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A história da Gurgel

os colecionadores estavam eufóricos. Sem poder participar do maior encontro de veículos antigos do Brasil, o EBAA – Encontro Brasileiro de Automóveis Antigos – desde 2019, devido à pandemia, eles tiveram muito tempo e paciência para preparar seus melhores veículos. É a sétima edição do evento com o time atual de organizadores, mas a cidade de Águas de Lindóia já tinha uma tradição de décadas nessa especialidade.

Neste ano, cerca de 100 mil pessoas visitaram o evento, em cada um dos quatro dias de duração, para ver os cerca de 800 veículos capacitados para receberem os prêmios destinados para o evento e que estavam espalhados em torno do lago da praça Adhemar de Barros. No total, chegaram à cidade cerca de 1.700 veículos antigos, que se posicionaram em uma área de 70 mil metros quadrados, no coração da cidade. Só a praça de alimentação tinha mais de 1.500 m2 e ainda havia 450 estandes para venda de peças, memorabilia, miniaturas, camisetas e antiguidades em geral. Conhecido como mercado de pulgas, para algumas pessoas esse é um dos maiores atrativos do evento.

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Cada vez mais, o universo dos veículos antigos, que encanta a todos, mesmo quem não participa ativamente, aumenta, pois não são mais apenas os colecionadores que levam suas relíquias para serem expostas ao público, mas também os profissionais do setor, como os comerciantes especializados, os donos de oficinas de customização e os fabricantes de equipamentos e produtos para a criação e restauração dos veículos. Isso ficou bem claro neste ano, com a participação desses profissionais em torneios como “Em Busca do Brilho Perfeito”, no qual os competidores disputam para ver qual é o carro com a melhor e mais brilhante pintura, assim como os cromados, a tapeçaria e detalhes.

Outro torneio é a “Batalha dos Construtores”, no qual os participantes mostram seus projetos de customização. Participam dessa modalidade os veículos Hot Rod, Street, Customs e Modificados.

O mercado de veículos clássicos esta vivendo uma fase de exageros, em especial o dos chamados novos clássicos, modelos nacionais dos anos 70 e 80, que agora já têm mais de 30 anos de fabricação. O grande interesse por eles faz com que os valores de comercialização desses modelos sejam muito altos, maiores, até, do que o de alguns clássicos atemporais. Motivo, também, de terem surgido dezenas de empresas especializadas na comercialização de veículos espalhadas pelo país, algumas delas indo além, pesquisando, procurando e comprando veículos mais antigos perdidos por aí. E os entregam na casa do cliente.

Ford F1 1951, o vencedor na Batalha dos Construtores

É claro que as principais empresas que trabalham dessa forma estavam bem representadas no 7o EBAA, com muitas barracas oferecendo veículos antigos para a venda. De acordo com a organização do evento, havia cerca de 400 veículos à venda. Aconteceu também durante o 7o EBAA o segundo leilão de veículos antigos de Águas de Lindóia.

O colecionador Norman Santos de Vitória, ES, rodou 1.150 km com seu Ford 1932 para chegar ao EBAA

Os participantes do encontro de Águas de Lindóia chegam de todas as partes do país, como o grupo que veio de Salvador, na Bahia, com 16 carros, um caminhão e uma cegonha. Essa turma do Veteran Car Clube da Bahia viajou 1.900 km para participar do evento. O prêmio de maior distância percorrida, no entanto, coube ao colecionador Norman Santos, que veio de Vitória, no Espírito Santo, percorrendo 1.150 km com um Ford de 1932. E a maior distância mesmo ficou com Fábio Luiz, que veio de Fortaleza, no Ceará, percorrendo 3.400 km com um Dodge Polara 1980.

Hudson Hornet 1951, réplica do carro da Nascar

Muitos outros prêmios foram outorgados para os expositores. Na Batalha dos Construtores, o prêmio ficou com a equipe Ogros Garage, com o projeto do Ford F1 1951. Destacaram-se também, nessa categoria, o caminhão GMC COE 1954 de Eli Luiz, da Gabys Custom Cave, e o Ford Maverick do Roberto da SBS Performance.

Na categoria Tributo, levaram o prêmio Odil Porto, com uma réplica do Fusca 1975 da Telesp, antiga viatura da Companhia Telefônica do Estado de São Paulo, e Eduardo Mina, com a réplica do Hudson Hornet 1951, da Nascar americana.

O Cord 810 de 1936 do Fernando Leibel levou o prêmio Best In Show pré-guerra

O clube destaque foi Alfa Romeo Clube e havia três grandes prêmios “Best in Show 2022”, o nacional foi para o Alfa Romeo Fúria da coleção Automóveis no Brasil, de Leo Steinbruch, o pré-guerra foi para o belíssimo Cord 810 de 1936 de Fernando Leibel e o pósguerra foi para o Plymouth Superbird 1970 de Juliano Gonçalves. Um dos homenageados da noite foi o colecionador Dante Forestieri, que tem mais de 40 anos dedicados aos carros antigos. Ele chegou em um Dodge Brother de 1929 e recebeu a homenagem das mãos de Mingo Abonante, organizador do EBAA.

O Plymouth Superbird 1970 de Juliano Gonçaves também levou o prêmio Best In Show, na categoria pós-guerra

O Encontro Brasileiro de Automóveis Antigos, que chamamos simplesmente de encontro de Lindóia, é, dos grandes, o mais democrático. Isso tanto para os participantes, como colecionadores e profissionais do ramo, quanto para o público, que tem na cidade de Águas de Lindóia um local muito aprazível em qualquer época do ano. No fim de semana do encontro, os carros antigos são uma atração a mais no passeio. E que atração!

As barracas da feira de pulgas oferecem muitos objetos interessantes, antigos ou não, relacionados a automóveis ou não. Dificilmente alguém sai de lá sem levar alguma recordação. E para quem está procurando peças para sua restauração, é lá o local mais indicado para começar a procurar.

Além dos veículos espalhados ao redor do lago, que são os clássicos premiáveis, muitos outros carros vão estacionando pela cidade, formando verdadeiras exposições paralelas. E muitos deles também estão à venda. Circular entre as ofertas, mesmo que não se pretenda comprar nenhum veículo, também é um ótimo divertimento.

Alfa Romeo foi o destaque deste ano

A coleção Automóveis no Brasil, iniciada pelo entusiasta Fabio Steinbruch e preservada por seu irmão Leo Steinbruch, após sua morte repentina, teve grande destaque no 7o eBAA. Leo montou até um lounge para happy hour, com direito a shows musicais. os carros de sua coleção ficaram expostos nesse local e o Alfa romeo Furia levou o prêmio máximo do evento, o Best In Show nacional. o Alfa romeo clube, fundado por Fabio, foi o clube destaque deste ano.

No fim do último dia, apesar do cansaço de quem trabalhou por quatro dias (sem falar na preparação), ou mesmo de quem apenas circulou pelas atrações, a certeza é que todos já estarão se preparando para o próximo ano. l

orgulho brasileiro

A marca Gurgel se tornou sinônimo de automóvel nacional

Ao lado, João Amaral Gurgel no protótipo que tinha suas iniciais como nome. Abaixo, com os mini carros Karmann Ghia e Gurgel Jr. II

Otítulo não é exagero. Tenho certeza de que os novos colecionadores de automóveis antigos, especialmente aqueles que se dedicam aos nacionais, conhecem, e muito bem, o Gurgel. Mas podem não conhecer a história da Gurgel, ou mesmo a história “do” Gurgel, João Conrado do Amaral Gurgel, o criador da saga que leva o seu nome.

Lembro vagamente do João ainda muito pequeno, fui com meu pai ver os mini carros que ele produzia em uma fábrica na zona sul de São Paulo. Era o Gurgel Jr. II, uma belezinha de mini carro, que fazia qualquer criança, como eu, sonhar de desejo. Era uma grande evolução do Gurgel Jr., versão com carroceria do Mo-Kart de competição, criado em 1960 por Silvano Pozzi e exposto no Salão do Automóvel de São Paulo, nesse mesmo ano. Antes do Gurgel Jr. II, o Gurgel II foi construído, em 1961, mas não passou de protótipo, assim como o JAG, que tinha esse nome devido às iniciais do criador. Gurgel tinha, desde 1964, uma revenda Volkswagen, a Macan, e também com esse nome continuou a fabricar mini carros, como o mini Karmann Ghia, outra belezinha que fazia as crianças suspirarem. Mas seu futuro estava mesmo com a VW: mediante acordo com o grande fabricante, lançou, no Salão do Automóvel de 1966, o Gurgel 1200, a partir de uma ideia brilhantemente simples: carroceria leve de fibra de vidro sobre o chassi Volkswagen.

O Gurgel 1200 tinha quatro versões, Augusta, Ipanema, Enseada e Xavante, sendo que três delas fizeram enorme sucesso no salão.

No Salão do Automóvel de 1966, o estande da Macan exibia o Gurgel Ipanema, à esquerda, e o Xavante, à direita

O Gurgel Ipanema e o Xavante foram expostos no estande próprio do fabricante, ainda a Macan, e o Gurgel Enseada ganhou lugar de destaque, no estande oficial da VW.

O Gurgel Enseada era o mais estiloso, com bancos de vime estilo Saint Tropez, o Xavante o mais rústico, idealizado para trabalho de jipe, o Augusta era a versão de luxo, com rodas cromadas mais largas e calotas, e o Ipanema foi o que se consolidou, passando por muitas melhorias em 1969, quando Gurgel trocou a Macan pela Gurgel Veículos Ltda. Foi quando chegou o Gurgel Ipanema QT, que podia ter motores de 1.300 ou 1.500 cm3 .

O Gurgel Bugato, vendido em kits para montar em casa, era realmente muito estranho. Hoje, muito raro

Mais uma vez a minha máquina do tempo entra em ação e eu me lembro de quando o primeiro jipinho Gurgel chegou em casa, para teste na revista Quatro Rodas. Era um Ipanema, já com muitas alterações em relação ao Gurgel 1200 de três anos antes.

Expedito Marazzi descreve essa novidades em sua avaliação: “o recorte dos para-lamas é diferente, assim como a parte inferior das laterais, há tomadas de ar nos paralamas traseiros e a tampa do motor ficou maior. O parabrisa está preso a articulações mais à frente e o painel de instrumentos é novo e mais bonito do que o anterior”.

Foi nessa ocasião que o jovem Expedito aprontou uma das suas, em nome da reportagem: desceu as íngremes escadas da praça Charles Miller, em frente ao estádio do Pacaembu, o que rendeu uma fotografia muito instigante de autoria de Lew Parrella, aquele mesmo que comprou o Puma DKW do Expedito. Chegando ao pé da escada, policiais que estavam por perto o aguardavam, com caras de poucos amigos. Quase foi preso...

Nem preciso dizer que tanto ele quanto eu, seu carona mais assíduo, curtimos muito o jipinho e, desde então, fiquei fã da marca. Jamais esqueci daquelas portas de plástico de abriam e fechavam na vertical, comandadas por alavancas.

Algum tempo depois chegou outro jipinho na nossa garagem, o Gurgel Bugato. Estranhíssimo, tinha uma grade frontal que lembrava a Rural Willys e o motor era exposto, na traseira. Mas o motor tinha uma cobertura parecida com um baú, que não abria, apenas era retirada, e era presa com cinturões de couro.

O Gurgel Bugato era vendido em kits para montar, por isso cada um era diferente do outro, nos detalhes. O que ficou na minha garagem era da frota da fábrica e era o mesmo que participou do filme Roberto Carlos a 300 Km Por Hora, pilotado por Erasmo Carlos (veja reportagem sobre o filme nesta edição).

Na hora não gostei do jipinho, mas, devido à sua extrema raridade – foram vendidos cerca de 20 kits, apenas –, gostaria muito de rever um desses, ao vivo. E, quem sabe, pilotálo. Quem será que tem um?

João Gurgel demonstrando a capacidade de seu jipinho X-10, na pista da fábrica, em Rio Claro, SP

Daí em diante, João Gurgel entrou em um crescendo de popularidade e sucesso, com seus jipinhos baseados na mecânica VW a ar. A fábrica mudou para o interior paulista, na cidade de Rio Claro, e cresceu. Seguindo pelo caminho dos jipes utilitários, foi o Xavante que deu nome à linha, passando a chamar Xavante XT, depois X-10.

O Gurgel X-10 tinha a proposta da extrema aventura, inclusive vinha com pás incrustradas nas laterais, acima das porta deslizantes, e com o estepe sobre o capô dianteiro. O sucesso total veio com o X-12, mais robusto e com linhas de carroceria mais agradáveis. As portas agora abriam da forma convencional e ainda havia algumas versões com as pás presas nelas.

O Gurgel X-12 ficou muito tempo em produção, sempre evoluindo e com várias versões adaptadas para cada tipo de utilização. O Gurgel X-12 TR tinha capota rígida e, na minha opinião, era o mais bem resolvido deles.

Gurgel X-12 em ação

Este Gurgel quase ninguém viu

João Conrado do Amaral Gurgel tinha uma mente à frente de seu tempo. O Gurgel II, exibido no segundo Salão do Automóvel, em 1961, provavelmente não se tornou comercial porque era muito avançado, para a época. O volante podia ser deslocado para os dois lados e o câmbio tinha polias variáveis, com o mesmo princípio dos câmbios CVT atuais. O carrinho, realmente, tinha um visual meio espacial.

Gurgel Itaipu, na versão inicial, de 1974, e na versão utilitário, que foi utilizada por algumas empresas públicas

O Gurgel Carajás, em 1984, era uma prévia dos utilitários esportivos populares que viriam muito tempo depois

Para João Gurgel, o sucesso com os jipinhos não era suficiente, queria mais. Ainda nos anos 70, criou alguns modelos elétricos, como o Itaipu, em 1974, e o utilitário E-400, em 1980, que chegou a ser vendido para empresas públicas.

Se os carros elétricos ainda têm muito a evoluir nos dias de hoje, quarenta e poucos anos atrás seria adequado dizer, até, que eles não tinham chance. Por isso, Gurgel continuou firme nos modelos com motores a gasolina, mesmo com o álcool praticamente dominando o mercado dos automóveis regulares. Em 1981, ele apresentou o Xef, sedã de duas portas e três lugares, bonitinho, mas que não teve sucesso comercial. Em 1984 foi a vez do Carajás, uma peruona com motor VW dianteiro refrigerado a água e câmbio junto ao diferencial traseiro. Esse foi bem recebido pelo mercado.

hISTórIA ANTIGA

esta historinha eu demorei uns 20 anos para contar para alguém. Fernando, filho do João Gurgel, era meu colega na escola Politécnica da uSP e, um dia, chamou a turma para visitar a fábrica de seu pai, em rio Claro. lá chegando, o encontramos se divertindo prá valer com um chassi sem carroceria, só banco e volante, na pista de terra da fábrica. Foi quando o João nos alertou que aquilo era muito perigoso, pois o veículo pelado não oferecia nenhuma proteção. e foi embora. Foi quando pegamos um X-12 militar, que tinha o para-brisa basculante, e fomos para a pista. Éramos cinco e, uma vez cada um, assumia o volante para fazer algumas peripécias. Na vez do, bem, vamos chamálo de “Gaivota”, eu fiquei atrás, bem no meio e com as pernas para a frente. Aquelas duas alavancas do Seletraction, que freava, cada uma, uma roda traseira, era, então, uma tentação, pois ficavam ao alcance dos meus pés. Para “ajudar” o piloto, eu apertava uma vez uma, outra vez outra. e o jipinho dançava na terra. Até que apertei, sem querer, a alavanca errada, e lá fomos os cinco rolando na terra. Disfarça aqui, uma lavadinha acolá, fomos embora com o nosso piloto capotador se achando o pior dos motoristas. Vinte anos depois, em uma aula de pilotagem em Interlagos, resolvi contar a ele, agora um dos instrutores do curso, que eu estava “pilotando” o Seletraction na hora da sua “barbeiragem”. uma semana sem falar comigo. Até a aula seguinte.

Gurgel BR-800, Supermini e MotoMachine, os três últimos modelos de carros compactos feitos pela Gurgel

Mas foi em 1988 que João Gurgel deu a cartada da sua vida, lançando o BR-800, pequeno carro urbano com motor dianteiro de dois cilindros contrapostos refrigerado a água. Abriu a empresa e o carro era vendido apenas aos novos acionistas, juntamente com o pacote de ações. Em 1991, ele foi substituído pelo Supermini e, antes dele, vendeu alguns MotoMachine, ainda menor, mas que dependia da nova fábrica no Ceará para sua produção. Foi essa fábrica que sugou todos os seus recursos, depois que o governo cearense não honrou um acordo de cooperação que viabilizaria sua construção e posterior produção dos veículos. Assim, a Gurgel foi à falência em 1994. l

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