Insta dizer

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Entre a crônica e a prosa poética, entre dilemas

da vida e o olhar para o outro, ao avesso, ao distante, ao acaso, o trabalho de Gabriel questiona de forma despretensiosa. Cheio de referências, mas com a agilidade própria do contemporâneo, que ajuda a compor a idiossincrasia autoral.

A imagem te faz criar e o texto te move para

aquele lugar. A realidade dele, a ficção sua ou nada disso?

Um convite ao cotidiano, por vezes tão banal,

que passa, vai e mesmo que volte, continuamos a desperceber. @nicoleprestes

INSTA DIZER G A B R I E L

D E M A S I


Dedicado à primeira noite em que a criança esperou que todos fossem dormir para pintar na mesa da copa, aos projetos desde cedo e às noites em claro do futuro.


INSTA DIZER G A B R I E L

D E M A S I


P R E FÁC I O Sou tonhademasi, um dos 408 seguidores do diadeindio no Instagram. Nesse espaço virtual, ao longo dos dois últimos anos, sou também uma observadora privilegiada da articulação de uma potente narrativa imagética da nossa contemporaneidade. "Somos aquilo para que olhamos", escreve o poeta Joseph Brodsky. Gabriel é cor, forma, contorno, rosto, marca, movimento... Seus olhos pertencem ao mundo. Sou também Maria Antonia Demasi, usuária do Facebook, espaço onde Gabriel Demasi transforma o que viu em linguagem e nos apresenta vários pontos de vista de um cena já capturada pelos olhos. Pensamentos operados como signos: os olhos e mãos que pensaram e produziram poderosas imagens, palavras e narrativas. Mas o que veio primeiro? A história ou a fotografia? Insta dizer que nesse livro essa pergunta não faz sentido: linguagem e imagem certamente povoarão o universo do leitor de maneira lúdica e concomitante. M.A.D.


Paulinho! Você tá me ouvindo, Paulinho? Não, Luzia. Ele não tá te ouvindo. Aliás, faz anos que ele não te ouve. Mas o resto do prédio ouve vocês dois, o dia inteiro. Como você aguenta essa situação, Luzia? Todo dia essa gritaria, essa eterna discussão. Você não vai convencer o Paulinho de nada. Ele não te ouve. Ele é surdo. Liga a tv no máximo pra assistir futebol, jornal, novela, e pra não te ouvir. Ele tá preso no mundo dele, na bebida dele, na resmungação ininterrupta, no ódio por tudo: pelo Lula, pela Dilma, pelo Eduardo Paes, pelos empreiteiros, pelos comunistas, pelos neoliberais, pelos diretores das federações esportivas, pelo salário dos jogadores, por qualquer coisa que possa servir para expurgar a raiva. Há quantos anos vocês são casados, Luzia, e você ainda tem esperança de que ele aprenda a te ouvir, a argumentar, a ter algum tipo de diálogo saudável? Confesso que às vezes, Luzia, eu começo a pensar que você é ainda mais louca que ele. Faz a sonsa, sabe? Na rua não cumprimenta ninguém, vive quietinha, discretinha, chega em casa e solta os cachorros no Paulinho. Eu prefiro a Solange, a síndica, que faz a louca total, que não disfarça na rua, chega conversando com a cachorra. As quietinhas são as mais falsas, se revelam dentro de casa. Só que aqui todo mundo ouve tudo, Luzia. Não tem dentro e fora. Paulinho fica na sala, sentado no sofá, fumando sem parar e abrindo latinhas de cerveja, cujos estalos reverberam por todos os doze apartamentos. A tv, ligada no último volume, tv de graça e obrigatória para todo o prédio. E Luzia na cozinha, toda sofridinha, cozinhando de pé ou fingindo se entreter com alguma atividade, a porta aberta como se o pátio do prédio fosse o jardim deles. Paulinho, que ladra e ladra, uns meses atrás resolveu morder.

Se descontrolou, partiu pra cima da Luzia, foi uma gritaria, ela berrava “Paulinho! Paulinho! Você me agrediu” e ele, surtado, batendo as portas e gritando “Demônio, demônio!” e outras coisas indecifráveis. O que é mais absurdo? A insensatez do Paulinho ou você, que tá até hoje nessa? Sabe, Luzia, seria melhor se vocês se matassem de uma vez. Seria mais sincero. Seria, enfim, um acordo entre os dois. Assim, em mundos diferentes, acontece a comunicação desencontrada dos dois, a unicação, que de comum não tem nada. Não se ouvem, não estão mais juntos, não têm a mesma opinião sobre nada, sequer suportam ficar no mesmo cômodo. Mas insistem em tentar se fazer ouvir. São viciados em incompreensão.



Em 2009, eu estava fazendo intercâmbio na França. Passava por um momento muito difícil, quando minha família me mandou presentes do Brasil. Dentro do pacote cuidadosamente feito por minha mãe, uma maga das embalagens, estava O cortiço, que na época era leitura de muitos vestibulares que no fim do ano eu prestaria. Li O cortiço em duas tardes, no jardim, procurando um pouco de sol. Devorar aquelas páginas, aquela dose cavalar de Brasil, me tirou de certa forma daquele sentimento de distância, de perda, de falta, era tudo muito familiar e intenso ali, nas palavras diante dos meus olhos, passando em imagens na minha mente. Muito por influência dessas cenas, e de tantas outras cenas sobre a cidade entranhadas na literatura e na arte brasileira em geral, não por acaso, acabei vindo morar no Rio. Hoje moro do lado de um cortiço, que não perde para o do livro em riqueza e efervescência. Entre um texto e outro lido, um parágrafo e outro do TCC escrito, acompanho a vida do cortiço. As crianças correm e brincam, e duas jovens mães gritam a tarde inteira com seus filhos, Pietro e Ana Clara. A criação é no grito. Fico pensando no que posso fazer. Já pensei em deixar um bilhete, em ir até o portão e conversar com elas. Queria dizer a elas que as crianças, tão pequenas, já gritam como elas. Que não estão resolvendo nada, na verdade estão piorando as coisas. Mas quem sou eu? Falar com elas porque atrapalham meu silêncio? Dividimos um muro, mas não o mesmo mundo. Se elas pudessem estar aqui, no meu lugar, poderiam se entender melhor, conhecer o próprio mundo, explorar suas potências, conhecer o mundo através dos livros, a França, o que quisessem. Mas os muros separam o mundo, mais do que dos espaços, mas das possibilidades. Para mim, o importante é o silêncio. Para elas, que o Pietro e Ana Clara parem de chorar para que elas terminem de lavar e passar a roupa.


O som ao meu redor é o som das músicas que me fazem bem, de vinho sendo aberto, página sendo virada, dinheiro saindo do caixa, papel de presente sendo rasgado, talheres cheios de apetite, saltos batendo poderosos. É também o som da brasa do cigarro queimando, do café ficando pronto, dele afinando o contrabaixo, do meu violão compondo, da cama arrastando quando a gente trepa, do ônibus parando no ponto, do vizinho chegando em casa, das crianças eufóricas na saída da escola, da cumbia que desaparece na velocidade com que os carros dos manos somem, de alguém me chamando no Skype. O som ao meu redor já foi o som dos meus irmãos pequenos me chamando pra brincar, dos pássaros das manhãs do Jardim Botânico, dos carrinhos da Casa e Vídeo, do liquidificador batendo vitamina, da gritaria na mesa do almoço, da minha mãe cantando no carro, do sino da igreja piorando minha ressaca, do meu pai tocando piano, do lixeiro passando.


No ponto da praça, a angústia do ônibus que não vem, e quando vem às vezes demora a sair, e quando sai pode ficar parado em Vila Isabel do começo ao fim, ou com sorte correr vazado por baixo do viaduto. O sol forte queima, apressando quem espera. Motoristas e cobradores indo e vindo, com suas bolsinhas de troco e seu controle de passageiros, vão ao banheiro, esticam as pernas, fazem um lanche, entram pela frente, por trás, em dupla, em trio, vários personagens funcionais azuis, eufóricos como num passeio da escola. Na minha escola os passeios eram chamados de estudos do meio. Coisa do construtivismo. Em casa, os trajetos de carro pela cidade da infância eram visitas guiadas, explorações das construções, das plantas, do desenho dos carros, do nome das ruas, do texto dos outdoors, das roupas, dos passantes. Coisa de pai arquiteto. Coisa de mãe curiosa. Vivo um estudo do meio. Observo, fotografo, absorvo e anoto tudo. Sou um aluno aplicado. O 436, quando passa, quando sai e quando anda, é uma grande excursão. Estética e terapêutica: nele já me preparo para a análise. Aliás, estou sempre preparado para a análise, esta e aquela. Suando as costas contra o plástico do assento do ônibus sem ar, vou chacoalhando, claro, mas vou no altinho. Na janela. Pronto para ver tudo do alto. Com o celular pronto para disparar. Com a mão pronta para resgatá-lo de um ladrão. Pronto para a viagem. A viagem: confusão. Confusão no pontilhão de São Cristóvão, confusão no sobe e desce perto da Cidade Nova. Tudo é cinza, concreto, galpão, barracão, estacionamento, é pichação, motel, calçada deserta escaldante, casarões do Rio Comprido. Casarão que virou CCAA, casarão que virou Subway, casarão que virou pet shop, casarão à venda, casarão para alugar, casarão abandonado, janelão de prédio dos anos 50, janelão dos 60, dos 70, janelinha dos condomínios de gesso, janelinha, janelinha. É tudo isso embaixo e o viaduto em cima. No fim, o sprint na subida. E escuro. 760 metros no escuro. 100 no claro. Mais 2040 no escuro. 2800m sob pedra. E então luz, muita luz, tudo muito, muito verde, muito céu muito azul, muito sol na água de espelho, muita brisa batendo, a volta toda na lagoa. Me enche o peito tudo, encho os olhos de olhar, a cabeça tilinta de beleza, o coração brilha. Seu Rodrigo, o senhor está de parabéns.

E na chegada, a bossa. Enche meus ouvidos. Não essa. Aquela, que tanto ouvi. E passam madames com cachorros, personagens executivos funcionais e suas sapatilhas com lacinho, e bolsas e smartphones gigantes, gringos perdidos com suas garrafas de água, funcionários fumando do lado de fora, e alguns: velhos, fashionistas, enrustidos sarados, pedintes, garotas Farm, livraria, cabeleireiro, Casa Reis, Rei dos Plásticos, Ipanema 2000. Vamos lá, Lacan. Vamos aos outros meios, pois. A viagem é o meio para o fim.



Não estou trabalhando. Não estou de férias. Um desempregado não se sente realmente livre. Não sei bem se estamos em julho ou agosto. Por estar em casa, enfim marquei com o técnico da máquina de lavar roupa. Concordei precipitadamente com o conserto, mas valeu a visita: ele me disse que a máquina é ótima e que cuido muito bem dela. E isso me deu uma felicidade enorme, como uma mãe deve se sentir feliz na reunião do filho, na escola. Descobrir uma faceta nova de algo tão próprio seu, ouvir esse parecer tão positivo e surpreendente de um especialista, um grande orgulho. Nunca esperei me sair bem no cuidado com eletrodomésticos e aparelhos em geral. Antes da chegada do técnico, e depois também, fui tomando café, para ver se alguma coisa se ativava, para me sentir um pouco menos culpado pelo ócio, talvez, o café é uma droga mesmo e ponto. A falta da cafeína dá a sensação de que o mundo está devagar e que não consigo viver assim. Preparei ao todo três canecas. Xícaras são pra amadores. Deixei restos em todas. Esfriou. Acabou o filtro. Caíram pedacinhos de borra. Um desastre. Não cuido tão bem do café quanto da máquina de lavar. Em algum momento esse café tinha que bater. Bateu de madrugada. Clássico. O café dá um dia “ganho” e um dia perdido depois. Acelera e desregula. Como tudo que não é natural. O ser humano tenta acelerar, “otimizar” o tempo, mas afinal é bem verdade que a vida tem um ritmo natural e isso é incontestável. Horas antes, tinha tomado algumas longnecks, um resto de vinho e fumado uma ponta, mas já eram duas, três, quatro da manhã, e a cafeína ainda a otimizar meu tempo na cama. E é nessa hora que as coisas mais bizarras do mundo passam pela cabeça. Confusa com essa mistura estranha de sono, cansaço, ansiedade, irritação, e muita criatividade, a mente cria pensamentos esquisitos, aqueles que quando estamos normais conseguimos estabilizar. Contas para pagar, coisas para resolver, problemas e mais problemas, passei para as ideias de viagens dos sonhos, logo um assalto em Genebra,

e de repente, sim, estamos em agosto! dá tempo. vou me inscrever no próximo Big Brother e foda-se. Um milhão e meio. Aguentar três meses numa casa, nem de férias nem desempregado, pagar enfim todas as contas, alugar outro apartamento, escrever um livro, conseguir fazer um programa de entrevistas, resolver todos os problemas da família: escola para os irmãos, iMac para o namorado, tratamentos para a mãe de picão preto, branco, de todas as cores, viagens, tranquilidade, felicidade, paz. Mas insônia, insônia, assim não vou conseguir me inscrever. E começa a ventania do Grajaú. Vento forte correndo entre a pedra e os prédios. As janelas sacudindo mesmo fechadas. As portas batendo. Os primeiros vizinhos indo trabalhar. A campainha da portaria do prédio ao lado.Sonhando ou insone, começo a ter a grande ideia, o corpo quer dormir mas a mente ainda não parou, e me lembro da minha analista dizendo “A inspiração não vem para todos. Faça algo com ela. Não deixe ela passar”. Vou lembrar amanhã, vou lembrar, prometo, estou arquivando direitinho aqui: cenas de um filme noir, de época, de ação, desses de detetive, muito escuro, meio surreal, cômico, meio como os livros do Jô Soares, meio como os 007 dos anos 60, aquela sensação de “sério que ninguém percebe que ele é o vilão?”. Um casal que tinha sido agente secreto não sei de qual lado, cartas antigas em francês, um quebra-cabeça com peças do passado faltando, algum grande escândalo que eu ia desmascarar, e tudo indicava que o vilão eram as “grandes corporações cervejeiras”. Moído por toda a ação da noite, acordado confirmo que realmente estamos em agosto. As inscrições para o Big Brother estão encerradas. Vou ter que pensar num outro plano. E a inspiração passou: não consigo me lembrar direito da história genial.


Numa mutação genética-psíquica-tecnológica nós dois trocamos nossas informações da mente. Trocamos nossos cartões de memória. Num acidente de reconfiguração de aparelhos, algo na conexão extrapolou a corrente elétrica e veio junto com o meu novo celular, minha base de dados portátil, toda a sua composição: seus contatos, seus e-mails, suas fotos e os meta-dados e multi-tudos de repente me tornei você, seu eu cibernético.

Agora dentro da minha cabeça tenho seus alarmes também, suas listas, estou todo configurado como você. Agora até mesmo meu celular é igual ao seu. E eu, que já era neurótico com nossa relação física e nossa interação virtual, agora carrego em mim também as preocupações de suas notificações mais obscuras, suas fantasias, seus segredos, seu passado, sua lixeira, seus backups, seus rascunhos. Agora eu penso em tudo. Em tudo meu, tudo seu, tudo o que você

sabe que quer e o que nem sabe, o que você está pensando agora e não percebeu, o que você vai pensar em dois minutos, o que você vai pensar em três minutos tentando entender o pensamento anterior. Eu sei de tudo. Agora estou à frente. Estou no ritmo do dedo que digita frenético, sou um sistema operacional que trava com muitos programas abertos. Sou todas as suas abas. E sei de tudo que você vai precisar acionar, e todas as preocupações que isso vai me trazer, e todos os processos internos pesados que vou ter que ativar pra reagir a elas e tragar tudo isso. E já sei como tudo vai ser, por isso sofro, sofro ontem, agora, amanhã, semana que vem, sofro o que talvez não chegue nem a sofrer, o que não aguentemos esperar. Porque agora não sou mais só minha cabeça. Sou meu corpo, a falta do seu, minha cabeça, dentro dela, minha consciência, e na consciência meu chip e o seu, com tudo o que vimos, sentimos, imaginamos, está tudo em mim, eu, você e nossas máquinas. Curto-circuito.


Aos poucos os traços daquele rapaz foram se tornando mais nítidos. E ele não era mais um rapaz de vermelho. Era um rapaz de vermelho com vontade, ânsia, inquietude, agonia, comichão. Tinha a barba por fazer, uma cicatriz na testa e quando me sorriu pela terceira ou quarta vez pude ver que um de seus dentes da frente havia sido colado, uma rachadura em diagonal, de um extremo ao outro. Acho que seu nome era Gabriel, ou Rafael. Não sei ao certo. Algo com “el” no final. Mas Miguel com certeza não era. Ele tinha uma certa falta de educação que eu compreendia como ninguém, era pressa, correria. Esse moço não era de forma alguma má pessoa. Tinha pressa e não aguentava mais o mesmo discurso. Talvez tenha sido eu o centésimo cliente a passar por ele, a centésima pessoa que ele teve de atender com suposta simpatia. Gabriel não estava num dia bom. Quero saber o que ele esconde, esse funcionário, esse alguém que se paga pra funcionar. Para ter função. Ele deve ter muito mais que aquela camisa vermelha deselegante, desajeitada, que todos ali vestem e o salário que todos ali ganham.



Entrou correndo no quarto que havia sido deles, pegou três ou quatro camisetas, dinheiro e documentos, e jogou na mochila. Queria esquecer, pisar, cuspir em suas lembranças. Queria poder seguir em frente sem pensar em quem foi um ia e no que o havia levado até ali. Queria rasgar seu passado. Abriu a janela e atirou o violão. Pegou sua pasta, tirou folha por folha e rasgou as partituras das músicas que havia aprendido a tocar por causa dele. Chega de Chega de Saudade, Cartola, chega de Rio de Janeiro, dessa bossa nova infernal brasileira que havia ficado impregnada em seus dedos viciados. Ele não aguentava sequer ouvir mais português. Bateu com força a porta do apartamento, pegou o elevador, parou um táxi na rua. Partiu rumo ao aeroporto. Mas não tinha a menor ideia de onde iria, onde se sentiria bem. Talvez na Tailândia, na Suécia, algum lugar onde não entendesse nada. O único som que queria conseguir ouvir era sua própria voz.


— 2010 A areia da praia ainda estava suja. Além do lixo de alta temporada, ainda se podia encontrar dispersas algumas flores, rosas ou palmas, restos das oferendas da noite do Ano Novo. O tempo não estava bom para banho de mar ou para se bronzear, o céu não conseguia resistir limpo e iluminado por muito tempo. Mas era engraçado ir a Ipanema pelo simples fato de poder sentar-se em uma canga e ali ficar, observando os passantes e se divertindo com os gringos e tudo o que lhes é próprio: seus trajes de banho, suas reações, seu estilo, sua eventual beleza e mesmo suas negociações macarrônicas com os malandros ambulantes cariocas. Quem passava pela Vieira Souto naquela tarde chuvosa e insossa de janeiro provavelmente não reparou, mas de pé, na altura da Vinicius de Moraes, fazia sinal para os táxis e ônibus Juan Pedro García. Com ar completamente perdido e confuso, ele tentava em portunhol chegar ao Cristo. Até que dois adolescentes se aproximaram, o abordaram e levaram-no junto consigo até o ponto de ônibus. Nenhum motorista pararia ali, em plena avenida, nem mesmo os mais irresponsáveis ou com maior boa-vontade. Era terça-feira. Sábado, Juan se encontrava perdido em sua própria casa, em Buenos Aires, depois de passar a virada do ano em um entediante jantar com sua mãe e pegar no sono em frente à televisão assistindo às comemorações ao redor do mundo. Ele não aguentava mais tanto marasmo, estava enjoado de seu cotidiano. Definitivamente não queria começar o ano assim. Tinha apenas 29 anos e estava se tornando um velho acomodado. Para deixar a situação ainda pior, era alguém muito solitário. Desde que fora largado por sua última namorada, havia mais de um ano, as únicas ligações que recebia eram de operadoras de telemarketing ou então de sua mãe, que o irritava perguntando se ele já havia comido ou visto como o dia estava lindo na capital da Argentina. Juan tinha algum dinheiro guardado no banco, a parte que restou da herança que seu pai lhe havia deixado depois de comprar seu monoambiente em Almagro. Decidiu que não queria passar mais essas férias em casa. Ligou o computador e no portal que costumava seguir procurou a seção de viagens. O destino daquela semana era o Rio de Janeiro. Assim, dessa maneira repentina e boba até, Juan decidiu que na manhã seguinte voaria para o Rio. E foi o que de fato fez. Deixou um recado na secretária eletrônica de sua mãe, que havia saído provavelmente para ir à missa, jogou algumas coisas na mala e rumou para o aeroporto de Ezeiza. No fim da tarde já estava no Brasil.


Por isso eu gosto do mar. É o mar da minha lembrança. É o cheiro e o gosto que eu já sentia e já me atraía, de lugar desconhecido. E também o mais longe que consegui chegar sem me sentir deslocado. Esse cheiro de lembrança vai ser sempre meu. No fundo é meu mundo hoje com o cheiro de antes. É a lembrança do cheiro.


E na falta de ar, seca e dura de ser adulto num lugar inóspito, respirando reencontrei meu lugar, ou, pelo menos, o lugar da lembrança úmida e quente do cheiro da praia da infância. Lembrei que ele sempre diz que se sensibiliza com maluquinhos, como ele os chama. Sim, talvez ainda possa acreditar que ainda existe em algum lugar dentro dele algo que se sensibiliza, alguma delicadeza, e mesmo que não haja, talvez eu ainda possa escolher acreditar nisso. Na praia, meu pai era o rei.

Adeus, peito materno A fonte secou Do bico que nutriu, noites e dias mamando, do lado esquerdo me despeço. Metade do seio, do eterno, do inabalável Onze de dez inteiros do cordão que me segurava Vai-se a mama. Uma mama. E começo a me despedir da minha mamã.


E a tarde ficou bege Filtrou embaçada o ânimo e a alma Um bege-saudade ou bege-que-será



Saio do metrô e vejo Lota desenhando o Aterro, Pereira Passos a derrubar cortiços, a geometria calculada da Praça Paris. Vejo escravos erguendo a igreja sobre o Outeiro, Lucio Costa recostado nos pilotis do edifício Mendes Campos, astros de Hollywood hospedados no Hotel Glória, jornalistas e boêmios bebendo no Amarelinho, Oscar e Darcy admirando o Brizolão. Getúlio lança um aceno discreto da varanda do palácio, as travestis pensam que quer programa. Tiro no peito. Morto na calçada o menino da Tavares Bastos.



O suor no violão Os calos na minha mão Os quilos, os dente amarelo É porque vim e vivi, e vivi, e vivi Vencer não existe






Es martes. Llueve. Estuve tomando café y pensando en algo que hacer toda la tarde. Mi novio se acuesta como si hubiera perdido la esperanza. En el living hay una francesa y un hondureño que no me gustan. Mi novio se levanta y me dice que no puedo seguir así, que tengo que disfrutar de la vida. Por eso empecé a escribir.


Poema poema poema Poema disperso Tudo questiona De tudo duvida Mas tudo o que é É poesia No mundo do poema incerto Quem não é poeta vira verso


– Qual a sua vida? – Não sei. – Você tá aqui e não sabe qual a sua vida? – Não. – Que merda. Não quero ser você no futuro.


Serei breve, espresso: o café está para a literatura assim como a cerveja está para o samba. Convida ao saber esperar, saber medir e saber apreciar. Quem faz um café para, pensa, reflete, o pensamento vai longe junto com o vapor que sobe. Segurando a xícara, mostramos à alma que a tratamos bem, que lhe damos o merecido descanso, e a cafeína lhe dá o necessário impulso.

O café é o braço direito do pensador.


— 2008 Em um café no Quartier Latin, Pierre chama o garçom: – Um roteiro, por favor. O garçom, confuso entre entrar na brincadeira ou crer no erro do freguês: – Açúcar ou mascavo? – Não sei. Não quero um roteiro sem sal, mas tampouco quero algo água-com-açúcar. Muito apimentado também seria inadequado... Nada cítrico... hum... O garçom, apático diante da indecisão de Pierre, é levemente áspero: – É melhor o senhor se decidir primeiro. Eu estou lá no balcão... É só chamar por Vincent. – Está bem – e ao perceber a indevida impaciência de Vincent – afinal, sua presença estática aí na minha frente não vai me ajudar em nada, e além do que, você está fazendo sombra. – Me desculpe, senhor. Pierre começa, então, a rabiscar num guardanapo de péssima qualidade suas idéias, tentando organizá-las segundo algum critério sobre o qual ele ainda não estava certo. Passou para o papel uma sequência de inquietações: “inveja material”, “minha capacidade de fazer dinheiro mede minha real capacidade?”, e, ao escrever “não suporto mais”, finalmente rasgou o guardanapo. Pierre havia largado um emprego considerado ótimo por muitos há um ano, quando optou por fazer o que realmente achava que gostava. Passou a escrever para algumas gazetas de bairros da periferia, como freelancer, ganhando apenas algo suficiente para um sanduíche, depois de pagos os bilhetes do metrô.

O que realmente fascinava Pierre era o cinema. Por várias vezes já havia deixado de almoçar para pegar a sessão popular das 13h nos cinemas decadentes de Les Invalides. O sonho de Pierre era escrever um roteiro. Este conseguia ser, sem dúvida, o pior dia da fase dos piores dias da vida de Pierre. Estava infeliz, insatisfeito, desestimulado, e naquele momento poderia ser descrito com todos os adjetivos de prefixos “in” e “des” possíveis. Sentado há mais de uma hora, tendo decidido somente que uma água com gás seria uma boa pedida, Pierre fazia uma retrospectiva, passava sua vida a limpo. Concluiu, então, que não havia nada que o prendesse em Paris, e que talvez o que o mantivesse ligado a um passado em que preferia não pensar fosse o fato de insistir em ficar em sua terra natal. Pierre não conseguia ver sequer uma passagem nobre em sua história; ressoava em seus pensamentos que sua existência havia sido totalmente medíocre até então. Começa a fazer um mapeamento mental de todos os lugares a que poderia ir e que achava que lhe seriam convenientes àquele momento. Se lembra, então, de um antigo amigo do colégio que havia ido à Nova Iorque para estudar Artes Cênicas, Paul. Já havia sido convidado várias vezes para passar uma temporada naquele lugar que, segundo Paul, seria “uma cidade do mundo”, “uma experiência indescritível”. Era exatamente algo indescritível que Pierre estava procurando! Não queria mais ter de rabiscar as suas verdades mais incômodas em guardanapos. Então, com seu bloquinho de notas – Pierre era avesso aos tecnológicos notebooks –, trezentos dólares e a esperança de que estava dando o passo certo, ele desembarca no J.F.K.



[...] Melancolia do mundo perdido, das vozes que não escuto mais, encontros que não me pertencem. E ilusão de que lá seria melhor, de que as cores são mais bonitas, que eu estaria mais feliz e que talvez tenha desperdiçado meu tempo. Nostalgia, mera sobreposição de todas as opções de perda. As palavras estão escritas, mesmo quando tanto falta, elas tudo cortam. Ora, basta! Meu tempo é aqui e é bom. Ânimo e desânimo são meus, não são do tempo nem do mundo nem da melancolia nem da ilusão. Oscilam com o vento que sopra a chama de Áries, no ar de Gêmeos que vacila, na balança de Libra. No meio do meu céu, o sensível. Aquele que sente. Com pouca razão. Sente.


Minha palavra é só pra mim e me constrói: uma casa. Moro nela e em meus pensamentos. Meus flagrantes me fazem perceber que ela existe. São três coisas, eu, o código e a casa. Ela emerge de mim.


El País, 17 de maio de 2015: O Brasil desistiu do estigma de país que dá as costas para a vizinhança – ao menos pelo que indicam suas novas políticas de cinema. A Ancine acaba de anunciar uma linha de coprodução que viabiliza o investimento de cinco milhões de reais para filmes produzidos em parceria com países latino-americanos. Estou no Clio vermelho de Lucia Murat, indo buscar Camilla Amado em sua casa. Camilla é atriz e preparadora de elenco; estrelou a primeira montagem de Ionesco no Brasil, em 1957. Gávea. Uma daquelas ruas confusas perto do Jóquei. Entro na contramão. Passo por um flanelinha. Camilla entra no carro, cheirando a alfazema. Arranco e ela me pede para parar, quer falar com o flanelinha. Grita com ele. Não é flanelinha. Têm uma longa treta. Chegamos no set. Ela esqueceu o celular. Me dá a chave do apartamento para ir buscá-lo. Não vejo mais o flanelinha. Sou assistente do assistente no filme de Lucia sobre

o corpo, o envelhecer, a morte, em que Camilla é a mãe de Simone de Beauvoir. Acabei virando motorista. Nunca trabalhei tanto quanto nessas diárias. Gravamos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Um prédio dos anos 10 de cinco andares, cheio de janelões com vista para o centro antigo. Sem elevador. Minhas pernas doem. Muito. Acabei completamente esgotado. Tomo um porre com a equipe no último dia e falto ao trabalho. Estágio, na verdade. Sou demitido. 2014

Ricardo vai até a geladeira, pega uma garrafa de água e dá um longo gole. Caminhando por uma rua de Palermo, ou de Chacarita, acho que na Gorriti ou em alguma daquelas ruas com nome de país, vejo através da janela um homem sem camisa tomando água. É o Ricardo. O Darín. 2013

Amud é músico e ator. Foi morar em Buenos Aires com o namorado. Para se sustentar, tocava contrabaixo na rua. Bossa nova. Foram para a Argentina de ônibus, Crucero del Norte. Para não quebrar o Baco. O contrabaixo. Fez um curso de roteiro no Centro Cultural General San Martín. Guión. Terminou em junho. O namoro. Ficou nervoso e quebrou o Baco. Golpe baixo. Voltou para o Rio falando espanhol quase bem. Portunhol selvagem, mais precisamente. Não viu mais o exnamorado. Agora odeia cinema argentino. 2013


– Puta frio, né? – Demais. Moro no Rio, lá nunca faz frio. – Sério? Você faz o que lá? – Estudo jornalismo. – Daóra. Quero estudar teatro. Em Buenos Aires. ***

Johnny é segurança. Tem dois trabalhos. De dia, cobre o horário de almoço numa agência do Bradesco. À noite, protege um shoppinzinho de rua em Campinas. Johnny quer ser ator. Quer ir para Buenos Aires estudar atuação. Vai terminar em julho. O tratamento com o dentista. E vai para Buenos Aires. “Quero estudar teatro. Em Buenos Aires. O Alex, meu amigo desde molequinho, tá lá. Eu fui buscar ele na rodoviária com o pai dele, você precisa ver que alegria o véio tava! Ele é bem chucrão, mas dava pra ver que ele tava com os óio cheio de lágrima. A gente viu ele de longe e ele disse ‘Esse não é o meu filho, não! ’. Ele chegou muito estiloso, com o cabelo assim de ladinho, umas roupas diferentes, uma calça que essa sua é larga comparada com a dele. Cruzando a perna igual mulher, gesticulando. Eu até achei que ele tinha virado gay, sabe? Eu perguntei pra ele, ‘Pô, Alex, você é gay? Pode falar a verdade, cara’, mas ele disse que não tem nada a ver, que no Brasil nego é muito ignorante, que lá em Buenos Aires os caras só andam assim, que homem até

se cumprimenta com beijo no rosto. Ele tá pegando um monte de mulher agora, porque tá com um papo bom, sabe? Você vê no papo dele que agora ele é outra pessoa. Lá ele trabalha num hostel, só pega mina linda, muita gringa, americana, francesa, cada mina linda que você precisa ver, mas linda tipo de filme mesmo. E ele era tímido, antes eu que ensinava ele, mas não sei o que aconteceu lá nessa viagem, agora ele que me ensina as coisas! Quando o Alex tava aqui, a gente encontrou com uns amigos nossos do colégio e eu percebi que ele tava mesmo diferente, eu consegui entender o que ele tava sentindo, eu entrei tipo dentro da cabeça dele. Aí depois ele me falou: ‘Ta vendo, Johnny, os caras só querem saber de carro, de baladinha, e não sabem nem falar direito, não sabem nem chegar numa mulher, tudo caipira. Aqui é o fim da linha. O mundo lá fora é muito maior. É isso que você quer da sua vida?’. E ele tem razão. Os caras aqui só querem saber de Camaro, uma mulherzinha gostosinha e só. Ele me falou que lá tem muito trabalho, que ele trabalha no hostel e ganha 6 mil pesos por mês, mais a moradia. E eu sou muito esforçado, eu sei que só com garra pra conseguir as coisas, posso ser garçom, qualquer coisa mesmo. Lá o cinema é muito forte, os melhores diretores agora tão lá. Pô, eu já tô com 24 anos, preciso fazer alguma coisa, sabe? Pra pagar PUC, FACAMP eu não tenho grana, e pra entrar na Unicamp, na USP,


eu teria que fazer uns anos de cursinho e depois até terminar, eu já tenho 24, vou ser ator com 40 anos só? Se eu fizer em Buenos Aires vai ser mais rápido. Não quero ficar aqui. Não sei por que, mas eu sempre tive essa vontade de conhecer as coisas. Você acha que levando 3 mil reais dá pra guentar quanto tempo? Você acha que se eu fizer aula de espanhol até agosto eu me viro? Porque eu precisava fazer aula, mas fico muito cansado, então tem que ser online mesmo, porque eu saio daqui e já preciso ir pra casa descansar. Quero estudar lá na universidade de Buenos Aires, é IUNA que chama, né? ”. Chego em Campinas de madrugada. Corre um vento gelado. O segurança do lugar onde estou esperando meu irmão puxa papo comigo, falo que venho do Rio, ele me pergunta o que faço, respondo, e Johnny, o segurança de 24 anos do Ventura Mall me lança:

– Daóra. Quero estudar teatro. Em Buenos Aires.

Respiro fundo. Engulo em seCONTRABAIXO GUIÓN CINE LUCIA MURAT DARCY RIBEIRO DOR NAS PERNAS FLANELINHA PORTUNHOL SELVAGEM GÁVEA CHACARITA PALERMO IUNA PESO DÓLAR FACULDADE SONHÓtimo, Buenos Aires é ótimo! Se não tiver promoção de avião, você pode ir de Crucero del Norte! 2015


Uma noite eu esperava por Gabriel para comermos o melhor hot dog da zona norte do Rio e ele demorava muito a chegar. Enquanto eu o esperava na esquina da avenida, vi, do outro lado da rua, algo que parecia ser uma pessoa tentando subir no portão de uma casa. Pensei que pudesse ser um assalto. Era o Gabriel com o celular apontado pra cima, tentando pegar um melhor ângulo da sombra que a luz da rua produzia na parede da casa. De longe, fiquei observando ele fotografar por alguns minutos. O Gabriel enxerga coisas que, nessa vida corrida que a gente leva, pouca gente tem sensibilidade para perceber. Afinal, a vida é esse monte de histórias que a gente enxerga por aí. Apesar da fome, não o interrompi porque sabia que aquele era um dos momentos da vida que ele mais gosta de viver. O momento do “tiro”, do estalo, da cena que se compôs toda ali pra ele: um presente. E que precisa ser registrada porque conta uma história linda e te lembra daquele filme, que te lembra daquele estilo, que te lembra daquelas cores.. Eu passei a enxergar o mundo com outros olhos depois que conheci o Gabriel. Nas tantas esperas por seus cliques certeiros, comecei a absorver bastante desse olhar que ele tem. E agora eu vejo cores e linhas e formas e pessoas e conversas e filmes onde não via. E para isto, basta estar vivo. E viver.

Rafael Rodrigues PR OJ E TO G R Á FI CO


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