então, por que não está dançando? Quer que te ensine uns passos rápidos no corredor? — Estou bem, obrigada — minha fala parecia tudo, menos um agradecimento. — Não dá para entender você — Spencer virou e se apoiou na mesa, mostrando ainda mais os peitos. — Você pode ter o cara que quiser daqui se você se soltar só um pouquinho. — Obrigada pelo conselho — disse, irritada. Pois eu já tinha o cara que queria, mas ele não me queria mais. — Parece que você está com Mike Domski aos seus pés. Ela sorriu e disse convencida: — Fácil demais. — Só tome cuidado. — Implorei. Mas Spencer não me ouviu. Ela já estava pulando no meio da pista de dança. E ela tinha que tomar cuidado com o quê? Connor atravessou o ginásio e veio para perto de mim. Antes de me dar conta do que estava fazendo, tirei o avião de papelão e o chutei para debaixo da mesa. E então comecei a arrumar coisas que nem precisavam ser arrumadas, só para parecer que estava fazendo alguma coisa. Ouvi Connor vindo por detrás de mim. Era quase fácil demais. — Oi, Sterling. Está se divertindo? 93


Ri. — Não tanto quanto você. Vi você babando por todas as garotas do ginásio. — Então você está me observando? — Ele piscou tímido e ao mesmo tempo arrogante. Senti minha voz presa na garganta quando disse: — Não fique se gabando. — Por que você é tão ruim comigo? — Porque não confio em você — o que era verdade. E por mais que soubesse disso, a agitação que sentia quando conseguia a atenção de Connor ainda me fazia sentir embriagada. Estava agindo como louca e não achava que conseguiria me controlar. Não estava nem tentando. Ele não disse mais nada, então fiquei de costas para ele e despejei um saco de M&M’s numa tigela. Ele esticou a mão imediatamente para pegá-los. Pelo menos achei que fosse pegálos. Mas a mão dele parou bem acima da tigela. E quando ele abriu a mão, vi um pedaço de papel no meio da palma. Virei-me para encará-lo e perguntei: — O que é isso? — apesar de já saber a resposta. Sabia, mas não conseguia acreditar. — Nada. — Disse e senti o bafo de cerveja na mesma hora. — Veja você mesma. — Não vou pegar um pedaço de papel imundo da sua mão. — Sterling — ele riu a princípio. E então, quando viu que não estava brincando, resmungou. Olhei bem para ele. Como ousava resmungar de mim! Como se eu fosse uma pessoa impossível? O olhar dele era sonolento e suave, mas sua beleza não diluía minha raiva. — Por que você não dá isso para uma das piranhas que estava olhando? Tipo sei lá, Spencer. Ela tinha o seu número na estúpida camiseta de ―Rosstituta‖. Tenho certeza de que adoraria ficar com você. — Pega isso, tá bem? Cruzei os braços, então Connor enfiou o papel dentro do meu bolso. A mão dele me deixou quente como carvão, e quando ele esticou o braço para pegar um M&M's, tinha certeza de que a tigela ia derreter. A arrogância dele me dava nó no estômago. — Tome — tirei o papel do bolso e tentei devolver a ele. — Não estou interessada. Connor deu um passo em minha direção. Como não estava mais usando o avião, deu para ele chegar bem perto. Perto o suficiente para perceber que ele tinha feito a barba e tinha um pequeno corte onde o queixo se encontrava com o pescoço. Perto o suficiente para poder sentir o cheiro de plástico da fantasia dele. Ele pegou a minha mão e a fechou com o número de telefone dentro, para ter certeza de que ia segurá-lo. Fez aquilo como se fosse um mágico escondendo uma bola de espuma vermelha nas mãos para um truque. E depois foi embora. 94


Abri a mão e vi o papel. Não era um truque. E percebi o que tinha acabado de acontecer. Nossa paquera no corredor ou naquela noite do banheiro não iria muito longe. Mas Connor tinha feito uma jogada. Estava em minhas mãos, ou eu começava a jogar ou era fim de jogo.

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Capítulo 19

Q

uando o baile acabou, o conselho estudantil teve de retirar toda a decoração e recolher as sobras de comida. A maioria dos alunos já tinha ido embora, só havia umas poucas pessoas por lá e eu era a única que estava trabalhando de verdade. O técnico Fallon ia me dizendo o que fazer, apontando para os doces amassados e as manchas grudentas no chão. Queria tanto dizer a ele que tinham sido seus adorados atletas que tinham decidido jogar doce uns nos outros, e os encontrões e tropeços deles tinham espalhado refrigerante por toda a parte, e não eu. Não a garota que estava limpando a sujeira feita pela brincadeira de todo mundo, como a Cinderela. Autumn estava sentada na arquibancada, conversando com Marci e umas outras garotas. Estava com raiva por ela não estar ajudando a limpar. Quanto mais eu ficasse ali, mais tempo demoraríamos para voltar para casa. Estava exausta e imaginava o quanto Autumn devia estar cansada, pois assim que me largou para dançar com a Marci, só parou depois da última música. Bem, praticamente fui ignorada a noite toda. Depois que Connor saiu do baile, não parei de tocar em meu bolso para sentir o papel, como se precisasse ter certeza de que aquilo não era um sonho. Ainda mais quando ele passou por mim na porta sem ao menos lançar um olhar. Acho que realmente o constrangi. — Oi — disse Autumn atrás de mim. — Tem uma galera que vai para a casa de Bobby Doyle. — Tá. E aí? — Então... vou dar uma passada lá. Você quer vir comigo? — Pensei que você fosse dormir na minha casa — dava para sentir a mágoa em minha voz, o que me dava ódio. — E vou. Só vou fazer um pequeno desvio primeiro. No máximo por uma hora. Aquilo não era um convite. Era uma humilhação. 96


Olhei por cima do ombro dela e vi Marci e as outras garotas. Olhavam para nós, meio impacientes. Era óbvio que eu estava atrasando os planos delas, mas não estava nem aí. Não ia facilitar as coisas para Autumn. Então, virei-me e fui me distanciando dela, indo em direção ao armário de materiais. Autumn veio atrás, mas lentamente, como uma criança a sendo arrastada por uma loja de departamentos. — Não entendo — disse assim que estávamos sozinhas —, Marci Cooperstein traiu você e agora você está me largando para ir a uma festa cheia idiotas que tiraram sarro de você — disse tudo isso, mesmo sabendo que uma parte de mim queria ir, mas não podia. Não queria que parecesse que eu estava correndo atrás dele, ou atrás do que quer que fosse que Autumn estava. — Meu Deus, Natalie! É só uma festa. E não estou largando você. Quero que você venha junto — Autumn abaixou a cabeça e disse. — Marci pediu desculpas. Eu lhe perdoei. Ponto final. Abri o armário e enfiei a vassoura lá dentro com tudo. — Vou para casa. Você pode fazer o que você quiser. E foi exatamente o que Autumn fez. Sem ao menos se despedir. Uma hora mais tarde, parei o carro na garagem. Joguei o avião de papelão na lixeira que ficava em frente à minha casa. O avião de Amélia Earhart havia colidido e incendiado. A mamãe e o papai estavam na sala. Papai estava dormindo e a mamãe aninhada nos braços dele. — Como foi o baile? — Ela sussurrou. Em seguida, olhou atrás de mim um pouco surpresa. — Onde está Autumn? — Ela passou mal — menti e fui para o meu quarto. Havia pedaços de papelão e materiais de arte por todo o meu quarto. Não estava a fim de arruma aquilo, então juntei tudo no chão, apaguei a luz e me joguei na cama. Estava deitada, mas acordada, imaginando Autumn na festa. Imaginava se ela estava se divertindo. Era bem provável que sim. Aposto que Marci estava fazendo questão de ajudá-la na diversão. Ela não ia perder essa oportunidade. Era provável que estivesse falando de mim, dizendo a Autumn que ela fez a coisa certa me deixando sozinha. Mesmo estando brava com Autumn, ainda me preocupava com ela. Apesar de ela ter basicamente partido meu coração, esperava que ninguém tirasse sarro de Autumn. Deus sabe que Marci não iria defendê-la. Deixei meu celular ao lado do travesseiro, caso ela me telefonasse chorando. Estaria pronta para dar meu apoio a Autumn, como sempre estava. Fechei os olhos. Tentei dormir. Mas não conseguia. Especialmente sabendo que ficaria ali sozinha a noite toda, pensando em Autumn naquela festa, sem mim. Achei o número do telefone de Connor amassado no bolso da minha calça. Já passava da meia-noite, mas eu não estava nem aí. Abri meu telefone e escrevi uma mensagem. 97


Oi Então esperei pelo que parecia uma hora, sentindo-me tonta e patética, ou, quem sabe estivesse na festa. Talvez ele tivesse aberto o telefone para mostrar para todo mundo. Um troféu da minha humilhação completa. Meu telefone vibrou.

Venha aqui. E quando dei por mim, estava saindo escondida do meu quarto.

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Capítulo 20

D

irigi pela longa estrada particular que levava à Fazenda Hughes de Árvores de Natal. Os faróis piscavam para as várias placas de boas-vindas pintadas à mão, presas a postes de madeira a cada 50 metros ao lado da tubulação de esgoto. VISITE-NOS NA PRIMAVERA. PASSEIOS DE CARROÇA. EXPERIMENTE O CREME DE ABÓBORA! Elas davam a impressão de mau agouro no meio da noite. Ignorei a entrada do estacionamento de visitantes, pois não ia andar naquela escuridão sozinha de jeito nenhum. Em vez disso, continuei dirigindo até chegar à entrada da casa dele. Desliguei o motor e os faróis. A casa de Connor ficava no pé de uma montanha — era enorme, em estilo vitoriano, com persianas de madeira brancas em todas as janelas e uma cobertura na varanda. A porta da frente tinha uma daquelas telas que sempre fazem barulho quando batem. Havia abóboras enormes com cabos cheios de folhas em cada degrau, junto com pacotes de feno arrumados de forma perfeita. As janelas eram escuras, com exceção de uma suave luz na cozinha fazendo sombra para um fogão com uma chaleira vermelha brilhante. O cenário não parecia real, parecia ter saído de uma pintura. Abri meu telefone para mandar uma mensagem para Connor, mas fechei logo em seguida, pois percebi que talvez Connor tivesse caído no sono, mesmo eu tendo vindo logo em seguida. Ou talvez tivesse desmaiado, já que era óbvio que estava bebendo desde antes da festa. Um constrangimento profundo começou a percorrer meu rosto como fogo, tão quente que abri um pouco a janela. Se Connor visse minha mensagem só no dia seguinte, eu ia morrer. Ele ia ficar sabendo que estive lá e voltei para casa, pois não estava acordado. O tipo de história da qual as pessoas gostam de rir para sempre. Isso arruinaria o restante do meu último ano na escola. Então, pensei em um plano — se não mandasse nenhuma mensagem para ele, poderia dizer que tinha decidido não ir. Que eu tinha dado o cano nele. Foi aí que o vi sair de dentro da casa. Ele tinha trocado seu uniforme de presidiário por calça jeans, moletom com capuz azul-marinho e um gorro de lã cinza. Caminhava lentamente, confiante. Tirou a mão do bolso e acenou para mim. Respirei bem fundo. Tudo bem. Estava mesmo acontecendo. Eu estava ali, ele estava ali, e todas as probabilidades apontavam para o fato de que íamos ficar juntos. Por mais 99


verdadeiro que fosse, o momento ainda me parecia completamente surreal. Mas permiti a mim mesma afastar essa sensação, pois queria parecer relaxada, como se não fosse grande coisa. Porque não era mesmo. Ele não era grande coisa. Talvez para as outras garotas da escola, para garotas como Spencer, mas não para mim. Assim que pensei em Spencer, comecei a pensar nas coisas que ela tinha dito na noite das garotas. Talvez ela soubesse mesmo do que estava falando. Eu sabia que queria Connor naquele momento. Queria esquecer Autumn. Queria companhia. Então, contanto que não estivesse procurando nada além de uma distração, qual era o problema de estar ali? Não era uma romântica inveterada, rezando para que Connor se apaixonasse por mim. Na verdade, não queria nada nem perto disso. A solução estava em deter o poder. Usá-lo para conseguir o que eu queria. Então, saí do carro e recostei-me na porta como quem não quer nada. Esperei que ele viesse até mim. — Oi — ele sussurrou. — Você veio. — Vim — disse olhando para a escuridão. — Pensei que você estivesse na festa do Bobby. — Eu fui lá. Mas saí quando você me mandou a mensagem — ele sorriu e senti todo o meu corpo tencionar. — Então... você quer entrar? Revirei os olhos e disse: — Não vou entrar na sua casa. E se seus pais acordarem? Ele afastou as pernas mudando o peso do corpo, falando, seguro de si: — Eles não vão acordar. Não conseguia parar de pensar em todas as outras garotas que ele já devia ter levado lá. Balancei a cabeça e respondi: — De jeito nenhum. Ele olhou para o banco de trás do meu carro e propôs: — Podíamos ficar no seu carro. — Eca. Qual é? — Tá bom, tá bom — disse, parecendo cansado subitamente. Estávamos em um impasse e a questão era a seguinte: eu não queria ir para casa. Algo ao longe chamou a atenção dele. Ele se virou, animado e disse: — Olha só, tive uma ideia, espere aqui. — Tudo bem — respondi, mas pareceu mais que estava perguntando. Provavelmente porque não fazia a mínima ideia do que ele tinha na cabeça. Ele correu de volta para casa, e eu fiquei ali sozinha. Havia três miniflorestas nos arredores da casa de Connor - uma à esquerda, uma à direita e uma na montanha. Havia pinheiros enfileirados milimetricamente, como plantação de milho. Atrás de mim, havia uma lojinha construída de forma a parecer um depósito. Vi enfeites 100


de natal pendurados lá dentro, geleias caseiras e mantimentos, e velas aromáticas em pequenos recipientes. Ao lado da loja havia uma horta de tamanho considerável. Minha família nunca havia comprado uma árvore de natal ali, pois eram caras demais. Depois de uma longa discussão sobre se poderíamos justificar as repercussões ecológicas de comprarmos uma árvore, fomos a uma loja de departamento que montava um quiosque de venda de árvores no estacionamento. Todas elas custavam 20 dólares. Aqui, pagava-se pela experiência. Connor voltou. Havia um cobertor em seus ombros e uma lanterna nas mãos. — Venha, Sterling — disse, apontando para a mata à esquerda. — Vamos dar um passeio. Eu o segui pela trilha estreita de pinheiros. Não conversamos, provavelmente porque fiquei o tempo todo um pouco atrás dele. Não conseguia parar de olhar ao redor. Muitas das árvores eram enormes, mas algumas tinham a minha altura. Estendi a mão e toquei nas folhas, que também eram de vários tamanhos. Duras, macias, oleosas. Pequenos pedaços de feno tinham sido colocados ao redor de cada uma das árvores, para mantê-las aquecidas, acho. Estava bem frio ali. Dava para ouvir a minha respiração. E era muito silencioso. Assustadoramente silencioso. O céu estava carregado de um milhão de estrelas que jamais havia visto da minha casa, havia estrelas tão pequenas que pareciam poeira. Bem no limite da propriedade, chegamos a um depósito com telhas de madeira e teto inclinado. Parecia uma casa de boneca. Connor abriu o cadeado, a luz da lanterna vagava pelas paredes do depósito, iluminando os primeiros pinheiros de natal ao nosso redor. — Não usamos muito esse depósito. Só em dezembro — ele explicou, ao girar a chave. Empurrou a porta com força, mas ela não abriu. Então, tentou empurrar a chave, mas ela ficou presa dentro da fechadura. Ele xingou baixinho. Esperei atrás dele, com as mãos bem enfiadas nos bolsos da calça jeans. — Está ficando tarde — disse impaciente, pois já era madrugada e estava cada vez mais difícil controlar o impulso de não me virar e sair correndo para pegar o carro. Clique. Connor destravou o cadeado e a porta se abriu. As dobradiças de metal rangeram como se fossem cordas de violino fora do tom. Entrei atrás dele. O depósito tinha cheiro de pinho, um aroma doce e esverdeado. Era tão intenso que fiquei tonta. Segui no meio da escuridão e bati o joelho em alguma coisa. Um ruído interrompeu o silêncio. Connor apontou a lanterna na minha direção. — Você está bem? — Ao meu lado havia uma prateleira cheia de serrotes velhos de metal, empilhados um em cima do outro, bem propensos a causar um acidente. Derrubei alguns nos chão. Garanti a Connor que estava bem e lembrei a mim mesma que estava no meio da mata e que ninguém tinha ouvido aquele barulho, ninguém ia nos encontrar ali. Mas me senti exposta, 101


vulnerável, com a luz da lanterna bem em cima de mim. Então, me abaixei no meio da sombra para pegar o que tinha derrubado. Connor prendeu a lanterna em um prego acima da porta, deixando uma ínfima luz em um ambiente repleto de coisas. Vi mais equipamentos — várias luzes de natal, trenós, um carrinho de mão. Ele mudou algumas coisas de lugar, empilhando novamente alguns sacos de semente e rolos de tecido, e abriu o cobertor no pequeno espaço que tinha arrumado. Ele se sentou, fazendo perna de índio, e estendeu a mão para mim. Estava com ódio da respiração forte dele, soltando pequenas nuvens de fumaça no ar. Sabia que Connor estava percebendo que eu estava nervosa. Ele não sabia o que fazer ou dizer. Dava para perceber tudo que estava se passando na mente dele. Ele tinha me dado seu número de telefone, e eu liguei e fui lá. É claro que devia saber o que aconteceria em seguida. Só que estava hesitando, e ele abaixou a mão. Finalmente sentei-me ao seu lado e estiquei as pernas. Imediatamente comecei a tremer, mas antes que me desse conta, inclinei-me e o beijei rapidamente. Pressionei meus lábios contra os dele, deixando meu cabelo cair na frente de nossos rostos. Ele tirou meu cabelo da frente antes que tivesse chance de abrir a boca. Fiquei cheia de dúvida. Meus pensamentos gritavam em minha mente. ―Levante, Natalie! Volte para o carro!‖ Então Connor tirou meu cabelo da frente do rosto e os colocou atrás da orelha. Os movimentos dele eram mais suaves e mais lentos que os meus. Ele ficou bem perto do meu rosto, seus olhos eram escuros, mas brilhantes como dois lagos em um dia de inverno. E aí ele me beijou. Dessa vez com os lábios abertos, como se estivesse sussurrando em minha boca. Fechei os olhos e tentei acompanhar o ritmo do momento. Ele colocou as mãos em meus ombros, trazendo-me mais perto. Ele estava quente — ardente, na verdade. Envolvi minhas mãos em seu pescoço, colocando os dedos dentro da camisa dele. Meu corpo todo se dobrava de calor, e foi aí que nos deitamos. Connor parou de me beijar e segurou as pontas do cobertor, enrolando-o em nós. Está vamos cozinhando lá dentro. Estava tão quente e estávamos um em cima do outro, nos movendo, nos virando, nos pressionando. Minha mente se fechou completamente e parecíamos peças de um motor: circular, preciso e perfeito. Estava nervosa, achando que Connor fosse tentar levar as coisas para além do que eu queria, mas ele não fez isso. Só parávamos de nos beijar para recuperar o fôlego. Essa era a parte que menos gostava, Connor e eu éramos forçados a conversar para preencher as lacunas de estranhamento. Ele me perguntou sete vezes se eu queria água e eu acabei aceitando, mas, quando percebi que ele tinha de ir até a casa dele para pegar, falei para ele deixar para lá. Em algum momento perguntei para Connor se ele tinha irmãos, pois parecia o tipo de informação que se deve saber sobre alguém com quem você está se agarrando. Descobri que ele tinha três irmãs 102


mais velhas, esqueci imediatamente os nomes delas, mas tinha certeza de que todos começavam com a letra C. Connor era o caçula. Ele parecia orgulhoso disso, o que achei estranho. Uma parte bem pequena de mim queria que um milagre acontecesse, no qual Connor se afastasse dos meus lábios para dizer algo profundo ou poético e belo. Porque, quando ele me tocava, tudo parecia tão perfeito. Apesar de nada disso ter acontecido, permiti a mim mesma saborear a forma como deslizava as mãos pelo meu cabelo. Mal podia acreditar como um simples gesto como aquele podia me fazer sentir, como se minhas veias subitamente bombeassem eletricidade em vez de sangue. Depois de um tempo, os beijos diminuíram, e só ficamos ali, juntos, minha cabeça aninhada em seu peito. Não pensei na minha briga com Autumn desde que tinha entrado no carro para ir até lá. Mas estava pensando nela agora, perguntando-me se ela teria ido para casa depois da festa, ou se teria dormido na casa de Marci. Levantei a cabeça e olhei para a jaqueta de Connor, com o símbolo do futebol da Academia Ross bordado no centro. Estar ali era como passar a noite presa em um sonho. Consegui esquecer todos os meus problemas por um tempo. Só que estava começando a acordar. — Acho melhor ir embora — disse e comecei a olhar ao redor à procura do meu casaco. — Aqui está — ele foi até um canto escuro e pegou o meu casaco. Estava meio empoeirado e eu o sacudi. Quando o peguei, quis dizer obrigada, mas em vez disso acabei dizendo — Ninguém pode saber que estive aqui, certo? — ele fez uma careta, como se não tivesse entendido. — Não quero ser sua namorada ou algo do tipo — me arrependi do que disse na mesma hora, não porque não quisesse ter dito aquilo, mas porque pareceu muito presunçoso. Ele tinha a expressão de quem estava tentando entender se eu estava brincando ou não. E então ele me segurou e me puxou para perto dele, dizendo: — Você é engraçada, Sterling. — Depois inclinou-se para me beijar e eu correspondi, mas foi o último beijo, não o começo de alguma coisa novamente. E aí fui sozinha até o meu carro, deixando Connor para trás, para trancar tudo. Deixei o passado dentro daquele depósito. Era lá que aquilo pertencia. Não ia fazer parte do restante da minha vida.

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Capítulo 21

Q

uando acordei, por volta do meio-dia, senti-me como se tivesse mergulhado em uma floreira. Mesmo com o rosto enterrado no travesseiro, era possível sentir o perfume extremamente doce. Os lençóis eram extraordinariamente confortáveis e macios comparados ao cobertor de Connor. Meu corpo doía por ter rolado para lá e para cá no chão de madeira implacável do depósito. Mas a dor era boa e secreta. A sensação me acompanhou durante todo o dia, afastando meus pensamentos da briga com Autumn. Fiz das minhas lembranças dos momentos com Connor o meu néctar do dia, e ia tomando pequenos goles, apenas o suficiente para saciar a minha sede. Precisava tomar muito cuidado para não acabar com tudo antes de conseguir mais. Não tive notícias dele durante todo o fim de semana, e ele também não teve notícias minhas. Tinha de fazer lição de casa e me preparar para o SAT, limpar meu quarto e meu banheiro; colocar minha vida em ordem. Não fiquei com o celular nas mãos o tempo todo, esperando um telefonema dele. Na verdade, fiquei, mas esperava o telefonema de Autumn. Imaginei que fosse apenas questão de nós duas precisarmos de um tempo para acalmar os ânimos, era só uma pausa entre nós. Sabia que íamos resolver as coisas. Afinal de contas, éramos melhores amigas. Nunca havíamos nem brigado antes disso, não desse jeito. Então, não estava com medo. Na verdade, era uma preparação para o que ia acontecer na faculdade. Deveríamos nos acostumar em passar um tempo separadas. Mas minha mãe e meu pai estavam desconfiados. Eles subiam o tempo todo para dar uma olhada em mim, traziam comida e bebida e o primeiro caderno do jornal de domingo. Não queria falar sobre a minha briga com Autumn, mas convidei minha mãe para assistir comigo a Cantando na chuva em meu quarto, o próximo filme da lista da AFI. Também não me senti mal por assistir a ele sem a Autumn. Pareceu-me uma punição adequada. E o filme era bom, também. Romântico e água com açúcar. Ela teria gostado. Ao perceber que ela não ligou no domingo à noite, comecei a perder o apetite. Até peguei o telefone algumas vezes para ligar para ela, mas sempre parava no meio do caminho. O 104


que eu ia dizer? Divertiu-se na festa sem mim? Ficou feliz por me deixar sozinha? Não queria fazer essas perguntas, pois temia que as respostas fossem sim. Mal consegui dormir no domingo à noite, rolei na cama durante horas, pensando em como seria na escola no dia seguinte. Até pensei em mandar uma mensagem para Connor para ver se ele estava acordado, mas desisti da ideia. Não queria parecer desesperada. Tinha que mostrar algum autocontrole. Segunda-feira foi o primeiro dia de extremo frio da estação, um lembrete ameaçador de que o inverno não tardava a chegar. O vento frio penetrava de forma cortante em minhas meias de lã. Não fazia ideia do que fazer assim que parei o carro no farol vermelho no fim do quarteirão. Viraria à direita para pegar Autumn, mesmo sem falar com ela desde o dia do baile? Ou Viraria à esquerda, indo direto para a escola? Fiquei ali alguns segundos, olhando para a rua vazia à esquerda até que outro carro parou atrás de mim. A ida à escola acabou sendo bem mais curta por não ter que cruzar a cidade para apanhar Autumn. Dez minutos em vez de vinte e cinco. Quando saí do carro, tremia. Por causa do frio e do nervosismo. Como seriam as coisas quando visse Autumn? Como deveria agir quando visse Connor? Não tinha precedente algum para nenhuma das duas situações. Fiquei o tempo todo na porta, e sempre que possível dava uma olhada para o armário de Autumn no corredor. Ficava imaginando-a no centro da enorme janela da sala de estar, ao lado das cortinas cor de ameixa de sua mãe, olhando o tempo todo para a direita para conseguir me ver parada no farol. Devia ter ido buscá-la. Mas será que Autumn realmente esperava por isso, depois de tudo que havia acontecido na sexta e do silêncio que se instalou logo em seguida? Será que ela esperava que eu fingisse que estava tudo bem? Não podia fazer isso. Autumn precisava saber que havia me magoado. Ela finalmente chegou quase um minuto antes do último sinal tocar, em disparada pelo corredor até seu armário. Estava com um colete vermelho de nylon e seu gorro predileto de lã, um de cor marfim com cobertura para as orelhas, feito pela sua avó assim que ela iniciou o ensino médio. Sempre achei aquele gorro meio tolo, algo que um pastor sueco usaria para entoar suas canções. E nem estava tão frio para um gorro daqueles. Não mesmo. Sentei-me rapidamente em meu lugar, abri meu caderno e fingi estar estudando equações de cálculo que já havia memorizado no fim de semana. Mas por dentro, números e valores e X e y giravam em minha cabeça. Decidi que se Autumn tentasse falar comigo, eu a ouviria, mas não lhe perdoaria. Pelo menos, não logo de cara. — Oi!

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Olhei para cima assim que Autumn passou por mim e foi se sentar com outras garotas no fundo da classe. Uma dor terrível penetrou meu estômago quando percebi que Marci não era uma delas e eu já estava ficando sem pessoas a quem culpar.

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Capítulo 22

N

o primeiro ano do ensino médio descobri um jeito de tirar o maiô de natação sem ter que jamais ficar completamente nua. A dança complicada não era graciosa e certamente faria com que Spencer caísse na risada. Mas me especializei nisso, e agora, como veterana, conseguia fazer mais rápido do que qualquer garota do vestiário. Não era exatamente o tipo de talento que se observa nas inscrições da faculdade, mas uma habilidade que atendia às minhas necessidades. Primeiro, tirava as alças do maiô para fora, como se estivesse usando um modelo tomara que caia. Usava um maiô azul-marinho da Speedo, que comportava o esforço extra. Sabia que não ia cair, mas mantinha os cotovelos presos do lado. Então, colocava o sutiã por cima do maiô, e, assim que o abotoava, abaixava o maiô até o umbigo. Essa era a parte mais difícil — mover-me rapidamente para evitar que a água da piscina molhasse o algodão. Um segundo a mais e o bojo do sutiã ficaria úmido até depois do almoço, o que era tão desconfortável quanto parece. Depois, colocava a camisa de botão e os fechava, então colocava a saia. Depois disso, discretamente trocava o maiô pela calcinha e pela bermuda de lycra, sem que ninguém tivesse visto nada. Não que as outras garotas estivessem olhando. O sinal tocou, caminhei lentamente até as escadas do corredor dos calouros, onde Autumn normalmente esperava por mim. Disse a mim mesma que ela não estaria lá. E ela não estava. Mas Connor estava. Ele estava recostado no enorme corrimão de madeira, conversando com dois rapazes. Dava para ver que tinha percebido minha presença pela forma como ergueu o canto da boca. Também ergui o meu, e ignorei os cabelos louros e trancados de Autumn saltitantes descendo as escadas em direção à próxima aula. Continuei andando. Connor se afastou de seus amigos. Ele acelerou o passo até ficar ao meu lado. Mas não comigo. Havia espaço livre suficiente para evitar que parecêssemos estar juntos. 107


— Você está quebrando as regras — sussurrei. — Quando posso ver você de novo? — ele sussurrou para mim. — Se você não sair de perto de mim, nunca. Mas antes que eu pudesse responder, Spencer apareceu na minha frente. — Natalie! Passei o fim de semana todinho louca para falar com você. — Oi — disse e vi, por detrás dos ombros de Spencer, Connor desaparecer pelo corredor. Então sorri para ela, pensando no meu segredo. Tinha certeza de que ela ficaria orgulhosa pela maneira como estava tratando Connor. Spencer ficou de braços dados comigo, dizendo: — Então, há um boato maluco espalhando por toda a escola sobre algo chocante que aconteceu neste fim de semana. — O tom de sua voz, normalmente agudo, estava desconfiado e maroto. Por um segundo fiquei preocupada, achando que Connor tinha deixado algo escapar, que todo mundo já estava sabendo. E a sensação boa que senti há um minuto evaporou. Empurrei Spencer para um canto e perguntei: — O quê? O que aconteceu? — Venha. Vou andando com você até a sala de aula. E pelo caminho vou te contar a história milagrosa da garota que humilhou Mike Domski. A história se espalhou rapidamente: no domingo, Mike conseguiu o telefone de Spencer. Ele ligou para ela, fazendo um convite para ir ao cinema. Disse que devia parar de enrolá-lo. A forma como ela havia se esfregado nele no baile de Haloween e o flerte na festa de Bobby Doyle foram suficientes para deixá-lo maluco. Eles tinham que sair juntos. Spencer disse sim, mas que esse encontro seria um jantar na casa da avó. — Sua avó não morreu? — perguntei. Spencer piscou. Ela disse a Mike que se encontrariam no cinema às 20 horas. Mike chegou cedo. Estava todo arrumado. Ficou esperando lá fora. Faltando cinco minutos para as 20 horas, Spencer ligou e disse que estava presa no trânsito. Pediu a Mike para entrar no cinema e ir guardando lugar. Ela não queria perder nada da história e dessa forma ele poderia contar tudo para ela. Mike comprou os dois ingressos e deixou o de Spencer na bilheteria. Ele não sabia quais petiscos Spencer gostaria, então comprou vários tipos — chocolate, pipoca, pretzel com recheio de queijo. — Espere aí. Estou até começando a sentir pena dele — disse. 108


— Lembre-se, esse é o cara que destruiu o seu cartaz, que invadiu a noite das garotas, que... — Tudo bem, a raiva voltou. Continue. Spencer mandou uma mensagem de texto para ele dez minutos depois. O trânsito não anda, disse, mas estava chegando. E então acrescentou mais uma coisa. — Disse a ele para ir tirando a calça, ficando pronto para mim. Ele respondeu dizendo que eu era uma garotinha safada. — Eca! Ele não fez isso! Spencer mal conseguia controlar o riso. — Então, eu e umas garotas estávamos escondidas na última fila, e dava para ver o cara todo agitado na poltrona. Agachei-me e fui atrás do gerente para que ele soubesse que havia um cara de calças arreadas no cinema 12. — Não acredito! — Acho que o gerente queria chamar a polícia, mas quando viu as garotas rindo, decidiu apenas expulsar o cara. Foi... épico. E acho que com certeza dei uma lição nele. — Como você sabia que ele ia fazer isso? — Porque nas últimas três semanas tenho feito com que ele pense que o nosso flerte ia acabar em algum tipo de relação nefasta. — Estou orgulhosa de você — disse a ela, o que parecia algo estranho de se dizer, mas era isso que sentia. — Tudo bem. Tenho que ir. Vejo você mais tarde, Natalie. O sinal tocou e fui correndo para a aula de filosofia oriental. Mike Domski vinha no corredor na outra direção, parecia mais bravo do que nunca. Cara fechada, dentes cerrados, segurando a alça que prendia os livros com os punhos fechados. Não senti pena dele. Ele merecia ser humilhado. Isso lhe faria muito bem.

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Capítulo 23

C

onnor me mandou uma mensagem depois da meia-noite na sexta-feira. Fiquei surpresa e ao mesmo tempo não me surpreendi.

Ele estava esperando na entrada de carros quando estacionei. Assim que saí do carro, ele pegou minha mão. O caminho todo até o depósito foi um flerte só. Eu comecei a recuar o passo, desafiando-o de forma silenciosa a vir me pegar. Connor aceitou o desafio, então me virei e corri para a mata. Ele logo chegou em mim, senti suas mãos no meu casaco. Deixei que tirasse o meu casaco e continuei, conseguindo ficar longe do alcance dele correndo em círculos e me escondendo atrás dos pinheiros. Nós dois estávamos rindo e nem mesmo paramos para pensar que alguém pudesse nos ouvir. Connor me pegou em seus braços, suas mãos agarraram minhas roupas. Ele chegou mais perto para me beijar e, quando fechou os olhos, tive a chance de me soltar novamente. Senti-me embriagada, apesar de não estar. E ao mesmo tempo em que corria dele, aproximava-me cada vez mais do depósito. Não consegui chegar lá rápido o suficiente. Ele veio por trás de mim, alcançou a porta e brincou com o cadeado, envolveu os braços ao meu redor e nós dois estávamos ofegantes, soltando fumaça pela boca por causa do frio. Ele ligou uma pequena lanterna e em seguida nos jogamos no cobertor de lã. Connor rolou no chão, fazendo-me ficar em cima dele. Suas mãos escorregaram para dentro da minha blusa. Estavam tão frias que fiquei chocada. Levantei e perguntei: — O que você está fazendo? — Ãh? — as bochechas de Connor estavam vermelhas e ele estava sem ar. — Nada. Por quê? — Que bom — disse cautelosamente, olhando para ele ao mesmo tempo em que saí de cima para deitar-me ao seu lado no chão. 110


Ele deitou de lado, tirando meu cabelo da frente do rosto. Então, começou a me beijar novamente. No pescoço, bem atrás da orelha, de um jeito suave e doce, seus lábios mal tocavam minha pele. Fechei os olhos e deslizei as mãos pelos cabelos ondulados dele. Parecia estranho saber como os cabelos dele eram espessos. Mas, mesmo com essa sensação concreta, perdi o senso de gravidade. Estava em algum lugar entre flutuar e cair, sentindo-me ao mesmo tempo assustada e maravilhada. Connor me colocou em cima dele e suas mãos deslizaram pelas minhas costas novamente. Ele olhava para mim. Olhos bem abertos e rindo como um tolo. Seus dedos penetraram as alças do meu sutiã e foram até o fecho, tentando abri-lo. Saí de cima dele e disse: — Sério, Connor. — Que foi? Sinto muito. Você não quer? — Não. Não quero — disse com firmeza. — Não sou desse tipo. Connor franziu a testa, dizendo: — Você não é de que tipo? Sentei-me e cruzei as pernas. — Ouça. Sei que venho aqui escondida no meio da noite nesse depósito imundo para ficar com você, mas não sou como as outras garotas da escola. Não vou me deitar aqui e deixar você fazer o que quiser comigo. As coisas vão acontecer no meu ritmo, ou não vão acontecer. Entendeu? Esperava evitar esse tipo de conversa. Achei que você fosse capaz de entender como me sinto e assim poderíamos nos divertir juntos sem que o clima ficasse pesado. Connor começou a rir. Rir mesmo. Era irritante. — De que outras garotas você está falando? — Não banque o inocente comigo — ia reprimir meu próximo comentário, mas como Connor continuava rindo, não consegui evitar. — Sei que você perdeu a virgindade no oitavo ano. — Quem te falou isso? — ele parecia irritado, o que me deixou confusa. Em primeiro lugar, os garotos viviam se gabando desse tipo de coisa. E em segundo, todo mundo sabia que Connor tinha bebido todas e transado com Bridget Roma no carro da irmã dela na véspera do Ano Novo. Dei de ombros, mostrando que não me importava e disse: — Muitas pessoas. E verdade, não é? Connor ficou vermelho, mas não de vergonha. Ele balançou a cabeça, como se eu tivesse passado dos limites e disse: — Não sei o que isso tem a ver com a gente. Não estou tentando forçá-la a fazer nada que não queira. Com certeza.

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— Que bom — me arrependi de ter tocado no assunto, mas precisava ter certeza de que Connor me respeitava. Agora que tudo parecia resolvido, deitei-me novamente e tentei trazê-lo para perto de mim. Só que ele se afastou. — Sabe de uma coisa? — falou —, não sei se consigo voltar ao clima tão rápido assim. Sentei-me rapidamente e estava pronta para dizer algo perspicaz e afiado quando, subitamente, senti o lado esquerdo do meu bumbum queimar forte o suficiente para me fazer perder o fôlego. Connor percebeu. — O que aconteceu? Apertei meus olhos de dor. — Acho que foi uma farpa! — Você está brincando? — Connor tentou abafar o riso. — É tão difícil de acreditar? Olhe onde estamos, Connor! Olhe para esse lugar! — Acho que era o meu castigo. — Ai, dói pra caramba. — Vem cá. Deixe-me ver — disse Connor. Fiquei de joelhos e levantei o bumbum. Era completamente humilhante, mas que escolha eu tinha? — Você vai ter que tirar a calça. Quase engasguei. — De jeito nenhum. — De que outro jeito vou ver o que aconteceu? — ele levantou e pegou a lanterna que estava pendurada em nossas cabeças. Agh, pensei. Lá se vão os limites. Abri o zíper e abaixei as calças. Jamais tinha tirado a roupa na frente de um garoto antes. Sabia que ia acabar acontecendo um dia. Talvez em uma pousada ou em um quarto legal de hotel. Não em um dormitório, são nojentos. Mas definitivamente nunca em um lugar como esse. Connor aproximou a lanterna. Senti o calor. — Nossa — falou. Seu tom era sério o bastante para me assustar. — Você está sangrando. Relaxe. Vou ter que levantar a sua calcinha só um pouco para ver melhor. A maldita entrou bem no meio do algodão. — Ele pegou o elástico da calcinha e abaixou só um pouquinho. — Tudo bem. Já vi. Está bem fundo — ele procurou um canivete suíço no bolso. Meu coração acelerou até perceber que não pegou a lâmina, e, sim, a pinça. — Respire fundo. Respirei — e logo acabou. Assim que ele removeu a farpa, meu bumbum ficou melhor. Meu ego, nem tanto. Connor trouxe a pinça até meu rosto para me mostrar como o pedaço de madeira era grande. — É melhor você ir para casa para cuidar disso. Talvez colocar um remédio ou algo assim, para que não pegue uma infecção. — Tudo bem — não tinha imaginado minha noite terminando exatamente assim.

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Connor foi comigo até o carro. Não demos as mãos. Andei um pouco na frente para esconder o fato de que ainda estava corando. Mas deixei que ele me desse um beijo de boa noite.

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Capítulo 24

A

cordei tarde na segunda-feira de manhã. Havia passado as últimas três noites com Connor, e a privação de sono estava definitivamente mexendo comigo. Isso, além do fato de que já fazia dez dias que Autumn não falava mais comigo.

Era o dia da foto do anuário, e eu deveria ter levantado da cama assim que o despertador tocasse, esforçando-me para ficar pronta. Afinal de contas, a minha foto não iria ficar somente no anuário. Seria imortalizada na parede da biblioteca, número nove. Só que não parava de apertar o botão soneca. E quando finalmente consegui sair da cama, mal tive tempo de tomar uma ducha. Só quando acabei de me enxugar e comecei a escovar os dentes que o vapor do espelho secou o suficiente para que visse o que magicamente tinha aparecido da noite para o dia. Primeiro achei que fosse uma espinha. Passei os dedos de leve, esperando sentir o calombo ou algo que pudesse espremer para que desaparecesse até a hora das fotos. Mas estava totalmente plano, talvez do tamanho de uma moeda e havia vários pontinhos roxos, mostrando os capilares estourados. Estava bem no meio do meu pescoço, pouco mais de um centímetro do meu colarinho. Bem onde Connor tinha me beijado na noite anterior. Uma chupada. Uma enorme chupada no meu pescoço no dia da foto do anuário. Pensei no meu retrato de veterana pendurado na parede da biblioteca. Todas aquelas garotas de olhar poderoso, assim como a jovem Srta. Bee. Realizadas, sérias. E então eu, a Presidente Chupão. As pessoas no futuro iriam supor que eu tivesse dormido com vários para conseguir ser presidente do conselho estudantil. Aquela marca havia chupado toda a dignidade das minhas realizações. Seria para sempre lembrada como a piranha. Corri para o quarto antes que minha mãe e meu pai pudessem ver, e bati a porta. Coloquei uma camisa de botão e a abotoei da forma que todas as garotas da escola faziam — deixando os três botões abaixo do colarinho abertos. Mas a chupada brilhava como um farol de luz vermelha no meio do pálido mar da minha pele. Tentei deixar dois botões abertos. Depois um. Mas a única forma de esconder completamente a chupada era deixando todos os botões fechados. O colarinho apertava, parecia aqueles antigos protetores de pescoço. Era um castigo que, de alguma forma, eu merecia. 114


O ginásio virou um estúdio fotográfico. Luzes fortes estavam em cima dos altos tripés, mostrando os ácaros que voavam pelo ar pelos feixes projetados na cortina de veludo azul. Um careca com cara de artista, vestindo calça de lã, ficava com o rosto pressionado na câmera. Éramos chamados por série. Alguns alunos do ensino fundamental caminhavam pela beira da quadra, traçando o perímetro do ginásio. A luz pulsava o tempo todo. Três, dois, um, pop! O fotógrafo gritava: ―Próximo!", e a fila dava um passo à frente. Três, dois, um, pop! Autumn estava do outro lado do ginásio, a cabeça inclinada para o lado desfazendo a trança. Seu cabelo tinha o ondulado perfeito. Marci Cooperstein estava atrás de Autumn, junto com outras garotas, remexendo na bolsinha de maquiagem umas das outras. Marci passou um brilho rosa em seus lábios e o deu para Autumn, que fez o mesmo. Recostei-me nos colchonetes de ginástica. Não estava usando maquiagem, só o gloss de sempre. E meu cabelo ainda estava molhado por causa do banho. Amaldiçoei a mim mesma por não ter levantado cedo para me arrumar direito. Sem falar no fato de que estava marcada. Connor saiu do vestiário masculino, fingindo ler os avisos do quadro e disse: — Você está bonita. Um pouco abotoada demais. — Tive que fazer isso. Você me deu uma chupada ontem à noite. Agora, meu retrato de veterana ficou arruinado. Mike Domski passou por nós e tanto Connor como eu ficamos em silêncio. Mas assim que Mike estava fora de alcance, aproximei-me de Connor novamente. — Chupadas são absolutamente nojentas. São como... quando um cão faz xixi na árvore para marcar o território com o seu cheiro. Não pertenço a você. Não quero a sua marca em lugar nenhum do meu corpo. — Sinto muito. Juro que não fiz de propósito — respondeu, e parecia estar dizendo a verdade. Mas estava tão brava que saí de perto. Era tudo que precisava para completar meu dia: que alguém nos visse conversando e então percebesse a minha chupada e somasse dois mais dois. Fui parar a dois passos de Mike Domski. Não teria prestado atenção em nada que ele tivesse dito se ele não tivesse falado: — Oi, isca de peixe! A forma como me senti foi puro reflexo. Fiquei imaginando se Marci iria defender Autumn como eu costumava fazer, mas duvidava totalmente disso. Marci se importava demais com o que caras como Mike Domski pensavam dela. Só que Marci nem precisava defender Autumn, porque ela se virou, sorriu e disse: — Oi, Domski. Não acreditei. Autumn não tinha apenas perdoado Marci, mas agora respondia quando chamada de isca de peixe? Olhei para ela. Mas ou ela fingiu que não me viu ou não viu mesmo. Uma das assistentes do fotógrafo bateu palmas e nos reuniu nas arquibancadas. — Vamos precisar que todos vocês usem a roupa designada aos veteranos — ela pegou várias tiras de tecido de dentro do avental e falou: — Gravatas e paletós são obrigatórios para os rapazes, então se você não está com os dois por aí, venha falar comigo — e foi para trás das cortinas 115


pegando uma caixa grande de papelão arrastando-a até nós. — Tenho becas pretas para as, meninas. Por favor, coloquem-nas e verifiquem se a alça do sutiã está aparecendo. Fui até a caixa e peguei uma das becas. Tinha me esquecido completamente de que era aquilo que as meninas usavam no retrato de veterano. Era como um poncho, com abertura na cabeça em decote V. Outras garotas do meu lado já foram colocando e desabotoando as camisas. Os ombros ficavam totalmente descobertos. Pui até a assistente. — Com licença. Queria saber se posso tirar o retrato usando meu uniforme. Ela me lançou um olhar estranho. — Você é veterana? — Sim. — Então, temo que isso não seja possível. — Mas este é o uniforme que uso há quatro anos. Tem... valor sentimental! Além do mais, os garotos, essencialmente, usam os próprios uniformes. É sexismo não poder usar o meu. Tentei parecer séria, mas a assistente do fotógrafo riu de mim. E subitamente a realidade da situação apertava em meu peito, tornando impossível respirar. Enquanto todo mundo entrou na fila, peguei minha beca e corri para o banheiro. Tinha roubado um pouco de base da minha mãe antes de sair de casa. Bati os dedos no pote, enchendo-os do líquido espesso e aveludado. Então, tentei maquiar as marcas de forma mais leve nos cantos e mais intensa no meio. Minhas mãos tremiam, estava muito chateada. Infelizmente, a pele da minha mãe era alguns tons mais escura que a minha, graças à minha avó siciliana. A marca oval arroxeada agora tinha se transformado em alaranjada. Em vez de esconder a chupada, acabava chamando ainda mais atenção. As lágrimas começaram a escorrer. Ouvi a porta abrir. Spencer entrou. — Oi, Natalie! — disse, distraída, indo para a pia. — Eca! Dissequei um sapo na última aula e apesar de ter me lavado centenas de vezes ainda sinto o cheiro do formol. — Ela se virou para mim e percebi seus olhos se estreitando em meu pescoço. — Uau! Quem fez isso em você? — É uma picada de inseto — disse, secamente. Não tinha tempo para explicar nada. — Certo. Uma picada de inseto. Em novembro — disse, procurando algo na bolsa —, isso acontece o tempo todo. Dava para perceber o tom de sarcasmo de Spencer. Ela sabia exatamente o que era aquilo no meu pescoço. Ela se aproximou com um pedaço de papel molhado e a bolsa de maquiagem debaixo do braço. — Vamos, tire isso do rosto. Olhei para o papel molhado que fazia uma poça no chão e disse: — Estou bem. Obrigada.

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— Natalie. Pare de ser tão orgulhosa e me deixe ajudá-la. A menos que você queira uma enorme chupada bem no meio do seu retrato de veterana. — Ela tirou meu cabelo dos ombros para Ver melhor e perguntou: — Quem é o sortudo? Peguei o papel-toalha com força e esfreguei meu pescoço rapidamente. — Olha só, isso é uma picada de inseto, está bem? Se você quer me ajudar, ótimo. Se não, caia fora daqui. Spencer parecia querer dizer alguma coisa, mas deixou para lá e inclinou minha cabeça delicadamente. Então, tirou a tampa de um lápis amarelo brilhante. — O que é isso? — perguntei. — O amarelo faz com que sua pele pareça menos vermelha. Vou colocar isso primeiro, depois uma camada de base, e então... — começou a remexer a bolsa de maquiagem e continuou. — Vou passar um pouco de pó. Você e eu temos quase o mesmo tom de pele. Três minutos mais tarde havia me transformado em uma boa garota. Spencer passou uma última camada de pó no meu pescoço dizendo: — Pronto, uh, a picada de inseto sumiu. — Ela também me emprestou um pouco de batom e colocou minha cabeça debaixo do secador de mão ao mesmo tempo em que penteava meus cabelos molhados com as mãos. No fim de tudo, estava quase decente. — Procure posar com o queixo um pouco para baixo — ela me instruiu, tirando meus cabelos dos ombros. — Não se preocupe. Você está bem bonita, Natalie. — Obrigada — disse. E estava mesmo agradecida, apesar de nem conseguir olhar para ela. A garota de quem eu costumava ser babá tinha livrado a minha barra. Voltei para o ginásio usando a beca e segurando a camisa nas mãos. A Srta. Bee estava por lá com outra professora, observando. Passei por ela, certificando-me de que meu queixo estava abaixado, como Spencer tinha me orientado. Do canto do olho, vi Connor olhando para mim. Três, dois, um, pop!

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Capítulo 25

C

ontinuamos nos encontrando não só nos fins de semana, mas em dias letivos também. Secretamente, no depósito. Pela quinta vez, sexta vez. Sétima.

Na oitava vez, Connor abriu a porta e me deu a lanterna. Não sei a razão, mas ele queria que eu entrasse primeiro. O cobertor que pinicava estava dobrado ao meio no chão. Ao lado dele havia um saco de dormir macio, aberto o suficiente para deixar à mostra o interior feito de lã. Havia um travesseiro encostado numa caixa de papelão e os cantos tinham fitas nos ilhoses. — Isso é da sua mãe? — perguntei envergonhada, levantando-o do chão. Já tinha sujado um pouco. Tentei tirar um pouco da poeira. — Ela tem um armário cheio deles. Nem vai perceber — Connor pendurou meu casaco num prego. Então, pegou algumas velas no bolso do agasalho e as colocou em cima de uma viga. A luz tremeluzia pelos cantos do depósito, fazendo com que parecesse uma catedral. — Achei que podíamos usar uma cama mais quente, já que está ficando bem frio aqui — o que era verdade. Nas últimas duas vezes estava tão frio que perdi a sensibilidade nos dedos. — Foi a melhor solução que encontrei já que você se recusa a entrar na minha casa... — as palavras dele flutuavam no ar, esperando que, talvez, eu mudasse de ideia. Olhei para baixo. Connor havia varrido o chão. Não havia nenhuma serragem, nenhuma poeira — Você não precisava ter feito tudo isso — murmurei. É claro que havia gostado do esforço dele. Mas, apesar das circunstâncias, já estava me sentindo bem confortável no depósito. Não era nenhum chalé romântico na floresta e Connor não era meu namorado. Tinha que manter a perspectiva, pois não podia perdê-la de vista. — De nada — Connor sorriu, depois tirou o agasalho. A camiseta saiu junto e ele jogou os dois em um carrinho de mão vazio. Tentei não ficar olhando. O abdômen dele era trabalhado e bem definido, ondulando até a cintura das calças de nylon, que por sinal ele também tirou, ficando somente de calção e meias brancas que suspendeu até o joelho. O perfume de sabonete na pele dele era intenso. 118


— Pode me chamar de louca, mas acho que você vai se sentir mais quente se ficar de roupa. Connor riu. — Você tá brincando? Esse saco de dormir é para ser usado a 10 graus abaixo de zero. Usei quando meu pai e eu fomos pescar no gelo no inverno passado. Se você não tirar a roupa, vai morrer de suar. — Subitamente, todas as camadas de roupa que, inteligentemente, vesti para combater o frio, roupa de baixo térmica, dois pares de meia, moletom, camiseta e regata, pareceram me sufocar. Ele entrou no saco de dormir e disse: — Venha, Sterling. Olhei para o sorriso em seu rosto. -— Não acho que caibo aí dentro. — Tem espaço suficiente para nós dois -— ele foi mais para lá, batendo com a mão no espaço vazio ao seu lado; não havia quase lugar. O vento lá fora penetrava pelas telhas de cedro, deixando as velas ainda mais trêmulas. Foi então que percebi que, com ou sem saco de dormir, não tinha mais como Connor e eu nos encontrarmos ali. Logo ficaria frio demais. E, apesar da fazenda estar tranqüila agora, quando chegasse a época de natal haveria pessoas trabalhando o tempo todo por ali por causa dos suprimentos e clientes andando por todo o nosso labirinto particular de pinheiros à procura da árvore de natal perfeita. Parte de mim estava aliviada por ter essa data de validade se aproximando claramente, mas sentia-me triste também. Sempre esperava ansiosamente pelo inverno, pelas luvas e luzes coloridas, chocolates quentes e fitas de veludo, pelas canções de Natal e pela busca para o melhor presente possível para Autumn. A probabilidade de não trocarmos presentes este ano era mais real do que queria que fosse. Tirei a minha primeira camada de roupas, a calça jeans e o moletom, e pendurei junto com o casaco. Foi meio trabalhoso sentir-me confortável ao lado de Connor. Estávamos tão apertados que nossas testas e as pontas dos narizes se tocavam. Era perto demais para ficar olhando um para o outro sem sentir dor de cabeça, então fechamos os olhos. Só levou um minuto para a minha temperatura corporal elevar. — Tire — disse ele, arrancando a minha roupa térmica. A regata por baixo também foi junto. Talvez tivesse sentido mais vergonha, mas ainda estava usando a legging e o sutiã e dentro do saco de dormir não dava para ver nada. Na verdade, ainda não tinha ficado completamente sem roupa na frente de Connor. As mãos dele tocavam meu corpo todo, mas seus olhos não viam nada. E, apesar de estar molhada de suor, Connor não parecia se importar. Nós nos beijamos um pouco e suas mãos deslizaram suavemente pelas minhas costas. — O que você faz quando não está aqui comigo? — perguntou. — Durmo — disse, sorrindo. — Não, de verdade. As perguntas dele me deixavam ansiosa. Definitivamente, não tinha a vida social de Connor. — Bem, geralmente fico com a Autumn — procurei em minha mente outras coisas para dizer a ele, mas só havia um vazio. Um vazio patético. 119


— Ela é legal. Eu a tenho visto por aí ultimamente. Por que você não vai às festas com ela? Virei para lá e para cá, tentando ficar confortável. — E claro que ela é legal. Por que não seria? — Sabia que Autumn queria ser mais sociável, mas não sabia que ela tinha voltado à cena completamente. — Não... não quis dizer nada com isso. — Para seu conhecimento, as coisas que Chad Rivington disse não eram verdadeiras — disse, tentando tirar os braços para fora. — E para responder a sua pergunta, Autumn e eu não vamos a festas porque estamos brigadas — e quase acrescentei: ―E é por isso que venho aqui ver você‖, mas não fiz isso. Não era com Connor que estava brava, era com Autumn e um pouco comigo também. — Por quê? O saco de dormir tinha virado um forno de micro-ondas. — Podemos abrir essa coisa, estou sufocando. Connor livrou os braços e abriu o zíper. Senti-me como se tivesse recuperado o fôlego depois de voltar à tona do fundo da piscina. — Desculpe. Não quis... — Tudo bem. Só me sinto melhor se não ficar pensando nisso. — Tudo bem. Vou mudar de assunto. Você vai fazer alguma coisa na sexta? Apertei os olhos. Será que ele estava brincando? — Não. O SAT é no sábado de manhã. Connor deu de ombros. — Espera aí. Você não vai fazer? — Não. — Mas, e a faculdade? — Não vou para a faculdade. — Connor deve ter percebido a surpresa no meu rosto, pois começou a balançar a cabeça como se eu tivesse entendido tudo errado. — Espere, não é bem assim. Vou fazer alguns cursos na faculdade pública daqui. Mas daqui a um ou dois anos vou assumir os negócios da família e meu pai vai se aposentar. — Legal — disse, mas meu tom não era convincente. Assumir uma empresa como a Fazenda Hughes de Árvores de Natal era impressionante, mas isso significaria ficar em Liberty River para o resto da vida. O que, para mim, parecia a pior coisa possível.

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Tentei pensar em uma maneira graciosa de mudar de assunto com Connor e comecei a beijá-lo novamente. Era como se, no fundo, nenhum de nós quisesse admitir como éramos diferentes. Então, não admitíamos. Em vez disso, nos agarrávamos um ao outro como se fôssemos duas cobras deslizando no saco de dormir. Um pouco mais tarde, Connor levantou para pegar água de uma jarra na prateleira. Quando ele voltou ao saco de dormir, sua pele estava congelada. Ele se agarrou a mim para se aquecer e disse: — Gosto de ficar com você — virou para o lado e começou a olhar para o teto, como se estivesse vendo as estrelas e não um punhado de sacos de semente presos entre as vigas. Como não falei nada, Connor me puxou para cima dele e perguntou: — Você gosta de vir aqui? — Não estaria aqui se não gostasse — respondi. Não era exatamente uma declaração de sentimentos, mas era tudo que podia dar a ele.

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Capítulo 26

A

o voltar para casa naquela noite, decidi que era hora de conversar com a Autumn. Já tinha dado a ela o tempo que queria, talvez até demais. A questão era como me aproximar dela sem que Marci estivesse por perto.

Autumn deve ter sentido a mesma coisa porque na sexta, depois da aula, encontrei-a do lado de fora da biblioteca com uma pilha de livros nas mãos, um dos joelhos encostado na parede. Sabia que ela estava esperando por mim, pois, pela primeira vez desde o baile de Halloween, ela olhou nos meus olhos. Eu havia deixado de ser invisível, o espectro da amiga que ela costumava ter. — Oi. Podemos conversar? -— questionou. Olhei o relógio.A reunião do conselho estudantil começaria em cinco minutos. Por mais que quisesse que isso acontecesse, havia muitos alunos passando por nós na biblioteca. E não queria parecer que estava com pressa. Tínhamos muito que falar. — Você pode esperar até a reunião acabar? Posso levar você para casa. Ou podemos ir a algum lugar e comer alguma coisa — muitas possibilidades passavam pela minha mente. Poderíamos jantar em nosso local predileto, resolver finalmente as coisas e depois voltamos para minha casa. Ainda estava com o DVD do Cantando na chuva a que assisti com a minha mãe só de raiva. Fingiria não ter assistido e ter esperado por ela. Ela balançou a cabeça. — Não vai demorar muito. O chão se abriu à minha frente, não dava para acreditar nela. Ela finalmente tinha decidido que devíamos conversar e eu tinha que deixar tudo de lado? Agora, definitivamente não queria falar sobre isso antes da reunião, pois já estava sentindo minha garganta apertar. — Não sei o que você precisa me dizer tão subitamente. Você deixou claro que não quer mais ser minha amiga — tentei falar baixo, mas senti-me como se estivesse gritando. — Vou sair do conselho estudantil — disse, levando a mão à boca para morder as unhas, mas abaixou rapidamente.

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Balancei a cabeça. — O quê? Por que você faria uma coisa dessas? Você me odeia tanto assim? Meu Deus, Marci fez uma lavagem cerebral completa contra mim. — Isso não tem nada a Ver com você, ou Marci, ou ninguém. Só não quero mais fazer parte do conselho. — E de todos os comitês dos quais você participa? Vai simplesmente fugir de todas as suas responsabilidades? — Minha falta de dedicação não é justa com ninguém — sentia que era doloroso para ela ter que se explicar. — E pare de se sentir tão chocada, Natalie. Você sabe que nunca me interessei muito pelo conselho. — Talvez não, mas você sempre deu boas ideias. Como pedir a Connor para colaborar com a fogueira e participando da noite das garotas. E o conselho não foi uma coisa ruim para você. Como vai ficar a sua inscrição para a faculdade se você desistir do conselho no último ano? — joguei as mãos para cima. — Você não entende, Autumn. É como se você tivesse passando por uma crise de meia-idade. Não quero que você faça algo de que vai se arrepender depois. — Também não quero me arrepender. E por isso que quero passar o último ano do ensino médio fazendo outras coisas. Vou recuperar o tempo perdido antes que o ano acabe. Então, três anos da nossa amizade foram tempo perdido? Por detrás dos ombros de Autumn vi alguém esticando a cabeça no corredor, nos observando. Marci Cooperstein. Foi a gota d'água. — Uau - disse —, tudo bem, nunca achei que você fosse estúpida o bastante para cometer o mesmo erro terrível de novo, mas aparentemente estava enganada. Autumn não recuou, retrucando: — Não estou cometendo erro nenhum. E nem ouse me julgar. Não consegui evitar o riso. — Julgar você? Eu fui a única pessoa na escola inteira que não julgou você! Você acha que era fácil para mim ser sua amiga? Ter sempre que protegê-la? Não era. Era uma droga, na verdade. Autumn estava genuinamente irritada. — Não faça parecer que você era uma santa. Ninguém queria ter amizade com você. Ninguém nemgostava de você! Você anda pela escola com o nariz empinado, tão mais inteligente, tão melhor do que todo mundo. Sem mim, você não teria tido amigo algum. Agora sei por que você queria que eu me sentisse tão mal comigo mesma. Se isso não tivesse acontecido, teríamos deixado de ser amigas há muito tempo. ―Sou uma boa amiga‖, pensei. ―Uma boa amiga que não merece ser tratada dessa forma‖. Sim, sempre me preocupei com a ideia de Autumn se afastar de mim. Mas nunca tentei fazer com que ela se sentisse mal consigo mesma só para ficar comigo. — Você percebe o quanto está sendo tola, não percebe, isca de peixe? Queria que Autumn ficasse com raiva, com tanta raiva quanto eu estava. Mas em vez de fazer com que seu rosto ficasse vermelho, fiz com que perdesse a cor. 123


— Nunca, jamais pensei que você fosse dizer isso para mim — ela respondeu. Uma fumaça negra soprava dentro de mim. Sabia que tinha que calar a boca; queria engolir as palavras de volta, mas não podia. Não conseguia parar: — Mas este é o seu nome, certo? É como o seu amigo, Mike Domski, chama você. — Senti pena de Mike depois do que Spencer fez com ele. Ela o humilhou na frente de todo mundo. — Você tá brincando? Mike sempre tentou dificultar nossas vidas, e agora você está do lado dele? Que é isso, Autumn? Você não tem respeito próprio? — Era isso o que devia esperar de você. Afinal de contas, é você quem faz com que me sinta a pior das pessoas! Você constantemente traz à tona essa história da isca de peixe. Pala sobre como eu devia contar isso para as outras garotas, para que elas pudessem aprender com seus erros. Como eu não deveria ser amiga de mais ninguém além de você, porque os outros riem de mim. Bem, estou cansada disso! Então, as pessoas falaram mal de mim. Dei muito poder a elas. Jamais devia ter deixado uma coisa tão ridícula me afetar como afetou. Especialmente, quando não era nem verdade. As palavras dela eram tão claras que não conseguia dizer nada em defesa própria. Tudo o que conseguia fazer era chorar. Cheguei a pensar que Autumn iria me abraçar. Ou pelo menos se desculpar quando percebesse o quanto estava me magoando. Afinal de contas, tinha ficado ao lado dela em todas as suas choradeiras. Tinha enxugado suas lágrimas milhares de vezes. Mas ela estava do outro lado da fronteira invisível, e enxugou seu próprio rosto, que também estava coberto por lágrimas. — Você foi uma boa amiga para mim, Natalie, não estou dizendo que não foi. Mas não preciso mais que você me proteja. Não preciso mais de você fazendo com que sinta pena de mim mesma, me lembrando de uma coisa estúpida que fiz há três anos. Estou numa nova fase da minha vida. E você deveria fazer o mesmo. Autumn falou isso como se fosse algo fácil, e talvez fosse para ela. Mas, para mim, chorar sozinha no corredor parecia algo completamente impossível.

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Capítulo 27

L

iguei o piloto automático. Uma força desconhecida controlava meu corpo enquanto, por dentro, sentia estar na posição fetal. Enxuguei as lágrimas e recuperei o controle. Entrei na biblioteca, sentei na ponta da mesa e presidi a reunião do conselho estudantil enchendo quatro páginas do caderno com ações a serem tomadas e discussões de projetos e pensamentos para a pauta da próxima semana. Então fui para casa, comi o macarrão que minha mãe havia preparado e me arrastei pela escada. Ainda não conseguia acreditar que tinha chamado Autumn de isca de peixe. Ainda dava para sentir o gosto sujo das palavras em minha boca. Qualquer chance que tínhamos de resolver as coisas tinham sido completamente arruinadas por mim. Queria tanto me retratar que até doía, mas sabia que não conseguiria. O telefone tocou dentro da mochila. Olhei para ver quem era, mas não conseguia responder. Não podia encontrá-lo, hoje não. Faltavam só algumas horas para o SAT, a prova mais importante da minha vida. Não podia estragar isso, não importava o quanto minha vida estivesse confusa agora. Espantei os pensamentos de Connor da minha cabeça para manter o foco. Passei uma hora revisando listas de vocabulário, repassei todos os itens da redação e arrumei a mochila com o essencial para o dia de provas — duas barras de proteína, algumas lapiseiras favoritas e um elástico de cabelo. E então tentei dormir, isso seria bom para mim. Mas fiquei rolando na cama pelo que pareciam horas. Em algum momento nas últimas duas semanas eu havia me tornado noturna. Meu corpo queimava energia que eu nem sabia que conseguia armazenar. Mesmo deitada o mais quieta possível, todos os meus órgãos e músculos chiavam como uma locomotiva. Era ansiedade, apreensão, tristeza. Tentei assistir à televisão, ler um livro, até que fui tomar banho com a água mais quente possível. Quando saído banho, vi minha silhueta no vapor do espelho. Parecia um fantasma, e era assim que me sentia mesmo. Usando a ponta da toalha, limpei o vapor do vidro. Quase instantaneamente os pontos negativos sobressaíram. Queria ter seios maiores; os meus eram bem pequenos. Virei de lado e olhei para as coxas. As cicatrizes da mordida que o cachorro da vovó me deu faziam parecer que eu tinha sentado no cascalho. Virei-me para ver a 125


marca de nascença no quadril e depois para ver o umbigo, que era tão projetado para fora da barriga que parecia um terceiro mamilo. Pensei: ―É isso o que Connor vai ver se eu ficar nua na frente dele?‖ Sabia que ele gostava do meu corpo no escuro. Suas mãos estavam sempre deslizando em mim, sempre me tocando. Ele me apertava com muita força, como se tivesse medo que eu desaparecesse se me desse algum espaço para respirar. A luz do banheiro era cruel, mas senti que merecia aquilo. Desprezava a garota que me olhava. Aquela era a garota que Autumn odiava. A garota de quem ninguém gostava. Não conseguia olhar para ela. Então desliguei a luz do banheiro e acendi uma vela que ficava na pia. Tudo ficou mais suave. As marcas da coxa desapareceram. Tirei a toalha da cabeça e deixei os cabelos caírem nos ombros como volumes frios. Inclinei-me para frente, colocando as mãos no beiral da pia. Mais sombras, mais curvas apareceram. Não parecia eu mesma. Parecia alguém... com fome. Faminta por afeição, por alguém que a fizesse sentir-se bem consigo mesma. Parecia que eu sabia o que estava fazendo, contudo, na verdade, era óbvio que não sabia. Pois não entendia como estar com Connor parecia tanto ser a coisa certa em um momento e tão sem propósito no outro. Não que isso importasse. Estava vivendo a vida em momentos, na escuridão, naquele depósito. Enrolei-me na toalha novamente, apaguei a vela e caminhei nas pontas dos pés pelo corredor até o meu quarto. O telefone estava tocando de novo. Connor, com certeza. Não, Autumn. Nunca mais Autumn. Peguei o telefone, planejando escrever para ele que não iria até lá hoje. Pois, de fato, a coisa toda era estúpida e estava prestes a explodir na minha frente. Não tinha mesmo nenhuma outra forma de isso terminar. Ele escreveu:

Por favor? Duas palavras e lá fui eu.

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Capítulo 28

P

ara mim, há algumas semanas, a ideia de chegar atrasada para o SAT era uma piada, junto com o fato de que Autumn e eu não seríamos mais amigas, ou que eu passaria as noites no meio do mato. Mas essa era a minha vida. Então, no fim das contas, não deveria estar chocada. Cheguei à escola em cima da hora. A Srta. Bee, a fiscal da minha sala, estava em pé na porta da sala, fazendo careta para o relógio. Quando olhou para cima e me viu correndo pelo corredor, sua expressão era um misto de alívio e desapontamento. Já a tinha visto brava antes, mas nunca diretamente. Pensei em um milhão de desculpas num milésimo de segundo, mas, quando abri a boca para falar, ela balançou a cabeça e apontou para dentro. — Não há tempo, Natalie. Temos que começar. O último lugar vago na classe era bem atrás da minha ex melhor amiga. Se Autumn ficou preocupada por eu não ter chegado na hora, não demonstrou. Assim que entrei na sala, ela se inclinou na mesa e começou a revirar sua mochila, evitando olhar para mim. Era um grande tapa na cara, considerando que Autumn provavelmente não teria feito sequer um curso preparatório se não fosse por mim. Fui praticamente sua professora particular, passando todo o conhecimento recebido no curso de verão e em todos os manuais que tinha lido. Será que ela pensava nisso? Passei por ela sem chorar nem dizer nada, mas por dentro perguntava-me se realmente conseguiria agir dessa forma um ano inteiro. Se poderíamos nos reinventar como pessoas totalmente desconhecidas. A Srta. Bee entregou os libretos do teste. Olhava para o meu futuro, uma página cheia de círculos vazios. Havia trabalhado bastante e por muito tempo me preparado para este dia. Precisava tirar tudo isso da minha cabeça e levar a sério. Isso, no fim, era a minha passagem para fugir de Liberty River, dessa vida que tinha destruído subitamente. Só que quando a prova começou, ignorei meu libreto e comecei a olhar para a cabeça de Autumn, cavando buracos em seu crânio, tentando pensar no que poderia estar se passando na mente dela. E a verdade era que me sentia cansada. Tinha ido à casa de Connor na noite passada e o beijei com tanta força que mal conseguia respirar. Além disso, o aquecedor estava muito forte 127


na sala, a temperatura seca e o chiado do aquecedor tomavam o ambiente perfeito para uma soneca. Não me lembro de ter dormido, só do terremoto que me acordou. Olhei para cima, todo mundo na sala olhou. A Srta. Bee usou a minha mesa para se equilibrar. Ela tirou o sapato e se inclinou um pouco para examinar o dedo do pé, pois tinha dado uma topada tão forte na minha mesa que meu lápis caiu e saiu rolando pela sala. Enxuguei o rosto molhado, mas não havia nada que pudesse fazer com a marca transparente de baba bem no meio do libreto. — Desculpe-me — disse a Srta. Bee, como se tivesse sido um acidente. O olhar que ela me lançou ao retornar para frente da sala era inconfundivelmente de desapontamento propositado. Recompus-me e completei tudo o que consegui no teste. Mesmo assim, ainda me sentia um fracasso absoluto.

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Capítulo 29

E

m algum momento no meio da nossa sessão de pegação, Connor parou de me beijar e começou a pensar. Isso era exatamente o que vinha tentando evitar. — O que você está fazendo? — perguntei quando ele se afastou no meio do beijo. — Da para perceber que você está chateada. — Não estou.

— Não sou idiota, Sterling — Connor saiu de perto de mim e perguntou. — Qual é o problema? Era uma pergunta direta, mas as respostas no meu cérebro estavam todas bagunçadas e não estava com vontade de organizá-las. Virei de costas e afundei o rosto no travesseiro. — Connor, por favor, não quero falar sobre isso agora. — Então tá, mude de assunto. Mas não vou ficar me agarrando com você vendo que está desse jeito. — Por que não? Pensei que os garotos sempre estivessem a fim. — Isso faz com que me sinta um troglodita. Levantei a cabeça e olhei para ele. — Muito obrigado. — Você sabe o que quero dizer. — Tudo bem, então tá. Tenho uma pergunta para você — disse, comum sorriso bem doce e fingido. — Em quem você votou na eleição para presidente do conselho estudantil? De repente, Connor pareceu desconfortável. — Isso não é invasão de privacidade do eleitor ou coisa assim? — Então você votou em Mike — puxei com força o cobertor para ficar com um pouco mais. Connor era daqueles que pegam todo o cobertor. — Já sabia.

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— Mike é meu amigo, é claro que votei nele — disse como se eu tivesse obrigação de saber a resposta, como se não houvesse nenhuma possibilidade de ele votar em mim. Afastei-me. Não sabia por que era tão doloroso. Talvez porque, no fundo, esperava que Connor tivesse secretamente votado em mim, o que era uma estupidez. Connor aninhou-se em mim dizendo: — Se valer alguma coisa, acho que você está fazendo um ótimo trabalho como presidente. Votaria em você agora. Sabia por quê. Sabia todas as razões de Connor. — Não vale, mas obrigada mesmo assim. — Sério? Isso não melhora nada? Nem um pouquinho? Olhei com raiva para a escuridão, com raiva de mim mesma por ter tocado no assunto para começo de conversa. — Não, só deixa as coisas piores. — Olha só, Sterling, eu não conhecia você na época. — Odeio dizer isso a você, Connor, mas você ainda não me conhece. Ele deu um suspiro profundo e cansado. Senti bem nas minhas costas. — Você também não é especialista em mim. Você ainda não foi a nem um dos meus jogos de futebol, mas gostaria que fosse. — Odeio futebol, sem falar dos outros caras do seu time. — Sei que você tem problemas com os meus amigos, especialmente Mike, e não posso culpá-la por isso. Quando vi que ele estragou o seu cartaz de campanha, fiquei com tanta raiva que eu mesmo o tirei de lá. Enrubesci. — Você fez isso? — Por favor, tenho irmãs, e se um cara escrevesse uma coisa dessas sobre elas, ficaria louco. Mike não pensa às vezes. Ele não tem muita noção das coisas. — Connor sentou-se e falou: — Mas eu não sou o Mike. Você sabe disso, não sabe? — Talvez — queria acreditar que Connor era mais esperto, mais doce do que originalmente pensava. Mas também não podia ignorar completamente a verdade. Connor tinha alguns amigos bem questionáveis, sem falar na longa história de garotas com quem já tinha ficado. Tinha de ser cuidadosa, mesmo não sendo exatamente isso o que eu queria. Connor pegou a ponta do meu rabo de cavalo e desenhou um círculo na palma da mão, como se fosse um pincel. — Pode ser que não conheça você, mas estou tentando. Quero entender você. Senti um aperto na garganta. — Talvez você não devesse fazer isso. — Por quê? 130


— Porque não é assim que deve ser. Assim que disse, fiquei preocupada com o que Connor iria dizer em seguida. Será que ele iria confirmar os meus mais profundos temores, que a nossa relação era puramente física? Ou ele me diria que tinha sentimentos verdadeiros em relação a mim? Qualquer resposta me deixaria assustada. Por sorte, Connor não disse nada. Era bem possível que estivesse tão confuso quanto eu. De um jeito estranho, isso era reconfortante. Aproveitei o silêncio e levantei. — É melhor eu ir — comentei. Procurei as meias no chão, andando na ponta do pé no meio da escuridão de um chão congelante. Ouvi Connor levantar-se. E então senti que estava sendo virada. Connor envolveu os braços ao redor do meu corpo. Foi então que percebi que nunca tínhamos oficialmente nos abraçado antes. Havíamos tocado em muitas partes diferentes um do outro, partes independentes que completavam o todo, mas nunca algo assim tão abrangente. Apesar de sentir necessidade de afastá-lo, não fiz isso. Deixei que Connor me abraçasse, e acho até que o segurei ainda mais forte.

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Capítulo 30

P

ercebi que você anda... distraída.

Movimentei o corpo na cadeira e fiquei olhando para os sapatos de salto alto da Srta. Bee. Era a segunda-feira depois do SAT, e se ela quisesse me repreender milhares de vezes, era bem provável que concordasse com ela. Minha culpa era enorme.

— Eu sei, sinto muito. — Natalie, sei que você tem trabalhado muito e que tem muitas responsabilidades, mas o seu comportamento atual me preocupa. O dia de Ação de Graças será nesta semana e você está completamente despreparada para montar as cestas de alimentos. Precisamos começar a fazer os anúncios para que os alunos tragam doações de alimentos, entrar em contato com o abrigo local, Ver quantas famílias... Era óbvio que precisava diminuir o tempo que passava com Connor. E o tempo em que passava pensando nele, porque estava pensando demais nele. — Natalie, você está me ouvindo ao menos? — questionou, levando a xícara de chá à boca com força demais e algumas gotas do líquido marrom escaparam de seus lábios. — Sim, claro. A Srta. Bee estreitou os olhos. Ela não estava animada. — Já terminei um rascunho da sua carta de recomendação para a faculdade. Por favor, não me obrigue a revisá-la. Aquilo me pegou completamente de surpresa. Será que a Srta. Bee faria mesmo uma coisa daquelas? Será que a boa reputação para qual tinha trabalhado tanto para conseguir estava em risco? Concordei, me desculpei incisivamente, peguei o casaco e saí de lá o mais rápido possível. Esse é o problema dos segredos, você não pode se explicar. A única coisa que podia dizer era desculpe, repetidas vezes. Tinha acabado de ligar o carro quando Spencer bateu na janela, cruzando os braços ao redor do corpo para se aquecer. Ela não estava usando casaco, apesar de não haver folhas nos galhos das árvores. 132


— Oi, Natalie. Você acha que pode me dar uma carona para casa? Minha mãe ficou presa no trabalho, e o próximo ônibus não vai passar antes de uma hora. — Claro — disse e me inclinei para abrir a porta do passageiro. Esse gesto trouxe à tona uma triste lembrança sensorial. Parecia um século que havia feito aquilo para alguém. — Obrigada — Spencer entrou e fechou a porta do carro. Seus dentes batiam, e ela começou a esfregar as pernas nuas. Liguei o aquecedor e apontei todas as passagens de ar para ela. — Te devo uma — agradeceu. Depois do sermão da Srta. Bee, não estava a fim de conversar. Por sorte, Spencer estava a fim de falar por nós duas e ficou fazendo fofoca sobre várias pessoas e me dando instruções para chegar ao apartamento dela. Então, eu não precisei falar muito. Em seguida, olhou para o meu pescoço e me provocou: — Então... tem levado muitas picadas de inseto ultimamente? Era estranho. Em vez de ficar na defensiva, pensei em contar tudo a Spencer. E teria contado, se não fosse Connor a pessoa quem estava beijando. Em primeiro lugar, Spencer já tinha gostado de Connor. Ela tinha escrito o nome dele na camiseta de ―Rosstituta‖. Não achava que ela ainda tivesse sentimentos por ele, mas não tinha certeza a respeito. Além disso não confiava muito na discrição de Spencer. Tudo que ela precisava fazer era contar para uma pessoa apenas, e meu segredo já era. Eu ficaria sendo a maior hipócrita do mundo, o que acho que era mesmo. Mas então lembrei-me do que Autumn tinha dito a mim no corredor. Ela tinha seguido em frente, feito novos amigos. Por que eu queria tanto manter Spencer distante? Ela tinha provado que queria ser minha amiga algumas vezes. E, gostando ou não, Spencer entendia os garotos de um jeito que eu não conseguia. — Tudo bem. Estou saindo com alguém — disse, casualmente. E rapidamente acrescentei. — Ninguém daqui. Se não fosse o cinto de segurança, Spencer teria voado do assento. — Eu sabia! Ah, meu Deus, me conte tudo. Ele é bonito? Aposto que ele é bonito. Virei-me para ela e sorri. Tantos adjetivos encheram a minha boca. Mas dava para ver o prédio de Spencer se aproximando e não queria parar para deixá-la em casa. Era tão bom ter uma amiga. Por que não havia feito isso semanas atrás? Então, quando brequei no farol, me virei para ela e perguntei: — Você quer comer alguma coisa? Estou convidando. Spencer sorriu de orelha a orelha. Ela parecia tão agradecida como se tivesse a maior sorte de ter recebido um convite meu. Fomos ao lugar que costumava ser o preferido de Autumn e meu, um trailer de aço antigo com várias mesas e uma placa de neon cor-de-rosa. Estava bem vazio, pois faltava muito para a hora do jantar. A garçonete nos deixou escolher nossos lugares, e Spencer decidiu pela última cabine à direita. De lá dava para ver o estacionamento e tínhamos o nosso próprio tocadiscos individual, cheio de música antiga. Spencer procurou moedas para ligar o som. 133


Pedimos Coca-Cola e sopa com cobertura de queijo borbulhante e dividimos um prato de batatas fritas perfeitamente crocantes, cheias de molho. Sentia-me incrivelmente feliz. Felizmente, Spencer me deixou falar de todos os detalhes da minha versão levemente alterada de Connor. Não modifiquei a maior parte. Falei de como ele era bonito, de como tal rapaz se sentia atraído pelo fato de eu ser uma garota tão inteligente e tão forte. A única coisa que havia mudado eram os detalhes de como tínhamos nos conhecido: meu namorado novo tinha sido meu tutor numa aula preparatória para o SAT, um brilhante calouro de faculdade. — Então, qual é o problema? — Spencer perguntou. — Isso tudo parece maravilhoso. Ouvi-la dizer aquilo feriu meu coração. Connor e eu estávamos tão próximos da perfeição e ao mesmo tempo tão distantes. — É que somos pessoas muito diferentes. — E? — E nada. Não vejo futuro para nós. É como se nós dois estivéssemos perdendo tempo. Havia uma ruga de preocupação no rosto de Spencer. — Como assim, futuro? Você não é daquelas garotas que pretende se casar aos 18, é? — O quê? — disse, pegando um guardanapo. — Não! Claro que não. — Bem, então de que tipo de futuro você tá falando? Pensei no nosso depósito frio. — Ele vai mudar de faculdade depois do Natal. E não quero me prender a ele. Spencer mergulhou a batata numa poça de ketchup e disse: — Você não vai se prender — disse, objetivamente. — Não vou? — Não. Porque você já sabe que não pode. E um fato, Natalie. Você não pode se apegar, então não se apegue. Simples assim. — Ah. — Aproveite o máximo que puder. Quer dizer, se passar o tempo com ele te faz feliz, então passe. Não pense demais nas coisas. Lembre-se, o poder está com você. Ele quer ficar com você, é você quem manda. De alguma forma, consegui mover a cabeça. Era óbvio que Spencer tinha controle sobre sua sexualidade. Ela podia ligar e desligar os botões, dependendo do que ou de quem ela quisesse. Não sentia que era eu quem mandava. Mas também não achava que Connor mandasse em alguma coisa também. Era a imprudência que mandava em nós. — Não fique quieta comigo, Natalie. Quero detalhes! 134


— Tipo 0 quê? — Você sabe! — disse Spencer mexendo o dedinho para mim. — O que isso quer dizer? — Você não viu todas as garotas fazendo isso no corredor? — ela mexeu o dedinho novamente, mas eu ainda não fazia a mínima ideia. — Inventei esse gesto para Mike Domski. Significa pinto pequeno e está bombando na escola. Pisquei, surpresa. — Ah, Deus! — É, eu sei. Sempre suspeitei, e a pegadinha no cinema só comprovou que estava certa. É triste, mas faz todo sentido, se você pensar bem. Quer dizer, Mike tem o maior SUVW 16 do estacionamento da escola — deu risada e então apontou para seu colo. — Então, seu namorado é bom lá embaixo? Fiquei desconfortável na cadeira. — E. Quer dizer, não sei. Acho que é normal. — Bem, ele é bom de cama? — Quê? Spencer cerrou os dentes. — Não seja modesta comigo. Não sou mais criancinha. — Spencer, não estou dormindo com ele — ela ficou me encarando como se eu estivesse mentindo. — Sou virgem — disse e olhei para procurar a garçonete. Afinal de contas, nem estávamos mais comendo. Só conversando. Spencer parecia confusa. — Totalmente virgem? Ou virgem só no sentido de penetração direta? Porque eu também não transei completamente com ninguém, mas já fiz várias outras coisas. Peguei o copo de refrigerante. Estava vazio, mas mesmo assim chupei todo o gelo derretido porque não queria mais falar sobre aquilo. Estava imaginando Spencer com sua camiseta de ―Rosstituta‖, com a fantasia do Halloween e com qualquer outra coisa que tenha usado para convencer Mike Domski a abaixar as calças no cinema. E não queria ser aquele tipo de garota. Mudei de assunto para o conselho estudantil e a pressão que estava sofrendo para montar as cestas de Ação de Graças. Estava me sentindo muito estressada. Spencer ouviu tudo com a mesma atenção dispensada à conversa sobre sexo, o que me deu certo alívio.

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No Brasil, atualmente, também se fala SUV (sport utility Vehicle - veículo utilitário esportivo) para os carros tipo van. (N .T.)

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Depois que terminamos de comer, levei Spencer de volta para casa. — Estou do seu lado, Natalie — ela disse quando parei na frente do prédio. — Se precisar de uma ajuda extra com as cestas ou somente conversar, me procure. Agradeci apenas porque precisava da ajuda dela com as cestas. Mas Spencer e eu não íamos mais ter esse tipo de conversa novamente. Parte de mim achava que Spencer era uma garota inteligente e outra parte achava que ela era uma ―Rosstituta‖ de 14 anos que sabia muito menos que eu.

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Capítulo 31

N

aquela noite estávamos bem próximos do depósito quando me virei e comecei a andar na direção oposta.

Não sei por quê. Sabia que não tinha todo o tempo do mundo. Meus pais tinham ido dormir tarde, o que me impediu de sair escondida em uma hora respeitável. E eu não podia ficar muito tempo, tendo uma prova enorme de trigonometria no dia seguinte para a qual mal havia estudado. Precisava de uma noite decente de sono, falei exatamente isso a Connor pelo telefone. Talvez pudesse ficar no máximo uma hora, nem valeria a pena. Ele pediu que eu fosse de qualquer jeito. Então eu fui. E, apesar de saber que hoje seria corrido, Connor não disse nada sobre o fato de eu não querer ir direto para o depósito. A primeira vez que tinha ido a fazenda a noite tudo parecia bem assustador, a escuridão, os estranhos barulhos na mata. Mas agora sentia-me confortável ali, andava por lá como se fosse dia. Meus olhos quase não precisavam de tempo para se adaptar à noite depois que eu apagava os faróis do carro. Estávamos próximos a lojinha, então resolvi ir até lá. Sempre quis dar uma olhada de perto. — A mamãe mandou fazer há dois anos. Ela achou que seria bom vendermos lembrancinhas. Na verdade, foi ideia dela mantermos a fazenda aberta o ano todo em vez de apenas no Natal. Ela tem uma mente bem empreendedora — disse Connor, recostando-se no gradil da varanda. — Você iria gostar dela — acrescentou. Ouvir aquilo me deixava feliz. Mas só por um segundo, pois não tinha certeza se a Sra. Hughes também ia gostar de mim. Não se ela soubesse quantas noites tinha entrado escondida na propriedade dela para me agarrar com o Connor enquanto ela e o marido dormiam. Nenhuma mãe em juízo perfeito iria gostar de uma garota assim. Essa era a pior parte de tudo: saber que era errado, mas fazer mesmo assim, não me importando com o quanto aquilo ia profundamente contra o tipo de pessoa que eu era. 137


Coloquei as mãos nas laterais dos olhos para olhar para as prateleiras pela vitrine. Vários potes estavam perfeitamente enfileirados. Etiquetas escritas à mão marcavam geléia de morango, pasta de maçã e torta de abóbora numa caligrafia encantadoramente perfeita.Todas possuíam uma tira de tecido retorcido ao redor da tampa.Algodão vermelho, como as toalhas de mesa de piquenique no verão. — Ela faz tudo sozinha, com ingredientes frescos do jardim. Uma padaria elegante na cidade começou a vender os produtos dela — disse Connor, que estava atrás de mim bloqueando o vento frio da noite com o corpo. Seu queixo estava apoiado em meu ombro e ele também olhava lá para dentro. Nossa respiração embaçava o vidro. - Você não vai acreditar no quanto algumas pessoas se dispõem a pagar por essas coisas. Uma ideia passou pela minha mente, uma ideia enorme. Virei o corpo para ficar de frente para ele. — Connor! Sabe de uma coisa? A sua família poderia doar algo para as minhas cestas de Ação de Graças! Só precisamos de 20 potes. Talvez 30, se vocês puderem. Até quartafeira. Connor começou a beijar meu pescoço; eu fechei os olhos e respirei fundo. Ele fez a barba um pouco antes da minha chegada. Sabia porque sua face estava inacreditavelmente macia. Por isso, e pelo cheiro de pós barba, um perfume de madeira picante e aconchegante. Depois de alguns beijos, me abaixei para me soltar dele. Não podia me desviar do assunto. As coisas com as cestas de Ação de Graças estavam indo devagar, aliás, tudo estava nesse compasso. - É verdade, Connor. Você está me ouvindo? — Estou bem distraído — disse, aproximando-se. Levei as mãos à cintura. — Há muitas famílias em Liberty River que não têm nada. Elas não podem pagar por um peru de Ação de Graças, muito menos por todas essas geleias chiquérrimas. Você não acha que deveria doar algo aos menos afortunados que você? Não seria a coisa certa a ser feita? Ele apontou o queixo em direção ao depósito. — Vamos, Sterling. Está muito frio. Não saí do lugar. E não estava com frio, estava começando a ferver. — Sabe, seria muito legal se você pudesse me ajudar. Honestamente, é o mínimo que você pode fazer. Ele colocou o capuz e perguntou: — O que isso quer dizer? — Bem, vamos ver — disse em um tom sarcástico —, não é você quem atravessa a cidade de carro todas as noites. Você só levanta da cama e me encontra bem aqui, esperando. Suas notas não estão sofríveis. Você não precisa se preocupar com o fato de cair no sono no meio da aula. — Só o fato de ouvir a mim mesma dizendo tudo aquilo me deixava ainda mais com raiva. Connor olhava para mim com cara de quem não estava entendendo nada, como se nada daquilo tivesse passado pela cabeça dele antes. Apontei o dedo para ele e falei — Você não tem trabalho nem faz esforço nenhum nesse nosso trato. Connor esfregou as mãos. As pontas dos dedos estavam ficando avermelhadas de tanto frio. — Você está dizendo que tenho que ir para sua casa? 138


— Não, Connor! — essa era a última coisa que eu queria, estar com ele num lugar em que realmente poderíamos ser pegos. Connor não pensava nessas coisas, ele não precisava pensar. — É diferente para você. Você não tem que se preocupar com a faculdade, em manter boas notas. Estou bem estressada com essa captação de alimentos. Coisas assim não acontecem como que por magia. Demandam muito tempo, trabalho e esforço. E preciso que as pessoas me ajudem — sei que para ele parecia que estava irritada com ele, mas por que Connor não podia concordar em doar algumas coisas para as cestas? Será que ele não queria me ajudar? Ele balançou a cabeça, magoado. — Então, basicamente, tenho que dar a você uns potes de geleia porque você vem aqui para ficar comigo? Como se fosse um pagamento? — O quê? Não! Não é isso que estou falando! — apesar de que talvez fosse. Todos os meus músculos ficaram tensos, dos dedos do pé até o maxilar. — E não gosto nada do que você está insinuando. Não sou uma piranha da escola. Você não pode me comprar com geléia. — Talvez seja melhor você ir embora — disse, desenhando curvas no cascalho com a ponta do tênis. — Pode me chamar de louco, mas não consigo imaginar a gente se divertindo hoje. Queria dar um soco nele. — É engraçado! Porque há uma hora eu disse que não devia vir hoje, mas você me convenceu. — Eu não a convenci de nada, Sterling. Essa é uma habilidade que eu realmente não tenho. — Ãh? O que você quer dizer com isso? — perguntei. E depois pensei melhor e disse: — Quer saber? Deixa para lá. Vou embora — gritei como se não me importasse. Raiva pura e simples. Mas assim que fui em direção ao carro, comecei a me sentir mal. Connor me deixou ir, ele me deixaria ir embora, não tentaria me impedir. Queria me virar, queria pedir desculpas, mas era orgulhosa demais para fazer isso. Estava procurando a chave do carro quando o ouvi atrás de mim. — Sinto muito. Estou muito estressado também. As eliminatórias serão na quarta-feira e nosso treino está um lixo — ele suspirou profundamente. — Não vamos brigar. — Acho que está meio tarde para isso, né? — Senti-me tão tola, desesperada e imatura que minhas mãos começaram a suar. Tentei mudar o tom rapidamente para limpar a barra, para esconder o fato de que esperava que Connor se importasse comigo e com os problemas do meu conselho estudantil. — E não estava tentando me aproveitar de você, a propósito. Achei que seria uma boa propaganda para a sua família. O jornal local vai mandar um fotógrafo para tirar fotos da montagem das cestas. Eu colocaria os potes em evidência, e a sua família teria uma menção especial no artigo. Esperei que Connor fosse dizer alguma coisa, mas ele ficou quieto. Um silêncio extremamente doloroso. 139


E então, antes de perceber o que estava fazendo, virei-me para ele e coloquei meus dedos na alça da calça dele. Subitamente, queira muito que ele me desejasse a ponto de fazer qualquer coisa por mim, a ponto de me dar tudo o que eu pedisse. Era esse o tipo de poder que queria exercer sobre Connor Hughes. — Vou falar com a minha mãe, está bem? Não posso prometer nada, pois, como comentei, são produtos caros, mas vou pedir. — Tentei dizer obrigada, mas minha garganta fechou. Connor pegou minha mão, a que estava presa à calça dele, e a colocou dentro do bolso do casaco. — Está ficando tarde — falou. Mal consegui mover a cabeça para concordar. Mas nós dois fomos para o depósito mesmo assim. Nossos sapatos arrastavam no cascalho em sincronia até começarmos a pisar na serragem caída das árvores, e então não ouvíamos mais nada.

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Capítulo 32

O

dia de montar as cestas de Ação de Graças chegou rápido demais. Era para

ter sido uma coisa fácil. Só que aparentemente eu era a única que estava levando a coisa a sério. — Fogo! — gritou Ricky, um dos representantes dos calouros, antes de atirar uma bola de papel para o alto. Outro representante, Phil, gritou: — Foi isso que ela disse! Os garotos, sentados juntos numa cadeira de mogno da biblioteca, riam como hienas, mostrando seus sorrisos travessos nos rostos oleosos. Rasgaram mais duas páginas do caderno, transformando-as em munição. — Meninos! — gritei do outro lado da biblioteca, abaixando a cabeça. — Parem! Enquanto eu estava ocupada tentando organizar as cestas, Ricky e Phil tinham construído um forte com latas de geléia de amora, creme de milho e de espinafre. Quase todas as doações dos alunos estavam empilhadas em colunas em cima da mesa deles. Eles se escondiam atrás da parede de lata a cada segundo para lançar ataques em uma mesa de garotos vulneráveis do outro lado da biblioteca, que tentavam se proteger das bombas com seus enormes livros-texto. Claro, era véspera de feriado e todo mundo estava animado com o fato de ficar de folga da escola por alguns dias. Mas, de alguma forma, havia perdido o controle sobre o conselho estudantil. Lembrei-me da minha primeira reunião e de como minha liderança era clara, como ninguém ousaria falar a menos que eu permitisse, como todos me respeitavam, até temiam. Atualmente, era exatamente o oposto. A Srta. Bee veio de seu escritório, irritada com o barulho. Sabia que ela iria me dar mais um sermão. E, mais uma vez, senti que merecia. — As coisas parecem estar meio devagar por aqui. Você tem um plano para hoje à tarde? Ou está voando conforme o vento? — sua boca contorceu com a pergunta. 141


— Estou tentando. Nesse momento Dave veio correndo e comentou: — Devo fazer todo mundo começar a repartir a comida? — Sim — eu e a Srta. Bee dissemos ao mesmo tempo. Ela olhou ao redor da sala e eu tentei não olhar para ela. A vista era decepcionante. — Isso é tudo que você tem? — questionou. — Vai ser o bastante — disse, mesmo sabendo que não seria. Precisávamos de vinte cestas e o que tinha ali mal dava para dez. Mas o que eu podia fazer? Fiz o que pude para lembrar os alunos de trazer as latas. Basicamente ameacei a mercearia da cidade a doar perus. Fiquei tão feliz quando convenci a padaria a doar pão, mas dava para ver, quando fui buscá-los hoje de manhã, que já estavam amanhecidos. O dia de Ação de Graças era amanhã; até lá já teriam virado pedra. Queria muito dar às pessoas uma cesta de Ação de Graças bem legal. Uma que fosse memorável. Gostaria que as minhas cestas fossem bonitas e especiais, como aquelas que vemos nas revistas elegantes. Se a minha cesta de Ação de Graças fosse feita com as coisas de que dispunha, não sentiria muita vontade de comemorar. Seria bem provável que tentaria me matar. — Isso não está lindo, pessoal? — Spencer falou do outro lado da sala, apesar de estar olhando diretamente para a Srta. Bee. Ela estava sentada, cortando pedaços de algodão vermelho para acolchoar as cestas feitas de salgueiro. — O tecido realmente dá o maior realce. Foi ideia da Natalie. Por mais que apreciasse o que Spencer estava tentando fazer, sentia-me idiota por ter gasto dinheiro com as cestas e com o tecido, especialmente quando devia ter comprado mais alimentos para as cestas. — Vá em frente, Natalie — disse a Srta. Bee secamente. — Não me deixe atrasá-la. Sentei-me ao lado de Spencer e, tentando mostrar a melhor caligrafia possível, escrevi Feliz Dia de Ação de Graças em pequenas etiquetas com formato de folhas de árvore. Mas a minha caligrafia era horrível. Se Autumn estivesse ali, teria feito muito melhor. Foi ela quem escreveu a maioria dos meus cartazes de campanha. A caneta começou a falhar. Pedi que alguém arrumasse outra. Foi nesse momento que uma bola de papel pegou bem no meu rosto. Um suspiro me fez ver que foi um acidente, mas logo em seguida toda a sala estava abafando o riso, o que me deu vontade de matar quem quer que tivesse feito aquilo. Olhei ara os garotos e decidi que o agressor em questão tinha sido Phil, pois o rosto dele era o mais cotado de todos. — Sério mesmo, Phil, você é um cretino. — Spencer! — disse, repreendendo-a. A Srta. Bee estava do outro lado da sala. — Shh! 142


Phil apontou o dedo para o ar, dizendo: — Não fui eu. Foi o Rick! Rick correu para mesa e respondeu: — Mentiroso! Não venha querer me meter em encrenca! Rick tentou lutar com Phil por detrás do forte, derrubando somente uma das torres. As latas começaram a cair pelo chão fazendo o mais inacreditável dos ruídos. — Ah, meu Deus! — gritei, tentando fazer com que o maremoto de latas parasse. Havia latas por toda a parte. Rótulos rasgados, alguns amassados. Uma lata de batatas abriu espalhando flocos brancos por toda a parte. Fiquei de joelhos para recolher a sujeira que vazava das minhas mãos como areia. — Meninos! — a Srta. Bee correu para mim. — Natalie! Você precisa tomar a liderança! — Com licença, senhorita? Olhei para cima. Um jovem com uma câmera no pescoço olhou para mim. — Estou aqui para tirar umas fotos para o jornal. Será que é melhor, uh, voltar mais tarde? Mordi os lábios e segurei as lágrimas enquanto levantava. Nesse momento Connor apareceu na porta, usando o uniforme de futebol sujo de terra que parecia não ter sido lavado uma única vez durante a temporada toda, carregando uma enorme caixa de papelão. — Onde coloco? — ele perguntou, não se dirigindo a ninguém em particular. Spencer se aproximou de mim e apertou meu braço, lembrando-me que devia responder. — Em qualquer lugar — disse, casualmente —, qualquer lugar está ótimo. Outros cinco jogadores uniformizados apareceram atrás de Connor, também carregando caixas. — O que tem dentro delas? — perguntou o repórter, tirando uma foto. A Srta. Bee esticou o pescoço do outro lado da biblioteca para ver. Connor colocou sua caixa na mesa e pegou um dos potes. — Há geléias, recheios de torta e legumes frescos da nossa fazenda. — E era verdade. Enormes abóboras, abobrinhas e cenouras com cabos longos e cheios de folhas. Senti o rosto corar. As caixas estavam absolutamente cheias. Queria chorar novamente, mas dessa vez era de alívio. — Você não precisava ter feito tudo isso — sussurrei quando consegui ficar próxima o bastante. Foi preciso muito autocontrole para me impedir de me jogar nos braços de Connor e enchê-lo de beijos.

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— Eu sei disso — Connor sussurrou também. Ele estava sorrindo quando me deu uma pilha de envelopes verdes. — O que é isso? — Cupons para árvores de natal gratuitas. Achei que você pudesse colocá-los nas cestas. Se você acha que não combina com Ação de Graças, tudo bem. Ou se algumas famílias são judaicas ou sei lá. Você não precisa usá-los. — Connor, você fez demais — por mais animada que estivesse, sentia-me um pouco culpada. Afinal de contas, eu o tinha praticamente forçado a fazer isso por mim. A família de Connor gastou muito dinheiro com aquelas coisas. Havia pelo menos várias centenas de dólares em mercadoria ali. — Falei para minha mãe do seu projeto e ela quis ajudar. E também sussurrou —, não são cupons para árvores caras. Só das de 20 dólares que vendemos às pessoas que moram em apartamentos. São desse tamanho — disse, colocando a mão na frente do meu nariz. Brincalhão e meigo. Antes que me desse conta, aproximei-me para abraçá-lo. Mas parei porque a Srta.Bee estava olhando para mim. Soltei os braços. Uma ponta de preocupação passou pelo meu rosto, mas ele sorriu e disse: — Queria que você ganhasse alguma coisa do nosso acordo — era brincadeira, mas eu não conseguia rir. — Queria ajudá-la. Um jogador de futebol veio por trás de mim. — Não temos que voltar ao vestiário antes que o treinador Fallon nos faça dar voltas extras no campo? — Claro, vai indo — disse Connor. Então, quando os jogadores mais novos saíram, Connor chegou mais perto, pensei que quisesse um beijo, mas em vez disso perguntou: — Você vai ao jogo? Hoje é dia de campeonato. Por favor? — Olhei por cima do ombro dele. Apesar do restante dos alunos estarem descarregando as coisas das caixas, sabia que estavam vendo. Sabia que Spencer estava olhando. Ela não tinha tirado os olhos de Connor desde que ele havia chegado. Dei um enorme passo para trás e disse de maneira tensa e formal. — Muito obrigada. Gostamos muito da sua ajuda. Connor pareceu magoado por um segundo. Ou talvez apenas confuso. Mas ele se virou e foi embora. Não tive tempo de me sentir culpada. A Srta. Bee se aproximou toda contente: — Essas coisas são maravilhosas — mas então olhou para mim e argumentou de forma implacável: — Aquele garoto te salvou — ela não estava feliz com isso. Ela queria que eu tivesse me salvado. Depois que as cestas estavam prontas, fui ao jogo de futebol. Já estava escuro e os holofotes iluminavam o campo. O local estava cheio apesar de estar absolutamente frio lá fora. Sabia que Autumn estava lá. Avistei-a toda enrolada em uma coberta com outras garotas quando fui até a grade que cercava o estacionamento. Abotoei o casaco e enfiei os braços dentro para 144


me aquecer. O cachecol estava enrolado no meu rosto, deixando apenas os olhos de fora. Não conseguia sentir os pés. Queria assistir ao jogo todo por Connor, mas estava absolutamente congelante. Além do mais, estávamos perdendo. E feio. Era muito longe para conseguir ver todo mundo, mas como Connor jogava na defesa, dava para vê-lo. Parecia que estava muito marcado. O chão congelava de forma dura e implacável, fazendo-me recuar o tempo todo. — Não pensei que você gostasse de futebol. Virei-me para ver Spencer segurando duas xícaras de cidra de maçã fumegantes. Peguei uma e comentei: — Não gosto. — Assistiria até a uma competição de xadrez se Connor Hughes estivesse participando. Mantive o olhar no campo. Não havia como negar o que Spencer tinha visto na biblioteca hoje. — Por favor, não conte para ninguém. — Claro que não. — O vento ficou mais forte e Spencer colocou o capuz do casaco por cima dos cachos. — Por que você não me contou naquele dia? Havia várias razões, então escolhi uma delas aleatoriamente. — Pensei que você gostasse dele. Ela riu. — Natalie, por favor. Eu gosto de todo mundo. Sou ótima para me apaixonar. Mas, falando sério, o que Connor fez hoje não foi brincadeira — ela bateu o dedo no meu peito e lembro — E você mal agradeceu! Senti a raiva tomando conta de mim. — O que você esperava que eu fizesse, Spencer? Desse um beijo apaixonado nele? Oferecesse a ele uma masturbação gratuita? Se tivesse tratado Connor de forma diferente de todo mundo que doou alimentos, as pessoas iam começar a falar. E quando as pessoas começam a falar não param mais. Acredite em mim. A Srta. Bee já está suspeitando de alguma coisa. Eu sei. Spencer olhou para mim como se eu fosse louca e comentou: — Não seja paranóica, Natalie. Ninguém sabe de nada. E tudo o que estou tentando dizer é que você deveria fazer algo legal para ele. — Você não está me vendo aqui, morrendo de tédio e quase congelando? Spencer riu. — Desculpe falar, mas não tem como Connor saber que você está aqui. Você não está torcendo por ele, nem se aproximou da arquibancada. Você está praticamente no estacionamento. Olhei pelo buraco da grade como se fosse um telescópio e disse: — Connor sabe. Ele sabe que estou aqui. 145


Spencer não parecia convencida. E quanto mais pensava naquilo, menos convencida ficava também. A única coisa certa era que o frio subitamente tinha ficado mais forte.

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Capítulo 33

N

aquela noite, Connor ficou me esperando lá fora, soltando fumaça pelo nariz como se fossem balõezinhos de pensamento vazios. Saí do carro e comecei a caminhar em direção ao depósito pisando a terra congelada do caminho. — Que batalha, hein?

— Engraçado que no único jogo que você aparece nós perdemos. Normalmente, não jogo mal como hoje — disse, suspirando. — Não acredito que a temporada acabou. Nunca mais vou jogar futebol novamente. Envolvi minhas mãos com as luvas de lã nas dele e o fiz parar. Connor virou-se para olhar para mim. Olhei para a casa dele ao longe. — Tem certeza de que não vamos ser pegos? — estava nervosa, mas sorrindo apesar disso. Principalmente porque mal podia esperar para ver a reação de Connor. Ele não me desapontou. Abriu a boca só um pouco e falou — Sério? — Está muito frio — disse, rindo. E estava mesmo. Ele apertou a minha mão e recomendou: — Fique perto de mim. Fomos de fininho até a lateral da casa e entramos por uma porta dos fundos que dava para uma despensa cheia de sacos de arroz, massa e potes de vidro com legumes enormes e vivos mergulhados em um líquido amarelo. Passamos pela cozinha e pela sala de jantar com uma enorme mesa de madeira pintada de branco e um lustre de ferro com pequenos abajures de linho. A casa inteira tinha um perfume doce e apimentado, como uma torta de abóbora com cobertura extra de noz-moscada e cravo. Senti-me exatamente como na primeira noite: com tontura, nervosa, excitada, assustada. Connor apontou para o corredor. — O quarto dos meus pais — sussurrou. E fez sinal para que eu subisse nas costas dele. — Quê? — por essa eu não esperava. 147


— A escada é velha e barulhenta. Só pode ter o barulho dos meus passos. Ele agachou. Subi nas costas dele da forma mais graciosa possível, o que por sinal não tinha nada de gracioso. Você nunca pensa no quanto é pesada até alguém te carregar nas costas. Senti-me como um saco de batatas. Connor respirou fundo. — Você está bem? — Sim. É que judiaram bastante de mim hoje — Connor colocou os braços atrás das costas para fazer apoio e deixar o peso mais estável. Ajudou. Apesar dos machucados, a força de Connor me deixou surpresa. Seus passos eram leves e nada desajeitados conforme subíamos para o segundo andar. Apoiei o rosto na camisa de flanela dele e olhei para todas as fotos de família penduradas na parede. A cada retrato, Connor ficava mais velho. Ele era um bebê de olhos vivos, com uma cabeleira castanha que mais parecia um topete. Depois era um garoto de cara fechada, talvez com 7 anos, usando vestido e maquiagem, rodeado por quatro meninas mais velhas que pareciam estar se divertindo muito. — Parece que as suas irmãs aprontavam muito com você — sussurrei no ouvido dele. — É. Elas me forçaram a ser a Barbie delas durante anos. Depois Connor ficou mais velho, provavelmente estava no ensino fundamental II, segurando a corda de um trenó antigo, empurrando duas de suas irmãs, que eram bonitas, na neve. Ao lado, uma foto em que ele estava de avental, ajudando a mãe na cozinha. Finalmente, havia uma foto recente de Connor, daquele Connor que estava me carregando, ao lado do pai, os dois segurando um machado nos ombros. Parecia uma linha do tempo, passando em ritmo acelerado até aquele momento. Queria ir devagar, queria admirar cada uma das fotos. Quando chegamos ao topo da escada, desci das costas dele. Tapetes trançados cobriam o chão de madeira. — Meus pais não conseguem ouvir a gente agora — disse com tanta convicção que não consegui evitar pensar nas outras garotas que ele tinha levado para o quarto, as outras que ele havia carregado nas costas, apesar de tentar afastar esses pensamentos da cabeça. — Carlie e Corinne estão em casa para o feriado de Ação de Graças. Acho que saíram para se encontrar com os amigos do ensino médio, mas é melhor a gente ficar em silêncio. Quando Connor colocou a mão na maçaneta, percebi que não tinha pensado muito na aparência do quarto dele. Rapidamente imaginei um quarto bagunçado, típico dos garotos — roupas espalhadas pelo chão, uma pilha de revistas de esportes, talvez um pôster de carros de corrida ou de uma mulher de seios fartos segurando dois copos de cerveja nas mãos. Mas o quarto de Connor não era nem um pouco assim.

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Era limpo. Não só limpo, mas impecável. O espelho não possuía mancha alguma, o tapete bege havia sido aspirado. As prateleiras não contavam com livros, mas troféus de vários tamanhos. Eles brilhavam sem poeira alguma. Senti um aroma de frescor, como roupas que acabaram de sair da secadora, apesar de todas as roupas dele estarem guardadas. Tirei o casaco e pendurei na cadeira da escrivaninha. Havia uma pilha de papéis — folhas espalhadas com números e cálculos mais difíceis do que os do meu livro de cálculo avançado. — O que é isso? — perguntei. — Planos de negócios, orçamentos, projeções para o ano que vem — Connor sentou na cama e eu me sentei ao lado dele. — Não acredito que você está aqui — disse. — Por quê? Você já trouxe muitas outras garotas aqui antes. Arrependi-me de ter dito isso. Porque não queria pensar em Connor com outras garotas e por causa da forma como tinha ficado bravo quando falei sobre como ele havia perdido a virgindade. Dessa vez, entretanto, ele não ficou bravo. Olhou fundo em meus olhos e comentou: — Nunca uma garota como você. E não soou piegas, nem como uma cantada ou uma mentira ou qualquer outra coisa que teria suposto na primeira vez em que ficamos juntos.As coisas estavam diferentes agora. Eu estava diferente, pronta para aceitar Connor pelo que ele realmente era — um bom rapaz que não faria nada para me magoar. A percepção de que eu, implícita e incondicionalmente, confiava nele me surpreendeu de forma acolhedora. Connor esticou a mão para desligar o abajur. Eu tirei a mão dele. Não estava com medo da luz, do que Connor iria ver. Não queria mais me esconder. Ele arregalou os olhos sem acreditar no que estava vendo quando tirei a camiseta e a calça. Desabotoei o sutiã e tirei a calcinha. Dava para ver que Connor me viu exatamente da forma como queria ser vista. Bonita, forte. Pensei que ficaria nervosa, mas estava confiante de uma forma como nunca tinha estado no depósito. O momento era bem diferente do que havia imaginado. Não havia medo nem constrangimento. Era pura liberação. Também tirei a roupa de Connor. O corpo dele estava machucado. Ferido. Frágil. Deitei-me ao lado dele e o toquei com muito cuidado, mas tinha que tocá-lo. E quando o toquei, senti que minhas mãos eram pequenas demais. Não dava para senti-lo o bastante, segurar sua pele o bastante. Não queria espaço algum entre nossos corpos. Nenhuma luz, nenhum ar, só um vácuo. Fiquei em cima dele e deixei a gravidade pressionar nossos corpos um contra o outro. lábios, peito, abdômen, coxas. Não estava planejando transar com ele, mas agora era tudo o que eu queria. Meu corpo, minha mente e tudo em mim gritava que essa era a coisa certa a ser feita. Precisava estar com Connor. Estava apaixonada por ele. 149


E a clareza desse fato impulsionou uma avalanche. Senti-me tomada por essa liberdade de expressão dos sentimentos que tinha tentado esconder de toda forma. Parei de tentar me impedir de algo que queria desesperadamente. — Você tem algo que podemos usar? — sussurrei. — Espere aí — ele afastou meus cabelos para que caíssem apenas sobre um dos ombros. — Você não está fazendo isso por causa de hoje, está? Das cestas de Ação de Graças? Porque não quero que seja por isso. Poderia ter chorado. Tinha deixado Connor tão distante de mim por tanto tempo que ele não tinha a mínima ideia do quanto eu gostava dele. Meus sentimentos estavam trancados naquele depósito porque estava com medo demais de expressa-los. Só que agora, por alguma razão, não estava com medo de mostrar a ele o que sentia. Era a única coisa que queria. — Não é por isso. Sexo é algo que aprendemos de forma abstrata, por conceitos clínicos. As camisinhas vêm com instrução, as aulas de saúde fornecem livros com ilustrações das partes e dos procedimentos. Sabia como deviam ser as coisas, as ações que fisicamente aconteceriam entre nós. A euforia absoluta de saber que Connor e eu não tínhamos como ficar mais próximos fisicamente um do outro. Connor perguntava baixinho se estava tudo bem. Parecia que estava mais inseguro do que eu, suas mãos trêmulas segurando-se em mim como se estivesse sem equilíbrio. Ele era mais experiente, mas dava para ver que o que estávamos fazendo era diferente do que ele já tinha feito com outras garotas. O mundo inteiro desmoronou e só havia Connor e eu. Finalmente.

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Capítulo 34

A

cordei com o sol da manhã no meu rosto e o braço de Connor por cima do meu peito. Por um segundo, pareceu-me a melhor coisa do mundo. E então me levantei. Connor levantou a cabeça, olhou para o relógio, xingando baixinho.

Eu já estava de pé, colocando as roupas. A calcinha e o sutiã estavam gelados por terem passado a noite no chão. Mal conseguia olhar para Connor. Não era arrependimento, não exatamente. Mas todos os sentimentos maravilhosos da noite anterior tinham sido substituídos por medo. Um acidente como esse jamais teria acontecido no depósito. Era frio demais, desconfortável demais. Talvez tinha razão de ser assim. — Tenho que sair daqui. Como vou sair daqui? — Sabia que falava como uma louca em pânico. E era mesmo. Absolutamente. Precisava voltar para minha casa antes que meus pais percebessem que não estava lá. Connor abriu um pouco a porta do quarto. Sentiu o aroma que vinha do corredor — Minha mãe já está Cozinhando. Droga. Era dia de Ação de Graças. Geralmente íamos para casa da tia Doreen, mas a mamãe sempre acordava mais cedo para fazer uma torta. — Preciso ir. Agora. Connor levantou as mãos para o alto e disse: — Tudo bem. Vamos fazer o seguinte. Vou te levar no colo até lá embaixo. Então vou entrar na cozinha e distrair a minha mãe enquanto você sai pela porta da frente. Meu coração estava apertado. Aquilo não era nem um pouco divertido ou excitante, como costumava ser quando nos escondíamos no depósito. Connor vestiu uma calça de moletom e uma camiseta. Não falamos um com o outro. Ele parecia cansado demais para falar e eu estava acordada demais para conseguir encontrar o que dizer entre as milhares de palavras que rodeavam a minha cabeça como um alarme.

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Dava para ouvir a mãe de Connor com as panelas da cozinha chiando quando ele me carregou para baixo. E aparentemente ela também conseguia ouvi-lo. — Connor? — ela chamou. Ele parou e senti como se o ritmo dos nossos corações acelerados fosse um só. — Sim, mamãe. — Você acordou cedo. — Senti o cheiro da comida. — Bem, estou acabando de fazer panquecas. Vá acordar suas irmãs e seu pai. Connor me pôs no chão quando chegamos ao pé da escada. A porta da frente estava logo ali. — Tudo bem — ele sussurrou. — Escuta, eu... — Mando uma mensagem para você mais tarde — sussurrei também, depois o empurrei para a cozinha. Connor desapareceu e eu fiquei parada até ouvi-lo conversar com a mãe. Então, fui na ponta dos pés e abri a porta. Ou pelo menos, tentei. Mas estava trancada. Tentei centenas de combinações com o fecho e não parava de empurrar com toda a força. Ouvi o barulho de descarga. Lá em cima, onde as irmãs de Connor deveriam estar dormindo. Minha mão estava fria e úmida na maçaneta de metal. Ouvi passos na escada atrás de mim. A trava finalmente abriu e puxei a porta. O frio me atingiu como um tapa. Ele e a claridade. Tinha nevado bastante durante a noite. O branco refletia por toda a parte. Saí e fechei a porta atrás de mim com mais força do que pretendia. A maçaneta enroscou. Saí correndo em direção ao carro, deixando marcas de sapato na neve, provas por todo o caminho. A neve molhava as minhas pernas, fazia meus tornozelos queimarem. Meu carro estava coberto. Enfiei as mãos dentro do casaco e limpei apenas o suficiente para enxergar. Então entrei com tudo, liguei o carro e acelerei, as mãos, o rosto, estava tudo vermelho em mim. Quando estava saindo, olhei para a casa. A Sra. Hughes estava na varanda, vendo-me ir embora. Geralmente, quando saio da casa de Connor, sinto-me melhor do que quando chego. Mas dessa vez não. Meu celular tocava. Pensei que talvez fosse Connor, mas eram os meus pais. Verifiquei minhas chamadas perdidas. O número da minha casa apareceu inúmeras vezes desde as cinco da manhã.

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Estacionei no acostamento, limpei o restante do pára-brisa e deixei o aquecedor ligado. Tentei pensar em um plano. Eu só pensava no que tinha feito com Connor, vislumbrava o toque da pele e o calor aconchegante. Mas em vez de curtir as lembranças, estava pensando nas mentiras para acobertar o fato de que aquilo tinha acontecido. Meus pais estavam sentados no sofá, assistindo a um daqueles canais 24 horas de notícias. Não sabia se estavam procurando por algo do tipo ―Notícia Urgente: garota da região encontrada morta em uma vala‖ Eles pareciam mais pálidos, mais velhos do que jamais os tinha visto. — Sinto muito — disse. Os dois vieram correndo até mim. Se jogando em mim, me abraçando e me olhando todinha. Minha mãe estava chorando. Meu pai estava tenso, com lágrimas nos olhos. A forma como olhavam para mim me dava vontade de vomitar. Como os tinha decepcionado. Como pareciam terrivelmente preocupados. A alegria por simplesmente saberem que estava viva rapidamente desapareceu. Eles exigiram saber onde eu estava. — Estava na casa da Autumn e peguei no sono. — Achei que você não estivesse conversando com a Autumn — a voz da mamãe estava estranha. Ela não estava acreditando exatamente em mim, mas dava para ver que queria acreditar. E eu estava com sorte: por causa da minha briga com Autumn, aparentemente a mamãe não tinha telefonado para ver se eu estava lá. — Nós fizemos as pazes. Liguei para ela ontem à noite para finalmente conversarmos. E Autumn me convidou para ir até a casa dela para que pudéssemos conversar pessoalmente. Choramos muito, foi exaustivo e acabei dormindo por lá. Sinto muito mesmo. Não tinha percebido que estava chorando, mas estava. Porque estava mentindo e porque queria que a minha mentira fosse verdadeira. Eles me deram mais um abraço antes de me colocar de castigo.

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Capítulo 35

C

onnor me mandou várias mensagens durante todo o feriado de Ação de Graças. Primeiro eram mensagens de desculpa e preocupação, como desculpe e seus pais estavam

acordados? Escrevi de volta: Estou bem. E desliguei o telefone.

Queria poder me desligar também. Mal conseguia olhar para os meus pais. Não depois de ter mentido para eles com tanta facilidade. Eu era uma péssima mentirosa, mas tinham engolido a história. Que outra escolha podiam fazer? Não queriam pensar que a filha deles era capaz de fazer as coisas que fez. Nem eu mesma queria pensar que era capaz de fazer essas coisas também. Por mais certo que o fato de dormir com Connor tivesse parecido no momento, perceber o quanto as outras pessoas julgariam o que eu havia feito estragava tudo. Estava tudo bem no depósito, escondida no quarto de Connor, onde éramos só nós dois em um local livre de julgamentos. Só que na vida real não existe um lugar assim. Todas as outras pessoas na minha vida faziam com que minha relação com Connor desestabilizasse. Não liguei o telefone novamente até segunda-feira, no início das aulas. Minha caixa de mensagens de voz tinha várias ligações interrompidas. Havia muitas mensagens de texto de Connor. Onze no total. O tom era diferente a cada uma delas, parecendo levemente mais desesperado a cada mensagem.

Só me diga se você está bem. E bravo.

Por que você está me ignorando? E na defensiva.

Eu não fiz nada! Ele estava certo. Não tinha feito mesmo. Absolutamente. 154


Percebi que as pessoas estavam comentando sobre alguma coisa na hora do almoço. Estava na fila da lanchonete. Autumn, Marci e mais umas outras garotas estavam cochichando na maior agitação. Estavam tão compenetradas que nem perceberam que bloqueavam os caixas totalmente. Fiquei bufando e reclamando enquanto me apertava para passar no meio delas para chegar ao caixa. Cheguei até a dizer ―com licença‖ de um jeito bem arrogante, pois estava muito irritada com a minha pizza que esfriava. Nunca dá para comer pizza quente na escola. As lâmpadas de aquecimento não adiantavam nada. Só temos literalmente cinco minutos para comer a fatia, que vai estar no máximo morna. Passou disso, já era. Ao passar por elas,Autumn parou de cochichar e me lançou um olhar. Não era exatamente um olhar de raiva. Era mais um olhar de confirmação, um olhar de quem sabia de alguma coisa. Como se eu estivesse envolvida, de alguma forma, na história que elas estavam contando. Foi então que comecei a ficar nervosa. Será que Connor tinha contado aos outros o que tínhamos feito, como punição por não ter respondido às mensagens dele? Sabia que ele estava bravo comigo, mas não dava para acreditar que ele faria algo assim. Passei o restante do dia observando as pessoas e os seus comentários. Na oitava aula, era óbvio que o assunto de toda a Academia Ross era algo extremamente apimentado. Parecia o tipo de fofoca que literalmente pega fogo, transcendendo grupos e panelinhas. O mesmo que tinha acontecido ano passado, quando Walter Desmon teve uma ereção na aula de natação e se recusou a sair da piscina por quinze minutos. Dei uma olhada na biblioteca, parcialmente embrulhada nas dobras de uma enorme bandeira dos Estados Unidos. Se esticasse a cabeça até doer o pescoço, conseguia ver o corredor em que Dipak, Martin e David estavam reunidos, cochichando. Fiz tanto esforço para ouvir o que falavam que meus ouvidos até zumbiram. — Natalie? — disse Susan Choi, aparecendo bem à minha frente — Ah, você quer que a gente junte as mesas ou quer fileiras? — Qualquer coisa — disse, levantando os pés para que pudesse ver por cima da cabeça dela —, pode escolher. — Legal! — disse Susan, que se virou para os demais alunos que vieram à reunião. — Tudo bem! A Natalie disse que podemos arrumar as mesas hoje. Então vocês querem votar? Agora tinha conversa demais na biblioteca para que pudesse ouvir o que falavam, então me concentrei no bigode do Martin para tentar ler os lábios dele. Entretanto, foi totalmente desnecessário, pois subitamente três cabeças jogaram-se para trás. Os garotos gritavam ―Uau!‖ e tomavam fôlego entre as risadas. Meu estômago revirou. Claro que tinha esses ataques de pânico desde que havia começado a ficar com Connor. Só que dessa vez não estava sendo paranóica. Essa percepção fez 155


com que minhas pernas tremessem ao ver os garotos vindo para a biblioteca. E dava para perceber que nenhum dos três queria olhar nos meus olhos ao passarem por mim. Susan voltou e disse: — Natalie? — ela mordeu os lábios e olhou ao redor. — Posso falar com você um segundo antes da reunião? — Que foi, Susan? — Tem uma coisa que preciso te contar — respirou fundo e arrumou a franja —, uma foto da Spencer nua está circulando entre os celulares de todo mundo. Não podia acreditar em meus ouvidos. —Você tá brincando? Susan sorriu e comentou: — Achei que quisesse saber, já que são amigas. Senti muitas coisas diferentes. Vergonha por Spencer. Raiva. Decepção. Lembrei-me do momento em que Autumn me contou sobre ela e Chad Rivington, quando não consegui acreditar que uma amiga minha pudesse fazer algo tão estúpido. Mais do que qualquer coisa, contudo, senti o maior alívio por saber que não era de mim que as pessoas estavam falando. Que, de alguma forma, milagrosamente tinha escapado ilesa dessa vez. — A Spencer sabe disso? — perguntei. Susan balançou a cabeça e falou: — Não tenho certeza. Eu a vi sentada no colo de um garoto do segundo ano na hora do almoço, pegando pimentão do sanduíche dele. Mas se ela não sabe, logo vai saber. O telefone de todo mundo tem a foto. Balancei a cabeça, em dúvida. — Queria saber se ela sabe quem tirou a foto. Susan deu de ombros e respondeu: — Talvez.A menos que ela faça esse tipo de coisa o tempo todo — o significado das palavras dela pairava no ar. — Acho que foi encaminhada e reencaminhada muitas vezes a essa altura, vai ser difícil descobrir - retorceu os lábios e completou —, é realmente desagradável. Olhei para Susan. Ela estava julgando de forma bem incisiva para alguém que idolatrava Spencer completamente há algumas semanas. Por outro lado, é com essa rapidez que a percepção das pessoas muda. Só é preciso errar uma vez, tomar uma decisão estúpida. — Se você quiser ver, pode pedir para o Dipak. Ele tem no celular, me mostrou — ela falou como se tivesse orgulho de ter visto. — Não quero ver uma foto de Spencer nua. E também não quero que as outras pessoas fiquem olhando. — É meio tarde para isso. No fim da reunião, é provável que você seja a única pessoa da escola que não tenha visto.

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Spencer não apareceu na reunião do conselho estudantil. Não fiquei surpresa. Durante toda a reunião, as pessoas ficavam olhando no celular, como se esperassem receber a foto. Depois da reunião, fui direto para o meu carro e telefonei para Connor. Estava com certo medo de que ele não fosse atender, mas ele atendeu no segundo toque. Ele pegou o telefone e começou a gritar comigo. — Por onde você andou? Telefonei para você o fim de semana todo. — Precisamos conversar. — Ah, então a gente só conversa quando você quer conversar? — ele estava muito bravo mesmo. — Desculpe, não sei. Eu... — parei de falar e perguntei: — Onde podemos nos encontrar? — Alguns clientes estão na fazenda agora. Abrimos para o Natal um dia depois da Ação de Graças — disse, suspirando. — Tive que guardar o saco de dormir e todo o resto. Já era o nosso depósito. Senti como se um esparadrapo tivesse sido arrancado com tudo. Cruel, mas necessário. — Não quero ir à sua casa — falei, lembrando da mãe dele olhando para mim da varanda. Deu para ouvi-lo pensar alto. — Há uma estradinha de terra antes da minha casa, à esquerda. Parece um retomo. Chego lá em dez minutos. — Não achava que fosse possível nossos encontros ficarem ainda mais sombrios — falei brincando já que as coisas entre nós estavam estranhas e queria deixá-las menos tensas. Mas não pegou bem. Senti a reprovação no silêncio dele que em seguida desligou o telefone. Tive um pressentimento ruim no caminho, que ficou pior quando saí do carro. Connor estava encostado no pára-choque da caminhonete dele. Não conseguia olhar para mim e eu também não levantei meu olhar em sua direção. No meio de tudo isso, acabei pensando em Adão e Eva. Em como eles eram felizes, brincando nus pelo jardim. E então, por um só momento, tudo virou vergonha. Pode ser que eles nem soubessem o que estava acontecendo. Não conheciam nada além da alegria. E então, subitamente, veio a hesitação. Silêncio. Estranhamento. Tudo estava arruinado. Ficamos ali, na neve, olhando para os pés um do outro. Dava para sentir que ele estava tentando juntar coragem para dizer alguma coisa. Então, resolvi ser a primeira a dizer. 157


— Então, você viu? Ele estava completamente confuso. — Vi o quê? — A foto da Spencer. — Talvez. A não ser que isso me deixe ainda mais encrencado. Dei um tapinha no braço dele dizendo: — Não tem graça. Você só viu ou tem a foto? Ele tirou o telefone do bolso. Tentei pegar, mas ele esticou o braço lá no alto. — Vai. Me deixa ver! — Por que você quer ver? — Porque ela é minha amiga. — Então é melhor você não ver. Senti meu coração partir e implorei: — Mostra para mim. Ele apertou uns botões e me passou o telefone. Nada podia ter me preparado para ver Spencer daquele jeito em uma minúscula tela de pixel. Os cachos, os lábios retorcidos, os seios nus bem na frente do fotógrafo. Minha mente viajou até o verão em que fui sua babá. Ela queria dançar no meio dos jatos de água do jardim, então disse para vestir o maiô. O único que não estava sujo era o do verão passado quando Spencer era bem menor. Uns garotos do bairro vieram brincar também. Só quando Spencer se aproximou de mim, toda molhada, pingando e implorando por um picolé foi que percebi. As alças estavam curtas, toda a frente estava curta demais. Mal cobria o corpo dela, dava para ver tudo. As crianças eram inocentes naquela época. Não notaram nem ligaram. Mas fiquei incomodada, porque sabia que não estava certo. Corri para dentro de casa e fiz Spencer colocar uma camiseta por cima. E, ao fazer isso, parecia que estava tirando algo dela em vez de cobri-la. Forcei-me a olhar para a foto novamente. Spencer se achava sexy, mas isso só me deixava triste. Ela não era poderosa. Não tinha o controle das coisas. Ela não era nada do que achava que fosse. Ia devolver o telefone quando percebi uma coisa. Spencer tinha um tecido preso atrás do pescoço. Reconheci na hora: era a camisola xadrez. Atrás dela havia várias bancadas de laboratório, um armário cheio de tubos de ensaio. E então descobri quem tinha tirado a foto. 158


— Mike Domski. — Quê? — Mike tirou essa foto. Connor olhou para mim sem entender nada, como se não fizesse a mínima ideia do que eu estava falando. — Olha só. Na noite em que dormimos na escola, vi Mike saindo do laboratório com aquele sorriso nojento. Sei que foi ele. — Você não pode contar isso para ninguém, Sterling. — Quem falou? — virei-me e fui voltando para o carro. Connor segurou meu braço. — Por favor, não se envolva. — Por que não? Ele deixou a cabeça cair para trás. — Sei lá. Porque Spencer já sabia que isso ia acabar acontecendo depois do que ela fez com ele no cinema? Porque Spencer pode fazer o que ela quiser? Porque não é da sua conta? Não dava para acreditar que Connor estava dizendo aquilo. Era como se tivesse tirado a máscara que sempre suspeitei que estivesse usando. — Você está brincando comigo? — Sério. Spencer vai fazer o que tiver que fazer. Você não é dona dela. Se ela quiser contar para alguém, é problema dela. Não seu. Olhei para Connor e disse: — Como foi que nunca vi que você é tão cretino quando Mike Domski? — Você está com raiva. Posso entender isso. Mas não desconte em mim. Estou tentando proteger você. — O que você quer dizer com isso? Não preciso que você me proteja. Posso proteger a mim mesma. — Sabe o que eu acho? Que você está usando Spencer com uma desculpa para não ter que lidar com o que está acontecendo entre nós. — O que está acontecendo entre nós, Connor? Estamos nos divertindo, certo? Bem, quer saber de uma coisa? Não estou mais me divertindo. Não quando tenho que mentir para os meus pais, nem quando tenho que desistir da minha vida para poder ficar com você. Estou cansada de me divertir. Isso só gerou confusão. Porque é isso o que acontece - não dá para ver? — Devolvi o telefone dele dizendo: — Deixa de ser divertido e se transforma em outras coisas. Como mágoa. E fofoca. E mau juízo. E culpa. Pode ser que você nem ligue. E Deus sabe que 159


Mike Domski não está nem aí. Mas eu me importo. Sei que você não quer que eu o confronte diretamente, mas sabe de uma coisa? Sinto que esperei por esse momento a vida toda. — Sterling, não... Suas palavras atingiram as minhas costas, pois fui embora. E de qualquer forma, era tarde demais para não. Porque nosso não já havia acontecido.

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Capítulo 36

S

pencer não atendeu a nenhum dos meus telefonemas. Era óbvio que estava me evitando. Fui de carro até o condomínio dela, mas não consegui me lembrar qual era o edifício em que a havia deixado.

Quando cheguei à escola no dia seguinte, montei acampamento no armário dela. Sentei-me no chão até tocar o sinal da primeira aula. Só que ela não apareceu. Fui para aula de química avançada. Era bem de frente para a sala em que Spencer tinha tirado a famigerada foto. Senti-me mal ao olhar para o espaço aberto, pensando no que ela havia feito com Mike Domski. Sabia que ela não iria falar comigo sobre isso, mas eu não me importava. — Sr. Quinn? Posso ir ao banheiro? Ele pareceu irritado com meu pedido repentino, mas acabou me dando um passe para o corredor. Fui até o escritório principal. O diretor Hurley estava lá, conversando com a secretária. Esperei para falar com ela assim que ele entrou no escritório e fechou a porta. — Com licença? — disse à secretária com o tom de voz mais educado possível. — Mas você poderia me dizer se Spencer Biddle veio hoje? Eu tenho que dar a ela um recado especial do conselho estudantil e não consigo encontrá-la. — Spencer foi suspensa hoje de manhã. — A secretária se aproximou da pequena samambaia que ficava em sua mesa e comentou: — O diretor Hurley ficou sabendo da foto. Droga. — Quando? — Há uns quinze minutos. Fui direto ao estacionamento. E, ao ver que Spencer não estava lá, fui para o meu carro. Tive que dirigir um pouco, mas a encontrei a alguns quarteirões da escola, esperando para atravessar a rua. Parei o carro e arrisquei dizendo. — Vamos. Entre. Spencer não olhou para mim e respondeu: — Estou bem. Obrigada mesmo assim. 161


— Spencer, não seja infantil. Deixe-me levá-la para casa. Depois de um longo suspiro ela veio até o cano e se inclinou na janela: — Não quero que você me dê sermão, está bem? Porque não estou nem aí. Honestamente, acho até engraçada a maneira como todos estão se movimentando por causa disso. — Engraçada? Suspensão é engraçada? — Uma semana de suspensão não é nada. — Vai ser quando você começar a procurar uma faculdade! Quer dizer, eu ainda sinto medo do C+ que tirei em economia doméstica no segundo ano. — Bem, não tenho planos de ir para Harvard, então está tudo bem. Eu estava soltando fogo pelas ventas. Era óbvio que ela estava fazendo cena. — Sei quem tirou a foto, Spencer. Sei que foi Mike Domski. O ar de ousadia se esvaiu na hora. Foi a primeira vez que vi a garotinha, aquela de quem costumava ser babá. — Não foi — ela disse. — Foi sim, Spencer! Eu vi quando ele saiu de fininho do laboratório. E você tá de pijama na foto, ugh. — Queria vomitar ao pensar nela com ele. — Você sabia que Mike Domski era um canalha. Por que você fez uma coisa tão idiota? E por que, em nome de Deus, você está acobertando ele? — A foto era apenas parte do meu plano para que ele abaixasse as calças no cinema. Tive que fazê-lo pensar que estava interessada. Ele só fez isso para se vingar de mim. Pensei que já tivesse passado, mas aí... — O quê? — Aquele aceno do dedinho que inventei.Todo mundo tá fazendo. Não só as garotas, mas os garotos também. Um calouro fez ontem de manhã, e achei que Mike fosse explodir. Acho que deve ter sido a gota d'água. Honestamente, pensei que ele tivesse apagado a foto. Pelo menos, foi o que me disse. — Então, se vingue dele. Entregue-o. — Natalie, fique fora desse assunto. — Se você vai se encrencar por causa disso, então ele também deveria, não é? Quer dizer, não seria justo? Ele se aproveitou de você, Spencer. — Eu quis posar para a foto. Ele não me forçou. — E isso dá a Mike total liberdade para te explorar? Spencer, você se deu mal por causa do que ele fez. Ela penteou os cabelos para trás. — Olha, acabou. Mike e eu estamos quites. Só quero ir embora. 162


Eu ri. — Ir embora? Você passou na mão da escola toda! Você não tem respeito próprio? — Claro que tenho — disse, incisiva. Com tantas pessoas para ficar com raiva, e ela foi logo ter raiva de mim. — Você não aprendeu nada do que te ensinei? Sei que você consegue entender, Spencer! Ela começou a rir. — Adoro a forma como você está basicamente me chamando de piranha, mas você está fazendo exatamente a mesma coisa com Connor. Agora o meu tom é que estava afiado. — Não é a mesma coisa. — Você está deixando Connor Hughes usar você. Ou você está usando ele. De uma forma ou de outra, você é uma grande farsa. Você age como se fosse boa demais e só porque você namora Connor às escondidas, é bem melhor que eu. É mais fácil mesmo ficar brava comigo do que com você mesma. — Não sou nem um pouco igual a você, Spencer. Nem um pouco. — Me deixe em paz. Você não é mais a minha babá. — Que pena! Você parece estar precisando de uma! Para mim bastava. Eu tinha mesmo que voltar para a escola. Spencer que voltasse para casa no frio que eu não estava nem aí. Acelerei o carro e prometi a mim mesma que não ia mais me envolver. Se Spencer queria destruir sua vida, problema dela. Entretanto, mais tarde naquele dia, vi Mike Domski na hora do almoço dando o maior sorriso quando as pessoas vinham pedir para ver seu celular. De súbito, entendi por que Spencer não ia dizer nada. Se ela conseguisse manter Mike fora disso, viveria muito bem com a história da foto sem roupa. Mas acusando Mike, delatando-o por ter feito isso, deixaria claro que realmente tinha um problema com ele. E então, do nada, Spencer passaria a ser a vítima. E esse era um papel que ela não queria desempenhar. Ou então era algo ainda mais simples. Talvez Spencer não tivesse coragem de enfrentar Mike Domski. Porque geralmente os Mike Domskis da vida sempre ganham. ` De qualquer forma, sabia que tinha que fazer a coisa certa. E tinha que ter esperança de que Spencer me agradecesse por isso mais tarde.

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Capítulo 37

A

ssim que acabei de comer, fui ao escritório do diretor Hurley. A secretária disse que ele estava ocupado, mas a ignorei e abri a porta mesmo assim. — Ligo para você depois — ele disse, colocando o telefone no gancho.

Nem dei chance de ele perguntar o que eu estava fazendo lá. Fui logo dizendo: — Sei quem tirou a foto de Spencer nua. Foi Mike Domski. Ele se inclinou na mesa, aproximando-se de mim e disse naquele seu tom tão indefeso que chegava a ser ridículo para um diretor: — E o que você sugere que eu faça? Não era óbvio? Mike deveria receber o mesmo que Spencer tinha recebido. Uma semana de suspensão. O diretor Hurley balançou a cabeça, dizendo: — Foi a Spencer quem quebrou as regras. Foi ela quem tirou a roupa. — Sim, mas... — E tenho certeza de que Mike Domski não foi o único a encaminhar a fotografia. — Sim, claro, mas... — Certamente não vou conduzir uma caça às bruxas para tentar descobrir todos os envolvidos. — Não estou dizendo que o senhor deveria fazer isso. Mas como acabei de dizer, foi Mike Domski quem começou tudo isso. Ele tirou a foto. — Talvez ele tenha tirado. Mas será a sua palavra contra a dele, já que Spencer se recusa a envolver o fotógrafo. E de qualquer forma, foi Spencer quem se expôs dentro do ambiente escolar. Se ela não tivesse feito isso, não haveria nenhuma foto a ser tirada. Eu mal conseguia ficar sentada. — Então é isso? O senhor vai suspender Spencer, mas Mike só vai receber um tapinha na mão. — Vou ter uma conversa com ele — disse o diretor Hurley —, apesar de duvidar que ele confesse. Bem, você precisa de um passe para voltar para a aula? — Não precisava de um 164


passe. Fui direto ao escritório da Srta. Bee. Mas ela não estava lá, estava dando aula. Andei pelos corredores e finalmente a vi em uma das salas. Bati na porta e chamei por ela, que pareceu chocada com a minha interrupção, para dizer o mínimo. — Sim? — Mike Domski enviou uma foto de Spencer nua. Ela foi suspensa, mas nada aconteceu com ele. E isso é completamente, totalmente injusto. A Srta. Bee fechou a porta da sala. — Natalie, respire. Agora diga o que está acontecendo. — Fiz o que ela mandou. Respirei. E então repeti tudo devagar. Quando terminei de contar, ela perguntou: — Como você sabe que foi ele? — Porque Spencer estava usando o pijama que ela trouxe para a noite das garotas. E dá para ver que a foto foi tirada no laboratório de ciências, e foi exatamente lá que encontrei Mike Domski escondido. Ela franziu a testa. — Não estou entendendo — mas ela estava entendendo. E então percebi que também ia ficar encrencada. — Alguns rapazes entraram escondido na noite das garotas, depois que a senhora foi dormir. Fiz com que fossem embora. Não queria chateá-la. Cuidei disso sozinha. — Ah? Você cuidou? — disse a Srta. Bee balançando a cabeça. Parecia que apenas tinha conseguido protelar a chateação dela. — Natalie, você tem sorte de não ter sido oficialmente envolvida nisso. Pode ser que o diretor Hurley a suspenda também. Talvez a Srta. Bee tivesse razão, mas Spencer era minha amiga. Tinha que defendê-la. — Por favor. Você tem que ajudá-la. — O que eu tenho de fazer é voltar para a minha aula. — A senhora tem influência sobre o diretor Hurley. A senhora poderia dizer a ele que Mike deveria ser responsabilizado da mesma forma que Spencer. Ele a ouviria. Sei que sim. — Natalie, uma pessoa como Spencer tem de aprender que suas ações têm conseqüências. Você tentou ajudá-la depois daquele episódio ridículo da camiseta ―Rosstituta‖, e eu a apoiei nisso. Mas temo que dessa vez ela vai ter que sofrer a punição, seja qual for a decisão do diretor Hurley — disse, enxugando uma gota de suor da testa. — Certamente, verificarei se a participação do Sr. Domski será investigada. Mas isso não vai livrar a barra da sua amiga. Agora, volte imediatamente para a aula ou vou ter que te dar uma advertência.

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Capítulo 38

Q

ualquer um pensaria que eu teria percebido as coisas rapidamente. Afinal de contas, já tinha visto isso acontecer antes com a Autumn. E apenas dois dias antes com a Spencer. Mas levei até a metade da quarta-feira para perceber que todo mundo estava falando de

mim. Mas, com certeza, estava totalmente confusa. Já tinha desistido de ter esperança de que haveria algum tipo de justiça para Mike. E sabia que assim que Spencer tivesse descoberto que eu havia metido o nariz onde não fui chamada, provavelmente jamais falaria comigo novamente. Connor e eu não estávamos mais nos falando. A Srta. Bee achava que eu era uma idiota por apoiar Spencer e, pior ainda, por deixar os garotos participarem da noite das garotas. E a minha amizade com a Autumn parecia uma lembrança distante. Contudo, o diretor Hurley cumpriu sua palavra. Talvez ele tenha percebido que tirar fotos de garotas menores de idade nuas era ilegal, então achou melhor se envolver na história antes da polícia. Quem sabe? Mas ele chamou Mike em seu escritório para uma conversa difícil. Mike negou tudo, é claro. E, na verdade, como a história poderia ser provada?A foto foi enviada para tantos telefones celulares, era impossível determinar de onde havia sido originada. E nenhum dos garotos da escola iria entregar Mike Domski. O diretor Hurley deve ter mencionado o fato de haver uma testemunha, pois, quando Mike saiu do escritório, sabia que eu estava envolvida. E ele não quis perder tempo em se vingar de mim. Estava guardando meus livros depois da aula quando Mike veio direto ao meu ouvido e sussurrou: — Sei tudo sobre você. E sobre o que você fez com Connor. Sei desde a primeira vez que você foi até a casa dele, sua ninfomaníaca idiota. Nunca tive medo de Mike Domski antes. Mas, naquele momento, estremeci. — Não sei do que você está falando — consegui dizer. — Ele é meu melhor amigo, vaca. Você acha que ele não me contou tudo? Praticamente sei como você é pelada. Não havia saída digna para isso. Então, sai correndo. Deixei a porta do meu armário aberta, joguei meus livros no chão e corri. 166


De certa forma, acabei salvando Spencer. Sua foto nua só foi motivo de vergonha por aproximadamente 48 horas e então a tocha passou para a minha mão. Fiquei em casa doente no dia seguinte, achando que isso acalmaria um pouco as coisas. Na verdade, foi exatamente o oposto. Como eu não estava lá, ninguém precisou cochichar. Sexta-feira foi o pior dia de toda a minha vida. Começou com Connor vindo ao meu armário. Cheguei à escola bem cedo para evitar as pessoas, mas ele tinha chegado mais cedo ainda. — Por favor — disse a ele —, me deixe em paz. Não quero que ninguém veja a gente conversando. Parecia que ele nem tinha dormido, assim como eu também não tinha dormido. Ele parecia assustado, do mesmo jeito que eu. Ele dava a impressão de estar bravo, da mesma forma que eu estava arrasada. — Você é inacreditável — disse, jogando na minha cara. Eu também joguei na dele. — Já te falei que não queria que ninguém soubesse o que estávamos fazendo! E, de todas as pessoas, você foi logo contar para o Mike? — Mike é o meu melhor amigo. Ele não falou nada sobre o assunto até você o meter em encrenca! Falei para você não se envolver. — Ah, então a errada aqui sou eu? Mike tira fotos nuas de uma garota de 14 anos e eu fiz a coisa errada? — Não. Pode acreditar em mim, nesse momento quero matar o Mike. É que... — O quê? E que o quê? — Veja, queria que ele não tivesse feito isso, mesmo. — E eu queria que Spencer tivesse mantido seus malditos seios cobertos. Mas também queria que você não protegesse Mike e queria que a escola inteira não pensasse que sou vulgar. Confiei que você fosse deixar isso entre nós, e você não deixou. Você deixou todo mundo penetrar em nosso mundo particular. Pensei que você se importasse comigo para nunca deixar que isso acontecesse. Era a primeira vez que o via tão bravo. O cenho estava todo enrugado e uma veia estava bem proeminente. Ele estava apertando as mãos. Mas estava tão brava quanto ele. Acho que até mais brava. — Nunca quis nada disso. Nada, verdade, nunca quis ter nada a ver com você! Sabia que você... — Me poupe, Sterling. Não vou forçá-la a se rebaixar ao meu nível — disse, sendo bem sarcástico na última frase. 167


— Falei para você que precisava deixar as coisas em sigilo desde o começo. Então não venha querer fazer com que eu sei a malvada aqui. Foi a minha reputação que ficou manchada. Todo mundo está rindo de mim, não de você! — eu gritava, tremia. Como é que Connor não conseguia ver? Ele tinha escapado da história toda ileso. — Você só marcou mais um ponto. Mas eu, eu sou a piada. — Sinto muito. Sei que está tudo uma droga para você agora. Mas você não consegue perceber que a culpa é sua? Eu ri e disse: — Você é ótimo em animar as pessoas. Muito obrigada por fazer com que me sinta melhor. — Você é a única que fez com que parecesse que estávamos fazendo uma coisa errada. Talvez você ainda pense assim, pois, por algum motivo, acha que não sou bom o bastante para você. Mas eu gosto de você, está bem? Gostei de você desde o começo. — Nunca chegaria a lugar nenhum. — Porque você não deixaria chegar a algum lugar. Olha, sei que você tem um milhão de razões, já entendi. A maioria delas é verdadeira. É bem provável que depois da formatura não sejamos mais um casal. Você vai embora de Liberty River e eu vou ficar aqui, já sei. Mas sabe de uma coisa? Gostei de você mesmo assim. Permiti a mim mesmo sentir algo por você apesar de não saber como tudo acabaria. Ele se virou como se estivesse indo embora, mas então voltou e disse: — Cansei de tentar convencê-la de quem eu sou e por que sou digno de você. E pode interpretar a história da forma que quiser. Vá em frente e faça de mim o cara malvado para que você seja a boazinha. Só que lá no fundo, sei que você não acredita que as coisas sejam assim nem por um segundo. — É tarde demais — sussurrei. Para ele? Para mim? Nem sabia dizer. — É tarde demais porque você está dizendo que é tarde demais. Repeti: — É tarde demais. Só quando ele foi embora é que comecei a chorar. Só quando todo mundo começou a chegar à escola é que me senti completamente sozinha. Era uma loucura, o peso do olhar de todo mundo estava sobre mim. Pareciam olhares bem pesados mesmo; até mexer as pernas era difícil. Pensei em Autumn, em como a havia protegido disso tudo. Mas não fazia ideia de como era de fato, de como as pessoas podiam ser terrivelmente cruéis, ruins e cheias de julgamento. Corri para o banheiro feminino perto da sala dos professores para fugir. Chorei bem ali, na frente da pia. Senti-me patética, a presidente do conselho estudantil que virou vagabunda. Era perfeito demais, o tipo de história que todo o mundo adora contar. 168


Tinha de aceitar. Por mais que quisesse culpar Mike e Connor e Spencer, era minha culpa por estar nessa situação. Sabia muito bem que não devia ter me envolvido com alguém como Connor. Tinha noção dos riscos, mas fiz mesmo assim. Só que o que todo mundo pensava de mim nem chegava perto do quanto eu mesma me via com maus olhos. Peguei um papel-toalha para enxugar o rosto. Estava áspero como uma lixa. Meu rosto todo estava vermelho e inchado. Abaixei a cabeça para lavá-lo. Quando fechei a torneira, ouvi uma voz inconfundível pelo respiro acima da minha cabeça. A Srta. Bee. — Não achei que ela fosse esse tipo de garota — corri para o respiro e me estiquei para escutar. — Ouvi duas das minhas alunas falando sobre ela na primeira aula ontem. Jamais pensei que Natalie fizesse algo assim. Contudo, ela vem aprontando demais, sendo amiga daquela Spencer. Fechei os olhos para parar de sentir o banheiro girando. Como é que podia achar que os professores não ficariam sabendo disso também? Afinal de contas, a escola toda estava comentando. Outra professora concordou: — Natalie sempre me pareceu uma garota tão boa. Mas eu sou uma boa garota — tive vontade de gritar. — Eu sei disso, essa é a pior parte. Achei que ela fosse especial. Dediquei muito tempo e atenção a ela — disse a Srta. Bee dando um profundo suspiro de dor. — E de todas as pessoas, Connor Hughes. Pensei que ela fosse mais esperta. Sinto-me desolada com essa história toda. Tinha de sair do banheiro senão ia vomitar. Queria me defender, mas sabia que a Srta. Bee estava certa. Devia ter sido mais esperta, devia ter sido várias outras coisas. Eu sempre achei que soubesse que tipo de garota eu era, só que não sabia.

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Capítulo 39

T

inha esperança de que o fim de semana fizesse tudo desaparecer mas é claro que isso não aconteceu. Na segunda-feira, as pessoas ainda estavam falando de mim. Com toda razão, acho. Naquele dia, depois da aula, o que eu precisava fazer ficou óbvio.

Fiquei no carro na hora do almoço, rascunhando minha carta de demissão para a Srta. Bee. No primeiro rascunho, falei demais sobre como estava decepcionada comigo mesma. Contei toda a longa e triste história entre mim e Autumn. Como tinha estragado tudo com Connor. Abri meu coração completamente. Dava para ver isso pelas marcas das lágrimas e pela terrível caligrafia. Só que quando a reli, passei mal. Estava me humilhando para conseguir seu perdão. Estava dando desculpas quando na verdade a única culpada por tudo era eu mesma. Estava sendo infantil e sabia que a Srta. Bee também pensaria da mesma forma. O próximo rascunho resumiu-se em apenas uma longa frase. Apesar de ter sido um prazer trabalhar com a senhora, espero que considere minha demissão efetiva imediatamente. Atenciosamente, Natalie Sterling. Coloquei a carta debaixo da porta dela. Pensei que a demissão faria com que me sentisse melhor, mas não fez. Depois da aula, fui até meu armário. A pauta da reunião de hoje do conselho estudantil era finalizar os planos para a cerimônia em que meu retrato seria pendurado na parede da biblioteca, junto com os preparativos de envio dos convites. A Srta. Bee os tinha imprimido. Eu havia renunciado bem na hora, assim o evento poderia ser cancelado. Peguei os livros, fechei a porta do meu armário e lá estava Spencer, segurando a minha carta de demissão. — Que diabo é isso, Natalie? — Onde você pegou isso? — perguntei, arrancando das mãos dela. 170


— Onde você acha? Fui até o escritório da Srta. Bee para deixar as lições que fiz durante a minha suspensão. Graças a Deus tirei isso de lá antes que ela visse. Tinha vontade de estrangulá-la. — Você tem ideia do que fez? Eles vão enviar os convites da cerimônia do retrato hoje. Agora vou parecer ainda mais irresponsável por nem aparecer por lá! Spencer não saiu do lugar. — Você não pode sair do conselho estudantil, Natalie. Você é a presidente! — Claro que posso — disse e saí com raiva pelo corredor. Spencer veio atrás de mim. — Natalie, você estava certa. O que fiz com Mike foi estúpido. Queria fingir que não me importo. E sabe de uma coisa? Antes de você, eu não teria me importado. Mas agora eu me importo. — Fico muito feliz por você. — E tem mais uma coisa que eu sei — ela segurou meu braço e me fez olhar para ela. — Você me apoiou quando ninguém mais o fez. E fez a mesma coisa por Autumn. O que me faz perguntar: quando é que você vai começar a apoiar a si mesma? Balancei a cabeça. — Não é assim tão fácil, Spencer! Nem consigo olhar para a Srta. Bee, quem dirá para todos os outros da escola. Na verdade, ouvi a Srta. Bee no banheiro dizendo coisas terríveis sobre mim. E era tudo verdade, Spencer. Tudinho. — Não é verdade. E você sabe disso. Pare de sentir pena de si mesma! — Sinto mesmo pena de mim mesma! Você estava certa, está bem? Almejei patamares altos demais para mim e fracassei. E de forma extrema. — Tudo bem, contanto que esse seja o seu julgamento de si mesma e não o dos outros. — Então, tá. Como, por magia, vou esquecer que a escola toda pensa que sou uma piranha hipócrita, preocupando-me apenas com o que penso de mim mesma. Humm. Vamos ver. Estraguei tudo com Connor. Com Autumn. Com a Srta. Bee. Com você — apesar de estar tentando ser sarcástica, as lágrimas saltavam dos meus olhos. — Então o problema é esse? Não é o sexo? Tive que pensar nisso um minuto. Claro, a realidade de que todo mundo na Academia Ross estava me julgando pelo que havia feito com Connor era horrível. Mas não era isso que estava me deixando de coração partido. — Não, não é o sexo — suspirei. — É o fato de ter magoado as pessoas que amo. Decepcionei todo mundo. Spencer pegou a minha carta de demissão e a rasgou ao meio. — Não vou deixar você desistir de algo que sei que é importante para você. Respirei fundo para dizer algo, mas desisti. Na verdade, naquele momento parei tudo. Parei de pensar no que o restante da escola estava pensando, de me preocupar em deixar a Srta. Bee orgulhosa de mim, de pensar nas provocações de Mike Domski e no olhar de confiança dos 171


meus pais em relação a mim. Desliguei todo aquele barulho para me fazer uma simples pergunta: O que realmente importa para mim? E foi respondendo a essa pergunta que descobri a resposta.

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Capítulo 40

C

orri para fora, esperando que Autumn ainda não tivesse ido embora da escola. Encontrei-a no estacionamento, sentada no capô do carro com Marci e outras garotas. Estavam com os vidros abertos para ouvir música. Ela estava feliz, sorrindo.

Tentei ser corajosa e coloquei um pé na frente do outro. Era como andar contra o vento espesso e pesado. Cada passo, um esforço. Todo mundo percebeu que me aproximava. Ficaram quietas, assistindo à minha luta. Parei em frente ao pára-choque. Os faróis estavam acesos e estreitei os olhos diante da luz. O vento do inverno levou meus cabelos à boca quando a abri. Tossi, e o aperto que sentia no corpo não foi embora. Não conseguia respirar, como se o vento gelado estivesse me congelando de dentro para fora. — Natalie — disse Autumn, levantando-se. Percebi a preocupação em sua voz. Ela ainda se importava comigo, não que eu merecesse. Parecia um sonho, um sonho muito bom para o pesadelo que estava vivendo. Era cruel viver um momento como os que costumavam ser a nossa amizade. Um lembrete de que eu tinha realmente estragado tudo. Chorei porque não queria acordar. Autumn não se despediu de suas amigas. Ou talvez tenha se despedido, mas não consegui ouvir por causa dos meus soluços. Ela me fez entrar no carro e vi suas amigas indo em outra direção. — Vou levar você para casa — disse Autumn ao sentar no banco do motorista. Chorei o caminho todo. Autumn me ajudou a sair do carro e caminhou comigo até a entrada. Apoiei-me nela com todo o peso do meu corpo, pois não conseguia me segurar. Juntei fôlego suficiente para dizer — Isso está se transformando no pior pedido de desculpas — Nesse momento, Autumn procurava a chave extra que abria a porta dos fundos de casa. — Está tudo bem — E o milagre foi o seguinte: assim que ela disse isso, as coisas ficaram bem Como se eu tivesse chegado aonde precisava. Quando não tinha mais lágrimas, Autumn e eu sentamos uma de cada lado da cama, como uma balança ou uma gangorra. Ainda estava tentando organizar o que dizer bem no momento em que ela jogou o peso para o meu lado. 173


— Você nunca me perdoou pelo que aconteceu com Chad. Apesar de ser uma acusação amarga vinda da raiva de uma pessoa, a forma como for dita soava como palavras calculadas por um advogado. Um fato indicutível. — Eu sei. Estava brava por você se deixar magoar. Não devia ter culpado você. Não foi sua culpa. Os lábios dela começaram a tremer. Ela respirou fundo e tentou se recompor — Quando fui me encontrar com Chad no vestiário naquele dia, havia uma vozinha na minha cabeça que me dizia para não ir, mas não a ouvi. E também não era a primeira vez que não a ouvia. Houve outras vezes, mas acho que lá no fundo sabra que Chad não era boa coisa. Mas estava tão envolvida com tudo, com o fato de como um garoto de quem gostava fazia com que me sentisse, que achei que estivesse apaixonada por ele. — Mas Autumn, não tinha como você saber que... — Já pensei nisso um milhão de vezes. Se tivesse ouvido aquela voz, talvez nada daquilo tivesse acontecido comigo. Era muita culpa para carregar por cima de tudo. Então prometi a mim mesma que se a ouvisse novamente, não iria ignorá-la. Acho que e por isso que fiquei brava com você. Porque a voz finalmente voltou e me disse que eu era superior à isca de peixe. Falou que não deveria mais me conter, que eu não era uma pessoa ruim. E que você estava fazendo com que eu me sentisse uma pessoa ruim, Natalie, quando na verdade eu era apenas uma garota que havia cometido um erro estúpido. Concordei. — E eu costumava deixá-la bem perto de mim. Não tinha outros amigos, e isso não era culpa sua, era minha. Nunca fui boa em me abrir com as pessoas. — Eu sei. O que torna o que aconteceu ainda mais estranho — disse, suspirando. — Não estou dizendo isso para ser maldosa, mas não consigo acreditar que você tenha transado com Connor Hughes. Pensei em Connor e nas últimas palavras que ele me disse. Como eu conseguia fazer com que as coisas fossem da forma que eu queria. Nunca consegui entender como ele sempre estava seguro de si, mas agora conseguia. Era porque Connor realmente sabia a pessoa que era. Ele não se arrependia, pois sempre agia com o coração. Ele era exatamente o oposto de alguém como Chad Rivington, ou como eu. — Eu quis — disse à Autumn. E essa era a verdade nua e crua. — Bem, você é uma garota inteligente. Confio que tomará as decisões certas para si mesma. — Sim, porque eu sou a rainha das decisões acertadas. Autumn pegou na minha mão. — Viu?A melhor coisa em se tomar decisões erradas é que isso não a proíbe de acertar depois. É mais difícil, mas não é impossível. 174


O tempo tinha ensinado a ela. E agora ela estava ensinando a mim.

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Capítulo 41

E

stava arrependida por ter transado com Connor? Um pouco. Mas não chegava nem perto do arrependimento bombástico que esperava sentir. Estava magoada por ter estragado um momento bonito, estava confusa demais para ver as coisas boas que tínhamos feito juntos, para ver o ato como algo compartilhado entre duas pessoas que se gostavam muito. A neve caía forte enquanto eu ia de carro até a casa de Connor, parecendo pequenos flocos de confete. Meu limpador de pára-brisa movimentava-se pelo gelo como um metrônomo. Havia trânsito até a entrada para a casa. Um homem segurando uma lanterna orientava os carros no estacionamento. A maioria deles eram minivans ou SUVs, cheios de gente com gorros e cachecóis de lã. A Fazenda de Árvores de Natal estava cheia de gente. Um rapaz orientava o trânsito, crianças se vestiam de elfos, homens fortes empunhavam machados. A lojinha tocava músicas natalinas e havia uma mesa arrumada do lado de fora onde se podia comprar chocolate quente ou cidra quente de maçã para se manter aquecido. Havia até uma rena em uma área cercada e as crianças a alimentavam com ração. As famílias esperavam pela sua vez de caminhar por entre as árvores. Vi Connor levar uma família de quatro pessoas pela neve. Ele só usava um casaco e um chapéu de esquiador. Eu estava protegida pela minha parca e perguntava-me como ele não estava congelando quando percebi que uma das pessoas do grupo tinha escolhido uma árvore. Connor pegou o machado, ajoelhou-se e começou a cortá-la. Lá estava ele no chão, trabalhando duro. Percebi seus músculos flexionarem A árvore caiu na neve, fazendo um som incrível. A família aplaudiu. Connor prendeu uma corda no tronco e a arrastou pela neve para eles. For aí que ele me viu. Esperava que ele viesse falar comigo, mas desviou o olhar e continuou atendendo a família. Fui até ele e perguntei: — Por favor, posso falar com você? — Agora não posso, Sterling. — Connor, por favor. 176


Tenho certeza de que ele percebeu a dor em meu tom. — Tudo bem — disse. Fomos até a mesa da cidra, onde a mãe dele estava sentada. — Mãe, vou fazer um intervalo rápido. Ela olhou para mim. Não sei se me reconheceu do Dia de Ação de Graças, mas me ofereceu uma xícara de cidra e chocolate quente a Connor, com chantili caseiro por cima. Connor e eu caminhamos, o nosso silêncio era abafado pelos sons das famílias, das árvores caindo, da música festiva que tocava ao longe. A lua estava baixa no céu e quase não havia luz para enxergarmos. Não fomos para o depósito. Não entramos na casa. Ficamos na mata e eu disse a ele o que precisava dizer, sem saber ao certo se era o que precisava dizer. — Quero me desculpar pela forma como agi. Estava com medo de me envolver com você, não queria admitir que gostava de você. Estava com medo do julgamento das pessoas. — Não posso ficar com alguém que não me aceita pelo que sou. — Você tem que entender, isso é novo para mim. E nós dois agimos errado, nos envolvemos antes de nos conhecermos. Quer dizer, eu achava que conhecia você. Mas não conhecia, não mesmo. Tentei pegar na mão dele, mas ele não deixou. Ele estava tremendo, sentindo o frio penetrante. — Você se arrepende do que fizemos? — perguntou. — Porque isso tem sido a pior parte de tudo. Pensar que você me odeia pelo que aconteceu. Já passei por isso antes, com Bridget Roma. E foi horrível — a voz dele ficou presa na garganta e ele inclinou a cabeça para trás. Deu para ver as lágrimas em seus olhos. — Connor, isso não chega nem perto do que aconteceu com a gente. Apesar de ter colocado toda a honestidade possível em minhas palavras, Connor ainda parecia inseguro. E ele não olhava para mim, estava concentrado nas pegadas que havíamos deixado na neve. — E então, como ficamos agora? — perguntou. — Quero que você vá comigo na cerimônia do retrato, como meu namorado. Ele não ergueu o olhar. — Mesmo? — Mesmo. Dessa vez, quando tentei pegar sua mão, ele deixou. Ficamos assim por um tempo, éramos o centro do mundo. Ouvi sua mãe chamá-lo e ele também escutou. 177


— Vá — disse a ele. — Tem certeza? — Claro, vá. Ligo para você mais tarde. Pareceu tão fácil e mesmo sabendo que nem sempre seria, pelo menos íamos tentar. Eu não fui embora logo em seguida, fiquei na mata. Ouvi as vozes das pessoas ao longe. Senti o frio em minha pele. Mas principalmente estava atenta à minha respiração, aos meus pensamentos, ao meu passado, presente e futuro. Tinha percebido isso agora e ia continuar percebendo pelos anos que vinham: não importa se eu for a garota que faz sexo, a garota que tem o retrato na parede da biblioteca, a garota que entra na melhor faculdade, a garota que conta tudo para os pais ou a garota adorada pelos professores. Só preciso ficar bem com todas as garotas que são como eu.

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Epílogo

A

biblioteca estava bonita. Spencer tinha se colocado à frente, transformando-se na líder do comitê de decoração. Ela comprou uma toalha de mesa bonita, cortou o queijo em pequenos quadrados perfeitos e deixou a cidra no gelo. A forma como ela se orgulhava de mim era incrivelmente doce, como uma irmã mais nova. Todos do conselho estudantil apareceram. Meus pais, o diretor Hurley. Ainda dava para perceber algumas pessoas sussurrando, mas isso não importava. Vi Connor ao lado da parede em que ficavam os retratos. Estava sozinho agora, mas antes estava animadamente conversando sobre jogadas de futebol com Martin, David e Dipak. Era legal ver isso, pois as coisas tinham definitivamente ficado tensas no círculo de amizades de Connor. Os rapazes ainda saem juntos, jogam pingue-pongue na hora do almoço e se encontram para beber na casa de Bobby Doyle. Mas Connor não falou mais com Mike desde que decidimos resolver as coisas. Mike também não falou mais com ele. Não sabia se algum dia eles conversariam novamente. Tinha de acreditar que a amizade entre eles ia acabar terminando mesmo. De qualquer forma, era isso o que Connor dizia sempre quando eu mencionava Mike. Talvez Connor dissesse isso para fazer com que me sentisse melhor. Mas fiquei sabendo que já tinham brigado antes, ocorreram outras discussões antes de mim, só que nenhuma tão séria assim. Por mais que odiasse Mike e jamais fosse perdoar-lhe pelas suas atitudes comigo e com minhas amigas, ainda sentia o peso do término de uma amizade por conta do segredo que havia tentando esconder. Mas Connor parecia em paz com a forma como as coisas tinham se resolvido. No fim das contas, precisava confiar que Connor faria o que fosse melhor para ele. E ele teve a mesma cortesia comigo, sabendo que em algumas semanas eu receberia notícias de alguma faculdade. Enquanto isso, simplesmente amávamos um ao outro. 179


— Você está bonita — disse Connor olhando para o meu retrato. Ele se aproximou e sussurrou — E nem dá para ver a chupada. — Natalie, você poderia vir comigo um minuto? - disse a Srta. Bee que se aproximava e nos viu de mãos dadas. Der um beijo no rosto dele na frente de todo mundo, dizendo: — Já volto. A Srta. Bee e eu fomos para o outro lado da sala sem conversarmos uma com a outra. Era difícil aceitar como, subitamente, nosso relacionamento tinha mudado. Afinal de contas, a Srta. Bee não era a minha mãe. Ela não precisava formar uma opinião sobre o que fiz ou deixei de fazer com a minha vida pessoal. Ela havia me entregado a carta de recomendação a faculdade há uma semana. Estava em um envelope lacrado, conforme o procedimento-padrão. Por um segundo, fiquei preocupada se a Srta. Bee tinha escrito algo desagradável sobre mim. Acho que ela deve ter percebido a minha cara, pois logo acrescentou — Qualquer faculdade terá sorte se aceitar você. Sabia que ela estava desapontada comigo. E talvez nem fosse por causa de Connor, mas pela forma que vinha agindo. Irresponsável. Estranha. Mas tudo aquilo tinha mudado agora que Connor e eu assumimos. Eu havia voltado para o jogo e a Srta. Bee ia acabar percebendo isso. Três mulheres mais velhas estavam perto da prateleira que continha os anuários da Academia Ross. Havia vários deles espalhados na mesa, em meio às fotografias. Todas as senhoras tinham crachás de identificação presos aos vestidos, mas em vez de nomes havia números escritos. A Srta. Bee me levou até elas e exclamou: — Apresento-lhes Natalie Sterling, número nove. — Como você é bonita! — disse a número seis. — Estamos tão orgulhosas — completou a número cinco. — Parabéns! — falou a número sete. Dei a elas o meu melhor sorriso. — Muito obrigada por terem vindo. Sinto-me realmente honrada. — Está brincando? Isso é a maior diversão para velhas senhoras — disse a número cinco, apertando a minha mão. — Lembrarmos de toda a confusão que costumávamos causar. — Nada comparado ao que a número quatro aqui fazia — disse a número sete, apontando para a Srta. Bee. Nunca tinha visto a Srta. Bee corar. Nossa, jamais tinha visto a Srta. Bee de outra forma que não fosse a postura perfeitamente ereta. Foi um enorme alívio. 180


Spencer perambulava com um saco de lixo, recolhendo guardanapos sujos e copos vazios. Segurei o braço dela e disse: — Gostaria de apresentar--lhes Spencer Biddle, uma das representantes dos calouros deste ano. Não tenho dúvida de que daqui a três anos seu retrato também estará nessa parede. Spencer sorriu: — Podem me chamar de Perfeito Dez. A Srta. Bee quase engasgou. Autumn apareceu e me fez virar, comentando: — Estou tão orgulhosa da minha melhor amiga. — Eu também — disse e nos abraçamos bem forte. De todas as coisas que podiam me fazer feliz, a maior de todas era que Autumn e eu éramos amigas novamente. Não importava o que o futuro trouxesse — novos amigos, novos namorados, novos caminhos — sabia que estaríamos na vida uma da outra para sempre. A mudança não era mais algo a ser temido. E apesar de o meu retrato estar pendurado na parede, não me importava nem um pouco com a forma com que seria lembrada. Contanto que nunca me esquecessem.

Fim

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SIOBHAN VIVIAN nasceu na cidade de Nova York, em 1979, mas cresceu em Nova Jersey, onde se envolveu em encrencas na escola. Ela estudou na Universidade de Artes e é graduada em Escrita para Filmes e Televisão. Trabalhou como editora em muitos romances e best-sellers do The New York Times, e como roteirista para o canal da Disney. Atualmente é professora na Universidade de Pittsburgh.

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