Governança demcrática: construção coletiva do desenvolvimento das cidades

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Josep Mª Pascual Esteve

GOVERNANÇA DEMOCRÁTICA: CONSTRuÇÃO COLETIVA DO DESENVOLVIMENTO DAS CIDADES Tradução: João Carlos Vitor Garcia

2a edição

Belo Horizonte, 2012

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Esteve, Josep Mª Pascual. Governança democrática: construção coletiva do desenvolvimento das cidades / Josep Mª Pascual Esteve; tradução: João Carlos Vitor Garcia. – Juiz de Fora: Editora UFJF, 2009. 216 p.: il.

ISBN: 978-85-7672-027-0 1. Democracia. 2. Política social. 3. Cidadania. 4. Desenvolvimento social. I. Garcia, João Carlos Vitor. II. Título. CDU 321.7

Copyright © 2009 by Josep Mª Pascual Esteve Tradução: João Carlos Vitor Garcia Projeto gráfico e Capa: Espaço Nove Ltda. Editoração: Espaço Nove Ltda. Fotos capa: Jacqueline Nicácio Silveira Revisão: Adriana Benoni Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita do autor. Impresso no Brasil Printed in Brazil 2a edição – 2012

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À minha esposa, Àngels Guiteras, pelo seu apoio, confiança e sugestivas observações quanto ao conteúdo do texto.

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SDS · Edifício Miguel Badya · Sala 322 · 70394-901 · Brasília-DF Fone: (61) 3224-2269 Fax: (61) 3226-9756 fundacao@fundacaoastrojildo.org.br www.fundacaoastrojildo.org.br PRESIDENTE DE HONRA Armênio Guedes CONSELHO curador Presidente Caetano Araújo Efetivos Cléa Schiavvo Dina Lida Kinoshita Ferreira Gullar Giovanni Menegoz João Batista de Andrade João Carlos Vitor Garcia

Luiz Mário Gazzaneo Luiz Werneck Viana Mércio Pereira Gomes Sérgio Camps Moraes Stepan Nercessian

Suplentes Alberto Aggio Arlindo F. de Oliveira Silvio Tendler Socorro Ferraz Vladimir de Carvalho

CONSELHO EDITORIAL Ailton Benedito Alberto Aggio Alberto Passos Guimarães Fo Amilcar Baiardi Antonádia Monteiro Borges Antonio Carlos Máximo Artur José Poerner Aspásia Camargo Augusto de Franco Bernardo Ricupero Celso Frederico Cícero Péricles de Carvalho Charles Pessanha Délio Mendes Fábio Freitas Fernando de la Cuadra Fernando Pardellas Flávio Kothe Francisco José Pereira Gildo Marçal Brandão Gilson Leão Gilvan Cavalcanti

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Hamilton Garcia Irma Passoni Joanildo Buriti José Antonio Segatto José Bezerra José Carlos Capinam José Cláudio Barriguelli José Monserrat Filho Luís Gustavo Wasilevsky Luiz Carlos Azedo Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Eduardo Soares Luiz Gonzaga Beluzzo Luiz Sérgio Henriques Luiz Werneck Vianna Marco Antonio Coelho Marco Aurélio Nogueira Marco Mondaini Maria do Socorro Ferraz Marisa Bittar Martin Cézar Feijó Michel Zaidan

Milton Lahuerta Oscar D’Alva e Souza Filho Othon Jambeiro Paulo Alves de Lima Paulo Bonavides Paulo César Nascimento Paulo Fábio Dantas Neto Pedro V. Costa Sobrinho Raimundo Santos Raul de Mattos Paixão Filho Ricardo Cravo Albin Ricardo Maranhão Roberto Mangabeira Unger Rose Marie Muraro Sérgio Augusto de Moraes Sérgio Bessermann Sinclair Mallet Guy Guerra Ulrich Hoffmann Washington Bonfim Willame Jansen Willis Santiago Guerra Filho Zander Navarro

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Agradeço às pessoas e entidades que promoveram a edição brasileira, em especial à Fundação Astrojildo Pereira e a João Carlos Vitor Garcia, pela tradução e adaptação do texto. E minha especial gratidão pelos comentários e correções do texto original feitos por Júlia Pascual.

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Sumário Prefácio..................................................................................11 Prefácio à Segunda Edição Brasileira........................................... 15 Apresentação..........................................................................31 Introdução à edição brasileira..................................................35 Introdução..............................................................................39

1. Governança: Uma nova arte de governar............................ 43 Ideias Principais......................................................................43 Governança: descentralização, participação e colaboração com a sociedade civil..............................................................44 A governança democrática é mais do que uma dimensão da ação de governo ................................................................48 Os modos de governar na democracia: Burocrático, Gerencial e Governança...........................................................53 A governança é a arte de governar própria do governo relacional emergente...............................................................59 A governança é o modo de governar da sociedade do conhecimento.........................................................................71

2. Governança Democrática: Construção coletiva do desenvolvimento humano.................................................. 75 Ideias Principais .....................................................................75 A finalidade da governança democrática é o desenvolvimento humano..................................................................................76 A governança exige e precisa de democracia............................78 A coesão social é o motor do desenvolvimento econômico e social......................................................................................79 A coesão social é o principal objetivo da governança................82 A gestão relacional é a modalidade de gestão característica da governança........................................................................86 A gestão relacional se assenta em um conjunto de técnicas e instrumentos...........................................................................89 Para desenvolver-se, a governança precisa ter êxitos eleitorais visíveis....................................................................................94

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3. O Governo Relacional e a Governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede.................................................................. 97 Ideias Principais......................................................................97 Nova desigualdade social e nova visão da pobreza.................100 A individualização das relações sociais e a geração de capital social.........................................................................102 Risco e vulnerabilidade social................................................106 Imigração: identidade e multiculturalidade............................108 Mudanças na família.............................................................110 A cidade à medida das mulheres...........................................112 Uma nova visão do tempo e do espaço..................................115 A centralidade dos valores na organização social....................116 A globalização do social........................................................118 Mudanças nas formas de prestação e gestão dos serviços de bem-estar social....................................................................123 Conclusão: da gerência à governança.....................................124

4. A revalorização da política no Governo Relacional............ 127 Ideias Principais....................................................................127 O governo provedor e a crise da política local........................128 A democracia é básica para o desenvolvimento econômico na sociedade-rede.................................................................130 O governo relacional necessita de qualidade democrática.......133 A política democrática como capacidade de representação.....134 Um novo papel para o eleito local.........................................135

5. A liderança do político eleito na governança.................... 137 Ideias principais....................................................................137 Capacidade de visualizar os interesses e habilidades da cidadania..............................................................................138 Uma nova visão do poder.....................................................141 A liderança representativa é relacional...................................142 A liderança representativa é capacitadora..............................144 A distinção entre política e gerência.......................................145 A liderança estabelecida através da direção política e moral...................................................................................148

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O representante político é o principal agente de mudança......150 A nova tarefa: tornar visível o apoio social às políticas............151

6. Fundamentos para liderar a coesão social a partir do governo local.............................................................. 153 Ideias Principais....................................................................153 Os 7 pilares para a liderança política.....................................155 O envolvimento do governo local..........................................158 Antecipar-se e canalizar situações de conflito.........................162 O apoio necessário à liderança relacional ..............................165

7. Perfil político para a liderança representativa na governança: Valores, habilidades e atributos.................... 167 Ideias Principais....................................................................167 Os valores que sustentam a liderança representativa...............168 Habilidades ou aptidões do perfil político para a prática da governança...........................................................................171 Principais atributos para a prática da governança...................174

8. Os Governos Locais: Protagonistas na era da governança.. 177 Ideias Principais....................................................................177 As condições de êxito do nível local.......................................178 A prefeitura como organizador coletivo.................................179 O Poder Local: riqueza dos países e regiões............................181 Os municípios autoinsuficientes.............................................182 A crescente importância dos governos intermunicipais ...........183

9. A Governança do Bem-Estar Social................................... 185 Ideias Principais....................................................................185 O Bem-Estar Social: vanguarda da governança.......................186 A reestruturação da gestão dos serviços públicos do bem-estar social....................................................................189 A visão do conjunto da oferta de serviços do território...........193 A qualidade das redes: as marcas de garantia.........................196 A contratação externa para a gestão de serviços com base no desenvolvimento comunitário...........................................198

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A gestão de redes e a participação cidadã..............................201 A participação como envolvimento da cidadania na construção da cidade............................................................204 O apoio social às estratégias e políticas..................................208 A organização municipal necessária para a governança democrática..........................................................................210

Referências selecionadas...................................................... 213 1. Bibliografia.......................................................................214 2. Links eletrônicos...............................................................215

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Prefácio Qual é o lugar da cidade nas sociedades globalizadas? Como produzir cidades democráticas e como democratizar a convivência nas cidades? Buscando responder estas e outras perguntas, este livro, de autoria do celebrado intelectual Josep Ma Pascual Esteve, aborda um tema, e um problema, da maior relevância para a política contemporânea: o da governança democrática das cidades. O autor parte de um referencial analítico que explicita e distingue os conceitos de governabilidade, governança e bom governo (p. 25); ainda discute os temas: governança burocrática, gerencial e relacional. Apresenta três modelos de governação: burocrático, gerencial e governança (p. 36). Pascual afirma que: a governança é o modo de governar próprio do governo-rede ou relacional, que é adequado à nova sociedade em rede, também denominada sociedade do conhecimento (p. 37). A partir daí, o autor propõe-se o desafio de pensar as conexões e disjunções entre as cidades e os espaços político-administrativos cada vez mais ampliados, que deságuam, hoje, em instituições supranacionais cujo exemplo mais acabado é o da União Europeia. Há algumas décadas, em trabalho magistral, Norberto Bobbio referiu-se à demanda crescente por democracia em um contexto cada vez mais adverso para a sua efetivação: sociedades complexas, de grandes números, atravessadas por clivagens as mais diversas –­ étnicas, religiosas, linguísticas, socioeconômicas, etc. Essas reflexões ganham corpo com o avanço da globalização e a multiplicação de organizações multilaterais, instituições supranacionais e a superação das barreiras nacionais para o livre trânsito de pessoas, ideias e mercadorias. O livro Governança Democrática: Construção Coletiva do Desenvolvimento das Cidades refere-se à importância das cidades para a construção de uma globalização mais integradora, em que as cidades Prefácio

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formam uma rede de nós urbanos, a partir da qual se tecem interações entre os diferentes atores nos diversos patamares em que se organiza a convivência democrática como as cidades, os países, as organizações multilaterais, as instituições supranacionais. … “as cidades são a riqueza das nações e (…) a era infoglobal se assenta em um sistema mundial de cidades” (p. 165). Pascual Esteve afirma que a finalidade da governança democrática é o desenvolvimento humano, traduzido como democracia, equidade social e desenvolvimento econômico. E ressalta a importância da coesão social, considerada pelo estudioso como o principal objetivo da governança democrática. Enfrenta, para isso, o espinhoso tema relativo ao como fazer, o autor apresenta um conjunto extenso de ferramentas já disponíveis para a operacionalização da governança democrática: os planos estratégicos; a negociação relacional dos conflitos públicos; as técnicas de mediação; as técnicas de participação cidadã e apoio social às políticas públicas; os métodos e as técnicas de gestão de projetos em rede; a gestão da cultura empreendedora e cívica da cidadania; o coaching para a liderança relacional; as técnicas de construção de consensos; o enfoque abrangente nas ciências sociais e a direção sistêmica por objetivos (p. 78). Vale, no entanto, mencionar que Pascual enfatiza que não se trata de uma questão apenas ou eminentemente técnica: a dimensão política da governança democrática emerge com o tratamento dos temas da participação cidadã, da representação política, ainda com a necessidade de estabelecimento de sinergia entre ambas. A respeito, afirma o autor: Uma sociedade educadora dificilmente é compatível com a visão de uma gestão pública distante das preocupações e demandas dos cidadãos (…). A democracia na nova cidade significa descentralização de competências e recursos para os governos locais, para que eles possam (…) inaugurar uma nova forma de governar baseada na gestão de redes cidadãs (p. 90). 12

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Crítico do modo gerencial de governar, Pascual propõe sua substituição pela gestão relacional ou das interdependências próprias da governança (p. 108), na qual a liderança representativa deve ser relacional e capacitadora, e não dominadora, e na qual fica clara a distinção entre os papéis do político e do gerente. Em suas palavras: Hoje a governança se encontra em uma etapa ascendente, deslocando o caduco modo gerencial de governar que (…), comportou –­ e, sobretudo, sua permanência ainda comporta ­– grandes déficits nas duas grandes dimensões da democracia: a qualidade da representação do eleito e a participação e colaboração cidadã na gestão da cidade (p. 170). Por contraste, na governança democrática, o gerente deveria preocupar-se com uma gestão eficiente, isto é, com a produtividade; porém uma produtividade posta a serviço do cumprimento de objetivos sociais, cuja identificação tenha sido liderada pelo representante eleito (p. 131). Em instigante coincidência, o nosso atual modelo de gestão em Minas Gerais já antecipa esta metodologia, vez que nossa maior obsessão é, exatamente, pela eficiência e pelos resultados, em favor da sociedade e dos cidadãos, por meio de políticas públicas urdidas em comum com os setores representativos das forças sociais. Poderíamos, assim, ousar afirmar que, em certas circunstâncias, a prática preconizada por Pascual Esteve encontra-se já vigente em nossas Minas Gerais. Boa leitura! Antonio Augusto Junho Anastasia Governador de Minas Gerais

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Prefácio à Segunda Edição Brasileira 1. Crise e estratégias urbanas

A atual crise financeira e econômica mundial, da qual derivou uma grande contração da produção e emprego, é claramente uma crise do conjunto da sociedade e constitui tão-somente a ponta de um iceberg, cujo núcleo duro é não só a ruptura social, moral e institucional, mas também a falência do modelo de gestão do setor público. O crescimento dos 20 anos anteriores à crise financeira caracterizou-se por grandes desigualdades sociais e por um ambiente cultural-moral presidido por valores individualistas, centrados no lucro em curto prazo e no consumismo exacerbado.1 Ao conjunto da sociedade foi proposto um nível de bem-estar material alcançável por um número de pessoas cada vez menor. Um bem tão básico quanto moradia era inacessível à maioria dos jovens. A essas necessidades de consumo se somavam novas necessidades, fruto do avanço da economia do conhecimento: acesso às tecnologias da informação, formação continuada ao longo da vida, níveis de saúde, etc. Ante o crescimento das necessidades, o estado de bem-estar retrocedia, uma vez que o gasto público em relação ao PIB se mantinha constante ou se reduzia. Tampouco as pessoas obtinham o apoio necessário das redes familiares e sociais, que haviam se tornado mais instáveis e precárias.2 O peso do projeto de vida passou a depender cada vez mais dos indivíduos, que por sua vez

1 Ver, por exemplo, o recente estudo da OCDE (2011): Seguimos divididos: Por que aumenta a desigualdade? 2 Relações líquidas, nas palavras de Z. Bauman. Governança:

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se tornaram cada vez mais auto-insuficientes e com menos apoio pessoal e público frente às exigências da sociedade.3 Esta contradição entre aspirações e possibilidades sociais, que E. Durkheim4 denominou anomia ou desorganização social, teve como conseqüência o aparecimento do que G. Lipotevesky, acertadamente, denominou sociedade da decepção, em seu sentido mais amplo, e também da desesperança ante o futuro. Esses indivíduos decepcionados, auto-insuficientes, com escassos vínculos sociais e cada vez mais segregados da esfera pública, encontraram no mercado financeiro global, guiado pela ânsia de lucro em curto prazo, e em produtos creditícios subprime, o que nem o estado, nem as redes familiares e sociais lhes ofereciam: uma miragem de satisfação das suas necessidades e aspirações. O resto é conhecido. Os títulos subprime causaram falência e desconfiança em todo o sistema financeiro global. Os estados tiveram que resgatar os bancos, gerando ou agravando os seus déficits e dívidas, o que resultou, na UE, que muitos deles elevassem suas taxas de juros para financiar a sua dívida. Grécia, Portugal e Irlanda chegaram à falência. O que levou, por não ter o Banco Central Europeu (BCE) agido diretamente como avalista da dívida e resgatado os estados em situação falimentar (como fizeram os bancos centrais da Grã-Bretanha e dos EUA) a que todos os demais estados o fizessem. Isso agravou mais ainda o seu déficit e sua dívida, ficando, como no caso de Espanha e Itália, também eles em situação muito delicada ao se depararem com seu déficit em função dos gastos com o resgate. 3 Os indivíduos são, como assinala Ulrich Beck, auto-insuficientes. Isto é, necessitam formar redes distintas em função dos desafios e necessidades que enfrentam a fim de conseguir superá-los. Em um contexto instável e turbulento tanto na esfera pessoal quanto como na econômica e social, com a presença de valores individualistas, que priorizam o lucro e o consumo pessoal frente os valores comunitários, isso torna-se cada vez mais difícil. 4 Durkkheim, E. O Suicídio (múltiplas edições, primeira edição 1897).

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Em resumo, a ruptura social, institucional e moral gerou as bases da crise financeira. A maneira como se enfrentou essa crise no âmbito da UE, tentando reduzir o déficit público sem optar por investimentos para o crescimento econômico e empoderamento social, levou a um círculo vicioso: a despesa pública e os investimentos foram reduzidos e os impostos aumentados, de modo que a atividade econômica contraiu-se, assim como foram reduzidos os direitos sociais financiados pelo orçamento público. Tal contração, por sua vez, levou a um novo déficit público e a uma nova dívida, com o que se agravaram também as demais desigualdades sociais iniciais, a desconfiança nas instituições e na política, e gerou a cultura da decepção, medo5 ou indignação que reproduzem de maneira ampliada a ruptura social, moral e institucional que deu origem a crise financeira.6 2. A crise social requer soluções urbanas

As cidades foram sempre meio de inovação e berço das novas eras econômicas e sociais. Como conseqüência da densidade das relações humanas, seu papel é ainda mais evidente na denominada era info-global, isto é, dos processos de interdependência dos fluxos entre territórios cuja infra-estrutura se baseia nas tecnologias da informação e da comunicação e são, por isso, o lugar essencial para transformar e confrontar a ruptura social, institucional, moral e do modo de governar que caracteriza a crise social atual. Pelas seguintes razões: a) A terra, um planeta das cidades: A população européia já se concentra em mais de 75% nas cidades. Em 2025, o percentual 5 Ver Estefanía, J. La economía del miedo. (Barcelona, ed. Galaxia Gutenberg, 2011). Pp. 9 a 25. 6 Ver Krugman, P. ¡Acabad ya con esta crisis! (Madrid, ed. Critica, 2012). Pp. 121 a 163. Governança:

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da população urbana chegará até 85% na América Latina, 55% na Ásia e 54% no continente africano. b) A interdependência territorial é produzida nas cidades: A sociedade mundial, e muito especialmente a européia, é um sistema de cidades. As cidades não só produzem os fluxos que cruzam o mundo, mas também são elas que se constituem em nós de infra-estrutura pelos quais passam esses fluxos. As cidades são os nós da rede de interdependências econômicas, sociais e culturais que constituem a globalização. É por isto que as boas práticas de inovação urbana são suscetíveis de globalizar-se rapidamente entre as cidades. c) A cidade é encontro de culturas: O fundamental é o fato de que nas cidades se produz o processo intercultural e inter-civilizatório que caracterizamos. É na cidade, em suas áreas centrais, nos bairros, nos centros de trabalho, nos mercados e espetáculos esportivos onde se encontram os cidadãos de procedências cultural e social distintas. O desenvolvimento de valores, o conflito ou convivência entre valores e culturas se produz nas cidades e depende das características da sua estrutura social e do ordenamento do seu espaço urbano. d) A economia do conhecimento requer um entorno urbano. As cidades e as áreas metropolitanas proporcionam o entorno empresarial e de serviços avançados para que as empresas da nova economia em rede possam funcionar. Por outro lado, a inovação produtiva e a difusão tecnológica requerem uma ampla e intensa relação entre os atores – universidades, centros de pesquisa, empresas, redes cidadãs – que somente o âmbito urbano pode proporcionar. Os “clusters” econômicos e tecnológicos em que se organiza a economia-rede se configuram espacialmente no âmbito urbano metropolitano. e) A Sociedade do Conhecimento se estrutura em cidades culturais e educadoras. A educação e geração de cultura surgem da densidade e da qualidade de relações inter-individuais dos proces18

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sos de socialização secundária dos indivíduos. As mudanças nos sistemas organizacionais estão cada vez mais embasadas nas relações pessoais ou, melhor dito, em criar o entorno adequado para o bom funcionamento das redes de relações das pessoas. Cidade educadora e cultural é a que produz o entorno urbano capaz de gerar autonomia, encontro, convivência, colaboração e solidariedade entre a cidadania e proporcionam a ele os elementos - culturais e formativos - e as atitudes para possibilitar o desenvolvimento do talento, a criatividade, em resumo, o conhecimento e a inovação. f) A mudança no modo de governar exige boa governança local. As necessidades e os desafios novos e complexos vocalizados pelos setores diferentes da cidadania requerem, por um lado, a articulação dos recursos público e privado e, por outro, uma cidadania responsável e ativa, que coopera na construção da cidade. A gestão das interdependências entre os atores e os setores diferentes da cidadania e a articulação de recursos econômicos e humanos em estratégias compartilhadas necessita proximidade e qualidade da representação dos governos democráticos da cidade. Fortalecer a democracia em nossos dias significa torná-la mais local. Democracia na sociedade info-global é construir e fortalecer o governo mais próximo aos cidadãos. Na opinião de A. Giddens, a descentralização do poder político é a condição da eficácia política pelas exigências do fluxo da informação de baixo para cima e do reconhecimento da autonomia e responsabilidades pessoais e coletivas dos que se vêem afetados por políticas e programas específicos.7

7 Giddens, A. “Um mundo feliz: O novo contexto político”, in Em Defesa da Sociologia (SP, Ed.

UNESP, 2001).

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3. Os municípios ante a crise social: as estratégias comuns

Não só cidades, mas também os governos locais, são a chave para enfrentar a crise com sucesso, uma vez que estes não só tem competências, mas também incumbências, isto é, pela proximidade devem assumir os principais desafios e demandas da cidade e de seus cidadãos. Mas tanto a falência das finanças locais e, especialmente, a continuação dos métodos de gestão obsoletos, impedem que não poucos municípios assumam a liderança para articular uma estratégia eficaz para a mudança urbana em tempos de crise. Duas alternativas se apresentam aos governos locais, ante a crise de suas finanças: • Contrair-se, reduzir ao mínimo a sua atuação e a da cidade e esperar clarear o ambiente das grandes turbulências que o afeta. A redução do déficit e da dívida locais, principalmente devido à falta de receita diante da contração da atividade econômica local, não pode levar à redução das possibilidades da cidade combater a crise e, em especial, à imobilidade do governo local ante as suas responsabilidades para com a cidade e seus cidadãos. • Mas outros, no entanto, enfrentam a crise preparando-se para um futuro avançando em coesão social e em competitividade econômica e tecnológica. Com o crescimento das necessidades e dos desafios sociais decorrentes da grande mudança social que envolve a crise, e apesar da necessidade de reduzir o déficit dos governos locais, os municípios mais dinâmicos convocam o conjunto da sociedade civil para levar a cabo uma estratégia compartilhada, ou seja, um plano estratégico, que envolva todos a fim de enfrentar os principais desafios colocados pela 20

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crise e lançar as bases para um novo desenvolvimento econômico e social. Os municípios que decidem articular toda a cidade para enfrentar a crise propõem uma inovação clara na política. A coesão, que se entendia como uma conseqüência do crescimento econômico, é agora entendida como coesão na adversidade para gerar transformação social e desenvolvimento humano. Uma estratégia de transformação urbana no atual contexto de crise deve ter uma série de características que a diferenciam especialmente do planejamento estratégico que foi realizado em não poucas cidades espanholas e latino-americanas, em geral nos anos 90 e primeira década do século XXI. As características hoje requeridas são: 1. A finalidade principal é o fortalecimento da capacidade de organização e ação do conjunto da cidade para poder fazer frente a desafios sociais em situação de adversidade. 2. A visão ou modelo de cidade para o qual se deseja orientar a dinâmica urbana é essencial para poder reconduzir de maneira permanente as prioridades da cidade em tempos de tão alta turbulência do entorno. Estabelecer algumas prioridades compartilhadas às quais destinar os recursos públicos que se contraíram, tanto em termos absolutos como, sobretudo, em relação aos desafios e necessidades dos cidadãos. A visão deve ser um farol orientador e reorientador em épocas de tormenta. O paradoxo: quando o futuro cada vez é mais imediato, mais se necessita de uma clara visão de onde se deseja ir. 3. O fundamental não é apenas identificar alguns projetos estruturantes financiados com fundos públicos, mas, sobretudo, que o plano seja um marco de referência para todos os atores e setores da cidadania ao definirem sua atuação ou estratégias de suas organizações ou entidades. É essencial articular em linhas ou vetores estratégicos tanto os compromissos de ação do setor público como do privado e das organizações cidadãs. Governança:

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4. A participação da cidadania na estratégia de ação deve ser configurada como processo orientado a gerar compromisso ativo da cidadania com a cidade e não, simplesmente, em canalizar as demandas e propostas da cidadania. 5. Em uma época de crise e de redução do gasto público é essencial que existam prioridades compartilhadas, de tal modo que os recursos públicos possam multiplicar seu impacto através do funcionamento em rede com o setor privado e cidadão. 6. A estratégia se volta para fazer mais com menos recursos e para isso é necessário fazê-lo de modo diferente, relacionalmente, incorporando mais e novos atores. A inovação nos conteúdos e nos processos se torna hoje mais do que nunca necessária e deve ser contemplada, especificamente, no processo de elaboração do plano. 7. O posicionamento estratégico sobre os valores que devem ser promovidos para fortalecer a cultura proativa (de ação) cidadã hoje e no futuro imediato. Daí a necessidade de que as análises estratégicas não se restrinjam apenas ao meio urbano (infraestruturas, serviços, ordenamento do solo, educação, pobreza, desigualdades, etc.), mas incluam igualmente o sistema de percepção e ação dos cidadãos, que indica como a população percebe esse meio e sua transformação. 8. É muito importante, por outro lado, que a estratégia tenha duas dimensões: enfrentamento dos desafios da crise e a geração de um novo modelo de cidade. Neste sentido, a cidade deve priorizar seus investimentos nos setores que tenham as seguintes variáveis essenciais: gerem maior ocupação, preservem e ativem o capital humano e social, incidam na inovação tanto dos setores tradicionais como dos novos com capacidade de funcionarem como motor econômico, social e cultural. 9. A importância das análises históricas para entender a crise. É verdade que “vive-se a cidade no presente e a gerencia para enfrentar o futuro, mas a entende olhando o passado.” A aná22

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lise histórica nos permite entender a singularidade da configuração concreta da cidade em relação às demais e conhecer as respostas operadas em outras crises, que sem dúvida lançam muitas luzes para identificar estratégias de transformação. 10. A elaboração de estratégias compartilhadas de transformação urbana deve ser considerada como um processo social e as metodologias e instrumentos a serem empregados devem estar orientados para obtenção de conteúdos estratégicos claros, adequados e compreensíveis, que sejam a base para a ação compartilhada, o fortalecimento da cooperação pública, privada e cidadã, e para a participação e comprometimento ativo da cidadania no desenvolvimento urbano. Uma vez destacadas as características da estratégia, é necessário apontar os temas que qualquer cidade deve abordar porque são chaves para poder enfrentar as transformações que a atual crise demanda. Os temas são gerais para as cidades e o seu entorno. O que poderá variar, por um lado, é o enfoque da abordagem e os critérios de atuação que poderá adotar, isto é, o direcionamento que uma cidade se dispõe a dar aos processos de mudança que a afetam; por outro lado, os programas e projetos com os quais concretamente e de forma singular enfrentará as ditas transformações. 4. As transformações urbanas que a crise comporta

A seguir consideramos os principais elementos que deveriam estar contidos numa estratégia compartilhada promovida pelos governos locais para enfrentar a crise já tendo em sua perspectiva um novo cenário pós-crise. Ante a crise, mais do que contrair-se as cidades necessitam transformar-se. A atual crise é estrutural: uma vez finalizada, a situação e o funcionamento da cidade pouco terá a ver com a da pré-crise. “Ao olhar para trás, será visto o caminho que nunca Governança:

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mais se voltará a pisar.” A coesão social e a competitividade da cidade no futuro será consequência de a sua transformação ter sido a mais adequada aos desafios que a crise estrutural apresentava. Neste sentido, para um governo local definir a estratégia de futuro para a cidade, em um momento de crise ou transição, significa tanto identificar de maneira compartilhada os principais elementos ou fatores estruturantes que em qualquer circunstância vão ter um importante papel no futuro, como ter um posicionamento da estratégia da cidade em relação à direção e sentido que deseja dar a estes fatores estruturantes em seu desdobramento na cidade. • A maior relevância das cidades e das mega-regiões urbanas O mundo é cada vez mais um planeta de cidades. A Europa, por exemplo, é um continente urbano. Os fluxos que interconectam os territórios se produzem, distribuem e se consomem nas cidades e nas áreas metropolitanas. À medida que aumentam e se liberam os fluxos internacionais, o território e as cidades em particular adquirem maior valor pelo seu atrativo como lugares de inovação e geração destes fluxos. Por outro lado, as cidades se organizam e interagem em espaços maiores que denominamos macro e mega-regiões, em que cada cidade definirá sua singularidade e seu papel específico. Neste sentido, a estratégia de uma cidade deve fixar seu posicionamento nas macrorregiões ou mega-regiões que estão se configurando; e definir para as diferentes dimensões de sua estratégia as cidades com as quais estabelecerá relações mais intensas de complementaridade e concorrência. • A cidade informacional As tecnologias da informação e comunicação constituem a base tecnológica das novas cidades do século XXI. Do seu uso 24

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e, fundamentalmente, da organização social e institucional da cidade, dependerá a intensidade, a qualidade e o impacto econômico, social, cultural e institucional. A estratégia decisiva de uma cidade é se, simplesmente, aplica essas tecnologias e não altera a organização urbana ou se reorganiza para aproveitar o mais eficientemente possível as oportunidades econômicas, sustentabilidade e de qualidade de vida que elas aportam. As cidades que fazem esta segunda opção são as denominadas cidades inteligentes, que propõem uma reorganização dos sistemas urbanos com base em três grandes princípios: transversalidade, relações multidirecionais e retro alimentação. • O predomínio da economia do conhecimento, ou a economia em rede8 A economia baseada na criatividade e na inovação, que tem na informação e, especialmente, no conhecimento, a principal fonte de valor agregado. Neste tipo de economia baseada na inovação permanente, as empresas e entidades sociais necessitam singularizar-se no que lhes é próprio para assim inovar. Para isso necessitam um entorno de empresas e instituições de qualidade no qual possam colaborar e receber os bens e serviços que necessitam para cooperar. É um tipo de economia que precisa de clusters econômicos ou redes de empresas que compitam, mas sobretudo colaborem para produzir bens e serviços competitivos na economia macro e mega regional. Os valores centrados tanto no lucro em curto prazo, na concorrência entre empresas e em um desenvolvimento exógeno baseado em inversões externas desconectadas do impulso produtivo local não favorecem a criação de clusters nem de dis8 Também economia informacional ou economia rede, um conceito cunhado inicialmente por Manuel Castells e logo amplamente difundido e adaptado por outros autores. Também denominada info-global. Governança:

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tritos industriais. O bom funcionamento das redes de empresas requer um entorno institucional, de valores, de cultura da criatividade e inovação, e de uma opção predominante para valorizar os recursos do território que uma estratégia deve, sem dúvida, contemplar. Também deve torná-lo entorno do papel do governo local ou regional na conformação econômica e institucional do território, e seu papel promotor e de intermediação para gerar a economia de redes. • A capacidade de dispor de talento: o capital cultural Em uma sociedade do conhecimento, um dos fatores chave é dispor do talento para criatividade e inovação. E será maior ainda no futuro. A partir desse ponto as cidade optam por estratégias distintas: algumas para atrair talento externo, outras para gerar talento através de uma formação educativa elitista, enquanto outras optam fundamentalmente pela criação de capital social criativo. Muito embora essas iniciativas não sejam excludentes, a estratégia de uma cidade deve enfatizar uma delas. • Os valores predominantes na sociedade. A crise financeira (alavancagem bancária e dívida privada) é atribuída em boa medida ao predomínio social dos valores que promovem o individualismo moral e o afã de lucro em curto prazo. Parece claro que uma saída estável para a crise será efetiva caso seja alcançado um claro predomínio dos valores que promovem o bem comum e a busca bem intencionada do próprio interesse (que tem em conta o interesse dos demais). Uma estratégia urbana deve optar necessariamente por valores a serem promovidos, que devem ser compartilhados majoritariamente pelo conjunto da cidade e não apenas por projetos. Os valores estratégicos estarão relacionados ao fortalecimento da intensidade das relações entre as pessoas de diferentes 26

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posições e perspectivas e em fortalecer os valores locais que permitam a singularidade do local no universal. • O modo de governar Se existe um tema sobre o qual poucos têm dúvida é o papel dos governos na administração do bem estar social. O crescimento das necessidades sociais antigas e novas, estas vinculadas à emergência da sociedade rede, assim como os desafios novos da competitividade econômica, se situa em um contexto de redução não apenas da dívida, mas também do gasto público. Desta economia pode resultar um cenário de perda de importância dos governos democráticos ao diminuir sua faceta de provedores de recursos ou transformar sua relação com a cidadania. A estratégia deve optar por fortalecer um modo de governar novo, ou seja, uma nova relação entre o governo e a cidadania, em vez de reduzir o seu peso na cidade através, fundamentalmente, da redução do gasto na provisão de serviços. O governo não é apenas responsável por prover alguns recursos, mas também representa a cidade, o interesse geral da cidadania e os interesses legítimos dos diferentes setores sociais e se responsabiliza pelo desenvolvimento de estratégias compartilhadas que articulem recursos públicos e privados e promova o compromisso ativo e o sentimento de responsabilidade do conjunto da cidadania com a cidade. • A coesão social Se das estratégias para abordar a crise resultarão cidades com mais ou menos coesão é um tema de debate intenso, sobretudo tendo em conta que se atribui ao crescimento anômico (que gera desorganização social) e desigual um dos fatores estruturantes da crise atual. O tema chave é se se considera a coesão social um objetivo que deve ser buscado pelas políticas de coesão social como prioridade para enfrentar a crise e como Governança:

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condição necessária para alcançar metas de crescimento econômico por sua capacidade de valorizar os recursos da cidade e do território. Uma estratégia deve considerar duas temáticas muito interconectadas: a capacidade de organização e ação compartilhada da cidade para enfrentar os temas sociais e o papel das políticas de distribuição social e igualdade de oportunidades tanto entre territórios e setores da cidade. • A sustentabilidade A luta pela redução da mudança climática e a opção por um desenvolvimento humano sustentável é um objetivo chave da Estratégia 2020 da UE, juntamente com a luta contra a pobreza e a inovação produtiva. O desenvolvimento sustentável é mais uma das finalidades inevitáveis que continuarão presentes em qualquer cenário pós-crise. As estratégias devem propor a sustentabilidade como um fator a se levar em conta em qualquer cenário, isto é, como critério de atuação obrigatório para qualquer estratégia, e/ou a sustentabilidade como motor da inovação produtiva e competitividade de sua economia; assim como optar pelo desenvolvimento de setores energéticos e tecnológicos relacionados à sustentabilidade. • O ordenamento do espaço urbano Os critérios de ordenamento da cidade são mais um dos temas considerados fundamentais a se ter presente em um cenário pós-crise. É ainda, do ponto de vista da opção por uma economia do conhecimento, por uma sociedade em rede criativa e socialmente coesa e pela sustentabilidade ambiental, uma saída positiva para a crise e significará uma ruptura dos critérios de cidades extensas, predominantes na Europa a partir de 1945, e a opção por uma densificação razoável dos espaços 28

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urbanos. Outro tema importante é o ordenamento do espaço da cidade no contexto da ordenação territorial da conurbação urbana ou da macrorregião, e os critérios de atuação para que este ordenamento supramunicipal ou intermunicipal possa resultar adequada para o desenvolvimento pós-crise. Em definitivo, embora as estratégias urbanas compartilhadas sejam necessárias em épocas de desenvolvimento para guiá-lo na direção de uma visão de futuro possível e desejável, elas são ainda mais necessárias em tempos de crise que comporta mudanças estruturais nas esferas econômica, social e institucional, uma vez que se trata de articular respostas para tornar a cidade e os seus cidadãos mais resistentes (fortalecê-los na adversidade) para responder coletivamente aos desafios do futuro em uma direção que nos parece tanto mais necessária como instável. Para tanto é necessário inovar permanentemente os processos de elaboração e gestão estratégica para torná-los mais flexíveis, com menores custos econômicos e com maior capacidade de aglutinar mais atores e setores da cidadania. Josep Mª Pascual Esteve Belo Horizonte, agosto de 2012.

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Apresentação O leitor atento poderá chegar ao final deste livro com a sensação de que suas teses e propostas estão a uma distância imensurável da realidade brasileira. Um sentimento semelhante ao de um amigo meu, ao ler os originais, cuja identidade não cabe aqui revelar: “Aproveitei a parada de carnaval para finalizar a leitura do livro... Muito avançado para nós, pobres brasileiros encalacrados com os... [partidos] da vida... Deu um certo desalento, confesso. Na fase da vida em que estou, muito pouca esperança me resta de que algo venha a mudar aqui, no meu tempo. Sou mais pessimista que você, ou talvez menos idealista. Não enxerguei, em nenhuma linha, a mais tênue característica ou valores que os nossos políticos possam [ter para], um dia que eu possa ver, agir com tal grandeza ou compromisso.” Tamanha descrença, certamente resultado de uma leitura cuidadosa, não é de todo exagerada à primeira vista. Seja pelas instigantes reflexões a respeito das transformações hoje em curso no mundo e seus desdobramentos na cultura política ou pelas categóricas afirmações que faz sobre a necessidade de mudanças de posicionamento dos governos perante a sociedade, o trabalho de Josep Ma Pascual Esteve não deixa o leitor indiferente. Ele tem clareza e força suficientes para fustigar as práticas de governo estabelecidas – segundo Pascual, já corroídas pelo tempo – e mostrar o árduo caminho a percorrer se quisermos ajustá-las às exigências da chamada sociedade do conhecimento. Vem daí, pois, o natural abatimento inicial, que pode ser atribuído mais propriamente à enormidade da tarefa a ser conduzida do que a qualquer outra impossibilidade estrutural ou moral da sociedade brasileira. Sim, porque o livro é um contundente chamamento à ação e traz o entusiasmo e a autoconfiança de quem sabe aonde quer chegar. Sua energia se concentra na proposta de fortalecimento Apresentação

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dos governos das cidades, para que possam enfrentar as dificuldades mais importantes e os obstáculos mais comuns encontrados na gestão das demandas cidadãs. Examina em detalhes como os desafios, que dificultam a conquista dos resultados esperados, podem arranhar a sua legitimidade democrática e fragilizar o apoio da cidadania às políticas públicas. A tese que defende localiza tais dificuldades no tipo de relação estabelecida entre governo local e cidadania, em que o primeiro aparece quase que exclusivamente como provedor de serviços e gestor dos recursos públicos. Pascual desenvolve o argumento de que esse modo de governar – identificado na sua forma mais avançada com a introdução de práticas gerenciais do setor privado na esfera pública – precisa ser superado. Não apenas porque os recursos públicos são e serão cada vez mais insuficientes para atender as crescentes e complexas demandas da população, mas também porque as transformações que ocorrem hoje na sociedade – em suas bases econômicas, sociais, políticas e tecnológicas – criam as condições necessárias para o surgimento de um novo tipo de governo, denominado pelo autor de governo relacional. Neste, as funções burocráticas e, principalmente, as gerenciais não desaparecem, mas perdem importância relativa diante da concepção de que na sociedaderede cabe aos governos reposicionarem-se para gerir interdependências – assim como as principais redes sociais – e melhorar a capacidade de organização e ação da sociedade a fim de alcançar o desenvolvimento humano. Nessa perspectiva, o gerente perde posição para o político. Ganha relevância o capital político local, formado pela equipe de governo, para articular socialmente o município e influir positivamente no desenvolvimento da cidade. Em outras palavras, impõe-se a revalorização da política ante a gestão e a importância da liderança representativa para organizar a ação do conjunto da sociedade com base em objetivos democraticamente compartilhados. 32

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Não é preciso muito esforço ou conhecimento especializado para reconhecer que em nosso país há enormes dificuldades para implantação, com sucesso, até mesmo do modo gerencial de governo, ou que os nossos governos locais muito raramente têm sido dinamizadores do desenvolvimento das cidades. Daí a relevância da reflexão sobre os caminhos alternativos a serem percorridos, um enfrentamento que se traduz na necessária construção de uma nova cultura política diante das grandes transformações em curso no mundo e seus impactos no país. Esse percurso passa, indiscutivelmente, não apenas pelo fortalecimento da capacidade institucional dos municípios, mas também pelo aumento da capacidade pessoal dos políticos eleitos com a responsabilidade de governar. Deles será cada vez mais demandado o domínio dos principais instrumentos técnicos e pessoais do trabalho político necessários à gestão estratégica e ao exercício da liderança. Afinal, a política democrática ocupará crescente importância na sociedade-rede como pré-requisito para a conquista de patamares de qualidade de vida mais elevados para todos. Nesse sentido, o livro é bastante instigante e útil, especialmente para os políticos e técnicos que atuam na administração dos municípios. Desenvolve de maneira concreta e detalhada uma nova perspectiva da atuação dos governos locais, em que a cidade é considerada uma construção coletiva e o governo local o dinamizador e organizador da capacidade de ação da sociedade. Examina em profundidade temas relevantes como a participação e envolvimento cidadão, o planejamento estratégico urbano, a gestão de projetos em rede e a gestão para uma cultura empreendedora. E, sobretudo, apresenta com firmeza a opção pela qualidade do meio ambiente, pelos valores que devem presidir o desenvolvimento e pela radical melhoria da qualidade da democracia local. Apresentação

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Governança Democrática: construção coletiva do desenvolvimento das cidades traz à reflexão, portanto, referências teóricas e proposições práticas inovadoras em um campo da política democrática brasileira cujo acúmulo é ainda muito pequeno. A expectativa é que sua circulação possa contribuir para uma pauta de discussão tão importante quanto a necessidade de revalorização da política e da sua centralidade para o desenvolvimento do país e das nossas cidades. Enfim, apresenta uma contribuição abrangente que perpassa, desde a renovação da nossa velha arquitetura governamental e dos mecanismos de participação da sociedade civil nas políticas públicas, até a mais apaixonada defesa de valores democráticos fundamentais como liberdade, coesão social e respeito aos direitos humanos, em uma sociedade sempre mais interdependente. João Carlos Vitor Garcia Fundação Astrojildo Pereira

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Introdução à edição brasileira Os conceitos nas ciências sociais e políticas nem sempre têm o mesmo significado para todas as escolas e autores: poder, classe social, sociedade civil, capital social, etc. Isto também ocorre nas ciências físicas, como no caso da incerteza quântica ou mesmo do conceito de relatividade, o que pode dificultar tanto a compreensão dos fenômenos como a organização da ação que tenham tais conceitos em conta. Esta é uma dificuldade que não se pode evitar, dados os distintos contextos socioculturais em que são usados ou seus significados em idiomas diversos. Portanto, é preciso explicitar os conceitos que se utilizam e diferenciá-los de outros usos, em especial dos que têm um significante ou significado contrário. Este é o caso do conceito de governança, que é utilizado em alguns meios intelectuais e políticos como modo de governar corporativo, que diminui a importância da democracia e do papel da política, ou seja, em sentido completamente antagônico do utilizado neste livro. Por esta razão, é importante explicitar o conceito de governança neste prólogo. O que se entende por governança? Como assinala Renate Mayntz em um trabalho que reúne os distintos significados do conceito, por governança se entende, desde os anos 90, uma nova maneira de governar, diferente do modelo hierárquico, um modo mais corporativo em que os atores estatais e não estatais – e, em geral, a sociedade civil – participam em redes públicas e privadas.1 Desde aquela década, tem aumentado o consenso no sentido de que a eficácia e legitimidade da atuação do governo fundamentam-se na qualidade da interação entre os distintos níveis de governos e entre os governos e as organizações empresariais, sociais e a cidadania em geral. Governança é, portanto, uma nova forma de 1 Ver “New challenges to governance theory”, European University Institute, The Robert Schuman Centre Florence – Jean Monnet Chair Papers nº 50 (1998). Introdução

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governar própria da sociedade-rede, é o modo de governar para fazer frente à crescente complexidade e diversidade das sociedades contemporâneas, que se caracterizam pela interação de uma pluralidade de atores, relações horizontais, pela participação da sociedade no governo e sua responsabilidade de fazer frente aos desafios socialmente colocados. Este conceito foi intencionalmente mal interpretado por alguns setores, que consideraram que a governança permite um certo “relaxamento” das funções do governo democrático e prioriza as relações entre o governo e as grandes corporações empresariais e institucionais em detrimento das relações com a cidadania em geral, produzindo, deste modo, o aviltamento dos valores públicos e da própria política. Esta concepção é própria tanto dos neoconservadores, que buscam a dominação da sociedade através dos grandes interesses corporativos, como dos críticos que vão a seu reboque e tão somente invertem seus argumentos, sem, contudo, serem capazes de encontrar uma estratégia própria. Seja como for, é preciso diferenciar-se desta concepção e, para isso, é necessário entender o uso do conceito de governança que se faz neste livro como governança democrática. O que é governança democrática? O movimento de cidades e regiões denominado AERYC (América-Europa de Regiões e Cidades), que promove a governança democrática como sendo o modo de governar cidades mais adequado à sociedade contemporânea, a define como “uma nova arte de governar os territórios (o modo de governar próprio do governo relacional), cujo objeto é a capacidade de organização e ação da sociedade, através da gestão relacional ou de redes, tendo como finalidade o desenvolvimento humano”.2 Em outras palavras, não se trata apenas de gerir as relações e interdependências dos atores e setores da cidadania que interagem em determinada situação ou diante de desafios sociais 2 Ver www.aeryc.org

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que nos propomos a enfrentar, mas de fazer isso em função dos valores do desenvolvimento humano.3 Governança democrática favorece a condução do desenvolvimento econômico e tecnológico em função dos valores de equidade social, coesão territorial, sustentabilidade, ética e ampliação e aprofundamento da democracia e da participação política. A governança democrática, de acordo com o conceito que adotamos, caracteriza-se por: • O envolvimento da cidadania na solução dos desafios sociais. Uma boa governança necessita de uma cidadania ativa e comprometida com a coisa pública, isto é, a de todos e de todas. Por isso, é preciso que existam canais de participação e de responsabilidade de todos, porque a cidade é uma construção coletiva cujo resultado depende das ações e interações de todos os cidadãos. • O fortalecimento dos valores cívicos e públicos. O progresso e a capacidade de inovação de uma cidade dependem da densidade e diversidade das interações de toda a população. Os valores de respeito, convivência, confiança, solidariedade e colaboração são essenciais para construir a cidade de todos e de todas. Governança democrática é uma opção por valores cívicos e democráticos. • A revalorização da política democrática e do papel do governo representativo. A governança representa uma mudança no papel do governo em relação à sociedade. O governo não aparece simplesmente como provedor de recursos ou de serviços, mas fundamentalmente como representante da cidade, de suas necessidades e desafios. O governo não apenas dispõe de competências, mas também de incumbências. A ele cabe tudo o que preocupa a cidadania e por isso, ele assume o papel de

3 Como definidos pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Introdução

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estruturador da capacidade de organização e ação da cidade, além das relações entre os distintos níveis de governo. Portanto, na governança democrática o papel do governo como representante da cidadania adquire maior importância do que nas etapas de governos anteriores. • A construção compartilhada do fortalecimento do interesse geral. Na governança, o interesse geral não é atribuído a um grupo de funcionários ou de políticos. O interesse geral é uma construção coletiva que deve ser liderada pelos políticos eleitos como representantes da cidadania, a partir das necessidades e interesses legítimos de todos os setores cidadãos. Governança democrática significa uma ação de governo específica para que todas as necessidades e desafios dos cidadãos estejam presentes tanto na deliberação, como no desdobramento das políticas e, muito especialmente, dos setores mais vulneráveis. • A transparência e a prestação de contas são também condições essenciais da governança democrática. Sem elas dificilmente o governo da cidade poderá articular os distintos atores em uma ação comum com apoio e envolvimento da cidadania. Consequentemente, a governança democrática exige e necessita de democracia. Seu desdobramento significa não só o aprofundamento nos aspectos da representação da cidadania como da participação cidadã na construção de uma cidade voltada para o desenvolvimento humano. Josep Mª Pascual Esteve

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Este livro discute a importância da política para promover a coesão social nas cidades e nos municípios. Em especial, pretende mostrar o valor que a liderança política representa para a construção coletiva de cidades com maior inclusão social. A política democrática está sofrendo uma crise de legitimidade, não por ser incapaz de resolver os seus problemas, mas porque a maioria dos políticos não pode enxergá-los.4 Neste sentido, para contribuir com o entendimento de aspectos desta questão através da reavaliação da política e da figura do político como elementos essenciais para o desenvolvimento humano, o livro trata de um novo enfoque da relação entre o governo local e a cidadania; de uma nova arte de governar denominada governança democrática, em cuja base se acha a gestão relacional ou a gestão das interdependências nas interações sociais. O trabalho examina uma nova arte de governar e gerir os territórios, que se assenta nas mudanças em curso na nossa sociedade e nas transformações que levaram à superação das formas de governar centradas na prestação e na gestão de recursos e serviços. Tais transformações são analisadas, principalmente, nos seus aspectos sociais e em relação com o modo de governar e de entender a política, como são os casos das políticas de bem-estar social e da liderança política necessária para articular iniciativas cidadãs de coesão e inclusão social. Além de analítico, o livro é fundamentalmente propositivo e destinado aos políticos e técnicos que atuam na administração dos municípios, assim como àqueles que prestam serviços aos governos locais. Sua leitura, entretanto, pode ser útil a todos os que se interessam pelo conjunto dos temas de âmbito local. As propostas

4 A. Einstein já havia observado que “os problemas importantes que enfrentamos não podem ser resolvidos com o mesmo enfoque do pensamento que tínhamos quando os criamos.” O especialista em grandes organizações J. Gardner observou, nos anos 60 do século XX, que “a maioria das organizações doentes desenvolveram uma cegueira funcional em relação aos seus próprios defeitos. Não sofrem por não poder resolver seus próprios problemas, mas por não poder vê-los.”

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apresentadas têm por base a análise da evolução da sociedade e da crise da maneira de governar e de entender a política e, especialmente, do papel do político. Por isso, descreve as características da nova liderança política e dos apoios e suportes técnicos e organizacionais que a liderança relacional requer. Uma vez que um dos seus objetivos é servir como ferramenta para os políticos com responsabilidades de governo, e como estes, geralmente, são pessoas muito envolvidas e empenhadas nas tarefas do dia a dia e com pouco tempo para a leitura, concebemos os capítulos de tal modo que a sua leitura seja inteligível em si mesma, não sendo necessária, embora desejável, a leitura dos capítulos antecedentes ou posteriores. Pela mesma razão, além de elaborarmos um índice detalhado, enfatizamos no início de cada capítulo as ideias-chave. O primeiro capítulo, intitulado “Governança: Uma nova arte de governar”, introduz e explicita as diferenças entre os conceitos de governabilidade, governança e bom governo. É um capítulo analítico e conceitual, cujo objetivo é distinguir os principais tipos de governo e modos de governar observados nos regimes democráticos. A conclusão é que o governo relacional, através do modo de governar denominado governança democrática, em cuja base está a gestão relacional ou a gestão das interdependências entre agentes e setores da cidadania, é o governo que corresponde à sociedade do conhecimento ou sociedade-rede. O segundo capítulo, “Governança Democrática: Construção coletiva do desenvolvimento humano”, discute a finalidade e as características distintivas da governança e da gestão relacional como arte de governar. O terceiro capítulo identifica e descreve as grandes mudanças sociais em curso nas nossas cidades e municípios e que hoje estão moldando as novas agendas políticas. O capítulo seguinte descreve a crise política que as mudanças sociais têm provocado no modo de governar denominado “gerencialismo”, que esteve em voga até o final da década de 90. Introdução

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Por outro lado, é reforçado o papel da democracia – entendida, sobretudo, como eleição e representação –, tanto como valor e fim quanto como meio para o desenvolvimento social contemporâneo. Também é analisado o novo papel do político eleito como uma das chaves para a qualidade democrática. O quinto capítulo identifica as principais características da liderança relacional ou representativa, que aparece como o principal agente da mudança direcionada para o desenvolvimento humano. No sexto capítulo, com base em uma definição de coesão social, em consonância com os programas URBAL da União Europeia, são tratados os pontos-chave para que o governo local possa liderar a coesão social de seu território e o apoio técnico de que precisa. O capítulo seguinte descreve o perfil do político necessário para poder liderar as cidades inclusivas, bem como as principais habilidades e capacidades requeridas. No oitavo capítulo são identificadas as razões por que os governos locais assumem um papel mais importante na sociedaderede, assim como a importância dos governos intermunicipais. No nono e último capítulo, intitulado “A Governança do Bem-Estar Social”, é examinada a reestruturação da gestão dos serviços públicos do bem-estar social na era da governança. Em particular, são identificados os desafios da provisão de recursos e da gestão dos serviços por parte das prefeituras e como eles devem ser abordados. O livro é complementado por uma bibliografia e alguns links eletrônicos para quem quiser se aprofundar no tema.

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1. Governança: Uma nova arte de governar Ideias Principais 1. Governança Democrática é:

descentralização, participação e

2. A Governança Democrática

é mais do que uma dimensão de

colaboração com a sociedade civil.

cooperação ou participação na ação de governo: é uma nova arte de governar.

3. Os

modos de governar na democracia são:

rencial e

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Burocrático, Ge-

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Governança: descentralização, participação e colaboração com a sociedade civil A governança é um conceito que está se estendendo amplamente na Europa, especialmente após a publicação pela União Europeia, em 2001, do Livro Branco sobre Governança Europeia, elaborado pela Comissão Europeia e dirigido por J. Vignon.5 O fato de que tenha sido a Comissão Europeia, que promoveu o conceito de governança como uma forma de governar baseada na horizontalidade e no acordo, está relacionado, precisamente, com a prática deste governo supranacional, que tem que articular os interesses dos diferentes governos dos Estados-nação. Mas o que o relatório trata é da incorporação dos governos regionais e governos locais, além da sociedade civil, na construção da Europa. R. Mayntz, J. Prats e o próprio Vignon, em textos posteriores ao relatório europeu, têm definido a governança como uma nova arte de governar na democracia. J. Prats6 assinala que, apesar dos diferentes significados do conceito de governança, nos últimos anos está ocorrendo na Europa um amplo acordo para considerar a governança como um novo modo de governar. Isto porque vem se constatando, gradualmente, que a eficácia e a legitimidade dos governos democráticos baseiam-se cada vez mais na qualidade da interação entre eles e as organizações empresariais e sociais, bem como em uma boa gestão das relações entre os diferentes níveis de governo.

5 No citado Livro Branco, o conceito de governança está associado a cinco princípios fundamentais: abertura, participação, responsabilidade, eficácia e coerência. Princípios que visam a reforçar as relações da UE com a sociedade civil e uma maior utilização das capacidades dos agentes locais e regionais para lançar as bases para uma definição clara dos objetivos políticos da UE e estabelecer os papéis e as responsabilidades de cada instituição. Governança está diretamente associada a uma aposta do governo na descentralização, participação cidadã e colaboração com a sociedade civil. 6 J. Prats, “Gobernabilidad democrática para el desarrollo humano: Marco conceptual y analítico” em Instituciones y Desarrollo nº 10, 2001, pp. 103 a 148.

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A palavra governança7 é frequentemente utilizada, de modo pouco preciso, como sinônimo de governabilidade ou de bom governo. Governança é uma nova arte de governar que tem na gestão das interdependências entre os atores seu principal instrumento de governo. A governança gera as relações entre os atores para tomar decisões sobre a cidade e desenvolver projetos complexos com a colaboração interinstitucional, público-privada ou envolvimento dos cidadãos. É, portanto, um termo não qualificativo no sentido de que se refere a um mecanismo de gestão governamental. Bom governo, sim, é como se pode classificar a ação de um governo através de sua forma de governar. Esta forma de governar pode ser a governança, de modo que poderíamos falar de “boa governança” (como também de “má governança”), mas também pode ser o modo de classificar qualquer outra forma de governar diferente da governança, como a gerencial ou a burocrática. Por governança se entende, em sentido restrito, a aceitação e o cumprimento de regulamentos, processos institucionais e de resolução de conflitos, bem como de políticas do setor público por parte da sociedade civil e, em particular, dos seus principais atores. Ingovernabilidade é, por outro lado, a desobediência civil, incapacidade dos mecanismos institucionais para resolver os conflitos sociais, não aceitação das regras do jogo institucional. A governabilidade é um atributo ou classificação de uma situação social e, em qualquer caso, pode ser um resultado das ações de governo, de um bom governo, de uma boa governança, ou de outro modo de governo bem exercido em uma determinada situação. Mas é importante não confundir um atributo ou um resultado com o modo objetivo de governar.

7 O vocábulo governança ainda não está inserido no dicionário do Instituto de Estudos Catalães, mas seu uso foi autorizado como uma tradução de “governance”, em 2001. Ele foi, entretanto, incluído, em 2001, no Dicionário da Real Academia da Língua Espanhola com uma definição muito genérica, mas de forma correta. Governança é definida como “a arte ou o modo de governar que se propõe como objetivo alcançar o desenvolvimento econômico, social e institucional sustentável, promovendo um equilíbrio saudável entre Estado, sociedade civil e economia de mercado.” Governança:

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Em algumas ocasiões, governança também tem sido equiparada a uma concepção anterior do termo político inglês “governance”, que se referia ao impacto da gestão das políticas e dos recursos do setor público no desenvolvimento de uma sociedade ou território. Por exemplo, a Comunidade Autônoma da Cantábria tem um excelente sistema de indicadores para medir o impacto da ação governamental em sua comunidade. Também não podemos confundir governança democrática com a dimensão relacional, ou seja, com a colaboração e a participação da sociedade civil no modelo de governo atualmente dominante, o denominado governo provedor ou gestor de recursos e serviços. Ela é uma nova maneira de governar que implica uma nova forma de compreensão da política e do papel do político. R. Gomà e I. Blanco assinalam que entender a governança como uma arte de governar que se baseia em um sistema de participação e colaboração e atores significa também reconhecer a complexidade como elemento intrínseco do processo político, o que situa os poderes públicos em uma nova posição nos processos de governo. E para assumir esse novo posicionamento a administração precisa exercer novos papéis e dispor de novos instrumentos.8 Para J. Subirats, a importância da governança tem tamanho peso que as diferenças entre as comunidades derivam de sua capacidade de avançar na governança e, concretamente, da capacidade de suas instituições representativas disporem de um projeto de futuro compartilhado e das cumplicidades que este projeto possa gerar no conjunto da cidadania.9 8 I. Blanco e R. Gomà, “Gobiernos locales y redes: retos e innovaciones”. Instituto de Gobierno y Políticas Públicas, 2002. 9 Ver J. Subirats, “¿Qué Gestión Pública para qué Sociedad? Una mirada prospectiva sobre el ejercicio de la gestión pública en las sociedades europeas actuales”. Instituto de Gobierno y Políticas Públicas. UAB, 2003.

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Enfim, é muito frequente confundir, na ação de um governo, a governança com a dimensão relacional de participação cidadã ou de cooperação, seja esta público-privada ou interinstitucional, e não percebê-la como um novo modo de governar. Por esta razão, é preciso que vejamos o tema com um pouco mais de cuidado neste capítulo e, especialmente, no seguinte. Argumenta-se, de modo cada vez mais frequente por parte dos especialistas em ciências sociais e políticas, particularmente, que o envolvimento da cidadania é fundamental para que um governo atue e realize serviços em função das necessidades e desafios dos cidadãos e, desse modo, desenvolva uma gestão de qualidade. Também se aponta, de modo perfeitamente compatível com a afirmação anterior, que a participação cidadã é uma garantia para a melhoria da qualidade democrática de uma administração. Por outro lado, dada a insuficiência de recursos públicos para fazer frente às necessidades sociais, bem como o fato de que a sociedade atual é cada vez mais interdependente, considera-se que são gerados mais espaços de interação, como é o caso de desenvolvimento de projetos, em que são necessárias a colaboração institucional e a cooperação pública e privada. Portanto, concluísse que esta dimensão da gestão das interdependências será um tema de grande desenvolvimento por parte dos governos, especialmente dos governos locais. Ou seja, tanto do ponto de vista participativo como da colaboração entre atores, a governança será a dimensão da gestão governamental à qual teremos que dar mais atenção a partir de agora. Em minha opinião, essas afirmações estão corretas, mas são insuficientes porque tratam a governança simplesmente como mais uma dimensão de governo, e não como uma nova arte de governar ou modo de governar que tem na dimensão relacional (isto é, na colaboração interinstitucional e público-privada e no envolvimento da cidadania) a sua principal prioridade e o eixo estruturante da ação de governo. Governança:

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A governança democrática é mais do que uma dimensão da ação de governo Para melhor caracterizar a governança como uma nova arte (modo) de governar e para diferenciá-la de outras maneiras, creio ser adequado distinguir, por um lado, os governos-tipo ou modelos de governo que se salientam pela relação principal que estabelecem com a cidadania; e esta relação do governo com a cidadania leva a uma articulação específica das diversas funções de governo. Por outro lado, fazemos distinção entre os modos de governar ou modelos de governação,10 que constituem a maneira pela qual o governo exerce sua ação. Eles se definem fundamentalmente pelas finalidades que buscam alcançar, os valores e princípios em que baseiam suas funções, o tipo de gestão específico que desenvolvem para atingir seus objetivos, bem como a “função” que atribuem aos políticos, aos profissionais da administração e à cidadania na forma de governar. Com frequência se confundem os modelos de governo com os modos de governar ou modelos de governação11 porque, como parece razoável, a cada governo deveria corresponder um jeito de governar específico. Mas, como teremos oportunidade de aprofundar, isto nem sempre foi assim, o que tem causado muitos problemas. Em particular, no modelo ou paradigma de governo provedor e

10 Governação é usado no mesmo sentido como definido pelo Dicionário da Real Academia da Língua Espanhola: “Ação e efeito de governar/exercício do governo.” Compreendemos, naturalmente, por governo um “conjunto de organizações e indivíduos que dirigem um território e as funções que eles desempenham”. Assim, modelos de governação ou formas de governar são modelos de exercer a ação governamental. 11 Quando se fala tanto de modelos de governação ou de governos-tipo se utiliza a metodologia do tipo ideal de Max Weber, que a define como: “Construção mental para analisar um fenômeno histórico ou social em que se elegem e enfatizam determinados aspectos do fenômeno. O objetivo da construção de tipos ideais é o de servir como base de comparação na análise dos fenômenos históricos e sociais concretos, uma vez que torna possível mostrar a proximidade ou afastamento deles em relação ao tipo ideal (puro). Ver M. Weber, Conceitos sociológicos fundamentais, edição de J. Abellán. Madri: Alianza Ed., 2006, p.180.

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gestor, ao qual corresponderam dois modos de governar ou modelos de governação: o burocrático e o gerencial. O modelo de governação pode ser implementado tanto por governos supranacionais, quanto por nacionais, regionais ou locais. Para entender melhor esta tríplice diferenciação começaremos pelo mais simples ou básico, isto é, pelas funções e dimensões de toda ação de governo territorial em relação à sociedade. Existem três grandes funções ou dimensões básicas da ação de qualquer governo territorial em relação à sociedade: a função legal ou normativa para regular a atividade da sociedade civil, mas também política; a função provedora e gestora (direta ou indireta) de serviços à comunidade; e uma terceira, que podemos chamar relacional – que inclui todas as atividades relacionadas à participação cidadã, aos acordos e cooperação com a sociedade civil e também com outras administrações. A função legal e normativa (L) é, por exemplo, dar cumprimento a uma norma urbanística, de ordenamento do uso do solo, de vigilância sanitária, de mobilidade, etc. O cumprimento dessas normas necessita, além dos órgãos jurídico, administrativo e de fiscalização, de alguns serviços de polícia municipal, limpeza e coleta de lixo, etc. Portanto, encontramos uma segunda dimensão ou função de gestão de serviços (G), que foi ampliada na Espanha, sobretudo a partir dos anos 80, com os serviços sociais, desportivos, culturais, educacionais, de saúde, promoção do emprego, desenvolvimento econômico, etc., ou seja, com recursos e serviços não apenas associados ao desempenho da sua competência e função reguladora, mas também destinados a gerar proteção ou bem-estar público. A terceira função, que temos denominado relacional (R), abrange as questões de consulta, diálogo, participação, parceria e cooperação com a sociedade civil, principalmente, e também com outras instituições, sejam elas nacionais ou internacionais. Governança:

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Os modelos de governo ou governo-tipo – ou, ainda, se preferirem, paradigmas de governo12 – são definidos pelo tipo de relacionamento que se estabelece entre governo e cidadania. Ou seja, pela principal finalidade (e não só) que se atribui à ação de um governo para proporcionar à sociedade, tanto a garantia da ordem legal, o bem-estar a partir da provisão de recursos quanto a melhoria da capacidade de organização e ação de uma sociedade. Todos os tipos de governo desenvolvem as três dimensões ou funções de governo, mas em cada tipologia ou modelo de governo existe uma função principal ou prioritária distinta, que desempenha um papel estruturante em relação às outras duas. Assim, identificamos três governos-tipo na democracia ou modelos de governo territorial: governo racional ou jurídico, governo provedor e gestor, também chamado protetor, e governo relacional. O governo racional-legal tem por finalidade velar ou garantir o funcionamento do mercado e a sociedade sob ideologia liberal; a função predominante é normativa e legal. As outras funções ou dimensões têm um papel secundário. O esquema básico de articulação das funções do governo racional-legal é o seguinte:

Esquema I: Articulação das funções básicas do governo racional-legal

L

Legal

G

Provedor e Gestor

R

Relacional

12 Deve-se o uso do termo paradigma no âmbito científico ao historiador e filósofo da ciência Thomas Khun, que o introduziu no seu livro clássico A estrutura das revoluções científicas. Nele, paradigma é definido como “uma constelação de realizações – conceitos, valores, técnicas etc.” – compartilhadas por uma comunidade científica e usadas por ela para definir problemas e soluções legítimas.

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O governo protetor ou provedor e gestor tem como finalidade principal a proteção social e o bem-estar; sua função predominante é a prestação e gestão de serviços, a qual pode ser realizada diretamente pelo governo ou organismo público, ou ser contratada externamente. O esquema é o seguinte: Esquema II: Articulação das funções do governo provedor e gestor

G

Provedor e Gestor

R

L

Relacional

Legal

O governo relacional ou promotor é o governo próprio da sociedade-rede ou sociedade do conhecimento. Sua finalidade é melhorar a capacidade de organização de uma sociedade e gerir as principais redes sociais para o desenvolvimento humano. Sua principal função estruturante é a relacional. O esquema é o seguinte: Esquema III: Articulação das funções básicas do governo relacional

R

Relacional

L

Legal

G

Provedor e Gestor

Para exercer a ação governamental baseada na relação principal que se estabelece entre o governo e a cidadania, isto é, com Governança:

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base na função que tem o papel principal ou estruturador das demais, os governos desenvolvem maneiras diferentes ou modelos de governação ou modos de governar. Isto é, um governo-tipo atua através de um modelo de governação. Por modelo de governação ou modo de governar, entenderei propriamente o enfoque com que um governo assume e exerce seu papel em relação à sociedade civil ou, o que quer dizer o mesmo, o tipo de atuação através da qual um governo torna efetiva a articulação e coordenação das três funções e dimensões do governo. O modelo de governação inclui a finalidade e os valores que presidem a ação, o tipo de gestão característica da maneira de governar e os perfis do político e do profissional da administração. Identificaremos, seguindo a classificação feita por J. Prats, em um recente e excelente trabalho, três modelos de governação: burocrático, gerencial e governança.13 Esquema IV: Articulação das funções, modelos de governo e de governação Funções básicas

Legal, Provisão e Gestão, Relacional

Modelos de governo ou Governo-Tipo

Articulação funções básicas (Relação do Governo com a cidadania)

Modelos de Governação (modos de governar)

- Valores - Gestão: técnicas - “Papéis”: político, cidadania, administrador

13 J. Prats, “La Construcción Social de la Gobernanza” em Vidal J. M. Beltrán e J. Prats, Gobernanza. Diálogo Euro-Iberoamericano. Madri: INAP, 2005, pp. 21-78.

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Portanto, a governança não é a dimensão ou a função relacional da atuação de um governo, mas o modo de governar específico do governo relacional, que assim se caracteriza porque a função relacional assume o papel principal e estruturador das ações de governo. A governança, portanto, vai implicar, de uma forma concreta, na reestruturação global da maneira de governar de um governo local. Na governança existem as dimensões da gestão de recursos e da função normativo-legal, mas estas se reestruturam a partir da priorização da função relacional do governo, isto é, da participação cidadã, da cooperação com a sociedade civil e da colaboração intergovernamental. É por isso que dizemos que a governança é o modo de governar próprio do governo-rede ou relacional, que é o adequado à nova sociedade em rede, também denominada sociedade do conhecimento.

Os modos de governar na democracia: Burocrático, Gerencial e Governança Iremos começar por uma breve descrição dos vários modos de governar, ou modelos de governação, para depois descrever, na seção seguinte, os governos-tipo que põem em prática tais modelos. O modo burocrático. Tem por objetivo garantir o cumprimento da lei e a igualdade jurídica de oportunidades dos cidadãos, com a finalidade de contribuir com a regulação das condições de estabilidade econômica e social, o desenvolvimento do Estado de Direito e do livre mercado. Este modo se desenvolve a partir dos Estados liberais e democráticos da metade dos anos 50 do século XIX e predomina até os anos 80 do século XX. Os valores do governo são: respeito e sujeiGovernança:

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ção à lei, igualdade de todos os cidadãos perante a lei, autonomia da sociedade civil para identificar o interesse geral e racionalidade (adequação dos meios aos fins). Para exercer a função de regulação e de segurança jurídica, a administração se vale de uma categoria profissional: a burocracia ou funcionalismo. Esses profissionais, para poder realizar seu trabalho, requerem independência política, objetividade e impessoalidade do seu próprio trabalho, que deve ajustar-se à legislação em um contexto de racionalidade (adequação dos meios aos fins). Para que possam cumprir sua missão, os funcionários são protegidos legalmente e os postos de trabalho regulamentados. Os valores que presidem a burocracia são os que acabamos de apontar e que se diferenciam plenamente dos valores relacionados à economia, produtividade e eficiência que predominam no modo gerencial. Entre os profissionais da burocracia predominam as especialidades vinculadas ao Direito. O político eleito com a responsabilidade de governar é o representante dos cidadãos para dar cumprimento às normas da sociedade com a ajuda da burocracia que, por ter proteção especial, impede o governante eleito de usar o poder para fins pessoais ou partidários. Os políticos, com o apoio da burocracia, identificam e gerenciam o interesse geral. A cidadania, neste modo de governar, tem um papel inativo, limitado praticamente à consulta. Tanto a cidadania como a iniciativa privada e social são os que devem, através do mercado e da livre iniciativa, alcançar o maior bem-estar possível através do marco legal-regulador e garantidor da liberdade do mercado e da ação social. O governo é o representante eleito da sociedade e em seu nome exerce sua ação normativa e reguladora. O tipo de gestão que se desenvolve neste modo de governar é a gestão de procedimentos. Trata-se de estabelecer cuidadosamente os processos e regulamentá-los. A tarefa do burocrata é seguir os procedimentos e não assegurar resultados. Estes, se supõe, re54

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sultarão do cumprimento da regulamentação estabelecida. Nisto, não difere dos processos próprios do maquinismo industrial, dos métodos tayloristas. A diferença com a produção de bens e serviços reside em que seu posto de trabalho não é flexível e que os processos da administração não estão organizados em função da produtividade. Os serviços, para garantir a conformidade com os regulamentos, são organizados por estes mesmos processos. O modo gerencial de prestação e gestão de recursos públicos. Começa nos anos 80, tem seu esplendor nos 90 e na atualidade ainda é o modo dominante. Os objetivos são a economia, a eficácia e a eficiência (os três “E”) na prestação e gestão de serviços. Sua preocupação principal é a produtividade na produção dos serviços e, em geral, do conjunto da administração. A gestão específica deste modo de governar é a gestão empresarial dos serviços. Ou seja, realiza-se a prestação e gestão dos serviços a partir da introdução (ou tentativa de introdução) do conjunto de técnicas, instrumentos e processos oriundos do mundo empresarial, e os principais profissionais dirigentes da administração são buscados no mundo empresarial e, mais concretamente, no mundo dos negócios. Assim, fala-se da terceirização de serviços, gestão da qualidade orientada ao cliente-usuário, reengenharia de processos, marketing de serviços, etc. Pretende-se orientar a gestão para os resultados econômicos e de produtividade. Acredita-se que a produtividade e os três “E”, acima mencionados, devam ser os valores dominantes não apenas em função dos serviços públicos, mas também do conjunto da administração; e não poucas vezes se quis aplicar a reengenharia de processos, própria da gestão de serviços, às funções governamentais destinadas a assegurar os direitos da cidadania e às funções relacionais, gerando não só colapsos de governabilidade, mas também importantes colapsos no funcionamento da democracia. Governança:

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Entre os profissionais do governo há uma demanda de formação em economia, mas é dada prioridade, em especial, à formação nas escolas empresariais e de administração. Dada a importância da gestão empresarial dos serviços neste modo de governar, o papel do político eleito fica desfocado e se confunde com o de gerente. Desponta e valoriza-se, especialmente, o papel dos administradores ou gerentes, que assumem papéis de maior relevância à custa dos políticos eleitos, saídos das fileiras dos partidos políticos – ou acabam predominando os extratos gerenciais dos altos escalões da direção política. A governança democrática. É um modo de governar que está emergindo na atualidade como consequência da crise do governo provedor e gestor de recursos e, em especial, pela obsolescência e anomalias provocadas pelo modo gerencial. Nas palavras de D. Inneraty, sua finalidade é “a colaboração entre o governo e a sociedade civil para a regulação dos assuntos coletivos com critérios de interesse público”.14 O que caracteriza a governança como modo de governar é a gestão das interdependências, gestão relacional (ou de redes). É um tipo de gestão específico que se baseia em um conjunto de técnicas, instrumentos e processos para alcançar a construção compartilhada do desenvolvimento humano em um território. Os valores próprios da governança que a faz avançar como modo de governar são: respeito, tolerância, participação, racionalidade, confiança, compromisso e colaboração. Ou seja, a governança se baseia na gestão das interdependências, mas não é igual à gestão relacional, sendo, na verdade, muito mais ampla. Governança é uma ação de governo que tem múltiplas dimensões: normativo-legal, provedora e de gestão de serviços; porém, ao ter como seu principal objetivo a colaboração entre a sociedade civil 14 Ver D. Inneraty, El nuevo espacio público. Madri: Ed. Espasa – Calpe, 2006, p. 209.

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e o governo para responder aos desafios sociais, é a gestão relacional que assume a relevância e o papel estruturante de todas as funções de governar. As funções legal e de gestão de serviços são reestruturadas pela governança, de tal modo que as características exigidas das mesmas serão diferentes das que adquiriram nos modos burocrático e gerencial. A governança coincide com o modo gerencial em sua rejeição ao governo hierárquico, mas, ao contrário dele, não vê no mercado nem nas técnicas empresariais aplicadas à gestão governamental a alternativa para os problemas e desafios sociais, identificando na própria sociedade a solução dos problemas. A tarefa do governo é a de envolver os cidadãos na resolução dos seus próprios problemas, cooperando com eles e melhorando a capacidade coletiva de atuação. A governança também partilha com o modo burocrático a ideia de legalidade, de controle público e da necessidade de procedimentos administrativos, mas atribui grande prioridade aos procedimentos informais de interação cidadã, na qual intervém para mediar e facilitar a cooperação entre os atores e setores da cidadania envolvidos. Na governança, o político tem um papel de representante eleito, mas diferentemente do modo burocrático, este papel é muito relevante na sociedade devido ao fato de que atua como aglutinador e organizador do interesse geral, a partir dos legítimos interesses e desafios dos diferentes atores e setores da cidadania. A cidadania e a iniciativa social e privada têm um papel muito ativo. A tarefa do governo consiste em articular uma ampla cooperação pública e privada, e uma intensa colaboração cidadã no desenvolvimento humano. Ou seja, fortalecer e coordenar as principais redes sociais em uma determinada direção. Por sua vez, passa a ter mais valor um tipo de profissional polivalente, que tem como funções a mediação e a negociação relacional, em apoio aos políticos eleitos, dotado de amplos conhecimentos na elaboração de estratégias e possuidor de um enfoque Governança:

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abrangente das ciências sociais. Esta área das ciências sociais é a que apresenta maior desenvolvimento na era da governança. Prevê-se que, dada a complexidade e variedade das situações sociais na governança, bem como a necessidade de amplos conhecimentos e novas técnicas, será necessária uma ampla terceirização da assistência técnica e, mais particularmente, com entidades que correspondem à classificação de “think tanks”. No quadro I, são apresentadas de maneira resumida as características diferenciadoras dos distintos modos de governar, em relação às suas principais variáveis. QUADRO I: MODOS DE GOVERNAR NA DEMOCRACIA Principais características Modo de Governar

Burocrático

Gerencial

Governança

Normativa / Legal

Prestação e Gestão Infraestruturas e serviços

Relacional

Variáveis Função ou dimensão estruturante da atividade do governo

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Tipo de gestão predominante

Gestão por procedimentos

Gestão Empresarial por produtividade ou resultados

Gestão de redes sociais ou relacional (construção coletiva do desenvolvimento humano)

Principais valores

Legalidade, autonomia sociedade civil. Neutralidade

Economia Eficácia Eficiência

Confiança Compromisso Colaboração

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Visão da qualidade no exercício do governo

Credibilidade e confiabilidade dos procedimentos

Satisfação do cliente e usuário

Credibilidade e confiabilidade da organização das interdependências

Papel do cidadão

Peticionário Administrado

Demandantepassivo: cliente ou usuário

Demandante-ativo: cooperador e corresponsável

Papel das associações e empresas

Reivindicativo

Reivindicativo contratado externo

Reivindicativo contratado externo corresponsável

Eleito/gerente

Líder da construção social (organizador coletivo)

Papel do político

Representante do eleitorado

Fonte: Elaboração própria, inspirado em J. Alguacil (2006), R. Gomà (2003), J. Prats (2005).

A governança é a arte de governar própria do governo relacional emergente Já vimos que existem três funções ou dimensões-chave da ação de governo. A organização assimétrica destas funções-chave e o seu desenvolvimento pela ação do governo deram lugar a distintos modos de governar. Nesta seção veremos os governos-tipo ou modelos de governo que se configuraram nos distintos modos específicos de governar. A classificação dos tipos de governo que se configuraram de maneira singular nos modos ou artes de governar, que proponho, é a que tem como critério a relação principal que se estabelece ou pretende estabelecer-se entre o governo territorial e a cidadania. O resultado são três governos-tipo: o governo racional-legal, o governo provedor e gestor, também denominado “protetor” ou Governança:

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do “bem-estar”15 e o governo relacional ou governo em rede, que também foi denominado “promotor” (J. Prats), “cooperador” ou “capacitador” (D. Innerarity). O governo racional-legal

O governo racional-legal corresponde à visão de governar anterior ao do Estado protetor ou do bem-estar. Nesta concepção a função principal de um governo em relação à cidadania é garantir as condições gerais para o bom funcionamento da economia de mercado e do Estado de Direito. O governo tem um papel claramente regulador. A função principal e estruturante do governo é o cumprimento das normas. Seu modo de governar específico é o que já se assinalou como burocrático, que foi descrito magistralmente por Max Weber.16 O governo racional-legal, especialmente em seu nível local, gerencia e presta diretamente serviços como segurança, limpeza, atenção à população de rua (pessoas sem teto etc.). Mas esta é uma função menor ou mesmo marginal, e sempre se justifica em relação ao apoio destes serviços ao papel regulador ou como forma de estabelecer garantias ao livre desenvolvimento das iniciativas das empresas e cidadãos. A função do governo não é atuar de maneira ativa com recursos públicos na economia, nem no apoio à igualdade de oportunidades sociais ou redução da pobreza e da exclusão social. Neste modelo existe a função relacional, que consiste em desenvolver a participação e o acordo da cidadania na elaboração das normas legais, que o governo deverá fazer cumprir, e na aprovação prévia pelas câmaras municipais. Não se trata da participação na definição dos serviços e dos sistemas de qualidade na 15 Pretendo objetivar ao máximo a descrição e por isso não uso as palavras proteção e bem-estar, por estarem envolvidas em disputas políticas e gerarem reações imediatas e pouco críticas de apoio ou rejeição. 16 Max Weber o definiu como tipo de dominação racional-legal, descrito em seu famoso Economía y Sociedad. Madri: F.C.E., 1929, pp. 170-217.

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prestação de serviços próprias do governo gestor, muito menos da participação cidadã e da colaboração público-privada para transformar a cidade ou o território, em geral, na perspectiva do desenvolvimento humano. No governo racional-legal, a função relacional é muito reduzida; a cooperação cidadã, em não poucos casos concretos de governo, fica circunscrita ao diálogo para alcançar a manutenção da ordem pública. As funções estruturadas deste governo, como a prestação de serviços e a função relacional, são administradas pelo tipo de gestão que já assinalamos como própria do modo burocrático: a gestão por procedimentos. Neste modelo racional-legal o papel do governo é subordinado sempre aos governos nacionais e regionais. A principal função é normativa e reguladora e, neste aspecto, os governos locais são necessariamente subordinados à legislação cujo cumprimento corresponde ao nível nacional ou federal ou similar, a qual, logicamente, não podem transgredir. As alterações nesta forma de governo se originaram nos desequilíbrios que o próprio mercado gera. A não intervenção dos fundos públicos na economia e na coesão social levou ao agravamento das desigualdades, à ampliação da pobreza e à instalação de uma situação de conflito social permanente. O papel de garantidor do cumprimento de uma legislação e de manutenção das condições do mercado levou à percepção de que o governo é um obstáculo e se opõe às reivindicações sociais dos mais desfavorecidos (ainda que, em não poucos casos, esta atitude governamental fosse uma vontade manifesta). O governo provedor e gestor

O governo provedor e gestor – nascido nos anos 50 do século XX e ainda hoje modelo de governo dominante – corresponde à visão do que se denominou Estado do Bem-Estar Social. Governança:

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O papel do governo provedor e gestor de recursos e serviços se desenvolveu na Europa. Foi assumido no contexto da Guerra Fria e da ameaça do denominado “bloco socialista dos países do leste”, pela aplicação das teses de Keynes sobre a intervenção do governo na economia, através do gasto público, e as propostas de Beveridge sobre a ampliação da cobertura da seguridade social para todos os cidadãos. Os desafios do desenvolvimento econômico e as necessidades sociais ou de bem-estar tornaram-se matéria de intervenção governamental e os cidadãos se voltaram para todos os níveis de governo na busca da satisfação de suas demandas e reivindicações sociais. Neste paradigma, encontramos duas etapas definidas pelo modo de governar que prevaleceu em cada período: o burocrático e o gerencial. A etapa burocrática

O modo burocrático, próprio do governo racional-legal, foi o que se aplicou ao novo paradigma de governo a partir dos anos 50, e que se tornou hegemônico até os anos 80. Ele foi aplicado com os mesmos valores e com a proteção jurídica dos funcionários públicos, porém agora já não era somente gerenciar algumas poucas prestações e serviços ligados às funções de regulação, mas também a prestação de serviços orientados à satisfação de necessidades sociais, que estavam se convertendo na função principal e prioritária dos governos. Os políticos e profissionais da gestão pública não entenderam que se encontravam ante um novo paradigma de governo, ou seja, ante uma reestruturação da organização e funções do governo, e agiram como se fosse tão somente uma ampliação da sua atuação. Não tiveram a consciência de que era preciso governar de um modo diferente. Efetivamente, Max Weber, (que sem dúvida foi quem melhor caracterizou o modelo racional-legal, ou modo burocrático de do62

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minação) considerava que a burocracia era também um modo de gerir os serviços e não apenas de garantir a legalidade, a independência e a estabilidade do governo. Porém, era bastante consciente das limitações de uma gerência ampla dos serviços por este tipo de gestão. Neste sentido, Giddens17 nos recorda que o principal argumento de Weber – contrário ao socialismo – era que este significaria uma grande burocratização do Estado e, em particular, do governo, que acabaria levando à ineficiência na gestão e à autonomia da burocracia como grupo de poder, que faria o governo funcionar em função de seus interesses e de grupos particulares, como efetivamente ocorreu. De fato, a gestão de recursos e serviços públicos exige economia, eficácia e eficiência (os denominados três “E”), que, como já observado, não são valores próprios da burocracia, nem garantidores de sua proteção como grupo profissional. A gestão burocrática aplicada à gestão de serviços foi e é altamente ineficiente, provocou e ainda provoca significativas deseconomias que devem ser sustentadas com mais carga fiscal para os cidadãos e, pior ainda, limita o alcance dos serviços públicos. O paradigma do governo gestor, ao desenvolver-se com o modo burocrático, trouxe com ele a necessidade de reforma permanente, desde o seu começo, para torná-lo mais eficiente. Entretanto, os distintos instrumentos de reforma – descentralização, centros de controle, orçamentos-programas, etc. – inscreveram-se no modo burocrático e no tipo de gestão que o caracteriza – a gestão de procedimentos. A etapa gerencial

O modo gerencial baseado na imitação da gestão das empresas privadas recebe o nome de sua principal escola, o new mana17 A. Giddens, Política y Sociología en Max Weber. Madri: Ed. Alianza, 1976, pp. 76-82. Governança:

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gement ou “nova gestão pública”.18 Pretende não apenas substituir o modo burocrático nos serviços voltados para satisfazer uma necessidade social (serviços sociais, assistência médica, centros culturais, equipamentos desportivos, etc.), como os que apoiam diretamente o cumprimento de uma norma governamental (coleta de lixo, serviços de limpeza, estacionamento e, inclusive, alguns tão problemáticos como polícia, gestão urbana e segurança), pela aposta na terceirização dos serviços públicos, pela criação de um “mercado” ou “quase-mercado” de serviços públicos, pela gestão orientada ao cliente ou usuário etc. Considera-se que a produtividade e os três “E” antes mencionados devem ser os valores dominantes, não apenas da função da prestação e gestão de serviços, mas do conjunto da administração. Nesta etapa, a função relacional e participativa se desenvolve mais que no modelo racional-legal, mas de forma sempre vinculada e subordinada ao papel de provedor de recursos desempenhado pelo governo. De fato, o modelo provedor e gestor teve por base um acordo social através do qual o setor público proporcionou serviços e benefícios econômicos que constituem salário indireto. Isso possibilitou a estabilidade dos rendimentos e dos salários nas empresas privadas. A participação cidadã, por sua vez, fica restrita ao âmbito das necessidades e no desenho das políticas e serviços, não se traduzindo em compromisso de cooperação para dar uma resposta coletiva aos desafios sociais. Por outro lado, a concepção gerencial passa a incorporar não apenas a gestão dos serviços financiados com recursos públicos, mas também a prestação de serviços pelas empresas privadas e iniciativas sociais. A justificativa desta incorporação se deu a partir do argumento de que o governo teve seu peso relativo diminuído, 18 Os autores mais conhecidos desta escola, assim como seu principal livro, são D. Osborne e T. Gaebler, La Reinvención del Gobierno. Barcelona: Ed. Paidós, 1995.

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dadas as limitações do crescimento do gasto público para atender as necessidades sociais. Na etapa gerencial, não apenas se considera a necessidade de incorporar novos atores sociais, e em especial as empresas, mas também prospera a ideia de que o governo deve imitar o modelo de gestão empresarial. Em última instância, o objetivo era dar maior destaque aos empresários e às empresas, tanto na gestão e prestação de serviços como na iniciativa social, como forma de suplementar a ação de governo, que somente se entendia como prestador de serviços. A adoção do modo gerencial no paradigma de governo provedor e gestor, no entanto, tinha igualmente uma justificativa ética baseada na necessidade de se evitar o desperdício do dinheiro público e, sobretudo, de criar mais infraestrutura e serviços com uma despesa pública que se constatava não poder crescer indefinidamente. A extensão dos três “E” para toda e qualquer ação governamental, como uma cópia dos métodos empresariais das multinacionais, aliada ao fato de se enxergar o cidadão como um mero cliente ou usuário, em muitos casos, levou à desconsideração do conceito de serviço público e ao questionamento das garantias legais e do respeito pelos direitos que a ação do governo deve proporcionar, o que tem acontecido em muitos governos, e não apenas na América Latina. Neste caso, não apenas a prestação e gestão de benefícios e serviços eram considerados dominantes, mas toda a ação de governo. Considerava-se que o modo de governar deveria corresponder aos valores empresariais da gestão de serviços. Desta maneira foi favorecida a consolidação de uma concepção clientelista da ação governamental e da política em geral, sobretudo onde os valores democráticos estavam pouco consolidados. Em suma, o enfoque que estamos expondo, de definir o modelo de governo como uma maneira de abordar a articulação das suas funções, leva a dizer que o lema do governo gestor poderia ter sido burocracia o quanto for necessário, gestão eficiente o quanto Governança:

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for possível e, certamente, teria tido menos efeitos perversos do ponto de vista democrático. No esquema gestor, as prefeituras têm um papel mais relevante como prestadoras de serviços do que no modelo racional-legal, porém secundário em relação aos governos nacionais e federais ou similares; na maioria dos casos, os governos locais dependem das competências e transferências de recursos dos outros níveis de governo. O governo-rede ou relacional

O governo relacional é aquele que tem por finalidade a construção do desenvolvimento humano de forma compartilhada com a sociedade civil e cujo modo específico de governar é o que denominamos governança democrática. Como já assinalamos reiteradamente, sempre existiu a governança entendida, simplesmente, como gestão das interdependências ou das relações entre o governo e os atores e setores da cidadania. Isto, porém, de maneira altamente residual e condicionada por outras funções e dimensões que serviram de eixo estruturador da ação de governo. A novidade, a mudança de paradigma, está no fato de que a governança torna-se o modo próprio do governo relacional. E este modo de governar, que se baseia e se estrutura a partir da gestão relacional ou das interdependências, deixa de ser residual para ser o modo principal ou estruturante do governo. Hoje em dia, a cooperação entre atores, a participação e a colaboração da cidadania não são consideradas apenas uma dimensão emergente, mas uma função estrututurante da ação de governo na sociedade do conhecimento ou sociedade-rede. Isto se deve, fundamentalmente, à constatação de que existem cada vez mais desafios e necessidades sociais que não podem ter resposta em uma ação baseada no gasto público, por mais eficiente que seja a sua gestão. O governo se vê, assim, diante da necessidade de propor a 66

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melhoria da capacidade de organização e ação para que o conjunto da sociedade enfrente os desafios e as necessidades crescentes que condicionam o progresso humano. Tal como na última fase do governo provedor, considera-se necessário incorporar novos atores para a obtenção da melhoria da qualidade de vida; porém, ao contrário da etapa gerencial, não se trata de reduzir a relevância do governo democrático, mas lhe atribuir um novo papel como organizador coletivo de uma ampla ação social. Neste contexto, a gestão relacional ou gestão das interdependências (ou de redes) passa a ser a base da nova ação de governo. Portanto, o governo relacional deve realizar uma reestruturação das funções de proteção legal de direitos, da gestão eficiente da qualidade dos recursos e serviços para colocá-los em função da construção coletiva do território, que tem na gestão relacional seu principal, embora não único, instrumento. Reestruturação significa mudança de orientação. A função relacional se converte em estruturante (porque agora o objetivo do governo relacional é a melhoria da capacidade de organização e ação dos territórios) e aumenta sua complexidade e a magnitude de seus objetivos, assim como os âmbitos em que se aplica. A participação cidadã (elemento essencial da função relacional) é agora, fundamentalmente, corresponsabilização e compromisso. Por sua vez, a gestão de serviços na governança deve ser eficaz e eficiente, mas não apenas do ponto de vista da redução dos custos e da produtividade, sobretudo porque esta mesma gestão deve incorporar uma melhoria no compromisso de ação comunitária dos usuários e familiares envolvidos e contribuir para o fortalecimento do tecido associativo do lugar em que se situa. Os benefícios e serviços se integram e apoiam os processos de desenvolvimento comunitário. A função normativa e legal que, sem dúvida, deve ser exercida por funcionários, deve adequar os procedimentos de conGovernança:

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tratação externa de serviços às novas finalidades de eficácia e contribuição ao desenvolvimento comunitário, assim como ao fortalecimento e ampliação dos novos espaços da cidadania; ou seja, frente aos espaços de deliberação e acordos entre governo, atores, iniciativa social e movimentos sociais em geral, o papel singular da função legal ou normativa em um governo relacional será o de conceber os marcos institucionais reguladores, assim como os incentivos e restrições da atuação dos atores e setores da cidadania para estimular, fortalecer e dar estabilidade à ação coletiva em que os participantes procuram maximizar suas expectativas no âmbito do interesse geral. Isto é, ter em conta que o interesse geral é uma construção coletiva da qual participam. A seguir, veremos com mais detalhe, aplicada ao setor de bemestar social, a reestruturação das diferentes funções no governo relacional e, especialmente, a orientação que recebem através do seu modo de governar: a governança. Neste modelo de governo é fundamental a proximidade às interdependências dos atores para construir projetos coletivos e promover uma cultura empreendedora e cívica na cidadania. Por isso, o papel dos governos locais no sistema do conjunto dos Estados-nação é claramente emergente e relevante. Também o são os governos regionais, porém estes entendidos, cada vez mais, como gestores das interdependências entre os distintos municípios. Como conclusão desta seção, é fundamental reter: O governo relacional assume um papel renovado e uma centralidade social na sociedade-rede, ao considerar-se a articulação social, a melhoria da capacidade de organização e ação das sociedades, uma responsabilidade pública democrática, com grande impacto no desenvolvimento humano das cidades e regiões. No quadro II é apresentado um resumo dos governos-tipo a partir dos seus principais elementos distintivos. 68

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QUADRO II: GOVERNOS-TIPO NA DEMOCRACIA (relação entre governo e sociedade) Governo-Tipo Elementos distintivos Relação estruturante com a sociedade civil

Racional-legal

Provedor e Gestor

Relacional

Regulador/ normativo

Provedor de infraestruturas e serviços

Organizador coletivo do desenvolvimento

Modo de governar

Burocrático

Burocrático (1ª etapa) Gerencial (2ª etapa)

Governança (expectativa racional)

Papel do município no modelo de administração nacional

Subordinado

Secundário

Protagonista (expectativa razoável)

Fonte: Elaboração própria, inspirado em J. Alguacil (2006), R. Gomà (2003), J. Prats (2005)

As vantagens ou desvantagens de se usar uma concepção ou outra, desde que sejam rigorosas e se adaptem às regras da lógica, dependerão da capacidade de previsão das mesmas. A concepção que é apresentada acima, ao destacar como governo-tipo o provedor, registrou um modo de governar adequado a outro modelo de governo (racional-legal), porém totalmente inadequado à nova relação estabelecida com a sociedade civil. Isso nos serve de alerta para que, ao surgir o governo relacional, não continuemos utilizando o modelo de governação gerencial ou que a governança seja considerada, de maneira incorreta, simplesmente como uma dimensão a mais deste modo de governar, o que, sem dúvida, dificulta alcançar os objetivos do desenvolvimento humano. Governança:

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A confusão é real. Recentemente um conhecido autor, M. Shapiro19, chamou a atenção para o fato de que a perspectiva da governança se desenvolve no âmbito da gestão pública através da sua conexão com a escola da “nova gestão pública” e os perigos que esta acarreta para a legitimidade democrática. Outro importante autor, Guy B. Peters, embora reposicione o tema e identifique a governança como uma nova arte de governar distante do modo gerencial, que proporciona um renovado papel ao governo democrático, também aponta para o perigo de se associar a governança com a corrente que atribui ao governo um papel menor, para dar mais importância a outros agentes, em especial aos econômicos. Entender a governança como uma dimensão a mais do governo provedor, e/ou geri-la através do modo gerencial, significaria retardar o novo papel do governo como um organizador coletivo e a valorização do governante eleito como representante da cidadania. Por esta razão é que no quadro anterior foi colocado como expectativa razoável que a governança seja o modo de governar próprio do governo relacional na sociedade-rede ou sociedade do conhecimento, por ser o mais adequado. Porém, mesmo que seja o mais apropriado, isso não quer dizer que o seu desenvolvimento esteja assegurado. Ainda mais quando temos o exemplo de que o governo provedor se desenvolveu, numa primeira etapa, através do modelo de governação próprio do governo racional-legal: o modo burocrático. Ainda que a governança comece a ser um paradigma com progressiva importância nas ciências sociais como arte de governar, é incipiente e, em não poucos casos, se desenvolve no interior do 19 M. Shapiro “Un derecho administrativo sin límites: reflexiones sobre el gobierno y la gobernanza”. Em A. Cerrillo (coord); La Gobernanza hoy: 10 textos de referencia. Madri: Ministerio de Administración Pública, Instituto Nacional de la Administración Pública, 2005, pp 203212.

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modo gerencial de governar, confundindo-se com uma nova fórmula para dar maior relevância ao papel dos agentes econômicos. O aparecimento da governança como prática de governo precisa de êxitos bem conhecidos e de vitórias eleitorais para aqueles que a implementarem. Para isto, são necessários métodos e técnicas específicas e um novo tipo de liderança política, que é preciso sistematizar e difundir.20 O predomínio do modo gerencial atrasa e dificulta a inovação do modo de governar. O governo local, por sua proximidade com as relações que se estabelecem entre os atores no território, pode gerir melhor a complexidade social. Mas isso tampouco significa que venha a ocorrer, mas simplesmente que, de um ponto de vista racional, existem condições para que haja um incremento do papel dos governos locais. Se vão conseguir ou não, vai depender, fundamentalmente, de sua ação prévia, de que sejam capazes de abrir espaços como organizadores da coletividade, e dos êxitos que alcancem no desenvolvimento humano nos territórios em que abram os espaços mencionados.

A governança é o modo de governar da sociedade do conhecimento A denominada globalização, tal como a define o Fundo Monetário Internacional, consiste em fluxos de informações, mercadorias, serviços e pessoas que cruzam os territórios e os fazem interdependentes. Os fluxos são produzidos, distribuídos, recebidos e consumidos fundamentalmente nas cidades e áreas metropolitanas. A economia e a sociedade globais se assentam no sistema de 20 Para isso, foi criado o movimento de governantes eleitos e profissionais, em 2003, voltado para o desenvolvimento da governança, denominado América Europa de Regiões e Cidades, AERYC. Ver a página web www.aeryc.org Governança:

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cidades. Os territórios se tornam mais interdependentes econômica, social e culturalmente. A sociedade do conhecimento ou sociedade informacional, na expressão conceitual de Castells, ao basear-se na inovação permanente, favorece a especialização flexível nas empresas e entidades sociais. Estas, para inovar, não podem fazê-lo em todos os aspectos, necessitando fazê-lo naquilo que mais conhecem, em suas melhores habilidades e capacidades. Este processo de inovação requer a organização em rede das diferentes empresas, entidades e instituições para produzir bens e serviços. A capacidade de articular as funções de pesquisa, formação, produção, comercialização e distribuição é a chave para o desenvolvimento. A organização em rede e o uso das tecnologias de informação são, segundo Castells,21 fatores centrais tanto para o desenvolvimento econômico quanto para o social. A sociedade do conhecimento se baseia em redes, na gestão dos conhecimentos das pessoas nos departamentos, empresas, entidades e organismos públicos. Ela posiciona os profissionais e as equipes no topo dos processos produtivos. Na sociedade industrial, o trabalhador era um apêndice da máquina; o importante era o processo no qual se inseriam as pessoas. Contrariamente, na sociedade do conhecimento, as tecnologias da informação e os processos produtivos são desenhados para servirem de suporte para que as pessoas e equipes possam gerar valor através da produção de conhecimentos. A densidade e qualidade das interações entre departamentos e empresas são os principais fatores críticos para a criatividade e inovação. A principal vantagem econômica de um território é cada vez mais a vantagem colaborativa. Neste sentido, a economia depende da coesão social ou, para ser mais preciso, do capital social, que foi definido por Putnam de uma maneira muito semelhante 21 Ver M. Castells, Observatorio Global. Barcelona: Ed. La Vanguardia, 2006, pp.151-193.

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à capacidade de organização e ação: “O capital social refere-se ao conjunto formado pela confiança social. Às normas e redes para resolver os problemas comuns. As redes de compromisso cívico, tais como associações de bairros, as federações desportivas e as cooperativas, constituem uma forma essencial de capital social. Quanto mais densas forem estas redes, mais possibilidades existirão de que os membros de uma comunidade cooperem para obter um benefício comum.”22 Os indivíduos são cada vez menos autossuficientes. Por um lado, aumentam sua autonomia em relação à família e às instituições sociais e políticas; por outro, suas necessidades são cada vez mais crescentes e complexas e, para satisfazê-las, precisam de uma grande amplitude de redes sociais. A sociedade e a economia aparecem como uma construção coletiva assentada em redes. Gerir a sociedade-rede é gerir as relações, é desenvolver a governança. A tarefa principal de um governo democrático consistirá em promover o desenvolvimento humano no território a partir da criação, fortalecimento e coordenação das redes econômicas, sociais e culturais. Por isso é que, sem dúvida, a governança é o modo mais adequado de governar.

22 R. D. Putnam, Making Democracy work: Civic traditions in modern Italy. Princeton: Princeton University Press, 1993, p.125. Governança:

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2. Governança Democrática: Construção coletiva do desenvolvimento humano

Ideias Principais 1. A finalidade da governança democrática é o desenvolvimento humano: democracia, equidade social, desenvolvimento econômico. 2. A

governança como modo de governar exige e precisa de de-

3. A

coesão social é o motor e não o resultado do desenvolvi-

4. A

coesão social entendida como capacidade de organização e

mocracia. mento.

ação é o principal objetivo da governança democrática.

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Ao longo do presente livro serão tratadas mais detalhadamente as características da governança e, em especial, sua aplicação na área do bem-estar social. Ao chegar até este ponto, porém, me atrevo a propor uma definição de governança democrática: • A governança democrática é a arte de governar os territórios do novo governo relacional, próprio da sociedade do conhecimento, cujo objeto é a capacidade de organização e ação de uma sociedade; seu principal meio é a gestão relacional ou gestão das interdependências e sua finalidade é o desenvolvimento humano. Neste capítulo, comentarei os distintos aspectos desta definição, para uma maior compreensão.

A finalidade da governança democrática é o desenvolvimento humano Utilizo aqui o conceito de desenvolvimento humano adotado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Ou seja, o desenvolvimento humano compreende não somente o desenvolvimento econômico, mas também a redução das desigualdades sociais, a sustentabilidade ambiental e o fortalecimento da democracia. O desenvolvimento humano inclui os temas do chamado capital ético, isto é, os valores dos atores e da cidadania em especial – o capital social ou a capacidade de gerar tecido organizativo empresarial e social para finalidades relacionadas com o bem comum. Inclui objetivos de bom governo democrático, isto é, relacionados ao aprofundamento da democracia, à participação e deliberação cidadã, à reforma da administração pública, à colaboração intermunicipal e regional. Trata-se de um conceito de desenvolvimento integral que inclui, naturalmente, critérios de atuação e objetivos que serão referência para os diversos planos 76

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setoriais e políticas públicas, em especial planos de ordenamento territorial e, particularmente, urbanístico. O desenvolvimento humano se apoia em um quadrilátero virtuoso: econômico, social, territorial-sustentável e democrático. A opção pelo desenvolvimento humano é uma opção pluralista. Não significa que todas as opções políticas coincidem com as propostas eleitorais apresentadas à população. Claro que o desenvolvimento humano implica que se leve em conta os quatro fatores do desenvolvimento, mas as prioridades ou pesos atribuídos a cada um deles nas políticas concretas é o que irá distinguir as opções eleitorais. Este conceito de desenvolvimento humano está relacionado com a mudança de visão do desenvolvimento e do papel das pessoas nele, que a sociedade do conhecimento ou a sociedade-rede incorpora. De fato, durante o pleno desenvolvimento da sociedade industrial, o homem (entendido como genérico de mulher e homem) era considerado um apêndice da máquina. Sua produtividade, multiplicada pela divisão do trabalho e pelas máquinas, era o elemento-chave do desenvolvimento. Este, por sua vez, era entendido em sua vertente mais restrita como crescimento econômico, em cuja origem estavam os investimentos em infraestrutura e grandes equipamentos. Já na sociedade do conhecimento, ao ser este a principal fonte de valor agregado, as pessoas, as equipes profissionais e a organização em rede das empresas atingem a sua máxima relevância. A tecnologia – e, principalmente, as tecnologias da informação – se converte no suporte necessário para que as pessoas e equipes produzam conhecimentos. Ao centrar-se nas pessoas, o desenvolvimento e a visão que se tem dele se aproximam mais das múltiplas dimensões de suas necessidades e, portanto, se tornam mais amplos. Por outro lado, o bem-estar já não se encontra no governo (em sua oferta de serviços), mas está nas pessoas. São elas que produzem bem-estar a partir de sua capacidade de usar os serviços colocados à sua disposição. Governança Democrática:

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A governança exige e precisa de democracia É possível entender a governança sem que a sua finalidade seja o desenvolvimento humano ou, ainda, pensar em uma governança não democrática? Se entendermos a governança em sentido estrito, como uma atividade especial do governo que busca a colaboração de atores em um tema concreto, e não como uma forma habitual de governar, é possível entendê-la como não democrática, sempre que os acordos entre o governo e os atores sejam realizados de costas para os cidadãos e motivados por uma política clientelista. Ao contrário, como modo de governar habitual, de um governo local que busca melhorar a capacidade de organização e ação de uma sociedade, se exige democracia, uma vez que se tornam necessárias a liberdade de circulação das ideias e interesses, assim como organizações abertas e flexíveis com as quais seja possível chegar a acordos sobre interesses legítimos. Por outro lado, a governança exige participação e envolvimento cidadãos. Dificilmente uma política que não se baseie em valores democráticos e de desenvolvimento humano poderá desenvolver-se através de amplos processos de compromisso social. Para outro tipo de objetivos prefere-se que não haja luz nem taquígrafos. De fato, e para evitar qualquer tipo de confusão ao denominar o modo de governar próprio do governo relacional, utilizamos a expressão governança democrática, conscientes de que se pode usar a gestão de interdependências em um sentido contrário ao desenvolvimento humano e aos próprios direitos humanos, ainda que seja sempre como atividade isolada e não como modo habitual de governar. Na governança democrática, infelizmente, também podem acontecer espaços de encontro clientelista, mas de maneira isolada, como em qualquer modo de governar. Porém, neste modo de 78

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governar, por seu caráter aberto e participativo, é muito mais fácil conhecer estas práticas clientelistas e, por isso mesmo, torna-se mais difícil que aconteçam.

A coesão social é o motor do desenvolvimento econômico e social A coesão social foi tradicionalmente entendida como o desenvolvimento de políticas públicas e mecanismos de solidariedade para o acesso da cidadania aos benefícios e serviços de bem-estar financiados com fundos públicos. A coesão social, portanto, era considerada como um resultado do desenvolvimento econômico, entendido fundamentalmente como crescimento da renda. Esta é básica para poder aumentar os impostos e financiar os serviços públicos de saúde, serviços sociais, educação, cultura, etc., que geram bem-estar social e educação. Neste esquema próprio do modelo de crescimento da sociedade industrial, ao situar o desenvolvimento econômico como principal prioridade, justificou-se a sua busca por qualquer meio, não somente suspendendo os direitos sociais, mas também os direitos democráticos. O importante e fundamental era que houvesse investimento, especialmente em infraestrutura, tecnologia e grandes equipamentos que incrementassem a produtividade. Na atualidade, o tema está passando por grandes transformações. O conceito de coesão social foi ampliado e, paralelamente com o surgimento da sociedade-rede ou do conhecimento, a coesão social começa a ser entendida como um fator prévio ao desenvolvimento econômico e social sustentado e sustentável. Vejamos ambos os aspectos. O escritório de coordenação do Programa Eurosocial observa: “De uma perspectiva individual, a coesão social supõe a existência de pessoas que se sentem parte de uma comunidade, particiGovernança Democrática:

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pam ativamente em diversos âmbitos de decisão e são capazes de exercer uma cidadania ativa.” 23 Acrescenta três novos elementos à coesão social: sentimento de enraizamento, cidadania ativa e participação social. No mesmo sentido do programa mencionado, a organização do governo britânico I&DEA24 define uma comunidade socialmente coesa através de quatro características: 1. Tem uma visão e um sentimento de enraizamento compartilhado. 2. A diferença de circunstâncias, ambiente e culturas é valorizada como um fato positivo. 3. Independentemente do seu ambiente, as pessoas têm oportunidades de vida semelhantes. 4. Desenvolve relações fortes e positivas entre pessoas de ambientes muito diversos, quer seja no trabalho, na escola ou no bairro. Neste ponto, e considerando que o Programa Eurosocial e, em especial, o I&DEA definem a coesão social pela qualidade, complexidade e diversidade das relações entre os cidadãos e vizinhos, antecipo uma tese: a coesão social, entendida como atributo de relações sociais, deve ser considerada como fator-chave e desencadeante do desenvolvimento humano. Isto é, mais do que resultado da distribuição de renda ou acesso a equipamentos e serviços financiados pelo desenvolvimento econômico anteriormente ocorrido no território, defendo que é preciso existir coesão social prévia, concebida como condição para que ocorra um desenvolvimento territorial endógeno, sustentável e sustentado no tempo. 23 Ver Fundación Internacional y para Iberoamérica de Administración y Políticas Públicas – FIIAPP, Documento de discussão da Jornada “A coesão social: um desafio para a Europa e América Latina”, 2007, p. 1. 24 Ver <http://www.idea-knowledge.gov.uk/>

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De fato, como consequência do aparecimento da sociedade-rede ou sociedade do conhecimento, que transformou tanto a concepção do desenvolvimento econômico como a do desenvolvimento social, constatou-se que não são as infraestruturas que geram o crescimento econômico e a renda. Estas impactam a sociedade gerando produtividade e alto valor agregado apenas se inseridas na organização de redes sociais e empresariais. Este novo enfoque serviu para demonstrar a caducidade do ponto de vista anterior, e pode-se mostrar que o fundamental e prioritário é conseguir o avanço da coesão social, entendida como capacidade de organização e ação. Ao propiciar a utilização dos recursos físicos e humanos disponíveis, ela é que é capaz de gerar atualmente, por si mesma, não apenas um maior desenvolvimento da produtividade, e consequentemente da renda e dos serviços públicos, mas do desenvolvimento humano em geral, uma vez que promover a coesão de uma sociedade exige democracia e, naturalmente, sustentabilidade, isto é, capacidade de regeneração dos recursos do entorno territorial. A melhoria da capacidade de organização é um valor intangível, com maior impacto no desenvolvimento humano. Por desenvolvimento humano (econômico, social, cultural, sustentável e democrático) de um território, na atualidade, se entende, sobretudo, alcançar um diferencial entre o que uma sociedade faz e o que é capaz de fazer em relação ao seu entorno econômico e social. Pode-se objetar que esta definição é também válida para outros períodos históricos, o que é absolutamente certo. Entretanto, o predomínio do enfoque do pensamento da sociedade industrial e dos governos gestores e provedores, que atribuía o desenvolvimento econômico às infraestruturas e equipamentos, dificultava visualizar outros fatores que atualmente podemos identificar. Com as lentes da antiga concepção, não se podia observar a amplitude dos fatores que geram o desenvolvimento e, em especial, a importância da capacidade de transformação da própria sociedade. Como explicaria Einstein, é preciso Governança Democrática:

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um novo enfoque para conseguir um avanço nas ciências, neste caso, na teoria do desenvolvimento. As infraestruturas, podemos afirmar claramente, são importantes para o desenvolvimento econômico, mas não são estritamente necessárias e em absoluto suficientes. O desenvolvimento depende da capacidade de organização e ação de uma sociedade. Em outras palavras, da capacidade de articular seu potencial humano e o capital físico com a finalidade e objetivo de promover o progresso de modo amplamente compartilhado. Do mesmo modo que existe uma capacidade de organização adequada, é possível identificar projetos de capital físico adequados para melhorar sua competência e a geração de valor. O esquema é o seguinte:25

Desenvolvimento territorial Capital físico e humano

Capacidade de organização

A coesão social é o principal objetivo da governança As razões anteriores justificam que a capacidade de organização e ação de um território seja o objetivo principal do novo modo de governar. Pois bem. Quais são os fatores estruturantes da capacidade de organização e ação ou, o que é o mesmo, da construção coletiva do 25 J. M. Pascual Esteve em La Gestión Estratégica de las Ciudades: Un Instrumento para Gobernar las Ciudades en la Era Infoglobal. Sevilha: Junta de Andalucía, 2002.

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desenvolvimento humano? No meu entendimento, hoje já podemos identificar os seguintes fatores:26 • Existência de uma estratégia compartilhada entre os principais atores. Uma estratégia integral e integradora com claros compromissos de ação em permanente atualização, centrada no bem-estar das pessoas e baseada nos interesses dos principais atores. • Um modelo de interação social entre os principais atores, adequado: ✦✦

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Aos desafios e exigências do desenvolvimento contemporâneo, que permita enfrentar os conflitos inevitáveis com flexibilidade e confiança de chegar a acordos com benefícios recíprocos. Às correlações de força ou equilíbrio de poder entre eles. Às configurações mentais ou culturais que promovam o respeito e o conhecimento recíproco e se orientem à ação a partir de compromissos igualmente recíprocos.

O modelo de interação entre os agentes econômicos, sociais e políticos é fundamental para a determinação da estrutura produtiva de qualquer região ou país. A falta de flexibilidade do modelo e a cooperação entre poucos, através do qual se “submete” a maioria, produzem insegurança e, com ela, a ausência de visão de médio e longo prazos, assim como o uso de tecnologias que utilizam pouco capital fixo. Um modelo aberto e flexível favorece a confiança e a aposta empresarial e social, que se traduz em um importante desenvolvimento econômico e social. 26 Para uma explicação mais detalhada, ver J. M. Pascual Esteve, Estrategia Urbana y Gobernanza. Barcelona: Ed. Diputación de Barcelona (Área de Promoción Económica), 2007. Governança Democrática:

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• A presença de redes de atores para o desenvolvimento de projetos-chave e complexos. Os projetos em rede permitem articular os esforços de distintos atores públicos e privados, ao serem capazes de combinar os diferentes interesses e desafios de objetivos comuns e socialmente úteis. A estratégia territorial exige o compromisso de ação por parte dos principais atores do território para desenvolvêla. Porém, a partir de uma posição de atores entendidos como organizações coerentes em si mesmas, com relações entre elas frequentemente conflitantes, é necessário um processo de construção de redes até que os compromissos concretos de ação sejam alcançados. Isto a partir de uma situação inicial distinta em cada território, até que as relações entre os âmbitos público e privado, entre administração e sociedade sejam situadas no terreno da corresponsabilidade. Este processo de melhoramento relacional27 deve ter um tratamento coordenado, mas, logicamente, diferenciado do processo de definição da estratégia territorial. O resultado do processo é conseguir a identificação de uma estratégia concreta com um compromisso claro de ação. • Uma cultura de ação e compromisso cívico distanciada tanto da cultura da satisfação quanto da queixa, do burocratismo e do niilismo. A cultura de ação deve proporcionar: ✦✦

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Um sentimento de enraizamento e identificação com a cidade ou região. Dispor de um sentido coletivo aberto, não fechado. Atitude aberta, tanto à inovação como à integração social e cultural de novas pessoas e à inserção em

27 Ver a respeito X. Mendoza, “Las transformaciones del sector público en las sociedades avanzadas: Del Estado del Bienestar al Estado Relacional”, Papeles de Formación de la Diputación de Barcelona (1996) e A. Vernis, “La relación público-privada en la provisión de servicios sociales”, Papeles de Formación de la Diputación de Barcelona (1995).

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estratégias territoriais mais amplas que o próprio município, a própria região e nação. ✦✦

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Esperança realista no futuro, que permita ver além da realidade, se esta é sombria (“Queremos promessas, não mais a realidade”, diziam os argentinos durante uma de suas crises econômico-financeiras), e que gere expectativas racionais nas inversões de capitais e nos esforços humanos. Legitimação e reconhecimento social da figura da pessoa e instituição promotora. Respeito e confiança na atuação dos outros atores, que é a base para a geração do capital social.

• O apoio social e a participação cidadã. As estratégias e os principais projetos estruturantes devem dispor de um importante apoio social, e este será mais efetivo se a participação cidadã for estimulada e garantida, entendida em dois sentidos: como garantia de que seus principais desafios e expectativas serão considerados nas estratégias, e como condição para sua responsabilização e envolvimento social gerador de capital social. • A existência de lideranças formais e informais entre os atores institucionais-chave, com capacidade de aglutinar e representar a maioria dos interesses, pactuar e respeitar institucionalmente suas decisões. A liderança principal deve corresponder, como já assinalamos, à instituição mais democrática, isto é, a escolhida por toda a cidadania. Do contrário, nos encontraríamos com uma liderança corporativa a partir da qual não é possível construir o interesse geral, uma vez que se reduz ao corporativo. Como assinala J. Subirats, “o grau de liderança das instituições representativas no processo de governança das comunidades vai derivar de sua capacidade para envolver o restante dos atores, agentes e pessoas presentes Governança Democrática:

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na sociedade na construção de um modelo de futuro compartilhado”.28 • A articulação de políticas regionais e locais. Trata-se de conceber a região como sistema de cidades e municípios, com capacidade de: Combinar as políticas regionais e locais com objetivos e instrumentos no conjunto do território, com as estratégias locais com capacidade de dar especificidade e integridade ao conjunto de ações, fortalecendo a cooperação pública e a colaboração cidadã. ✦✦ Articular os municípios não a partir de uma organização territorial fixa, mas de uma maneira flexível e adaptável em função do projeto-rede. Quer dizer, dos territórios que abarcam o desenvolvimento do projeto. ✦✦ Dispor de regras de jogos formais e informais que pautem a interação entre administração regional e as municipais, assim como as intermunicipais. • A habilidade de uma cidade para posicionar-se frente ao futuro. Isto é, a capacidade de antecipar-se a novos desafios, renovando permanentemente a estratégia, gerando novos projetos e dando novos enfoques aos temas sociais. ✦✦

A gestão relacional é a modalidade de gestão característica da governança O fato de serem as cidades os principais centros de inovação e desenvolvimento econômico e social dos países deve-se, fundamentalmente, à densidade das interações entre seus distintos membros e organizações. Da complexidade, diversidade, intensidade e qualidade dessas interações dependerão as vantagens 28 J. Subirats, “¿Qué gestión pública para qué sociedad?. Una mirada retrospectiva sobre el ejercicio de la gestión pública, en las sociedades europeas actuales” em Instituto de Gobierno y Políticas Públicas. UAB.

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comparativas do desenvolvimento humano que uma cidade ou região metropolitana terá. A gestão relacional é o tipo de gestão pública que, no nosso caso, é levada a cabo pelos governos territoriais para incrementar a intensidade, qualidade e diversidade das interdependências e interações dos atores econômicos, sociais e institucionais e os distintos setores da cidadania. Seu objetivo é melhorar a criatividade, a confiança, a colaboração e a cultura empreendedora e de ação cívica do conjunto da cidadania para conseguir, coletivamente e de maneira compartilhada e cooperativa, um maior desenvolvimento humano. A gestão relacional é própria do que se denominou sociedades inteligentes, ou seja, aquelas que, segundo as palavras de A. Marina, incrementam a capacidade de criação e de solidariedade dos cidadãos.29 Logicamente, a pretensão não é gerenciar todas as relações sociais, mas tão somente aquelas que têm relação com a construção compartilhada do desenvolvimento humano. Os âmbitos privilegiados da gestão relacional entre os governos territoriais e a sociedade civil são: • Por um lado, as relações com os agentes com maior capacidade de transformação do território, via recursos e competências ou sua legitimação social pelo conhecimento e estatura moral. Neste grupo encontramos: ✦✦

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As relações intergovernamentais: tanto entre diferentes níveis de governo em distintos âmbitos territoriais, como relações multilaterais entre governos do mesmo nível territorial, sejam intermunicipais ou inter-regionais. As relações com grandes instituições: universidades, centros de pesquisa e desenvolvimento, câmeras de co-

29 J. A. Marina, La inteligencia fracasada. Barcelona: Editorial Anagrama, 2004. Governança Democrática:

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mércio, fundações culturais e educacionais de prestígio, igrejas, etc. ✦✦

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As relações com o setor econômico privado: setores econômicos produtivos e financeiros, empresas de capital de risco, confederações e associações empresariais, etc. As relações com agentes sociais e profissionais: sindicatos, agremiações profissionais, associações de moradores, importantes movimentos sociais, etc.

• Por outro lado, relações destinadas a articular o tecido social e fortalecer o capital social do território: ✦✦

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As relações com entidades sociais que têm também um papel de intermediação. Uma tarefa de mediação para alcançar um espaço de inter-relação entre entidades sociais.

• Por último, sem que neste caso signifique em absoluto baixa prioridade: ✦✦

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Relações diretas com os cidadãos entre os períodos eleitorais. É importante dispor de múltiplos mecanismos de informação, comunicação e deliberação tanto para conhecer diretamente opiniões, desafios e necessidades, e conseguir, efetivamente, que as políticas respondam aos interesses do conjunto da cidadania, como para fortalecer uma cidadania ativa. Participação eleitoral. Deve ser considerado que são as eleições democráticas o principal e mais decisivo modo de assegurar que as políticas governamentais tenham em conta as preocupações dos cidadãos. A qualidade da representação é o que há de essencial numa democracia e a liderança baseada na representação é o principal fator de êxito na governança democrática. construção coletiva do desenvolvimento humano

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A gestão relacional se assenta em um conjunto de técnicas e instrumentos A gestão relacional como instrumento de governança não é somente um enfoque da realidade social e, em especial, do modo de governar. Ela necessita também de técnicas e instrumentos que façam dela um mecanismo eficaz do desenvolvimento humano. Precisamente, este novo enfoque é o que permite transformar novos métodos em instrumentos de gestão ou identificar e adaptar antigas técnicas, propiciando-lhes um papel renovado na gestão das relações sociais. Sem dúvida, o avanço da gestão relacional e as próprias transformações que sua aplicação propicia condicionarão o surgimento de novas técnicas e o aperfeiçoamento das existentes. Em uma publicação da Área de Promoção Econômica da Província30de Barcelona, expliquei em detalhes as características de uma série de técnicas que já demonstraram sua eficácia na gestão relacional, e que enumero a seguir para que o leitor tome conhecimento do amplo leque de ferramentas já existente:31 • Os planos estratégicos, desenvolvidos nos territórios a partir da cooperação público-pública e público-privada e a participação cidadã, constituem um bom início da gestão relacional própria da governança ao dotar os territórios de uma estratégia compartilhada entre os principais atores e com um amplo apoio social. O planejamento estratégico, assim entendido, constitui a fase inicial ou 30 No original, Diputación (Província). Trata-se de um governo supramunicipal de âmbito territorial denominado Província. Na Espanha, a organização territorial é a seguinte: os municípios se agrupam em Províncias e estas se agrupam em Comunidades Autônomas (equivalentes aos estados no Brasil). Os órgãos de governo da Província são eleitos pelas prefeituras em função do número de vereadores, que, por sua vez, depende do tamanho da população do seu município. (Nota do tradutor) 31 J. M. Pascual Esteve, Estrategia Urbana y Gobernanza, op. cit. Governança Democrática:

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fase de planejamento propriamente dito da gestão das interdependências ou gestão estratégica.32 A metodologia dos planos estratégicos é um bom instrumento para o início da governança territorial.33 • A negociação relacional dos conflitos públicos. As técnicas de negociação relacional constituem um bom instrumento para o desenvolvimento da gestão de interdependências ou gestão relacional. A negociação relacional é um tipo de negociação com características próprias, porque o resultado buscado por parte de um dos negociadores é consolidar e melhorar a relação entre os protagonistas para obter maior confiança mútua e poder desenvolver projetos com base na cooperação. • Técnicas de mediação. No paradigma do governo gerencial, era costume o governo ser uma das partes. Em conflitos entre grupos sociais no território, é difícil encontrar o governo fazendo o papel de mediador entre os atores. Na perspectiva da governança, em que os governos locais e regionais assumem a liderança na construção coletiva do território, a mediação é, sem dúvida, um dos recursos dos políticos e profissionais da administração. Na mediação, o papel da administração é intervir para que uma situação conflituosa entre atores sociais possa encontrar uma solução e, no processo, melhore a imagem das partes e a confiança entre elas. A ação do governo é a de ser catalisador de um acordo sem converter-se em parte do mesmo. 32 Para o desenvolvimento desta tese, ver J. M. Pascual Esteve, De la planificación a la gestión estratégica. Barcelona: Ed. Diputación de Barcelona, 2001. 33 J. M. Pascual Esteve, La estrategia de las ciudades. Los planes estratégicos como instrumento: métodos, técnicas y buenas prácticas. Barcelona: Ed. Diputación de Barcelona, 1990. Neste livro exponho um conjunto de métodos e técnicas que são úteis para a elaboração de planos estratégicos territoriais que servem como início da governança.

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• Técnicas de participação cidadã e apoio social às políticas públicas. Das estratégias de participação deve-se passar à participação como estratégia para fortalecer a capacidade de organização e ação. Das inúmeras técnicas de participação, na área da gestão relacional, são especialmente úteis as que: (1) se baseiam em procedimentos claros e simples, com finalidades precisas que facilitam a expressão de ideias e desafios sobre um tema ou assunto e, naturalmente, impedem que se prolonguem eternamente os debates. Participação é método e organização. Do contrário, a participação se reduz a poucos participantes, pouco reflexivos, dado que seu interesse é menos convencer do que se impor pelo cansaço; (2) ajudam a gerar confiança, colaboração e responsabilidade cidadã nos acordos realizados; (3) permitam legitimar objetivos e projetos da cidade e obter um importante apoio da cidadania aos mesmos. • Métodos e técnicas de gestão de projetos em rede. As técnicas para a gestão de redes são fundamentalmente de dois tipos: a gestão da dinâmica da rede, que abarca desde a inclusão dos atores-chave ao fomento de projetos que consolidem os interesses comuns. As técnicas de gestão de estruturas para adequá-las aos objetivos para os quais foram criadas e permitam fortalecer uma cultura ou uma perspectiva comum. É particularmente útil para a gestão de redes o uso das matrizes de atores no marco da gestão sistêmica por objetivos.34 • Gestão da cultura empreendedora e cívica da cidadania. A tecnologia para fortalecer as características de uma cultura empreendedora e de ação entre a cidadania é muito 34 Ver J. M. Pascual Esteve, La estrategia de las ciudades: métodos, técnicas y buenas prácticas. Barcelona: Ed. Diputación de Barcelona, 1999, pp. 157-162. Governança Democrática:

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recente e tive a oportunidade de sistematizar os indicadores para o monitoramento de sua evolução através de pesquisas aleatórias e por amostragem para o Centro de Estratégias e Desenvolvimento de Valência (Ceyd, na sigla em espanhol). O processo de gestão da cultura empreendedora exige, na perspectiva da governança democrática, uma grande transparência e um acordo democrático entre os principais setores da cidadania para desenvolvê-la. Não obstante, dispomos de instrumentos cujos efeitos podem ser observados em curto prazo, muito embora sejam poucos os resultados conjunturais. Referimo-nos às técnicas de “city ou regional marketing” interno, ou seja, o marketing voltado para a identificação dos próprios cidadãos com o seu território. A respeito do marketing interno, do ponto de vista da governança, é recomendável o enfoque e as metodologias propostas por T. Puig, relacionadas à criação de uma marca do território construída de maneira coletiva e com capacidade de convencer e comover.35 É aconselhável adotar o posicionamento do Ceyd relativamente à gestão da memória, cujo direcionamento deve estar voltado para a geração de uma consciência coletiva capaz de unir tradição e modernidade e aproveitar o passado para fundamentar aspirações e valores democráticos e solidários para o presente e o futuro, isto é, olhar o passado com os olhos do futuro, tal como observava H. Arendt.36 35 Ver T. Puig, La Comunicación cómplice con los ciudadanos. Madri: Siglo XXI, 2003. 36 Ver J. M. Pascual Esteve, “La gestión de la memoria en la estrategia de las ciudades”. Revista del CEYD, Valência, 2005.(www.ceyd.org)

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• “Coaching” para a liderança relacional. Na governança, o que se fortalece é o valor da representação do político, e dele se requer capacidade para escutar, dialogar, compreender, convencer, comover e motivar para a ação coletiva e para a responsabilização e compromisso social da cidadania. • Por outro lado, na governança os resultados da sua ação já não são tanto os serviços, e sim o nível geral do desenvolvimento econômico e social alcançado no território durante seu mandato e o grau de coesão social alcançado com a cidadania. É preciso apresentar o balanço da sua gestão relacional, e para isso são necessárias novas formas, novas atitudes e novas habilidades. • As técnicas de construção de consensos. Não é necessário insistir na importância destas técnicas na governança. De fato, as técnicas anteriormente citadas sobre negociação relacional e participação cidadã incluem necessariamente o consenso. Mas existe uma grande pluralidade de metodologias e técnicas amplamente testadas, além das citadas, que devidamente adaptadas podem ser utilizadas nos diferentes âmbitos em que se desenvolve esta nova arte de governar. • O enfoque abrangente nas ciências sociais. Na governança é necessário compreender o que diz cada ator em seu contexto social e poder entender não apenas o que expressa, mas como e porque o diz. A compreensão dos atores e a análise dos conflitos, a partir das distintas perspectivas das partes, são condições absolutamente necessárias, embora naturalmente insuficientes para o bom desenvolvimento da governança. Trata-se de fazer inteligível a base subjetiva em que repousam os fenômenos sociais; a análise objetiva desses fenômenos é perfeitamente possível e compatível com o fato de que Governança Democrática:

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as ações humanas têm um caráter subjetivo. Este enfoque, também denominado interpretativo da ação social, tem em Max Weber seu autor mais clássico, e está voltado para a compreensão do sentido de uma ação para um ator, dando a conhecer os motivos entre a atividade objetivamente observada e seu sentido para o mencionado ator.37 • A direção sistêmica por objetivos.38 As técnicas de administração por objetivos são um bom instrumento para a gestão relacional. Não é este o caso da direção baseada em procedimentos protocolizados para se chegar a um resultado, uma vez que se trata de estabelecer objetivos comuns a um conjunto de atores que constituem um sistema social e, de acordo com eles, concretizar de maneira inovadora seus objetivos através de projetos cujo gerenciamento deve ser feito em rede.

Para desenvolver-se, a governança precisa ter êxitos eleitorais visíveis Como já observado, o governo relacional, com a governança como seu modo específico de governar, é um novo paradigma que está avançando nas ciências sociais, embora não constitua o modo de governar habitual nem na América nem na Europa. Para desenvolver-se, além das técnicas, a governança precisa de conteúdos nas políticas públicas e, especialmente, de êxitos eleitorais visíveis. 37 Podemos encontrar a exposição metodológica da sociologia compreensiva em Sobre la Teoría de las Ciencias Sociales (Barcelona, Península, 1971) e também em Economía y Sociedad, op. cit., no qual mantém a importância da subjetividade para a análise sociológica. 38 Para conhecer o enfoque sistêmico, recomenda-se a leitura de L. Bertalanffy, La Teoría General de Sistemas. Madri: F.C.E, 1981.

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Atualmente, e apesar da sua crise, é o governo gestor com o seu modo gerencial de governar que constitui a forma dominante de fazer política. Sem dúvida, uma das razões que explica a permanência do “gerencialismo” como modo habitual de governar é que se acha amplamente na consciência das pessoas o modo gerencial como a forma correta de fazer “política” (confundindo-se a prática dominante e o hábito com a postura correta e adequada). Considera-se que a política demanda o cidadão (sem ter em conta que, neste caso, se observa a lei de Say, que nos diz que a oferta, no caso a política, condiciona a demanda) e que qualquer posicionamento transgressor do modo de governar citado tende a ser rechaçado. A governança deve superar estes grandes obstáculos para se constituir como modo comum de governar os territórios. Por isso, como qualquer paradigma social em fase inicial, a governança só avança em experiências pontuais. Alguns poucos dirigentes políticos inovadores, em circunstâncias determinadas, colocaram em prática processos de governança, muitas vezes sem conceituá-los como tal. Essas experiências devem ser objeto privilegiado de análise e divulgação para melhorar o entendimento e possibilitar a concretização deste modo de governar, sobretudo se com a implantação da governança for constatado um importante progresso econômico e social através da colaboração entre governo e sociedade civil. Em especial, são importantes para a superação dos velhos modelos políticos a análise e divulgação dos êxitos eleitorais obtidos depois da aplicação das políticas baseadas no novo modo de governar. Estes são os principais caminhos para gerar um “caldo de cultura” idôneo para o surgimento de novas experiências de governança, para romper o obscurantismo na cultura política representado pelo gerencialismo. A governança como modo de governar tem uma grande autonomia em relação aos conteúdos das políticas, mas esta autoGovernança Democrática:

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nomia não é total. Existem as condições especiais, econômicas e sociais, que favorecem esta nova arte de governar. Os conteúdos concretos das políticas dos governos territoriais condicionam o bom desenvolvimento da governança. Sem dúvida, uma opção por uma cidade compacta, não segregada, baseada na complexidade e diversidade das relações humanas no espaço público, favorece a gestão relacional de qualidade. O envolvimento dos usuários e familiares nos programas voltados para o bem-estar social e para a educação, a difusão dos valores relacionados ao sentimento de “pertencer”, o comprometimento e a atribuição de um valor simbólico aos espaços coletivos, para convertê-los em lugares de encontro e convivência, são também condicionantes que favorecem o desenvolvimento do governo relacional e da governança como modo de governar as cidades. Os objetivos do Movimento AERYC (América-Europa de Regiões e Cidades) para a governança territorial têm esta tríplice finalidade: análise e divulgação das técnicas e instrumentos de gestão relacional e governança; boas práticas de desenvolvimento humano e êxito eleitoral baseado na governança; e identificação de conteúdos para a promoção da governança. Esta última, a partir da perspectiva dos grandes desafios confrontados pelos territórios: cidades, regiões, imigração, gestão do tempo, etc.

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3. O Governo Relacional e a Governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede

Ideias Principais 1. Nova desigualdade social e nova visão da pobreza. 2. A individualização das relações sociais e a geração de capital social. 3. Risco e vulnerabilidade social. 4. Imigração: identidade e multiculturalidade. 5. Mudanças

de famílias.

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na família: socialização com base na diversidade

a cidade à medida das mulheres: uma exigência.

7. Uma nova visão do tempo e espaço na sociedade-rede. 8. A centralidade dos valores na organização social. 9. A globalização do social. 10. Mudanças nas formas bem-estar social

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de prestação e gestão dos serviços de

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A mudança nas formas de governar os territórios não se justifica apenas pela necessidade de governar aprofundando a democracia e para alcançar maior eficácia e eficiência das políticas públicas, mas pelo fato de que está ocorrendo uma grande transformação em nossa sociedade que afeta a economia, a estrutura social, a organização do espaço, a educação, a cultura e, naturalmente, a estrutura do governo e o modo de governar. Estamos vivendo o processo de transição da sociedade industrial para a sociedade-rede ou sociedade do conhecimento. Isto significa uma mudança social tão importante como foi a passagem da sociedade agrícola e artesanal à sociedade industrial.39 A sociedade-rede assentada nas tecnologias da informação e comunicação tem na geração do conhecimento e na inovação, a partir da interação de diferentes agentes (pessoas, empresas, atores, setores produtivos, etc.), a principal fonte de valor agregado. A principal fonte de produtividade é o capital cultural ou intelectual, que é gerado e fortalecido a partir da qualidade e intensidade das interações humanas e empresariais, ou seja, da qualidade da organização das redes. Nas últimas etapas da sociedade industrial, predominava a organização fordista, e uma de suas principais características era a absorção pela empresa, na sua própria estrutura, da maioria das funções relacionadas com a produção (marketing, assistência jurídica, comercialização, etc.). Na atualidade, e dada a necessidade de inovar permanentemente, as empresas se especializam de maneira flexível naquilo que é a sua atividade central e terceirizam a maior parte das atividades de apoio à sua produção específica. Os conceitos de inovação, flexibilidade e adaptabilidade substituíram a especialização, continuidade e reprodução de atividades e produtos. Neste capítulo não vamos descrever todas as mudanças que afetam a transformação das nossas cidades. Trataremos tão so39 Ver M. Castells, La Era de la Información. Madri: Ed. Alianza, 2000. Vol.I.

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mente daquelas que atingem mais diretamente a situação social das pessoas e grupos sociais, particularmente dos que se relacionam mais diretamente com as políticas de bem-estar social e sua gestão por parte dos governos locais. No quadro seguinte, observamos as interdependências das mudanças tecnológicas, econômicas e sociais e, muito especialmente, das transformações sociais. Identificamos os principais desafios sociais que a gestão estratégica das cidades deve se propor enfrentar, isto é, aquela gestão cujo objetivo seja conduzir a cidade a patamares de maior qualidade de vida na sociedade global da informação e do conhecimento. Para simplificar, só assinalamos no quadro a influência da tecnologia nos desafios sociais, e omitimos o impacto destes desafios na tecnologia. Não obstante, devemos ter presente que existe uma interdependência dos distintos âmbitos estruturais e variáveis que o conformam.

Os Desafios Sociais Análise de tendências Economia

Estrutura Social

Desafios Sociais

Genética

Novos Setores Econômicos

Sociedade risco

Imigração terceiros países

Sociedade-rede Importância capital social Reestruturação do Estado do Bem-Estar Novo papel dos territórios

Centralidade ética e valores

Individualização das relações sociais

Estrutura social / Sociedade-rede

Economia Global

Nova desigualdade

Mercado de trabalho

Economia Informacional ou do conhecimento

Economia contemporânea

Base tecnológica / Era do Conhecimento

Estrutura ocupacional Informação a comunicação

Nova pobreza Risco e vulnerabilidade Identidade / Multiculturalidade Mudanças na família Igualdade de gêneros Crise na organização dos benefícios Crise fórmulas de intervenção

Desafios Sociais

Tecnologia

Globalização do social

Cultura dos valores

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A seguir, descrevemos os desafios sociais a partir das mudanças que estão ocorrendo na estrutura social das cidades.

Nova desigualdade social e nova visão da pobreza O fundamental para entender os novos processos de dualidade e polarização social nas cidades, anteriormente mencionados, é compreender que existe uma mudança no principal fator de geração das desigualdades de renda e poder em relação às cidades industriais. Nestas, era o acesso à propriedade do capital o fator fundamental para organizar os processos de produção e distribuição social dos bens e serviços na cidade, e, em especial, para alcançar um maior retorno econômico. Da renda dependia em boa medida o acesso à melhor educação, saúde, cultura e lazer. Daí resulta terem os benefícios do Estado do Bem-Estar Social sido direcionados tanto para assegurar a universalização dos serviços sociais, educacionais e de saúde básicos como para garantir determinados níveis de renda para setores vulneráveis da população – aposentados, desempregados, portadores de necessidades especiais –, como melhor forma de lutar contra a pobreza e a desigualdade social. Na atualidade, a União Europeia considera a pobreza em termos relativos de desigualdade. No II Programa de Luta contra a Pobreza, esta foi definida como aquela situação em que se encontram as famílias que recebem menos da metade da renda média da sociedade de referência. Esta definição continua hoje vigente no âmbito europeu. Na cidade da informação, o acesso ao capital cultural está se constituindo o principal fator gerador da desigualdade social, ainda que não o único. Nela, o fundamental é a capacidade de transformar a informação em conhecimento. Este é o principal gerador de valor agregado. O capital cultural não é conhecimen100

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tos concretos sobre arte e ciências. Capital cultural é a capacidade socialmente adquirida de produzir conhecimento partindo do acesso universal à informação. Capital cultural é proporcionado pelo domínio da linguagem, do conhecimento de conceitos, das técnicas de raciocínio, da faculdade de criar e imaginar; é conhecimento e atitude positiva em relação à inovação e à aprendizagem constante durante toda a vida.40 O capital cultural é fruto de uma educação em sentido amplo, que acontece na família, na escola, nas interações sociais. Depende da intencionalidade educativa que se atribua aos processos de socialização primária e secundária que acontecem na cidade. Nem a igualdade de oportunidades, nem a redução da pobreza podem ser alcançadas através da garantia de acesso aos serviços básicos e níveis de renda mínima. Isto será uma condição necessária, mas não suficiente. Para garantir habilidades sociais, educacionais e culturais básicas, será preciso desenvolver uma ação social global. Só assim poderão ser dadas oportunidades à equidade na sociedade do conhecimento. A criação de conhecimento vem sendo o primeiro fator gerador de renda, e o domínio social e empresarial se consolidam por esta via, como já observado por sociólogos e economistas como J. K. Galbraith, A. Gouldner, N. Bentham e A. Touraine. São os novos intelectuais, a inteligência, ou uma nova classe dirigente, cujos instrumentos de poder são a capacidade de criar e gerir conhecimentos. Junto a este novo fator diferencial dos processos de desigualdade contemporâneos, encontramos outras singularidades específicas. Em primeiro lugar, a dualização da estrutura ocupacional urbana. A terceirização nas cidades se desenvolve em dois polos muitos diferentes, o crescimento dos serviços avançados que requer uma força de trabalho muito qualificada e, também, o in40 B. Bernstein, Clases, Códigos y Control. Vols. I e II. Madri: Ed. Akal, 1988 e 1989. O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede

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cremento do terciário de baixa qualificação, muito relacionado com os empregos pouco qualificados no setor de lazer e hotelaria. Porém, também empregos relacionados com o que se denomina bolsa de empregos intensivos em mão-de-obra. Este é o caso dos serviços de ajuda a domicílio, assistência doméstica, lavanderia, mensagens e etc. Os empregos intermediários diminuem seu peso relativo, correlacionados com a redução do tamanho da indústria, do impacto das tecnologias da informação e das técnicas de gestão baseadas na reengenharia de processos, que reduzem os postos de trabalhos intermediários. A oferta de postos de trabalho de baixa qualificação nas cidades europeias e norte-americanas constitui um atrativo para imigrantes de países do Terceiro Mundo, e um incentivo para empregadores abrirem o mercado de trabalho aos estrangeiros.

A individualização das relações sociais e a geração de capital social A inovação constante em processos e produtos exige flexibilidade na estrutura ocupacional, para o que se requer uma força de trabalho com uma ampla formação de base polivalente que a permita adaptar-se às mudanças no sistema produtivo. A individualização das relações trabalhistas é outra característica da era da informação e do conhecimento. A especialização flexível e a tendência já assinalada de as empresas formarem redes locais e internacionais reduzem o tamanho de cada uma das unidades produtivas tomadas individualmente. Do mesmo modo, o trabalho com tecnologias da informação, da comunicação e também da robótica, individualiza os processos de trabalho e, ao contrário do trabalho mecânico da sociedade industrial, os trabalhadores na era do conhecimento não se submetem às maquinas e controlam o processo produtivo de maneira individual e não coletiva. 102

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Isto faz com que as organizações trabalhistas e, principalmente os sindicatos, cujas estruturas e objetivos surgiram na era industrial, estejam atravessando um processo de crise de adaptação para preservar a dignidade das condições de trabalho dos novos tipos de trabalhadores – com a tipologia mais ampla e diversificada de postos de trabalho, mais fragmentados em um maior número de empresas, com maior autonomia no processo produtivo e formação, e inseridos em um ambiente que está mudando o processo de formação das classes sociais. Isto não quer dizer que não existam desigualdades sociais, inclusive desigualdades crescentes. Porém, as desigualdades baseadas na organização em classes sociais e, em especial, na consciência de classe, perderam sua posição principal ou centralidade na sociedade. A individualização nas relações trabalhistas se articula com a maior individualização das relações familiares, resultantes da revolução social nas práticas sociais e nos valores que as legitimavam, representada pelo processo de autonomia da mulher através de sua plena incorporação à educação superior, ao mercado de trabalho e à atividade política. Uma sociedade mais individualizada não significa, necessariamente, uma sociedade mais egoísta e com maiores níveis de isolamento, mas simplesmente uma sociedade menos determinada pelas ações coletivas e mais sujeita às ações de cada uma das pessoas que formam a sociedade concreta. Individualização significa, por um lado, um processo de desvinculação das instituições e grandes organizações sociais e, por outro, um processo de nova vinculação a outras formas de vida social em que os indivíduos adquirem uma maior importância no desenvolvimento de suas próprias biografias. O florescimento das ONGs nas cidades pode ser relacionado com o trabalho de intermediação que elas exercem entre as pessoas e a sociedade. Quer dizer, uma intermediação mais flexível e atenta às particularidades ou singularidades pessoais, de caráO governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede

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ter mais voluntário e menos coercitivo do que as grandes organizações tradicionais – partidos, sindicatos e igrejas. A cidade é cada vez menos um sistema baseado nas grandes organizações, estruturando-se mais através do conjunto de redes de atores institucionais e pessoais que se formam nos âmbitos da economia, da cultura, da política e da ação comunitária. As transformações sociais urbanas situam o indivíduo, enquanto tal, no centro das interações e relações sociais, e isto representa a crise dos modos de vida urbana tradicionais. Em algumas cidades que se definem mais por sua constante transformação do que por sua ordem social, não existe, como observou A. Touraine,41 nenhum outro lugar fora do próprio indivíduo em que seja possível conjugar estratégias econômicas e identidades culturais. Um novo direito específico emerge em nossas sociedades caracterizadas pela globalização econômica e pelo encontro de culturas, o direito à individualização, que segundo o citado sociólogo tem que fortalecer a capacidade de cada ator individual ou coletivo alcançar a individualização, isto é, dar um sentido geral e próprio ao conjunto de condições das interações e comportamentos que formam sua existência e, portanto, a transformam em uma experiência. Neste sentido, as sociedades contemporâneas, ao se basearem mais nos indivíduos do que nas grandes organizações (igrejas, sindicatos, partidos...) e grupos sociais (classes, cooperativas profissionais, grupos com status social elevado...), facilitam as relações horizontais entre a cidadania e, com isso, a criação de capital social. Por capital social se entende “as expectativas de cooperação alimentadas por redes institucionais – as associações – que se materializam em pautas de cooperação continuadas”.42 41 Ver A. Touraine, Igualdad y Diversidad. México: F.C.E., 2001. 42 Ver C. Boix, Introdução ao livro Para que la democracia funcione. Barcelona: Ed. Proa, 2000.

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A geração de capital social, segundo o estudo de Putnam,43 é o que explica o maior avanço econômico e social e a qualidade da vida política democrática. A vantagem colaborativa é uma das principais forças motoras do desenvolvimento social, econômico e político, com um valor superior à disponibilidade de capital econômico e à oferta de infraestruturas e serviços. Gerar capital social nas cidades do conhecimento significa, hoje, em primeiro lugar, capacidade para criar os espaços nos quais cristaliza o movimento associativo. Porém, o florescimento de associações e seu fortalecimento é uma condição necessária, mas não suficiente. Para gerar capital social em uma cidade é preciso que exista ajuda mútua entre associados e, muito especialmente, que as finalidades associativas facilitem a cooperação para a produção de bens públicos. Uma cidade cheia de associações com finalidades singulares ou exclusivas para si mesmas será uma cidade com uma denominada sociedade civil organizada, porém incapaz de cooperar e promover confiança.44 A ampliação e o fortalecimento do tecido associativo para a geração de capital social são um desafio inevitável para os governos locais que pretendem desenvolver sua cidade na era do conhecimento. Dizer cidades da informação e do conhecimento é o mesmo que dizer cidades da educação, em que a educação geral aumenta notadamente e, sobretudo, um grupo social cada vez mais numeroso dispõe de educação superior que se recicla, necessariamente, em períodos temporais cada vez mais curtos. Isto significa um aumento do que Giddens denominou reflexividade social da cidadania. Nestas condições a política democrática mais adequada é sem dúvida a que se baseia na autonomia dos cidadãos, na sua liberdade, não apenas de eleger, mas também de produzir a opção 43 Op. cit. 44 Ver Boix, op. cit., pp. 20-29. O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede

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mais interessante. A chave consiste na educação e na cultura de valores e solidariedade que permitam articular a autonomia como base de uma interdependência geradora de confiança, colaboração e sentido comunitário, potencializando de forma equilibrada o reconhecimento de direitos com os deveres ou responsabilidades cidadãs. Uma sociedade educadora dificilmente é compatível com a visão de uma gestão pública distante das preocupações e demandas dos cidadãos, como tampouco é compatível com um sistema de garantias de Direitos e Responsabilidades organizado com base no Estado-nação e concebido de cima para baixo. A democracia não apenas não corre perigo em um mundo global na era do conhecimento, como pode ser fortalecida e aprofundada se o governo democrático for concebido como um governo de proximidade, capaz de articular interesses e gerar colaboração e corresponsabilização. Ou seja, a democracia na nova cidade significa descentralização de competências e recursos para os governos locais, para que eles possam, como veremos, inaugurar uma nova forma de governar baseada na gestão de redes cidadãs.

Risco e vulnerabilidade social O desenvolvimento da sociedade-risco impacta a nova estruturação das relações sociais. Por um lado, a vulnerabilidade é consequência da individualização das relações sociais em um tempo de flexibilização da estrutura ocupacional, no qual as transformações econômicas e tecnológicas são constantes. Por outro, entretanto, a vulnerabilidade cria uma nova cultura de provisoriedade que está favorecendo tanto as respostas do tipo intimista, que buscam a segurança no próprio “eu” – seja do tipo espiritual, como o budismo, as interpretações subjetivas do cristianismo, as psicológicoterapêuticas do tipo autoajuda, ou o apoio emocional. Ou, ainda, respostas do tipo social, criando culturas positivas para a mudança e inovação de natureza pessoal e, em especial, criando ou parti106

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cipando nas organizações sociais de caráter setorial ou territorial que estão na origem do aparecimento das teorias sobre o capital social e do novo impulso comunitário tão em voga na sociologia atual. Esta, sem dúvida, é uma perspectiva a ser incorporada nas políticas sociais urbanas que tenham como objetivo fortalecer a sociedade civil, e que são as que podem ser mais eficazes na cidade contemporânea. A vulnerabilidade social se associa diretamente a outra característica da vida urbana atual, que é o risco. O fato de entendermos nossas sociedades como sociedades de risco deve-se, fundamentalmente, às pesquisas e reflexões de U. Beck.45 Este professor da Universidade de Munique considera o risco como uma característica própria da cidade que se volta em direção ao futuro e que rompe efetivamente com o passado, com suas tradições e costumes. Não se trata de um risco externo à cidade, mas de riscos produzidos pela própria cidade em transformação, como a mudança nas relações familiares, na produção, na nossa intervenção no meio ambiente, nos sistemas de proteção e segurança social, na ruptura com as tradições. Trata-se de um risco produzido pela própria cidade (desenvolvimento da indústria genética, insustentabilidade, nova pobreza...). Sociedade-risco significa que os conflitos sociais deixam de ser tratados como problemas de ordem e segurança e começam a ser considerados como problemas de risco. O que significa que não têm soluções preestabelecidas e inequívocas, mas que se distinguem por sua ambivalência e podem ter suas “soluções” expressas em termos de probabilidade. Assumir socialmente o risco significa optar por inovação46 e criação, e buscar a segurança assumindo os riscos e abandonando 45 U. Beck. La sociedad del riesgo. Madri: Ed. Paidós, 1992. 46 As respostas aos novos desafios e riscos a partir das visões e certezas das políticas próprias da sociedade industrial e do Estado do Bem-Estar Social contribuem para o colapso social. O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede

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as certezas da sociedade industrial, afrontando e tentando dirigir as transformações. Em outras palavras, trata-se de construir um projeto coletivo para dar intencionalidade às ações dos atores urbanos que são as geradoras de risco. Não optar por um projeto de futuro integral e integrador significa dar mais possibilidades ao desenvolvimento, em nossas cidades, das opções negativas de enfrentamento do risco, como o fundamentalismo – entendido como defesa de tradições inadequadas, por não serem mais funcionais para a garantia da qualidade de vida na cidade –, ou o racismo, como forma de culpar terceiros pelos riscos de perda dos costumes e tradições supostamente autóctones.

Imigração: identidade e multiculturalidade O baixo crescimento vegetativo da população nas cidades europeias, conjugado ao incremento da oferta de postos de trabalho pouco qualificados e ao forte incremento da população ativa sem possibilidades de ocupação nos países pouco desenvolvidos, explica o importante fenômeno imigratório que está ocorrendo em direção às principais cidades europeias. Para entender este fenômeno e adotar uma perspectiva adequada ao seu tratamento é preciso perceber quatro questões importantes: • Mais do que um problema, a imigração será uma solução sempre que coincida com a existência de postos de trabalhos suficientes para serem oferecidos à população imigrante, e desde que não exista concorrência entre imigrantes e a população local. A disputa por postos de trabalho é a principal fonte de conflitos e segregação, que se expressa não poucas vezes em termos racistas por parte da população local com menor nível de qualificação. A correlação que os estudos sociológicos têm demonstrado 108

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no sentido de que um maior nível de escolaridade corresponde a atitudes menos xenófobas encontra explicação no fato de que a população qualificada não entra em disputa com os imigrantes, já que esta em sua grande maioria é uma força de trabalho de baixa qualificação. • Em segundo lugar, os baixos níveis de renda e a necessidade de encontrar grupos com a maior afinidade possível para relacionar-se fazem com que em todas as cidades existam sempre determinados bairros que funcionam, efetivamente, como receptores de imigrantes. Se a situação de uma boa parte dos imigrantes é de pobreza ou de extrema pobreza e os governos locais não dispõem de recursos para investir na renovação urbana, serviços e equipamentos, tais bairros se degradam e a população local passa a atribuir à imigração tanto a degradação de suas condições de vida e de valor dos seus imóveis como a segregação social dos mesmos, particularmente se existe a presença de atividades ilícitas e o bairro é rotulado como perigoso. Em muitas ocasiões, os conflitos nesses bairros são rotulados como racistas, o que leva à segregação de seus moradores em dois grupos antagônicos, à intensificação e ampliação dos mesmos e, o que é mais importante, a uma concepção inadequada de sua natureza, o que dificulta encontrar uma solução baseada em acordo. • A imigração estrangeira (e, em especial, a que vem de lugares com idioma e religião significativamente diferentes aos do país receptor) se relaciona a setores da sociedade receptora como fator de perda de identidade, de tradições e costumes. À parte a debilidade histórica e sociológica desta argumentação, posto que as configurações culturais e idiomáticas de um país em um momento dado costumam ser produto da interação de realidades culturais plurais ao longo de sua história, é certo que hoje (como consequência da globalização e do encontro O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede

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cultural ao nível planetário, assim como da individualização das relações sociais) nos encontramos diante de uma reafirmação da identidade ou singularidade territorial e cultural. • Esta identidade entendida como sentimento de pertencer, como uma expressão de singularidade cultural que interage no interior da cultura universal em constante mudança, conduz à modernidade e à convivência e criatividade cultural, e à globalização da diversidade, segundo os especialistas.47 Porém, sem uma política ativa de respeito ao pluralismo e de tolerância cultural, facilmente podem unir-se, numa mesma visão segregacionista, a reafirmação da identidade com a defesa fundamentalista das tradições, costumes, e uma intolerância às expressões culturais respeitosas dos direitos humanos dos novos cidadãos.48 Em resumo, a verdadeira globalização cultural acontece nos municípios, nas cidades, que são o espaço de relacionamento, de encontro, de formação de amizades e inimizades entre pessoas de diferentes origens culturais. As cidades se encontram ante um fenômeno com novas dimensões, e não somente o seu futuro dependerá do tipo de ação coletiva que triunfe em cada uma delas e das possibilidades de atuação dos governos locais, como dependerá também a convivência do planeta, que cada vez mais é um sistema de articulação de cidades.

Mudanças na família A família formada por dois cônjuges e seus descendentes é, cada vez mais, apenas um dos diferentes modelos de família que 47 Ver, por exemplo, U. Beck, La democracia y sus enemigos. Madri: Ed. Paidós, 2000, e M. Castells, La era de la información. Vol. II. El poder de la Identidad. Madri: Ed. Alianza, 2001. 48 Ver G. Sartori. La sociedad multicultural. Madri: Ed. Taurus, 2001.

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encontramos na cidade atual. Sobressai o aumento das famílias monoparentais por diferentes razões: • O envelhecimento da população faz com que existam cada vez mais famílias monoparentais pelo falecimento de um dos cônjuges, geralmente o homem, devido à maior expectativa de vida da mulher. Este fato se vincula à separação física dos pais e filhos no território metropolitano. Isto dificulta a ajuda mútua no seio da família e, portanto, gera maior dependência dos serviços sociais. • Por outro lado, há também o aumento das famílias monoparentais chefiadas por jovens, principalmente de mulheres com filhos, devido ao rompimento do casamento. Este tipo de família é consequência direta do processo de emancipação das mulheres. Em um patamar inferior ao das famílias monoparentais, porém em ascensão, encontramos famílias polinucleares, nas quais convivem chefes de família de diferentes núcleos familiares. Esta é uma das consequências da pobreza em que vivem muitos imigrantes, que se veem obrigados a reagrupar distintas famílias ou membros de distintos núcleos familiares em uma só família. A existência de casais de fato, ainda em que muitas cidades tenha pouca relevância estatística, é sem dúvida um fenômeno com tendência a crescer, particularmente se tomamos como referência o que ocorreu nos países do norte da Europa. Este crescimento da tipologia familiar tem consequências muito importantes, que superam as evidentes implicações para o mercado imobiliário e se vinculam à programação de novos serviços de assistência e, muito especialmente, ao estímulo dos processos de ajuda mútua extrafamiliares, em particular nos bairros e setores sociais. Por outro lado, em uma perspectiva de apoio social que considere a grande maioria da cidadania, o pluralismo no convívio em nossas cidades faz com que se tenha que falar mais de políticas de família do que de política de apoio à família. O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede

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A cidade à medida das mulheres Observamos a importância da emancipação das mulheres, ao referirmo-nos ao processo de individualização das relações sociais e às mudanças na tipologia das famílias na cidade contemporânea. Porém, é necessário dedicar uma seção específica ao que, sem dúvida, é o processo de mudança mais importante nas relações sociais que atualmente está acontecendo nas cidades do Ocidente: a chamada revolução das mulheres. Trata-se de uma revolução pacífica, profunda e perseverante que está revolvendo as relações de autoridade e poder que se assentam e se reproduzem nos espaços da vida cotidiana em nossas cidades. O aparecimento da cidade está intrinsecamente ligado ao papel da mulher. As cidades surgiram por volta do ano 7000 a.C., sendo consideradas as primeiras Catal Huyuk, que se situava perto do Irã e Iraque, e Jericó, atualmente na Palestina. Na cidade, zona de intercâmbio de objetos entre nômades e caçadores, como pontas de lança e peles, nasceu a agricultura, que fixou a população e cujos produtos também passaram a ser objeto de comércio. A cidade cria a agricultura e, portanto, a civilização. Entretanto, a origem da agricultura e da cidade como promotora da civilização é a mulher. Eram as mulheres que se dedicavam à colheita e conservação de alimentos, que começaram a plantar e inventaram a agricultura, permitindo assim sustentar o crescimento demográfico das primeiras cidades. Nestas não houve patriarcado e a principal protagonista foi a mulher.49 A mulher deixou de ter um papel relevante quando a agricultura se estendeu para fora das cidades e se converteu na atividade 49 Ver E.W. Soja. “La mujer dominó las primeras ciudades”. Entrevista em La Vanguardia, 8/8/2001.

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dominante. Foi quando então apareceu o patriarcado, contemporâneo em muitas sociedades primitivas do aparecimento da exploração. Desde então, a história do autoritarismo, da repressão e exploração se relaciona à dominação da mulher pelo homem. As sociedades, ou etapas sociais de uma mesma sociedade, mais repressivas e exploradoras coincidem com uma maior intensidade dessa domínio, sendo difícil saber se foi a opressão generalizada que o gerou ou se ele é a chave para entender o aparecimento do autoritarismo. O certo é que no Ocidente, nos países do Primeiro Mundo inseridos na era infoglobal, o processo de emancipação da mulher significa a quebra das relações de autoridade e dominação estabelecidas na sociedade industrial, muda a estrutura do mercado de trabalho e dá sustentação ao surgimento de novas relações sociais e familiares. A cidade infoglobal pressupõe a entrada massiva da mulher no mercado de trabalho. Na maioria dos países do Primeiro Mundo, o número de mulheres nas universidades é superior ao dos homens, há muito tempo. A população feminina tem maior êxito escolar que a população masculina. Isto, evidentemente, não significa que, na maioria das cidades, as desigualdades de gênero e o domínio masculino nos postos de direção das empresas e instituições públicas ainda não sejam notórios, mas o que nenhum analista pode deixar de ressaltar é o processo de mudança em curso. As transformações urbanas anteriormente apontadas, como a individualização das relações sociais, o aparecimento de novos tipos de família, a criação de capital social, etc. estão intrinsecamente ligadas ao processo de emancipação da mulher. Entretanto, o mais interessante é que o movimento de mulheres tenha se voltado recentemente para a análise da cidade – da sua morfologia até seus conteúdos, das infraestruturas à cultura, do seu passado ao seu futuro – e desenvolva suas perspectivas de ação a partir do ponto de vista da mulher. O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede

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A visão da mulher perpassa a cidade em sua totalidade.50 Os espaços públicos, a moradia, a mobilidade, a assistência social e a saúde, a educação e a cultura, o turismo... tudo é repensado a partir do seu ponto de vista. Estamos diante do posicionamento mais amplo e integrador que um movimento social jamais fez sobre a cidade, justamente pela ampla diversidade de “papéis” que as mulheres assumem na cidade: estudante, trabalhadora, mãe... Por outro lado, a visão da cidade a partir da perspectiva das mulheres integra outros pontos de vista sobre a mesma. Este é o caso da cidade das crianças formulada pela pedagogia ativa; em sua condição de mãe e educadora, a mulher assume a postura de forjar a cidade a partir da condição dos meninos e meninas. Ela também assume as posições sobre a acessibilidade defendidas pelo movimento urbano protagonizado por pessoas portadoras de necessidades especiais, ao coincidir no tempo as necessidades de mobilidade de todas as mulheres no período de gestação e maternidade com as das pessoas com problemas físicos. Assume, igualmente, as políticas por mais bem-estar e autonomia dos idosos, em razão da sensibilidade derivada do seu papel de guardiã da família, que a divisão social do trabalho lhe impôs. A emancipação das mulheres e, em especial, os avanços na igualdade de gênero em que o homem também assume novos papéis e perspectivas, contribuirão sem dúvida para o fato de que tanto mulheres como homens assumam um projeto de cidade mais equilibrada, acessível, sustentável e equitativa, isto é, um projeto de cidade de todos. A Cidade do Conhecimento pode encerrar o ciclo que se iniciou logo depois que as mulheres inauguraram as civilizações, o fim da era patriarcal, mas o mais certo é que hoje as mulheres já estão reestruturando as relações sociais e os modos de conceber a vida cotidiana. 50 Ver as conclusões do I Congresso das Mulheres de Barcelona. Prefeitura de Barcelona.

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Para isso, no entanto a política de igualdade de gênero deve contemplar hoje, mais do que nunca, ações positivas para os coletivos de mulheres em posição mais desfavorável do ponto de vista da emancipação da mulher. Em especial, o impacto na desigualdade das imigrantes, que vivem em maior nível de pobreza econômica e relacional associado a uma maior relação de dependência aos homens.

Uma nova visão do tempo e do espaço O progressivo avanço na direção da cidade da informação e do conhecimento significa a ruptura dos modelos referenciais de espaço e tempo próprios da cidade industrial. Entre tais mudanças, podem ser destacadas as seguintes: • Rompe-se a separação, ao longo da vida, do tempo de aprendizagem, tempo de trabalhar e tempo de aposentar. A aprendizagem ocorrerá ao longo de toda a vida, e será combinada com o tempo de trabalhar e também com o tempo de aposentadoria. Por sua vez, o tempo de trabalhar se combina com o lazer e a qualidade de vida. A aposentadoria rompe os rígidos condicionantes da idade e se estende ou se reduz, atendendo, cada vez mais, a situações concretas e, inclusive, individuais. • Todos os tempos da vida se fazem presentes em um momento dado e se tornam interdependentes. • Aparece uma nova relação tempo/distância. As tecnologias da informação permitem o funcionamento em tempo real da economia, das relações sociais. A comunicação é feita de modo imediato e as distâncias se aproximam através da comunicação escrita, sonora e visual. • O trabalho tem uma continuidade permanente ao longo do espaço. As diferenças de horário entre os continentes permitem a continuidade nos trabalhos, nas empresas O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede

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de conhecimento que trabalham em rede, uma vez que um mesmo projeto pode ser continuado ao finalizar a jornada de trabalho em outro país com diferença horária. • O fim da divisão entre espaço de trabalho e o espaço doméstico, devido ao fato de que as Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC) permitem às equipes trabalhar em rede em espaços diferentes e conectar-se a partir de qualquer lugar e em qualquer momento. • As TICs permitem em boa medida criar um ambiente do “lá” no “aqui”, acompanhando as notícias, criando um ambiente de música e de comunicação, de tradição; permitem a vivência de culturas diferentes num mesmo espaço. Estas rupturas espaço-temporais apenas começaram e ainda é cedo para identificar com clareza as mudanças em profundidade que serão capazes de introduzir nas relações sociais e na dinâmica das cidades. Mas qualquer estratégia urbana deve estar atenta para tais transformações e seu impacto social para que a cidade possa ser direcionada a metas de autonomia dos cidadãos e progresso social.

A centralidade dos valores na organização social A emergência da ética dos valores, inclusive acima da ética das normas, é mais uma característica da sociedade contemporânea. A questão ética na gestão pública e privada e, em geral, sua revalorização social não são consequência de uma reação social à sua ausência nos comportamentos econômicos, sociais e políticos – que é, de fato, um tema muito discutível –, mas se deve, fundamentalmente, a dois temas estruturais: 116

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• A inovação social • O desenvolvimento da indústria genética O intenso e extenso processo de inovação econômica e social rompe os hábitos e normas de comportamento estáveis para gerar um ativo, ou, inclusive, proativo processo de adaptação permanente a mudanças e a novos desafios sociais. A mudança, ainda que possa parecer uma contradição em termos, é a constante das novas cidades. Por isso, suas regras e normas são um instrumento inadequado para os comportamentos sociais, econômicos e políticos. Vem daí a necessidade de se enfatizar os valores que inspiram e são marcos de referência para a constante geração e readaptação dos sistemas e normas de comportamento social e de gestão empresarial e institucional. No âmbito empresarial surgiu um novo tipo de gestão:51 a gestão por valores, que visa a dar um novo quadro de referência para os empregados, diretores, acionistas, fornecedores e clientes em um ambiente de mudanças tecnológicas, culturais e pessoais. Mudanças que, sem dispor de referências, provocam insegurança e ansiedade em todos os grupos que formam a empresa. A formação baseada em valores é o que melhor pode orientar os cidadãos – cada vez menos incorporados às grandes organizações sociais – a renovar seus processos de socialização. A educação aparece outra vez como o novo fator crítico para a nova sociedade, mas desta vez a educação orientada para valores. A pergunta que segue é óbvia: quais valores promover? Como promover valores e evitar os conflitos éticos e culturais em países cada vez mais multiculturais? A resposta ainda é mais óbvia que a pergunta: tolerância e respeito ao pluralismo, solidariedade, conhecimento e racionalidade, liberdade e equidade. Em outras palavras, fortalecer os direitos humanos e os valores que os funda51 K. Blanchard e M. O’Connor, Dirección por valores. Barcelona: Gestión 2000, 1998. O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede

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mentam, pois são, como demonstrou A. Sen, entre muitos outros, uma aspiração verdadeiramente universal.52 Uma só proibição: proibido proibir. Uma só intolerância: não tolerar a violação dos direitos humanos.53 Tudo o mais – línguas, religiões, artes, vestimentas – são fatores de conhecimento e enriquecimento cultural. A educação, ou melhor dito, a socialização através de valores estruturados a partir da tolerância entre diferentes grupos sociais e culturais, deve ser objeto de um grande pacto social entre todos aqueles que atuam no espaço das interações sociais cotidianas: a cidade. A reafirmação de valores vem, por sua vez, motivada pelo desenvolvimento da investigação genética humana e, em especial, de suas aplicações, do desenvolvimento de uma nova indústria e, com ele, de um novo mercado global: o dos produtos genéticos aplicados aos homens. Este novo setor econômico provoca, neste caso em escala global, o estabelecimento dos valores que fundamentam um comportamento ético e códigos de conduta que permitem diferenciar, nas áreas da saúde e da agricultura, as aplicações benéficas das perversas – como a criação de subespécies humanas. O desenvolvimento desta indústria condiciona a centralidade dos valores como guia consciente da ação humana nos âmbitos local e global.

A globalização do social Sem dúvida, um dos principais desafios relativos ao futuro apontados pelos governos urbanos é a mundialização das políticas sociais, das políticas urbanas de impacto integrador. 52 A. Sen, Desarrollo y Libertad. Barcelona: Ed. Destino, 1998. 53 W. Kymlicka explica como coexistem os direitos das minorias com os direitos humanos e também como os direitos das minorias estão limitados pelos princípios de liberdade, democracia e justiça social. Ver seu livro La ciudadanía multicultural. Madri: Ed. Paidós, 1995.

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Como já assinalamos, a globalização é econômica, mas também tecnológica, informativa e cultural. As transformações que nos afetam não se reduzem a uma zona do planeta, mas se estendem a todas as partes, ainda que sua influência nas estruturas econômicas, sociais, culturais e familiares seja diferente em função das coordenadas geográficas e culturais dos países. A globalização tem, naturalmente, aspectos positivos como o crescimento da riqueza, a inovação e o desenvolvimento tecnológico, a superação das fronteiras e as novas possibilidades de encontro entre culturas. Entretanto, é verdade que os efeitos da mundialização são muito desiguais, e a globalização significa novas formas de exclusão e pobreza para muitos países. A globalização significou maior marginalização para a África Subsaariana – consumo abaixo do equivalente a um dólar americano – e alcança 215 milhões de pessoas, na Ásia atinge 550 milhões e na América Latina, 150 milhões de pessoas.54 A globalização em seus aspectos econômicos e tecnológicos está transformando o próprio conceito de pobreza. Esta já não se entende como associada ao desemprego, mas à estrutura da renda. Assim, estima-se que, de cada dez famílias urbanas pobres na América Latina, sete são pobres devido ao baixo rendimento do trabalho, duas são pelo desemprego de alguns de seus membros, e uma, por ser formada por um número elevado de crianças. Os níveis de pobreza relativos à América Latina são superiores aos dos 25 membros da União Europeia, tomando por base o limiar de 60% da mediana da renda. A comparação das médias simples de cada região mostra valores de 28% da população na América Latina e 15% para a União Europeia.55 É um equívoco considerar a existência apenas de uma via ou de um só caminho predeterminado no desenvolvimento da glo54 Dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD. 55 Dados da Cepal, 1998 e 2006. O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede

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balização, e que esta, inevitavelmente, gera mais desigualdade e exclusão. Há uma pluralidade de vias para organizar a crescente interdependência das distintas partes do mundo. As estratégias de ação são hoje possíveis e devem ser dirigidas para a transformação necessária e eficaz da organização social do mundo. Um dos principais atores desta transformação são as cidades, e, muito especialmente, as políticas e estratégias urbanas. Já afirmamos que o global emerge do urbano. Por isto, com a organização da cidade e com o modelo de desenvolvimento que nossas cidades escolherem, é possível contribuir de maneira decisiva à organização da sociedade futura em nível mundial. As cidades formam uma rede de nós urbanos, com distintos níveis, com distintas funções, que se estendem por todo o planeta e que funcionam como centro nevrálgico da nova sociedade mundial. Deste ponto de vista, é um erro de graves consequências sociais fixar-se apenas nos aspectos da concorrência entre as cidades, como tantas vezes se faz, e deixar de contemplar e fortalecer as relações de complementaridade e colaboração entre elas. As cidades, e em especial os governos urbanos responsáveis, devem assumir de maneira progressiva a gestão dos processos de suas próprias mudanças e, de maneira coordenada entre elas, o avanço na direção de uma maior coesão social em nível continental e intercontinental. Os governos das cidades devem articular a ação local com a global. Neste sentido, na primavera do ano 2000, as principais federações e associações internacionais de cidades se reuniram em Valência a convite do governo da cidade, no contexto do seu Plano Estratégico. Ali criaram as bases de um movimento internacional de cidades, que inclui as associações mencionadas ou redes mundiais de cidades existentes, com o objetivo comum de assumir como prioridade sua ação de globalização do social, para que as cidades assumam uma posição relevante na construção da solidariedade mundial. 120

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Construir uma globalização mais integradora a partir das cidades significa que cada cidade adote uma visão ampla do desenvolvimento urbano, tecnológico, econômico, social, cultural e educativo, guiado por valores de sustentabilidade, equidade e pluralismo, e baseado na colaboração e confiança entre os atores urbanos e no envolvimento da cidadania. Os desafios sociais urbanos que um movimento internacional e pluralista de cidades deveria priorizar, por serem os mais comuns, são os seguintes: • A política de moradia e, em especial, a reabilitação e revitalização dos bairros urbanos. • A segurança cidadã que contemple aspectos de prevenção e promoção social. • A geração de oportunidades de emprego. • A convivência na diversidade cultural. Segundo a área de Análise e Previsão da Unesco, dar um teto digno a todos significaria construir nos próximos 40 anos o equivalente a mil cidades de três milhões de habitantes, ou reconstruir boa parte das cidades existentes. É necessário desenvolver políticas de moradia a preços reduzidos e para todos, e fazer isto do modo mais sustentável do ponto de vista ambiental. É preciso criar espaços públicos de qualidade que atuem como lugar de encontro, convivência e colaboração entre os cidadãos, e nos quais se pratiquem a democracia e o respeito à diversidade como forma de enriquecimento cultural. Os governos locais devem contribuir para reduzir e superar o apartheid urbano. A polarização social de muitas cidades e a segregação social do espaço urbano estão na base do surgimento dos “enclaves privados” protegidos por forças de segurança próprias. Estes enclaves são social e culturalmente homogêneos, como o são os subúrbios pobres, e a ampliação de uns e outros significa O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede

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o desaparecimento dos espaços públicos que são a base da cidadania.56 Superar estes enclaves de exclusão significa proporcionar segurança cidadã. A segurança urbana tem três componentes – os três “P” da segurança: Proteção aos cidadãos, porém num sentido amplo. Que os cidadãos se sintam seguros ante o delito e a violência, mas também frente a catástrofes, enfermidades, envelhecimento, etc. Para isto é necessária a prevenção, no sentido da antecipação, mas também a promoção social dos socialmente segregados. Devemos ter sempre claro que são os processos de marginalização e exclusão social que explicam, em grande medida, a delinquência urbana. Reduzir as condições de exclusão significa, além disso, gerar novas oportunidades de ocupação e de coesão no tecido social para inserir as pessoas na comunidade. Para o primeiro, é necessário gerar investimentos produtivos e desenvolver a educação. Educação permanente ao longo de toda a vida para todos os cidadãos e cidadãs, baseada nas quatro aprendizagens que o Informe Delors para as Nações Unidas aponta: aprender a fazer, aprender a conhecer, aprender a ser e aprender a conviver. Esta última aprendizagem é a que permite que o agrupamento de pessoas de diferentes procedências geográficas e origens culturais construa a nova cultura urbana, transformando com criatividade e pluralismo cultural, e em convivência com a diversidade, o que poderia se tornar um choque entre culturas. Os desafios sociais urbanos são interdependentes, condicionam-se, razão pela qual é preciso, como dito anteriormente, darlhes uma solução integral em um projeto de desenvolvimento urbano. Este projeto deve aglutinar e coordenar os esforços de todas as administrações envolvidas, de todos os atores privados e de toda iniciativa social que interfira na transformação da cida56 F. Mayor, Un mundo nuevo. Unesco, 2000.

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de. Logicamente, a direção deste projeto deve ser exercida pelo governo democrático mais próximo dos cidadãos, que é o que melhor pode organizar a rede de atores envolvidos.

Mudanças nas formas de prestação e gestão dos serviços de bem-estar social Foram introduzidas importantes modificações na gestão pública dos serviços na área do bem-estar social na década de 90 do século XX. Do predomínio da gestão pública direta dos serviços, passou-se, paulatinamente, à gestão indireta ou contratação externa para a gestão de serviços financiados com fundos públicos. Esta contratação fez com que surgisse o setor privado, tanto com finalidades lucrativas quanto não lucrativas, como opção para a gestão de serviços públicos terceirizados. Por outro lado, a ampliação de determinados benefícios sociais a vários setores da população também favoreceu os serviços de bem-estar social financiados pelo setor privado por sua rentabilidade. O setor privado foi também favorecido pela extensão da responsabilidade social corporativa das empresas, através da qual estas decidem de maneira voluntária integrar a realização de uma série de objetivos sociais em suas operações comerciais e produtivas, e nas relações com seus interlocutores. Por último, os processos de individualização, não de individualismo social, e a crise das grandes organizações sociais – partidos, sindicatos, igrejas – fez surgir uma nutrida oferta de associações e movimentos sociais que têm como finalidade contribuir para a resposta aos desafios sociais que as cidades apresentam. Tudo isto faz com que estejam sendo produzidas mudanças nas respostas da sociedade aos desafios sociais. Na atualidade, nenhum setor, seja público ou privado, dispõe de toda a informação e, muito menos, da capacidade de atuação para fazer frente às demandas da sociedade. O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede

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Conclusão: da gerência à governança Hoje é preciso trocar o modo gerencial de governar pela gestão relacional ou das interdependências próprias da governança. As principais razões são: • Estamos diante de novas formas de desigualdade e pobreza, distintas do não acesso a determinado nível de benefícios econômicos e serviços que justificaram o aparecimento do governo provedor. Ante as novas formas de desigualdade relativas aos capitais cultural e social e à dualização digital, etc., a prestação pública continua sendo necessária, mas é absolutamente insuficiente. • O surgimento de desafios e necessidades intangíveis torna ineficaz uma ação baseada nos recursos econômicos e na prestação de serviços. • O gasto público, que supera 50% do PIB, pode crescer, mas de maneira lenta. Já as necessidades e desafios sociais disparam. Isto é, as necessidades crescem em proporção geométrica enquanto os recursos públicos crescem em proporção aritmética. O crescimento das necessidades sociais e a busca de novos caminhos para sua satisfação são sinônimo de progresso. • A multiplicação de agentes no âmbito do bem-estar social implica o reposicionamento do papel do governo para assegurar a qualidade e a coordenação da oferta para que esta possa chegar a todos e, especialmente, aos cidadãos mais necessitados e vulneráveis. Tudo isso exige um novo posicionamento do governo local. Este deve priorizar seu papel de organizador de uma resposta coletiva. O novo papel do governo é o de promover e articular a construção coletiva da cidade, especialmente do bem-estar social. Assumir esta posição exige, como veremos, atuar em muitas direções e dimensões. Uma delas é a dimensão política. A neces124

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sária qualidade da representação política e da cidadania, o novo papel que deve ter o político eleito com responsabilidades de governar e o tipo de liderança que deve exercer são exigências das quais não se pode escapar para alcançar o desenvolvimento da governança, embora em muitas ocasiões se tenha evitado o tema e privilegiado as abordagens técnicas, metodológicas ou da organização da participação social. Por isso vamos tratar em detalhes estes temas nos próximos capítulos.

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4. A revalorização da política no Governo Relacional Ideias Principais 1. Crise da política em razão da permanência do governo provedor e gestor. 2. A

democracia é básica para o desenvolvimento econômico na

3. O

governo relacional é uma oportunidade para fortalecer a

4. A

política democrática é entendida, prioritariamente, como

sociedade-rede. qualidade democrática. capacidade de representação.

5. A participação é básica para assegurar a boa representação. 6. Um novo papel para o político local é chave para a qualidade democrática.

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A governança democrática requer a revalorização da política e do político eleito, ao situar as relações entre o governo e a política de um modo muito diferente do governo provedor e gestor e, muito especialmente, do modo gerencial de governar.

O governo provedor e a crise da política local A crise do governo que estabelece a relação principal com a cidadania através da oferta de recursos financiados com fundos públicos e da gestão de serviços públicos, como já observado, devese ao fato de que o gasto público sobre o PIB atinge cifras próximas ou superiores a 50%. Os governos já não podem confiar que seus gastos sejam suficientes para satisfazer as necessidades sociais, cada vez mais amplas e complexas. Por outro lado, a perspectiva da sociedade-rede ou interdependente mostra que a resposta aos desafios sociais é coletiva, uma pluralidade de atores intervém, e o envolvimento de amplos setores da cidadania se torna necessário. A continuidade do governo provedor e do modo gerencial de governar, em especial, uma vez quebradas as bases que o sustentam, provoca, em boa medida, a desvalorização da política e do político vivida pelas sociedades democráticas. Hoje, quanto mais se estende a democracia no planeta, menos valorizada ela se encontra em muitos países. A substituição do governo provedor faz-se necessária para a revitalização da democracia entre a cidadania pelos seguintes motivos: • A política parece ser menos relevante no modo como as pessoas veem os seus destinos individuais e coletivos. A restrição da oferta de novos recursos sem visualizar um novo paradigma de governo significa que os governos democráticos não respondem às novas necessidades sociais, o que acaba produzindo uma desvalorização e descrédito da política e do político. 128

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• O não cumprimento dos programas eleitorais: a desconfiança na oferta política. A continuação de programas políticos baseados na oferta de serviços para os quais não há recursos provoca uma primeira reação de engodo, passa para a desconfiança e pode chegar à indiferença e ao mais alto absenteísmo dos cidadãos em relação à política. • A diferenciação política pela desqualificação. Este é outro dos efeitos da persistência do governo provedor. A ausência de políticas inovadoras e não centradas em serviços e benefícios para os que têm poucos recursos leva à não diferenciação entre os programas eleitorais. A semelhança programática é acompanhada, em não poucas ocasiões, pela diferenciação pessoal, pelo insulto. As acusações constantes e não comprovadas de corrupção ou desperdício entre os próprios políticos produzem um grave retrocesso democrático e a descrença nos valores da representação dos eleitos, que são, nem mais nem menos, os valores da democracia. Os políticos são a principal causa do seu próprio desprestígio. • O comportamento político de “soma zero” ou “todos perdem”. O sistema democrático é um sistema de ganharperder. O número de vereadores, deputados e senadores é fixado por lei; se um partido ganha deputados, outros perdem. Em matéria eleitoral não se pode aplicar o ganha-ganha, o que leva à dureza da luta política.57 Esta 57 Outra razão da crise da política, porém desvinculada do governo provedor, é a existência de instrumentos políticos dos partidos, sem dúvida necessários à democracia, que não levam em consideração a cidadania. O fato de que as cadeiras sejam em número fixo e, portanto, a abstenção seja desconsiderada, leva a que a luta frontal entre os partidos não tenha muito em conta a participação eleitoral e a opinião dos cidadãos. Chega-se, inclusive, a desenhar estratégias eleitorais para aumentar a abstenção, o que é sem dúvida uma perversão. Para uma estreita relação entre partidos e cidadania, assim como para limitar a luta virulenta pela vitória ou a derrota apenas para o outro, talvez fosse conveniente vincular, em alguma medida, o número de eleitos ao nível de participação eleitoral. Desse modo, havendo incremento do número de eleitos pelo aumento da participação, existiria um motivo para os partidos colaborarem entre si e uma maior sensibilidade em relação às preocupações cidadãs. A

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dureza, em um contexto de modelo de governo inadequado e na ausência de inovação política, se estende ao terreno da desqualificação mútua dos contendores, e esta, por sua vez, leva ao descrédito generalizado da política.

A democracia é básica para o desenvolvimento econômico na sociedade-rede Sen, Prêmio Nobel de Economia, sem dúvida é o economista que estudou com maior profundidade a relação entre liberdade, desenvolvimento e equidade.58 Para este autor, a democracia constitui o principal meio para conseguir o desenvolvimento econômico e social. Seus principais argumentos sobre o impacto da democracia no desenvolvimento econômico são: • Em primeiro lugar, assinala que o desenvolvimento não pode ser entendido apenas como incremento da renda, mas também como maiores oportunidades para a equidade e bem-estar. Para Sen, o exercício dos direitos e liberdades também tem um valor em si mesmo para a vida e o bem-estar social. • A democracia propicia que maior atenção seja dada às necessidades das pessoas, entre elas a educação, a saúde e os serviços sociais. Estes são fatores-chave para a geração de capital humano que, juntamente com o capital social, são as principais bases do desenvolvimento econômico. • A democracia permite o livre intercâmbio de valores e ideias, a partir dos quais podem ser criadas prioridades compartilhadas de grande alcance social e de grande mobilização dos recursos humanos. 58 Ver especialmente o livro Desarrollo y Libertad. Barcelona: Ed. Destino, 1998.

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Aos argumentos de Sen podemos acrescentar outros que os complementam: • Castells observou, como principal fator da evolução dos países da antiga URSS59 para a democracia, que os regimes autoritários não podiam fazer frente ao novo desafio da economia informacional, que exigia liberdade de informação para poder produzir conhecimentos e inovação. • No mesmo sentido, Prats60 mostra como as relações institucionais entre os atores ou, o que é o mesmo, o modelo de interação deles incide diretamente no desenvolvimento econômico. O modelo de interação revela a capacidade de inovação, a flexibilidade para a incorporação de novos atores e a reforma das estratégias dos atores tradicionais. O marco de interação determina a classe de conhecimentos e habilidades necessárias para nos adaptarmos à era infoglobal. As características do modelo de interação hoje necessárias são: abertura, flexibilidade e integração. Estas, como é óbvio, se baseiam nos mesmos valores da democracia política. • Putnam demonstrou que a maior capacidade de colaboração entre os atores – o capital social – nas cidades do Norte da Itália, é o fator que explica o desenvolvimento diferenciado em relação às cidades do Sul.61 A democracia não só facilita a geração destas vantagens colaborativas, mas também o capital social, ao significar participação e colaboração cidadã, que é condição para que a democracia funcione. 59 M. Castells, La Era de la Información. Vol. 3. Madri: Alianza Ed., 2000. 60 J. Prats, Bolivia: El desarrollo posible, las instituciones necesarias. Barcelona: Instituto de Gobernabilidad, 2003. 61 D. Putnam. Making Democracy Work. Princeton: Princeton University Press, 1990. A

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• O bom funcionamento das instituições facilita o desenvolvimento econômico, como bem registrou o BID em seu informe: “Mais além da política”, de 2000. Concluindo, são justamente as instituições democráticas as que melhor facilitam o desenvolvimento, ao possibilitar uma representação efetiva e permitir o controle dos políticos e governantes. • Em um importante estudo empírico em 90 países, entre 1960 e 1989, Rodrik62 mostrou que os sistemas democráticos contribuíam com quatro vantagens econômicas frente aos autoritários: a variação do crescimento a longo prazo era menor, a estabilidade a curto e médio prazos era maior, as crises exógenas eram melhor controladas e o nível de salários era mais elevado. Ainda que Rodrik não aponte, estas vantagens sem dúvida podem ser consequência das razões antes enunciadas. As razões pelas quais as democracias permitem articular o desenvolvimento econômico com equidade e sustentabilidade são ainda mais evidentes: • As democracias, por respeito aos direitos civis e políticos de toda a população, permitem levar em consideração os interesses e necessidades dos grupos sociais mais desfavorecidos. De fato, com as mobilizações dos trabalhadores na Europa, foram incorporados os direitos sociais aos direitos políticos e civis democráticos. • Na busca da estabilidade política, os governos democráticos tentam estabelecer amplos acordos e alianças sociais, para o que devem articular diferentes interesses sociais. • Dotados de um maior poder político, os movimentos sociais pressionaram para uma maior equidade na distri62 D. Rodrik, Democracy and Economic Performance. 1997.

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buição da renda, no acesso igualitário aos serviços e no respeito à sustentabilidade. • As oportunidades observadas nas democracias para impulsionar o desenvolvimento econômico e social estão diretamente relacionadas às possibilidades que oferecem para articular formas de interação flexíveis e estáveis, baseadas na confiança e na cooperação, nas possibilidades de articular diferentes interesses em amplos projetos, na capacidade de mobilização e responsabilização da cidadania a partir de valores compartilhados. • Em conclusão, o aproveitamento das potencialidades e oportunidades do desenvolvimento econômico e da coesão social depende da capacidade de gestão das interdependências dos atores sociais e institucionais. Esta gestão das interdependências é precisamente, como vimos, o que caracteriza a nova arte de governar: governança ou governo-rede, tal como indicou Mayntz, entre outros.63

O governo relacional necessita de qualidade democrática O governo assume um novo e singular papel, com o que adquire uma nova importância política em sua qualidade de representante eleito: assume o papel de articulador do interesse geral, a partir dos interesses legítimos dos diferentes atores e setores da cidadania. O governo já não deve imitar as empresas, mas inovar na sua relação com a cidadania. O governo já não vê a sua atuação limitada pela relação entre gasto público e PIB, mas, sim, que pode assumir novas e complexas necessidades a partir do envolvimento de todos os atores e 63 R. Mayntz, “Nuevos Desafíos a la Teoría de la Governance” em Instituciones y Desarrollo. Nº 7. Instituto Internacional de Gobernabilidad, 2000. A

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setores que influem favorável ou desfavoravelmente nas respostas às mesmas. Os programas econômicos e sociais, pelas razões anteriores, podem aumentar substancialmente o escopo dos objetivos de desenvolvimento a serem considerados, podendo, portanto, se diferenciar das propostas eleitorais. As ações de governo sustentadas na definição de objetivos de desenvolvimento humano, e não na prestação de serviços no território, permitem uma maior e melhor colaboração em vários níveis de multilateralismo entre governos. Isto é, entre governos locais, regionais ou estaduais ou, ainda, entre governos do mesmo nível. Dá um significado mais amplo e profundo à participação cidadã, entendida como corresponsabilização da cidadania, e não simplesmente como reivindicativa ou auxiliar das políticas públicas.

A política democrática como capacidade de representação A governança democrática exige o fortalecimento organizativo e da representação da sociedade civil. A tarefa de construir o interesse geral a partir dos interesses dos distintos atores e setores sociais é mais efetiva se os diferentes interesses estiverem bem definidos e os interlocutores representarem os diversos coletivos. Governança democrática e capacidade de representação são conceitos que se condicionam mutuamente. Maior representatividade, melhor governança e vice-versa. De todos os modos, o papel determinante é o da governança, pois, uma prática decidida do governo baseada na gestão das interdependências tem, sem dúvida, efeitos organizativos e de melhoria da representação da sociedade civil. Porém, sem dúvida, o fator crítico para uma boa governança democrática é a qualidade de representação do governante eleito. Se a liderança na gestão das interdependências em um território pertence a uma universidade, ao empresariado ou à igreja e etc., 134

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estamos diante de uma liderança corporativa, pois mesmo que ela se origine de uma instituição democrática, seu representante foi eleito por empresários, universitários, comunidade religiosa, etc. Na verdade, o único representante votado por todos os cidadãos e apenas enquanto cidadãos é o político eleito. Apenas se este assumir a liderança, existirão as condições para que a governança seja realmente integradora. Sem dúvida, um dos déficits democráticos que pode envolver a governança é a exclusão dos setores que não dispõem de capacidades organizativas ou de interlocução na defesa de seus interesses. O político-governante caracterizará sua aposta na democracia através de ações positivas que desenvolva para conseguir a melhoria da capacidade de representação dos interesses de todos os setores e, em especial, dos mais vulneráveis. Esta tarefa, ainda que se refira a todos os âmbitos do governo local, corresponde muito frequentemente de modo específico aos políticos com responsabilidades de governo nas áreas de bem-estar social. A democracia, como afirma com veemência Zafra,64 é representação. Se esta falha, o que falha é a democracia. As denominadas democracias participativas e deliberativas são, sem dúvida, aspectos que contribuem para assegurar que se produza uma boa representação ao longo dos mandatos entre as eleições, mas é muito pouco razoável pensar que um complemento possa substituir o essencial, que é a eleição do representante e a qualidade da representação como ingredientes básicos da democracia.

Um novo papel para o eleito local Em um governo relacional, cujo principal papel é organizar a capacidade coletiva para promover o desenvolvimento humano, 64 M, Zafra, El Ayuntamiento como Gobierno Facilitador de Consensos. Barcelona: F. Pi i Sunyer, 2003. A

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o papel do eleito é justamente o de gestor65 dos processos das interdependências dos distintos atores e setores da cidadania. Para reger a articulação das interdependências, para encaminhá-las na direção do desenvolvimento humano, o gestor municipal dispõe de sua capacidade como produtor de legislação (que em um governo local é pouco significativa, com exceção da área de urbanismo), de algum recurso econômico que pode aplicar (cujo crescimento, como foi apontado, tende a zero, ainda que a descentralização seja um tema pendente na maioria dos países da UE e, particularmente, na Espanha) e da legitimidade e reconhecimento como eleito (que na atualidade está em crise, mas que pode ser recuperada). Sem dúvida, é a legitimidade política que valoriza o papel nos processos de negociação relacional, mediação e busca de acordo. A valorização da política importa para que o eleito possa influir na coordenação e mediação das relações entre os distintos atores. Podemos agora dizer: a legitimidade importa para que o gestor possa ser o organizador coletivo; porém, assumir o novo papel também é fonte de legitimidade. O que, então, é mais importante ou tem um papel determinante, se não quisermos cair numa tautologia? Sem dúvida, ambos os processos interagem, mas o papel determinante hoje, por parte dos políticos, é assumir a mudança do papel de eleito local para o de gestor de recursos para a construção coletiva do desenvolvimento humano e do interesse geral do conjunto do território, ou de um setor de atividade. E fazê-lo dispondo das habilidades específicas e das técnicas necessárias, o que propiciará a revalorização e o reconhecimento da representação política, à qual a perspectiva do governo relacional e a governança dão novas e renovadas oportunidades.

65 Vereador, que na Espanha tem função executiva. No original, consejal, quer dizer o que rege ou governa. Dicionário da Língua Espanhola. (Nota do Tradutor.)

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5. A liderança do político eleito na governança Ideias

principais

1. Liderança representativa: capacidade de visualizar os interesses e habilidades da cidadania. 2. A liderança representativa é relacional e não dominadora ou substituta da cidadania. 3. A liderança representativa é capacitadora e não dominadora. 4. Saber

a distinção entre os papéis do político e do gerente é

básico na governança.

5. A liderança pela direção política e moral. 6. O representante político é o principal agente de mudança. 7. Uma

nova tarefa política: tornar visível o apoio social, para

que a participação possa fluir.

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Capacidade de visualizar os interesses e habilidades da cidadania Existe uma infinidade de definições de liderança. Covey66 seleciona 15, mas elas se referem, em sua grande maioria, a lideranças em empresas e grandes organizações. Para encontrar uma definição adequada a um líder democrático é preciso recorrer ao que há de mais elementar. Líder é aquele que conta com seguidores. Para um líder democrático, os seguidores são os eleitores. Portanto, a liderança política representativa será aquela que dispõe de eleitores que consideram que seus interesses estão representados pela política da pessoa a quem denominamos líder. Isto significa que um líder político representativo não é tanto o que conhece e oferece programas atraentes para ter um eleitorado, mas uma pessoa capaz de fazer com que os atores sociais e o conjunto da cidadania compreendam seus verdadeiros interesses, assim como suas capacidades, de tal modo que sejam assumidas como próprias. Para isto devemos saber fazer a distinção entre posicionamento e interesse. Posicionamento é a reivindicação que um ator ou um grupo social formula para defender seus interesses. O interesse é o que o ator social realmente busca e deseja. Frequentemente, posicionamento e interesse se confundem. O interesse poucas vezes é claramente identificado em um conflito social. Nele, costumam entrar em contradição os posicionamentos, mais do que os interesses. Apenas em relação aos posicionamentos, a luta é inevitável; com os interesses, o acordo é possível. Vejamos um exemplo. Um grupo de cidadãos de um bairro popular se opõe à abertura de um centro de tratamento para dependentes químicos. E a Prefeitura, apoiada pelas associações de familiares de pessoas dependentes e outras associações civis, não quer desistir de 66 S.R. Covey, El 8º hábito. Barcelona: Ed. Paidós, 2005, pp. 391 a 400.

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implantar o centro em um dos poucos espaços adequados existentes na cidade. A partir daí aparecem as acusações de que uns querem prejudicar o bairro e de que a outros faltam compreensão e solidariedade, e o conflito acaba tomando corpo. Na verdade, os interesses dos dois grupos são mais complexos e diversos e poucas vezes aparecem expressos em conflitos. Os moradores do bairro estão preocupados com a possível desvalorização de sua região e das suas casas, o que é muito compreensível dado o preço da moradia e os esforços necessários para pagá-la. Também estarão preocupados pelo possível aumento da insegurança, devido a ser frequentemente associado, no imaginário coletivo, o consumo de drogas com a delinquência. Possivelmente também estarão preocupados com a sujeira, pela deterioração dos padrões de comportamento atribuída a essas pessoas e, obviamente, pelo aumento do tráfico de drogas no bairro e que o consumo acabe chegando a seus filhos. Por outro lado, a Prefeitura e as associações de familiares e outras organizações sociais consideram que é necessário que a cidade disponha deste tipo de equipamento e canalize suas esperanças de reabilitação, e que são poucos os locais adequados e disponíveis na cidade para tal prática. Estes interesses podem ser compatibilizados em um projeto integral que dê segurança e contrapartida aos moradores do bairro para que seus interesses sejam assegurados. Como, por exemplo, através da construção de elementos simbólicos, espaços públicos, subvenções para reabilitação de construções, medidas para melhoria do trânsito, enfim, medidas que repercutam na manutenção ou melhoria do valor do patrimônio imobiliário dos moradores. Além disso, podem ser tomadas medidas que assegurem a implementação de políticas que melhorem a segurança e desestimulem o consumo de drogas e, também, de políticas que melhorem a limpeza no bairro. Esta tarefa de identificar, através de espaços de deliberação e mediação, projetos que compatibilizem interesses é, sem dúvida, uma das principais responsabilidades da liderança representativa na governança. Esta tarefa de identificação de interesses e mediação A

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deve ser uma função regular do governo local, sem circunscrevê-la ao fato de que na situação conflituosa estejam envolvidas competências legais ou recursos municipais. Ao contrário, é necessário que este tipo de intervenção se torne referência para a criação de espaços de intermediação sempre que as contradições entre atores tenham impacto na configuração física ou cultural da cidade, ou ainda na convivência entre grupos e setores da cidadania. A tarefa de representação cidadã com base em interesses implica, obviamente, na criação de espaços de cidadania, de participação, nos quais haja deliberação e construção de conhecimento mútuo, confiança e compromisso de ação. Neste sentido, a participação é um espaço necessário e que torna possível a representação. Nunca pode ser concebido, na democracia, como substituto da representação cidadã. Podemos sintetizar a liderança representativa no seguinte esquema:

Conhecer desafios, demandas, expectativas, interesses...

ELEITO

Cidadania

Transmitir a potencialidade e capacidade de ação (possibilitar a ação da sociedade)

Para uma tarefa de representação cidadã que tenha por objetivo o envolvimento da cidadania no “fazer a cidade”, o eleito precisa de métodos de participação que o ajudem a identificar 140

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os interesses que se escondem por trás dos posicionamentos, e que os próprios interessados possam reconhecê-los. Por sua vez, precisa ter capacidade de análise e conhecimento dos conteúdos, para poder desenhar os projetos de futuro que integrem de maneira complementar e sinérgica os distintos interesses em jogo. O importante destas técnicas não é que o político eleito tenha um conhecimento direto das mesmas, mas que lhe sejam proporcionadas por profissionais da gestão relacional que, sem dúvida, nos governos relacionais terão maior relevância que os gestores de serviços, para poder dar apoio ao trabalho de liderança, que é a tarefa própria e insubstituível do político eleito. Entretanto, em uma tarefa de gestão relacional, e em circunstâncias em que não há prestação de serviços públicos, é essencial a legitimidade do político eleito, que repousa na revalorização da política e dos políticos, no comportamento como expressão de valores éticos e na eficácia baseada no uso de novas metodologias e técnicas.

Uma nova visão do poder A governança dá ao governo democrático uma nova relevância. Em um governo cuja atuação tenha por base a provisão de recursos, a limitação destes em relação ao PIB leva necessariamente à perda de peso do governo democrático na sociedade. Contrariamente, a perspectiva da construção do interesse geral em cada setor, em cada projeto, envolvendo os atores e buscando o apoio da cidadania, dá sem dúvida um novo e renovado papel ao governo e à política democrática, de maior alcance que o modo gerencial, e permite superar a visão do público como um setor diferenciado, inclusive, em oposição ao setor privado ou à iniciativa não lucrativa. Este novo papel muda, naturalmente, a concepção que se tem do poder. Se por poder se entende a imposição da própria vontaA

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de aos demais, seja através da lei e da força ou de condicionantes produzidas pelos recursos públicos, a governança significará, sem dúvida, uma perda de poder. Em troca, se o poder é entendido como a capacidade de fazer valer ou realizar os próprios interesses, o poder dos atores sociais e do governo fica reforçado.67 O do governo, em especial, por sua liderança na construção do interesse geral a partir dos interesses legítimos e pela renovada relevância social dos políticos eleitos, que melhora e legitima o “papel” do político na sociedade.

A liderança representativa é relacional Vimos que a liderança representativa necessária à governança é relacional; ela busca fortalecer as densidades de interação dos distintos atores. Não procura substituir a sociedade com a sua liderança e torná-la dependente de suas propostas e planos de ação. O interesse do líder relacional será influir nas pessoas para que estas enfrentem seus problemas. Em lugar de oferecer soluções, levantam questões e, mais que solucionar conflitos, sua principal missão é propor desafios coletivos. Já foi dito que a liderança relacional constrói propostas compartilhadas a partir da identificação de interesses, e não aspira a proporcionar programas eleitorais para agradar a um eleitorado passivo, que elege entre produtos em um mercado no qual não intervém como produtor. Uma oferta de produtos que não se baseie no conhecimento profundo dos interesses, necessidades e desejos da cidadania, converte a dinâmica política em crescimento desmesurado e impossível de propostas que não “satisfazem” a ninguém, e que em uma época de poucos recursos deslegitimam a política eleitoral. O crescimento pelo crescimento, como assinala 67 Ver J. K. Galbraith, La Anatomia del Poder. Barcelona: Ed. Plaza y Janés, 1984, pp. 45-61.

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Capra, é crescimento cancerígeno (também em termos de propostas eleitorais), que mata a própria classe política, e com ela, a democracia.68 Uma analogia com o esporte pode servir para ilustrar. A liderança capacitadora é o jogador que arma o jogo de sua equipe para que todos os jogadores obtenham o máximo rendimento de si mesmos. Ao contrário, o dominador é aquele jogador que toda a equipe joga para ele, para que seja decisivo. Por isto, a liderança dominadora crê que os membros da sua equipe têm pouco valor e necessita que todos se ponham a seu serviço, ainda que seja para o fim coletivo de vencer. Frequentemente se entendeu a liderança como aquela situação na qual uma pessoa tem a capacidade de expressar as necessidades e sentimentos da coletividade, fazer propostas, desenhar o futuro da coletividade e assumir todo o risco da sua realização, fazendo com que, deste modo, a cidadania siga confiando nela. É a figura do líder “caudilhista”. Em situações de crise aguda, esta liderança pode ser possível, porém em absoluto é desejável, por suas conotações autoritárias, e porque implica uma situação de desorganização social ou comunitária. Por outra parte, em uma sociedade que avança na era das redes e do conhecimento, este tipo de liderança é de todo inadequado, produz graves fraturas no sistema de relações sociais e dificulta a constituição de redes. O líder representativo também necessita expressar os desafios, emoções e sentimentos da cidade, porém o faz a partir da consulta, isto é, da construção coletiva. Entenda-se bem. Em outras palavras, na busca do diálogo, da consulta, da participação, sem deixar de dispor de ideias e de gerar emoções e sentimentos. Sua liderança consistirá em saber identificar a visão de futuro e saber convencer e comover a cidadania; porém, estas características próprias da liderança, ao contrário do líder cau68 F. Capra, La trama de la vida. Barcelona: Ed. Anagrama, 1998. A

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dilhista, serão obtidas através do diálogo e da consulta. Serão uma construção coletiva na qual teve um papel facilitador, sem contudo perder a capacidade de representar esta visão de futuro e gerar sentimentos e ações coletivas. Do contrário, não poderá liderar a coletividade.

A liderança representativa é capacitadora A boa atuação de um líder representativo se mede em função de que, uma vez finalizada a ação, houve aumento do nível de organização e envolvimento da cidadania. Ao contrário, uma liderança dominadora avaliará sua ação em função do aumento de sua influência e domínio entre a cidadania. Para o líder eleito, nada do que acontece em sua cidade lhe é estranho. Está claro que, na maioria dos casos, o que preocupa a cidadania não será obrigatoriamente uma competência municipal, nem o município necessariamente disporá de recursos para enfrentá-los, mas o líder atuará como interlocutor de sua cidade frente a outras administrações, facilitará o envolvimento de atores privados e amplos setores da cidadania interessados para organizar a resposta e obter os resultados esperados. O líder representativo constrói consensos e forja pactos e alianças, obtém o apoio e envolvimento cidadão ao expressar as suas necessidades e desafios e os assume como seu representante eleito. A liderança política na governança pede uma cidadania ativa. Sua principal finalidade é melhorar sua capacidade de atuação. Fixará os objetivos políticos de tal modo que seus resultados envolvam o conjunto da cidade, concentrando-se não só nas competências legais ou na disponibilidade de recursos municipais, mas em objetivos de desenvolvimento humano no qual todos os setores da cidadania tenham responsabilidades. 144

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Seu êxito consistirá em apresentar os avanços conseguidos no município, mais do que o cumprimento de algumas propostas eleitorais que ninguém controla. Continuando a analogia com a área esportiva feita anteriormente, o líder representativo avaliará o êxito pela posição que sua equipe conquistou na tabela de classificação. Já o dominador só se fixará em seus resultados pessoais: gols, cestas, tempos conseguidos e etc. Para ele, o resultado da equipe é menos importante porque ela depende de seus resultados pessoais. A liderança representativa, isto é, relacional e capacitadora, tem em conta que o cidadão atribui ao prefeito ou prefeita tudo o que acontece na cidade. Seja positivo ou negativo, seja de competência municipal ou não, as responsabilidades por ação ou omissão são atribuídas pela cidadania ao prefeito ou prefeita. Para a cidadania é difícil identificar o responsável por um equipamento ou serviço público no emaranhado de competências existentes. É mais fácil que demonstre sua satisfação em função de temáticas gerais da cidade: mobilidade, meio ambiente, espaços públicos, emprego, prática esportiva e oferta cultural. Isto é, aspectos importantes da vida cotidiana com grande capacidade de produzir bem-estar; porém, esta é uma produção que envolve muitos atores, e a tarefa do governo local é justamente gerir suas interdependências para organizar coletivamente a produção do bem-estar mencionado.

A distinção entre política e gerência No modo gerencial de governar, próprio do governo provedor e gestor de recursos, se confunde o papel do político e o do gerente ou, de modo geral, do gestor. De fato, foi produzida uma subordinação da política à gerência, valorizando-se muito mais o papel gerencial e A

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simplesmente de gestão do que o do político eleito com funções de governo. Esta subordinação da política à gerência assumiu formas diferentes. A mais lamentável é o desprestígio do político eleito e sua desautorização por parte dos profissionais da gestão. Outra tem sido o fato de que os gerentes ganharam relevância sobre os políticos, criando-se a figura do prefeito-gerente, ou do vereador-gestor. Este enfoque tem sido acompanhado da tentativa de converter a prefeitura numa empresa, em alguns casos, inclusive, como a maior empresa do município. O grande problema deste posicionamento, isto é, do modo gerencial de governar, é que a prefeitura, e menos ainda os serviços de bem-estar social, não são uma empresa, e querer torná-los semelhantes, levou em muitos casos a desconsiderar sua responsabilidade pela aplicação da lei, própria de qualquer administração democrática, e o papel do cidadão passou do papel de súdito, próprio do modelo burocrático, ao de cliente ou consumidor, e não como cidadão propriamente dito. Ou seja, como sujeito ativo de direitos, a quem o governo deve ser capaz de representar. Na governança democrática, o papel do político não apenas é revalorizado em relação ao gestor ou gerente. Ele também deve ser capaz de gerir os serviços com eficácia e, como veremos, em função do seu impacto no desenvolvimento comunitário. Porém, sem dúvida, o mais importante é a nítida separação das funções de gerência ou gestão das funções e “papéis políticos” que a governança proporciona. No quadro seguinte são destacadas as diferenças citadas: 146

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GERENTES

ELEITOS NA GOVERNANÇA

1. Organizam e proporcionam recursos 2. Fazem corretamente as coisas 3. Centram-se nos processos de trabalho 4. Perguntam-se como e onde 5. Preocupam-se em fazer as coisas 6. Dão prioridade aos procedimentos, estruturas, controle e qualidade da gestão 7. Confiam nos procedimentos e controles 8. Interessam-se pela produtividade 9. A participação como cliente e usuário de serviços

1. Constroem o interesse geral 2. Fazem as coisas corretas 3. Centram-se na criação de uma visão comum 4. Perguntam-se o quê e quando 5. Preocupam-se com o significado das coisas para as pessoas 6. Dão prioridade aos objetivos sociais, aos valores e “posicionam” as pessoas numa direção 7. Confiam nas pessoas e sua capacidade de mudança e compromisso 8. Interessam-se pela eficácia (cumprir objetivos) 9. A participação como construção e envolvimento da cidadania

É importante o equilíbrio entre a administração e a representação, mas a prioridade é a liderança representativa para fortalecer a capacidade de organização e ação. A liderança é chave em tempos de mudança.

É óbvio que estas diferenças são plenamente compatíveis. Mais ainda, sua compatibilidade permite dar um caráter sinérgico à atuação do governo local. Neste sentido, cabe destacar que a prestação e gestão dos recursos do profissional não só está subordinada à construção do interesse geral como deve ser um dos suportes nos quais esta construção deve basear-se. Porém, em caso algum pode se entender que o interesse geral consiste no desenvolvimento de uma prestação de serviços e sua gestão eficiente. O papel do gerente é, precisamente, preocupar-se com uma gestão eficiente, isto é, com a produtividade, porém está colocada a serviço do cumprimento de objetivos sociais, cuja identificação tenha sido liderada pelo representante eleito. A

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Em seu papel de líder capacitador, o que o preocupa, fundamentalmente, é o significado que as coisas e projetos têm para as pessoas. Procura que elas sejam identificadas como um direito e um dever. Quer dizer, evitará que seja vista como favor e, muito menos, como uma ação clientelista ou, ainda, como uma ação que provoque dependência ou subordinação. Deve ser uma ação realizada pelo governo que corresponda à satisfação de direitos sociais, que reverta em maior compromisso com a autonomia pessoal e coletiva dos cidadãos, e que esta autonomia se expresse em compromisso ativo e solidário com o conjunto da sociedade. Já a preocupação do gerente é fazer bem as coisas, mas no marco político estratégico e com significado para a cidadania estabelecido politicamente. Em última análise, a tarefa do governante eleito é articular coletivamente a estratégia. Ou seja, “o quê” e o “quando”. E, ao considerar na estratégia as competências e os recursos municipais, o profissional da gestão ou o gerente estabelecerá o “como”, isto é, os procedimentos e metodologias; e o “onde”, o lugar mais adequado entre os possíveis.

A liderança estabelecida através da direção política e moral Gramsci, filósofo humanista e político, fundador do Partido Comunista Italiano, se distanciou muito da política leninista de sua época. Entendia a tarefa do partido comunista como a construção de um grande bloco social e popular que abarcaria a maioria da sociedade. A aglutinação desta maioria social se daria através da hegemonia política. Ou seja, pela capacidade de direção cultural e moral de um grupo social – no seu caso, o partido comunista –, que atuaria como um intelectual coletivo e estruturaria o bloco social. Hoje estamos em outro momento histórico, embora a proposta de Gramsci de aglutinar um grande conjunto social, através da 148

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direção cultural e moral, deva ser levada em conta.69 É importante entender, contudo, que não se trata mais de gerar um grande bloco contra alguém ou classe social, mas de construir o interesse geral a partir dos interesses legítimos dos diferentes setores sociais. É claro que, em não poucas ocasiões, setores sociais minoritários ficam à margem deste acordo, mas esta minoria não se transforma em inimigo a ser abatido. Tampouco aqui afirmamos que se trata de construir o socialismo ou o comunismo, mas de avançar em condições dadas na direção do desenvolvimento humano. Nem mesmo se trata de priorizar um “ismo”, seja liberalismo, socialismo ou nacionalismo, mas de enfatizar e priorizar os valores e atitudes democráticas de fortalecimento dos direitos humanos e as atitudes de respeito, tolerância, abertura e criatividade. O mais importante é que hoje a democracia não pode ser entendida simplesmente como um meio, mas como meio e fim. Por último, já não se vê o partido como o grande organizador desse amplo acordo social, mas sim os líderes eleitos no exercício das funções de governo, a pessoa eleita como representante pela maioria dos cidadãos, seja para governar o conjunto da população que vive em um território, seja para assumir a responsabilidade de uma política setorial, como é o caso da política de bem-estar social. Entretanto, para isto, é imprescindível que o governante eleito não realize sua tarefa tendo em conta apenas seus eleitores, mas todo o conjunto de habitantes do território ou cidade, ainda que possa partir dos interesses (não dos posicionamentos) de seus eleitores aos quais, sem dúvida, deve corresponder à confiança nele depositada. Estamos, pois, em sintonia com Gramsci no sentido de que, na governança democrática, a construção coletiva do desenvolvimento humano deve ser realizada através de valores, atitudes e responsabilidade. A estratégia compartilhada e os projetos basea69 Ver N. Bobbio, “Gramsci y la Concepción de la Sociedad Civil” em Gramsci y las Ciencias Sociales. Mexico: Ed. Pasado y Presente, 1997, pp. 65-94. A

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dos em um compromisso coletivo de ação estão fundamentados no conhecimento e guiados por valores. A direção política se refere, na governança democrática, ao governo da pólis, isto é, ao conjunto da cidade, ao estabelecimento de alguns objetivos para a sociedade e ao desenvolvimento de políticas ou projetos para alcançá-los coletivamente. Assim como no estabelecimento de metodologias precisas para distinguir entre interesses e posicionamentos, e do conhecimento dos conteúdos das políticas para poder desenhar os cenários de futuro e os projetos que permitam articular os interesses e compromissos de ação. Para isso, o político eleito necessita ampliar e fortalecer sua capacidade estratégica e relacional. Não lhe bastam suas qualidades pessoais; ele necessita de apoio e assistência técnica especializada em gestão de serviços, procedimentos legais e administrativos. Necessita de assessoramento específico em gestão relacional. Este tipo de assessoria, dado que se desenvolve em um ambiente de mudança permanente, e de grande complexidade e diversidade, precisa de serviços contratados externamente (ainda que coordenados internamente), de think tanks, isto é, de serviços de alta inovação política e social, que possam dar ao dirigente apoio à sua tarefa de construir o interesse geral através da confiança, do acordo, da colaboração e do compromisso.

O representante político é o principal agente de mudança A necessidade de profissionais externos e internos para fortalecer a capacidade da liderança relacional do representante político, através do suporte e assistência técnica, faz lembrar, no âmbito do bem-estar social, a ideologia do trabalhador social como agente de mudança, que teve força nos anos 70 e até o princípio dos 80 na Catalunha. É certo que o papel do trabalhador social, como os educadores, psicólogos e sociólogos, contribui para o desenvolvimento 150

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comunitário ao fortalecer a capacidade de uma comunidade. De fato, como já observado anteriormente, uma das tarefas prioritárias para a governança democrática é o fortalecimento da organização dos grupos e comunidades vulneráveis, para que participem de pleno direito na construção do interesse geral em seu território. Daí decorre a importância do trabalho social comunitário como prioridade crescente na perspectiva do futuro imediato. Porém, como no caso do gestor ou gerente, a tarefa se inscreve no marco das políticas de construção coletiva do bem-estar, que deve, sem dúvida, ter como protagonista o político, o representante da pólis ou cidade. Podemos dizer, com toda clareza, que o agente principal de mudança, já que não existe um agente único na democracia consolidada, é o político eleito. É desejável que ele seja o principal líder da capacidade de organização e ação de um território. Qualquer enfoque que coloque em um profissional o papel de agente de mudança em uma democracia só pode ser entendido como uma relíquia do pensamento tecnocrático e autoritário.

A nova tarefa: tornar visível o apoio social às políticas Um dos temas mais preocupantes do trabalho político é, sem dúvida, a oposição de setores da cidadania à tomada de decisões de caráter transcendente sobre assuntos de interesse coletivo. Maquiavel, em O príncipe, já alertava o mandatário sobre este aspecto, na introdução de reformas e novas leis: “Aquele que queira introduzi-las (as novas leis ou reformas), terá como inimigos todos os que se beneficiavam das antigas. E aqueles que as novas leis favoreçam serão apenas apáticos defensores das mesmas.”70 As razões da tibieza, segundo Maquiavel, são o medo em relação aos adversários que tinham uma 70 N. Maquiavel, El Príncipe. Barcelona: Ed. Veron, 1974, p. 24. A

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situação de privilégio anterior, e o fato de que a confiança na inovação, nos novos projetos, só se adquire realmente ao ser comprovado que funciona. No século XXI, em uma democracia consolidada, a segunda explicação é, sem dúvida, a mais relevante. O certo é que, ante novas políticas e projetos, o que se visualiza por parte do cidadão (através dos meios de comunicação interessados, alguns, em ressaltar as más notícias, ou por ocupação de espaços públicos por meio de manifestações e outros atos) são os setores que se opõem, os que estão em desacordo com a implementação dos projetos. Os que estão de acordo, na melhor hipótese, desaparecem no meio da maioria silenciosa. Por outro lado, em muitas propostas de participação, estas aparecem como “a plenária dos não eleitos”, isto é, o lugar de expressão das demandas e das queixas daqueles que não têm representação eleitoral, que têm pouca influência nas decisões políticas. Este espaço, sem dúvida de grande interesse do ponto de vista democrático, não pode ser considerado o espaço de participação do conjunto da cidadania, porque simplesmente não é. No mesmo sentido, muitas vezes a participação cidadã é apenas o espaço em que se manifestam os setores descontentes. A construção do interesse geral em cada política setorial, em cada projeto, significa que é preciso entender os espaços de participação e de deliberação cidadã de maneira ampla e muito flexível, tal como vamos expor nos capítulos seguintes. De modo que, efetivamente, sejam visíveis os acordos sociais, que se visualizem de maneira clara os setores que deles se beneficiam e, muito especialmente, aqueles setores vulneráveis cuja situação possa ser melhorada. A liderança do representante eleito em espaços de ampla deliberação e colaboração é, sem dúvida, uma das tarefas básicas em um governo que se defina como relacional.

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6. Fundamentos para liderar a coesão social a partir do governo local Ideias Principais 1. A coesão social é um conceito amplo que precede o desenvolvimento e não é somente sua consequência. 2. A coesão social equivale à capacidade de um território de fazer frente a seus próprios desafios. 3. É preciso uma liderança política assentada em novos pilares de gestão para promover a coesão social das cidades. 4. Liderar a coesão social é antecipar-se e canalizar os conflitos entre os cidadãos. 5. A liderança relacional precisa de apoio técnico renovado.

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Já mencionamos que a coesão social não pode ser entendida apenas como um resultado do desenvolvimento de um território. Pelo contrário, é preciso partir de alguns níveis necessários de coesão para que se alcance um desenvolvimento endógeno sustentado e sustentável. Neste sentido, ela deve ser entendida como capacidade de organização e ação de um território para enfrentar seus próprios desafios econômicos, sociais, político-democráticos e de sustentabilidade. Quer dizer, de uma maneira muito semelhante a como se tem entendido historicamente o trabalho de desenvolvimento comunitário por parte dos trabalhadores da área social. Uma cidade ou município, em geral, estará mais integrado socialmente, ou disporá de maior capacidade de organização e ação sempre que: • Disponha de uma grande e ampla visão compartilhada do território, assim como das bases e eixos sobre os quais deve se assentar uma estratégia que envolva a grande maioria dos atores sociais e cidadãos. • Exista um profundo e amplo sentimento de identidade com a cidade por parte de todas as distintas comunidades e setores que a compõem, e que se distinguem por sua procedência geográfica, cultural ou social. • Seja desenvolvido um processo de maior valorização das diferenças entre as pessoas, frente a sua procedência geográfica e cultural. • Sejam desenvolvidas relações diversas e intensas entre as pessoas nos distintos âmbitos sociais: trabalho, escola, lazer, bairro e etc. • Exista um processo mais intenso e extenso de redução das desigualdades sociais e geração de novas e maiores oportunidades vitais para o desenvolvimento de projetos de autonomia individual ou grupal ao alcance da cida154

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dania, independentemente de sua procedência, origem e ambiente cultural. • Nesta perspectiva, e tendo em conta que no território se produzem processos complexos de coesão-desintegração social, o governo local que tenha como objetivo o desenvolvimento de um território socialmente mais integrado deverá exercer seu trabalho em uma dimensão dupla. Por um lado, uma tarefa de dar impulso aos fatores que geram coesão, e, por outro, um trabalho de prevenção e canalização de situações conflituosas, que sempre são geradas em uma cidade ou município.

Os 7 pilares para a liderança política Um político eleito com a vocação de liderar a construção de uma cidade mais inclusiva deve elaborar uma política que se fundamente nos seguintes pilares ou bases. 1. Criar uma visão social do município e seu futuro. Trata-se de dirigir, como representante do seu município, a elaboração e o desenvolvimento de uma estratégia compartilhada entre todos os atores e setores da cidadania. O mais importante desta estratégia é a visão ou modelo de futuro do município. É básico para a coesão social que esteja claramente refletida a dimensão social do modelo de cidade, uma vez que em muitas cidades existe somente um modelo urbanístico e/ou econômico. Uma visão que, além de ser entendida e aceita pela grande maioria dos cidadãos, gere adesão e compromisso cidadão para levá-la a cabo. Para isto é imprescindível uma elaboração participativa, que todos os setores sociais e cidadãos se sintam parte da mesma e, deste modo, posFundamentos

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sam orientar sua atuação na mesma direção.71 O fundamental é o compromisso cidadão com a cidade, isto é, com os demais cidadãos. 2. Atrair e envolver todos os setores da cidadania. A elaboração de uma estratégia compartilhada que seja inclusiva, isto é, que não exclua a presença das necessidades e desafios de nenhum grupo social, exige o desenvolvimento de ações positivas para conseguir que os grupos mais desfavorecidos socialmente estejam claramente representados na política de coesão social. É preciso estar sempre vigilante para que a participação não se restrinja aos setores mais organizados e com maior capacidade propositiva. Se isto ocorrer, existe o perigo de fortalecer a segregação social entre o grupo social mais amplo e os excluídos. 3. Gerar capital social. Trata-se de integrar as diferentes pessoas e grupos sociais no desenvolvimento de projetos comuns ou em redes. Para isto deve desenvolver-se toda uma programação para que os setores da cidadania possam reconhecer seus interesses comuns ou complementares e se desfaçam as falsas percepções que uns têm sobre os outros. Promover as suas interações para que obtenham maior confiança mútua e possam chegar a compromissos de ações conjuntas ou complementares. 4. Mediar conflitos entre atores e setores da cidadania. O governo local deve atuar com enfoque e técnicas de negociação relacional de conflitos, cuja finalidade seja fortalecer as relações entre as entidades que negociam, nos temas em que tenha sua competência envolvida. Também deve 71 Recomenda-se a elaboração de um plano estratégico, cuja finalidade seja alcançar uma cidade inclusiva. Ver a este respeito os trabalhos do Marco Estratégico de Barcelona, promovido pela associação público-privada ABAS (Asociación Barcelona para la Acción Social). www.abas.org

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ser facilitador e mediador de conflitos entre atores e entidades cidadãs. A coesão social de um território depende de sua capacidade de enfrentar e resolver positivamente conflitos. Um município que progride não é aquele onde inexistam conflitos, mas aquele que os confronta buscando novos cenários, novas situações em que os diferentes interesses possam se complementar. Por isto, é importante dispor de espaços de intermediação facilitadores do encontro de interesses legítimos entre os grupos, setores e entidades da cidadania. 5. Conseguir vitórias rápidas e visualizar a realização de projetos. É importante, para promover a coesão, que a cidadania experimente uma realização visível de projetos tangíveis para o bem-estar da comunidade. A partir de uma perspectiva de mobilização e participação nos assuntos coletivos, o mais importante não é tanto o projeto tangível que afeta um número reduzido de cidadãos, mas os efeitos intangíveis na consciência cidadã do saber fazer e gerenciar com eficácia e honradez. Por isto, a realização de projetos deve enquadrar-se em um projeto de geração de cultura cívica e empreendedora da cidadania. Dar intencionalidade educativa a tudo o que se faça, para que a comunidade compreenda, confie e se envolva. 6. O desenvolvimento de uma comunicação efetiva baseada nos valores do humanismo ou do republicanismo cívico. A comunicação deve basear-se na realidade dos projetos e de suas circunstâncias. A comunicação efetiva não tenta substituir a realidade, mas tomá-la como base para as mensagens e os significados que se deseja transmitir a partir de uma situação objetiva. A comunicação tem que se apoiar em uma informação clara, transparente, documentada e na qual se possa acreditar. Fundamentos

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7. Envolver o conjunto do governo local na temática da coesão social. Este pilar não é o último por ordem de importância. Muito pelo contrário, pois, se a coesão social não for um objetivo assumido por toda a administração, são criados obstáculos dificilmente superáveis para liderar os processos de coesão social por parte dos governos locais. Por seu papel importante, dedicamos-lhe uma seção específica.

O envolvimento do governo local A coesão social, ou mesmo a realização de objetivos sociais em um município, não é tarefa exclusiva de um departamento ou secretaria. Assim, por exemplo, para garantir as necessidades básicas de uma população ou reduzir a pobreza em um território – embora a responsabilidade para alcançar este objetivo costume ser da secretaria de assistência social, por ter mais competências e recursos específicos – devem ser envolvidas as áreas de saúde, obras públicas (saneamento básico, espaços públicos, iluminação, etc.), transporte, moradia, educação e esporte (que se converteu em necessidade básica de saúde), uma vez que as tais necessidades são mais amplas que o acesso a equipamentos e prestação dos serviços sociais. O fundamental para integrar socialmente um município é que a atuação do conjunto do governo se oriente por objetivos sociais. Que a atuação de todas as áreas ou departamentos tenha por referência os mesmos objetivos de coesão social, redução das desigualdades e desequilíbrios territoriais. É muito importante que o responsável pela assistência social, que vai liderar as ações para a integração social, tenha muito claro o que deve demandar das outras áreas do governo para que o conjunto do município avance no sentido de alcançar o maior grau de coesão possível. 158

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A este respeito, o primeiro fórum de responsáveis pela área de bem-estar social da Província de Barcelona72 dedicou um grupo de trabalho destinado à identificação dos critérios sociais para a produção de espaço público, que é um dos temas de maior envolvimento na geração de capital social, e na prevenção de conflitos sociais.73 As principais constatações foram: • A configuração do espaço público ou, inclusive, a carência do mesmo, foi considerada como uma das expressões mais claras do que é a sociedade: “... é a sociedade inscrita na terra” (Lefebvre). Porém, o espaço público, enquanto construção coletiva de uma cidade dirigida por uma prefeitura democrática, também é a expressão do que se quer ser, uma antecipação da sociedade do futuro e, por sua vez, um instrumento de transformação da cidade ou do município atual na perspectiva do município que se deseja no futuro. • Na visão democrática da nova sociedade-rede, ou também denominada sociedade do conhecimento, o espaço público é considerado fundamentalmente como gerador de capital social. Na avaliação do impacto de um espaço público, têm que ser levado em conta, sobretudo, a intensidade e qualidade das relações sociais que favorece. Um espaço público, desenhado a partir de uma clara definição de objetivos sociais a serem alcançados pela cidadania, pode ter os seguintes impactos positivos: • Dar centralidade e, em consequência, iniciar a recuperação de periferias, sempre que se recuperem espaços margi72 No original, “I Forum de Regidors i Regidoras de Benestar Social”, organizado pela Diputación de Barcelona. Os “Regidors” e “Regidoras”, também denominados Concejales e Concejalas (vereadores e vereadoras), são pessoas eleitas em pleitos locais e, na Espanha, têm responsabilidades executivas na equipe de Governo. (Nota do tradutor) 73 O grupo foi presidido por Josep Mª Lahosa. Diretor de Serviços de Prevenção da Prefeitura de Barcelona, e Consejal (vereador) responsável pela área de Bem-Estar Social da Prefeitura de Villanova. Fundamentos

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nais, segregados e inacessíveis, de encontro, onde possam emergir atividades econômicas, sejam casas comerciais ou escritórios. Tem como consequência incrementar o preço do solo nos arredores, fato que significa um crescimento da renda da vizinhança. • Gerar identidade, por converter os espaços em lugares, isto é, espaços significativos para a cidadania. Espaços dignos, bonitos, com valor simbólico, que permitam que as pessoas se sintam como sendo do lugar, do bairro. O sentimento de “pertencer” é chave para a autoestima e a geração de envolvimento e responsabilização dos moradores em relação ao bairro e a se mesmos; e inicia e fortalece o processo de progresso do conjunto do bairro. • Gerar capital social. Constituir um espaço de encontro e convivência gera conhecimento mútuo, identifica e difunde, através das relações de vizinhança, os desafios do bairro e permite a colaboração entre vizinhos. • Constituir um equipamento aberto para a prática de esportes e atividades de lazer para todo mundo, mas muito especialmente para a vizinhança com menos possibilidades de renda e com moradias mais deterioradas, que são os que mais usam o espaço público. • Fortalecer a cultura popular e de bairro, para a realização de festas populares e atividades culturais e solidárias de rua. • Promover a integração cultural da diversidade de origens – geográficas, de línguas e idades – como consequência dos impactos anteriormente apontados. A partir destas considerações, foram estabelecidos critérios que o responsável pela área de bem-estar social deve demandar da equipe de governo, para conseguir maior coesão social nos projetos de espaço público: 160

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• Acessibilidade para todas as pessoas em todos os espaços, cumprir os critérios da LISMI (idosos, crianças, pessoas com mobilidade reduzida...)74 • Multifuncionalidade. Dispor de espaços para crianças, jovens e idosos, assim como para diferentes usos – esportivo, lazer, comercial, etc. – é básico para conseguir ser um lugar de encontro e convivência entre as gerações. • Participação dos moradores e dos profissionais de assistência social para que se identifiquem com clareza os diferentes desafios e expectativas dos diversos segmentos da população no desenho e realização do projeto. • Que melhore a imagem do bairro ou do município, pela sua beleza (não quer dizer que seja mais caro) e por sua utilidade. • Simbolismo. Que haja elementos que recuperem a memória do bairro ou do município. Assim como símbolos que favoreçam a identificação do bairro e a autoestima dos moradores. “Monumentalizar as periferias.” • Prevenção. O espaço aberto permite identificar situações de risco que possibilitam um tratamento social. É importante tratar os temas com sentido de antecipação para a melhora da convivência. Por exemplo, o tratamento de grupos de jovens “desajustados”, o aparecimento de “bêbados”, etc. • Segurança. Conseguir espaços públicos seguros não significa cercá-los nem privatizar o seu uso. Têm que ser levadas em conta a iluminação e a visibilidade em todos os lugares, para que gerem ambientes seguros. É preciso assegurar que os moradores possam facilmente chamar a polícia caso necessário. 74 Trata-se de uma lei espanhola que garante os direitos das pessoas com necessidades especiais. A sigla significa Ley de Integración Social del Minusválido. (Nota do tradutor) Fundamentos

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• Integração. Conseguir que as pessoas de origens diversas participem do uso do espaço público. De modo semelhante, estes critérios devem ser aplicados ao conjunto dos departamentos municipais e, assim, contando com os mesmos recursos, mas orientados por critérios sociais, sejam alcançados avanços importantes na coesão social dos municípios.

Antecipar-se e canalizar situações de conflito Foi dito antes que, para liderar a coesão social, era preciso desenvolver um trabalho em duas dimensões. Uma, desenvolver os pilares sobre os quais repousa a coesão; e outra, prevenir e canalizar as situações conflituosas entre diferentes grupos sociais ou setores da cidadania. Os processos de coesão social podem ser obstaculizados ao aparecerem conflitos que, se forem indevidamente canalizados, levam à segregação mútua entre setores comunitários. A exclusão social é definida por dois componentes: uma situação social diferenciada em função de uma ou mais variáveis (procedência geográfica, cultural ou social, valores e crenças, opções e atitudes sexuais, gênero, nível de renda etc.) em relação ao grupo social mais amplo (definido em função das variáveis sociais consideradas), e uma reação de rejeição ou segregação do grupo social mais amplo com respeito ao minoritário em todos ou alguns dos níveis ou âmbitos de uma sociedade (econômicos, sociais, territoriais ou políticos). A diferença social, a desigualdade ou mesmo o desvio em relação a atitudes e condutas predominantes e suportadas pelos costumes ou normas geram exclusão social se não for criada uma reação social segregacionista ou excludente. Determinadas situações sociais condicionam, sem dúvida, o aparecimento da reação de exclusão: elevados níveis de desemprego, a insegurança cida162

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dã, situações de miséria econômica e de habitação, a ocupação exclusivista do espaço público etc. Porém, a reação excludente tem seus mecanismos próprios de geração: desconhecimento do outro, incompreensão de atitudes e reações, medo do diferente,75 cultura não pluralista76 e etc. Em geral, a reação social excludente é antecedida pela sistematização de preconceitos sociais ou etiquetas que um grupo social elabora em relação aos “outros”. Uma ou um político que lidere processos de coesão ou inclusão social deverá atuar, com apoio do governo municipal, de modo a antecipar situações para reduzir as desigualdades sociais e os desequilíbrios territoriais entre os bairros, mas também, e sobretudo, na prevenção e redução dos obstáculos intangíveis à coesão social e dos mecanismos que geram a exclusão social. Pela importância deste segundo aspecto, assim como pela sua novidade e por esta tarefa inscrever-se plenamente na gestão relacional, são identificadas, a seguir, as tarefas a serem empreendidas pelo político com responsabilidades de governo para prevenir e canalizar os conflitos enfrentados por grupos e setores do município. • Uma das principais tarefas é, sem dúvida, facilitar a informação clara, documentada e confiável sobre os diferentes grupos sociais que, por procedência geográfica e cultural, se localizam no território. Em especial, proporcionar informação sobre as principais contribuições positivas que o grupo em questão (e em perigo de sofrer reação excludente) faz à sociedade e ao municí75 Neste sentido, recomenda-se o livro de Z. Baugman, Confianza y Temor en la Ciudad. Barcelona: Ed. Arcadia, 2006. 76 É comum os meios de comunicação difundirem a opinião de políticos e profissionais europeus demandando que os imigrantes de terceiros países aceitem os valores e atitudes das sociedades receptoras, do mesmo modo que os europeus deveriam assumi-las no caso de emigrarem para seus países de origem, esquecendo que as sociedades europeias se definem como pluralistas. Fundamentos

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pio em particular, e difundi-las de maneira massiva e permanente. • Dispor de espaços de encontro entre os principais agentes responsáveis por processos de socialização: igrejas, universidades, escolas, associações de moradores e de imigrantes, sindicatos de trabalhadores e empresários, que realcem os valores e as características comuns que podem favorecer a interação e relação estável entre setores da comunidade. Fazendo declarações conjuntas na celebração das diferentes festividades, perante eventos locais e externos que podem inibir a segregação mútua e mediando conflitos locais. • Assegurar que todos os moradores e moradoras participem das políticas cidadãs e municipais sobre o território, para que acumulem o conhecimento de todo o município e articulem as respostas às necessidades e desafios de todos os setores da cidadania. • Promover e fortalecer redes associativas que integrem pessoas de diferentes procedências geográficas, culturais e sociais, com a prefeitura atuando como liderança comunitária. • Dispor de amplos, flexíveis e fortes vínculos entre a prefeitura e as entidades do terceiro setor em todos os bairros do município. • Fazer, sempre que possível, pactos para a inclusão social com todas as forças sociais e políticas democráticas do município e, em especial, nos temas relativos à imigração. Estes mecanismos preventivos funcionam com grande eficácia nos casos de aparecimento de conflitos entre grupos de vizinhos. É muito importante que os eleitos tenham uma atitude aberta em relação ao conflito e uma consciência clara tanto frente aos riscos como às oportunidades. Esta é a melhor forma de prever e gerir os 164

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conflitos, incrementando a consciência das interdependências dos grupos. Líderes políticos sem capacidade para identificar, tanto as interdependências internas como as externas à Prefeitura e ao município, são um freio para as sociedades complexas e abertas em que vivemos. Em qualquer caso, o líder político relacional nunca buscará o domínio dos valores e comportamentos de um grupo social sobre outros, tampouco o isolamento ou a segregação cultural dos grupos sociais. Ao contrário, buscará o máximo apoio e colaboração para o predomínio dos valores que favoreçam a maior interação possível, baseada na comunicação aberta, no conhecimento e compreensão mútuos, assim como no estabelecimento de relações estáveis entre os distintos grupos sociais no território.

O apoio necessário à liderança relacional A liderança política relacional necessária para articular a coesão social é muito diferente da que se precisa para gerir os recursos e serviços municipais. É conveniente que o político representativo possa dispor, ao nível interno ou mediante a contratação externa, dos seguintes tipos de apoio: • Conhecimento especializado nas técnicas que assinalamos anteriormente de gestão relacional: planejamento estratégico, participação, gestão de redes, negociação relacional, etc. • Um mapa de atores sociais do seu território, que lhe proporcione uma informação sobre o conjunto de atores públicos, voluntários, organizações sociais sem fins lucrativos, associações de moradores e comunitárias, assim como seus principais projetos relacionados com os temas da inclusão e coesão social. Assim como dispor de fortes vínculos com este conjunto e dos mecanismos para enlaçar atividades e projetos. Fundamentos

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• Manutenção de um sistema de informação sobre as variáveis que podem incidir na quebra da convivência entre setores comunitários: evolução do desemprego, dos índices de delinquência e vítimas, déficit de serviços básicos e moradias, programação de serviços e equipamentos que possam ser objeto de rejeição por grupos de moradores. • Um registro atualizado para saber quem chega ao território e as zonas ou bairros em que se assentam. • Poder utilizar com rapidez e flexibilidade diferentes meios de comunicação: boletins, imprensa, rádio e televisão local, assim como capacidade para pôr anúncios, editar folhetos etc. Não se entende que seja necessário dispor de todos e cada um desses instrumentos para liderar politicamente a coesão social em um território; cabe assinalar, unicamente, que eles são convenientes para construir uma política de coesão social mais eficaz. Por outro lado, quanto menor for a população e a complexidade do território, menos sofisticação será preciso nos mecanismos de apoio técnico.

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7. Perfil político para a liderança representativa na governança: Valores, habilidades e atributos Ideias Principais 1. Os valores próprios das sociedades abertas e do republicanismo ou humanismo cívico sustentam a liderança representativa. 2. Habilidades ou aptidões específicas do perfil político são necessárias para a prática da governança. 3. Principais atributos vernança.

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Entenderemos por perfil político a soma integral de habilidades ou aptidões, atributos e valores mais importantes para que uma pessoa, ou um coletivo político eleito possa exercer de maneira mais adequada a liderança representativa em um governo relacional.

Os valores que sustentam a liderança representativa Os valores próprios da liderança representativa na governança são aqueles da discussão relacional, dos valores e das atitudes que favorecem, segundo Popper, o desenvolvimento científico.77 Estes são a liberdade em todas as suas facetas e, muito especialmente, a liberdade de informação, a circulação e debate de ideias, a tolerância e o respeito ao outro, a suas opiniões e crenças, a humildade frente a suas próprias ideias, ou seja, os valores das sociedades abertas. A governança democrática precisa dispor de técnicas para poder desenvolver-se. Porém, necessita mais ainda de valores e virtudes, ou de atitudes dos políticos para dar impulsão à sua potencialidade. Neste sentido, Ortega y Gasset mostrou como o sentido e a própria causa da técnica se encontra fora dela, a saber: no emprego que o homem dá a suas energias latentes e liberadas pela técnica; e observou para a sua época que as crises nos desejos, ideias e valores são a razão pela qual toda potencialidade da técnica não tenha servido para nada.78 Hoje há também uma crise de valores, como nas primeiras décadas do século passado. Em especial, ressalta um questionamento generalizado dos políticos e dos valores éticos que devem presidir 77 K. Popper, La sociedad abierta y sus enemigos. Barcelona: Ed. Paidós, 2006. 78 Ver J. Ortega i Gasset, Meditación sobre la técnica y otros ensayos. Madri: Revista de Occidente, Alianza Ed., 2002, pp. 53-55.

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a atuação da denominada classe política democrática. Mas este lamento generalizado de quebra moral e perda de valores não pode ser atribuído a casos concretos de corrupção política; como observou D. Innerarity, essas crises de valores acompanharam sempre o processo de modernização social e política.79 Hoje, como já dito, estamos ante uma necessidade de mudança nas formas de governar dado o esgotamento do modelo baseado na prestação e gestão de recursos, assim como em uma forma de fazer política própria de sociedades bem delimitadas territorialmente e integradas politicamente no marco do Estado-nação. As metodologias e técnicas da gestão relacional se inspiram e só podem desenvolver-se em um contexto de valores e virtudes próprios das sociedades abertas. De outro modo, é muito difícil identificar estratégias compartilhadas, estabelecer a negociação relacional, ou desenvolver o enfoque abrangente em ciências sociais etc. A governança requer duas condições para ser considerada como um novo enfoque em ciências sociais, e como um modo apropriado de governar na sociedade-rede: que a verdade ou a falsidade de suas teses principais, das bases detalhadas e explicativas, seja demonstrável pela lógica e que suas explicações se adaptem aos fatos e sejam, portanto, suscetíveis de prova. Porém, o fato de que este novo enfoque de governar seja considerado objetivo ou racional-científico não significa que esteja livre de valores, como lembra Hempel.80 Pelo contrário, como já observamos, existem valores e condições sociais e econômicas que permitem um maior/menor desenvolvimento desta teoria, tanto em nível conceitual quanto prático. 79 D. Innerarity, El Nuevo Espacio Público. Madri: Ed. Espas Calpe, 2006, p. 188. 80 “A adequada solução para um problema não só exige o conhecimento dos meios técnicos, mas também de padrões para avaliar os meios alternativos à nossa disposição; e este segundo requisito coloca problemas reais.” Em La explicación científica. Barcelona: Paidós Ed., 2005, p. 118. Perfil

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Neste sentido, deve entender-se que as políticas estão condicionadas pelo ambiente econômico, social, tecnológico e institucional em que se inscrevem. Porém, condicionadas não quer dizer determinadas, posto que as decisões políticas são também fruto da liberdade e responsabilidade de quem decide.81 A governança democrática, como seu nome indica, necessita das regras e procedimentos democráticos e se consolidará à medida que os valores e atitudes próprios da sociedade aberta e democrática sejam interiorizados pela sociedade e seus líderes políticos sejam sua expressão prática, e não apenas pelo respeito às regras do jogo democrático. A organização atual da sociedaderede, baseada nas interdependências, requer um marco democrático de responsabilidades que não pode ser assegurado de maneira centralizada nem hierárquica pelos governos; precisa, sim, de uma responsabilidade com cooperação entre os atores e setores da cidadania, definida e organizada de forma plural.82 A argumentação anterior também nos serve para destacar que a governança democrática é uma forma de governar própria de determinadas ideologias políticas ou partidos políticos. Com efeito, a partir da aceitação das regras do jogo democrático, qualquer opção política pode desenvolver as metodologias da gestão relacional ou das interdependências, uma vez que estas são objetivas. As opções políticas, portanto, não se distinguem pelo uso das técnicas de gestão nem pelo modo de governar adotado, mas pelos valores que perseguem com o modo de governar, e que se expressam pelos eleitos e representantes políticos. No paradigma do governo como gestor do gasto público, a distinção não se devia ao tipo de gestão, mas, sobretudo, à finalidade do gasto; se era prioritariamente militar ou social, e se 81 Ver J. Prats, “Ética del oficio político”, em Instituciones y desarrollo. Nº 14-15 Nov. 2003, pp. 205 a 209. 82 D. Innerarity, op.cit., p.199.

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a decisão do gasto correspondia a maior ou menor proximidade com o cidadão. Na governança, a distinção se fará de acordo cm a prioridade acerca das finalidades do progresso humano, seja o desenvolvimento econômico, a equidade ou a coesão social, a sustentabilidade ou o desenvolvimento da ética democrática ou republicana. Todos eles são valores compatíveis e interdependentes, mas também sujeitos à ordem de prioridade, em especial se consideramos conjunturas concretas nas quais é preciso optar pelo que tem um valor predominante. Dito com toda clareza, a construção coletiva e consciente do progresso humano nos territórios será feita em função de alguns valores ou em função das pessoas e grupos políticos que tenham sido eleitos democraticamente.

Habilidades ou aptidões do perfil político para a prática da governança As habilidades para o líder em governança não devem ser entendidas tanto como habilidades pessoais, fruto de uma personalidade ou formação, mas como habilidades e aptidões coletivas. Isto é, aptidões construídas pelo eleito e equipe ou equipes técnicas que o assessoram na sua atividade política na prefeitura. As principais habilidades ou aptidões para exercer este tipo de liderança são: • Visão de futuro para o território • Iniciativa para a gestão da mudança: definição de objetivos • Desenho de processos e organizações: capacidade de adaptação • Comunicação e motivação: convencer e comover • Construção de alianças: domínio das interdependências Perfil

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A visão de futuro ou a capacidade de imaginar cenários é fundamental para alcançar uma articulação de interesses. É comum que a confrontação entre atores se produza com base em uma situação ou projeto dado. Buscar o maior acordo possível e necessário significa muito frequentemente articular os interesses e desafios em cenários futuros a serem construídos coletivamente, ou imaginar projetos factíveis em que todos possam ganhar de maneira correspondente ao esforço ou investimento. A gestão das expectativas cidadãs é uma habilidade muito importante. Gerar expectativas que não se realizam provoca frustração. Sua consequência é a desmobilização da cidadania e a geração de desconfiança política. Tão importante como a não realização efetiva das expectativas é a percepção de que estas não se cumprem; os resultados são os mesmos. Esta segunda modalidade é mais frequente na realização dos projetos estruturantes na cidade, uma vez que a sua realização não é imediata. Um projeto complexo percorre necessariamente diferentes etapas (formulação, estudo prévio, desenho do projeto executivo, orçamento, início de execução) que se estendem por um tempo que pode ser excessivo e pode ter seus avanços não percebidos. É preciso não gerar expectativas irrealizáveis, mas também dispor de uma política de comunicação adequada para que os avanços sejam percebidos. Existe uma fórmula que, se bem que não seja exata, é preciso ter sempre em conta como referência: satisfação é “igual” ou semelhante à percepção das realizações menos as expectativas que a cidadania tenha criado. Ou seja, quanto maiores as expectativas em relação à percepção, menor será a satisfação ou maior será a frustração. De todos os modos, para que uma cidade possa avançar, necessita de expectativas razoáveis e críveis, pois do contrário não se avança. Vale lembrar o caso extremo do lema que apareceu pintado nas ruas de Buenos Aires quando se desvalorizou sua moeda: “Queremos promessas, não mais realidades.” À realização de 172

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expectativas, cabe responder imediatamente com outras novas. Para gerir expectativas é aconselhável ter em conta, além da que acabamos de mencionar, o caso das corridas de cachorros galgos: quando a lebre se encontra muito longe, o galgo não corre, não avança, mas se a lebre fica mais perto, o galgo a agarra e também não corre; é preciso situá-la a uma distância adequada para que o galgo acredite “razoavelmente” que a agarrará, mas não consegue alcançá-la e continua correndo. A lebre é a expectativa e o galgo a cidade, e o que importa é que a cidade sempre corra, sempre avance. Iniciativa para a gestão da mudança: gerir as expectativas significa tomar a iniciativa para começar e dar continuidade às mudanças. É evidente que não basta apenas vislumbrar, mas iniciar os processos de mudança para que, a partir da situação atual, se atinja a situação ou cenário futuro considerado possível e desejável. Para isto é preciso dotar-se de uma estratégia e colocá-la em prática. As forças de transformação devem ser identificadas e definidos os objetivos compartilhados de maneira clara e factível. Assim como deve ser iniciada, de maneira exemplar e com visibilidade, a gestão da mudança. O desenho de processos para a participação cidadã e a realização de acordos é uma aptidão necessária para gerir a mudança corretamente. A participação deve assegurar o conhecimento permanente dos desafios e necessidades dos diferentes setores para conseguir apoio da cidadania, se a estratégia e os projetos adotados assumirem os desafios e necessidades identificados. Os processos de mudança não seguem trajetórias fixas; os próprios avanços introduzem mudanças na situação de partida, o que significa que a estratégia ou projeto identificado aparece com maior clareza e riqueza de matizes que, sem dúvida, exige a reprogramação não só dos conteúdos estratégicos, mas também dos espaços organizacionais em que se canaliza a cooperação pública e privada e a participação. Perfil

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A comunicação e motivação cidadã83 para conseguir deslanchar com maior plenitude a capacidade de ação da coletividade. É convincente comunicar objetivos percebidos pela população como respostas a suas demandas desde que factíveis e necessárias. Porém, a razão não basta para a ação. É preciso também canalizar os sentimentos em uma mesma direção. Por isto, a possibilidade de comover é inseparável da de convencer. Uma sem a outra não consegue envolver a cidadania em seu conjunto. A construção de alianças é condição necessária para a governança. A identificação das interdependências dos atores é condição necessária, porém realmente crítico é passar desse reconhecimento à construção de alianças, isto é, à geração de compromissos de ação. A esta condução que vai da identificação de interdependências ao compromisso, chamamos de gestão relacional. Ela deve partir do reconhecimento mútuo pelos atores de suas interdependências, promover ou fortalecer a confiança recíproca para poder chegar a compromissos sólidos de ação.

Principais atributos para a prática da governança Embora as aptidões possam ser, e é aconselhável que sejam, construções compartilhadas entre as pessoas eleitas e suas equipes, os atributos são fundamentalmente pessoais de quem se elegeu. Os principais atributos, ou seja, atitudes permanentes ou instauradas da liderança que facilitam o desenvolvimento das aptidões necessárias à governança, são:84 83 Para o desenvolvimento desta capacidade, recomenda-se o livro de T. Puig, La Comunicación Municipal Cómplice con los Ciudadanos. Barcelona: Ed. Paidós, 2003. 84 Os atributos foram especialmente selecionados pelo autor. Para um amplo leque dos atributos da liderança recomenda-se J. Boyett, Lo mejor de los gurus. Barcelona: Ed. Gestión. 2001. Também S.R Covey, El 8º Hábito. Barcelona: Ed. Paidós, 2005.

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• Saber escutar: é básico para poder conhecer a fundo as necessidades e interesses, mas também as contradições, dos quais surgem os posicionamentos ou reivindicações dos atores e setores da cidadania, assim como para poder entender as sensibilidades. • Empatia: a habilidade para entender os problemas, desafios, emoções e sentimentos, sabendo colocar-se no lugar do outro. • Imaginação: atributo necessário para gerar visões de futuro do território e projetos compartilhados – novos ou reformulados – que gozem de importante apoio social. • Inovação: a atitude de fazer coisas novas ou as mesmas coisas de maneira diferente facilita o início de uma nova gestão pública. • Habilidade no trato: gerar confiança significa um tratamento respeitoso e compreensivo com os outros e saber incorporar todas as sensibilidades aos compromissos de ação. • Curiosidade para conhecer todos os pontos de vista: entendê-los a partir dos contextos e situações em que são produzidos é, sem dúvida, uma condição importante para a sua modificação a partir da compreensão dos envolvidos e conseguir, assim, sua compatibilização. • Aprender de maneira continuada: é uma atitude essencial para dispor dos conhecimentos necessários para construir novos cenários ou projetos que incorporem a grande maioria dos interesses e pontos de vista dos atores e setores da cidadania envolvidos. Encontramos, também, atributos pessoais necessários a toda e qualquer liderança, tais como integridade, serenidade, responsabilidade, proatividade, sentido de humor, preocupação com os Perfil

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demais, etc. Sem dúvida, ajudam a liderança representativa como qualquer outra atividade na vida em que se aspire a ser feliz, porém não são específicos para a liderança própria da governança democrática. Entretanto, é preciso levar em conta que, muito frequentemente, confundem-se, com pouco rigor profissional, os livros sobre liderança com receitas de autoajuda.

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8. Os Governos Locais: Protagonistas na era da governança

Ideias Principais 1. Os

governos locais têm maior êxito na gestão de serviços às

pessoas e na gestão das relações entre os setores da cidadania.

2. A prefeitura, como organizadora coletiva, é o governo protagonista na sociedade-rede. 3. Os municípios autoinsuficientes. 4. A crescente importância dos governos intermunicipais.

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A gestão relacional ou de redes própria da governança posiciona os governos locais em uma situação ímpar para ser o governo protagonista desta nova arte de governar. Dito de outro modo, o local pode ser o nível de governo característico e chave do modo relacional de governar. Porém, dispor de oportunidades não significa que elas sejam aproveitadas. A identificação deste novo papel e as condições para o seu aproveitamento são tratadas neste capítulo.

As condições de êxito do nível local Há muitas décadas que são conhecidos na Europa os fatores de êxito de um governo local, ainda que os outros níveis de governo insistam em não reconhecê-los. Em 1986, em plena emergência do modo gerencial de governar, Margaret Tatcher encomendou um estudo sobre a eficácia dos governos locais na Inglaterra para a gestão dos serviços de assistência social. O objetivo da ilustre governante era poder demonstrar que a fragmentação municipal era um inconveniente a superar, e que uma maior eficácia na gestão justificaria a centralização de tais serviços. Com estes propósitos, encarregou um reconhecido gestor de centros comerciais, Sir Roy Griffiths, para fazer o informe. O Informe Griffiths, ao contrário do que se supunha, recomendou o reforço dos governos locais. Considerou-se, no Informe, que eles eram o nível mais adequado para gerir as políticas de assistência social. As razões que expôs não podiam ser mais emblemáticas: • Os governos locais, por estarem mais próximos do ambiente onde vivem as pessoas, são os que melhor podem identificar suas necessidades. Note-se que não é uma proximidade física, mas das relações entre as pessoas e comunidades com seu entorno social e territorial. 178

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• Também podem desenvolver uma ação mais integral, coordenando diferentes tipos de serviços para satisfazer as demandas sociais. • A partir do nível local, pode-se organizar o voluntariado e provocar uma resposta social mais ampla às necessidades sociais. • A partir dos governos locais, é mais fácil coordenar a assistência social financiada com recursos públicos e privados. As vantagens comparativas dos governos locais nos serviços assistenciais são facilmente estendidas ao conjunto dos serviços voltados para o bem-estar social. Todas as vantagens observadas têm um denominador comum: a proximidade. Porém, como já apontado, não se trata de uma proximidade física – a menor distância da cidadania, que a torna mais acessível –, mas da proximidade que permite um maior conhecimento das relações entre as pessoas e as comunidades, com o seu ambiente social e territorial.

A prefeitura como organizador coletivo A sociedade do conhecimento ou sociedade-rede torna irrelevante a proximidade física dos governos locais, uma vez que as tecnologias da informação tornam acessíveis qualquer administração a partir de qualquer lugar do mundo. Em troca, reforça até o mais alto grau a proximidade relacional, porque o fundamental é a organização e gestão de redes de atores. As tecnologias da informação incidem na produção de valor, se existe uma organização em rede que permita maximizar suas possibilidades. Neste sentido, entender a prefeitura como o principal organizador coletivo das redes sociais é o que possibilita seu papel de governo protagonista na sociedade-rede. Os

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O Informe Griffiths é um exemplo de que, já no modo gerencial, a prefeitura poderia ter tido um papel mais importante na administração do Estado. Para isso, necessitava da transferência de competências e recursos de outros níveis da administração. Somente com maiores competências e recursos as prefeituras poderiam ampliar a importância do seu papel no modelo de governo provedor e gestor de recursos. Por isso, na Espanha, e na Catalunha em particular, a ação conjunta dos municípios tem consistido em alcançar uma segunda descentralização, até hoje não conseguida, de competências e recursos, sem, de modo algum, negar a importância dessa descentralização para os governos locais promoverem o desenvolvimento humano. Na sociedade-rede, o papel central das prefeituras é determinado por sua atuação como organizador coletivo, pelo seu impacto na melhoria da capacidade de organização e ação de todos os atores e pessoas em um território. O papel das prefeituras consiste precisamente em ir além de suas competências, sejam elas quais forem, para assumir os desafios das suas cidades. Nada que aconteça, ou os seus cidadãos necessitem, é alheio a uma prefeitura que tenha adotado a governança como modo de governar. Sua tarefa não consiste em tentar achar solução para os recursos que não tem, nem qualquer administração terá, mas em desenvolver uma ampla ação multidimensional que implique recursos, geração de uma cultura de ação, organização comunitária, colaboração interinstitucional e público-privada para dar uma resposta coletiva, no sentido de que envolve toda a sociedade para a solução dos seus desafios. Em última análise, as competências e os recursos nas mãos dos governos locais não são importantes em si mesmos, mas enquanto instrumento para aumentar a capacidade das prefeituras convocarem os atores sociais e os cidadãos para organizarem os processos de responsabilização cidadã e parceria público-privada.

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O Poder Local: riqueza dos países e regiões Hoje, depois dos estudos de Jacobs, Sassen, Castells e de tantos outros, inclusive dos informes do Banco Mundial, parece já estar estabelecido que as cidades são a riqueza das nações e que a era infoglobal se assenta em um sistema mundial de cidades. Os fluxos de informação, bens e pessoas que se tornaram mais interdependentes são produzidos, organizados e distribuídos nas cidades e regiões metropolitanas. O que hoje deve ser fixado é que o desenvolvimento dos territórios depende fundamentalmente dos governos locais – municipais e intermunicipais. Seu papel de organizador coletivo das redes e interações sociais no território é, como já observado, sua dimensão mais singular e influente no desenvolvimento econômico, social e humano. A modernização da Espanha é, sem dúvida, a modernização das suas cidades, e o mesmo poderíamos dizer da modernização da Catalunha.85 Os governos locais na Espanha são os principais responsáveis pela inovação urbana. É certo que a porcentagem dos recursos públicos nas mãos das prefeituras não chega a 13% do gasto público total, e é o mesmo desde o início da democracia, após o fim do franquismo. O desempenho das prefeituras na Espanha na transformação das cidades foi dado pelo seu papel relacional. De fato, os cidadãos foram aos governos locais com suas reivindicações e demandas, estes, ao não disporem das competências e recursos, não puderam responder diretamente às mesmas. A falta de resposta poderia ter levado à sua deslegitimação, porém boa parte deles respondeu pondo em marcha o planejamento estratégico da cidade em conjunto com os principais atores econômicos, sociais e institucionais. Também foram feitos planos setoriais para promover o bem-estar social, educação, 85 G. Clark em La gobernanza territorial: un nuevo arte de gobernar. Sevilha: Junta de Andalucía, 2007. Os

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esporte, saúde e etc., as agendas 21, assim como foram desenvolvidas múltiplas experiências de participação e envolvimento da cidadania, processos de cooperação público-privada que, sem conceituá-los deste modo, serviram para dar início à governança. Esta tarefa inovadora de protagonizar e articular a construção coletiva da cidade deve ser o principal objetivo dos governos locais, que desse modo passarão a ser o nível de governo fundamental na sociedade-rede.

Os municípios autoinsuficientes Os municípios, como consequência da interdependência de fluxos de todos os territórios, aumentam o seu nível de autonomia. Não dependem de um único município, seja este capital de estado ou centro de uma área metropolitana. A multiplicação das influências territoriais incrementa a autonomia dos municípios, que podem reestruturar suas relações com diferentes territórios. Isto, sem dúvida, explica o desenvolvimento de planos estratégicos em municípios de reduzido tamanho populacional. Porém, ao definir sua estratégia, ainda que não a definam bem, eles se dão conta de que necessitam da colaboração de outros municípios e regiões para melhorar a qualidade de vida de sua população. As redes não terminam no município e se estruturam em territórios mais amplos, em função do tema tratado: bem-estar social, turismo, cultura, segurança, etc. Ou seja, o encaminhamento de uma resposta aos desafios sociais requer a colaboração intermunicipal. O município é, na grande maioria dos temas, insuficiente para dar sozinho uma resposta adequada. Ele deve ser considerado a unidade básica de um sistema de redes – regional, macrorregional ou internacional – de cidades que interagem em uma temática concreta. Gerir a qualidade de vida da população de um município também é a gestão das relações externas intermunicipais. 182

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A crescente importância dos governos intermunicipais Neste contexto das redes municipais, adquirem grande importância os níveis de administração que têm a responsabilidade pela promoção e suporte à intermunicipalidade. No conjunto do Estado espanhol existe uma grande fragmentação municipal e um importante “minifundismo” municipal. Os Conselhos Provinciais (Diputación), na qualidade de administrações locais, têm desempenhado historicamente o papel de governo supramunicipal. Os municípios pequenos delegaram aos Conselhos competências, provisão e gestão de recursos que, pelo seu tamanho, não poderiam assumir. Desse modo, os Conselhos assumiram competências e serviços que gerenciam para âmbitos superiores a cada município, atuando como governos supramunicipais. Os Conselhos Provinciais assumiram ao longo da sua história o financiamento e a gestão de serviços e equipamentos que na atualidade, na Espanha, são competência dos estados (Comunidades Autónomas ou Departamentos). Este fato, juntamente com as políticas de investimento e subvenções dos Conselhos aos municípios, fez com que muitos estados queiram acabar com os Conselhos por considerá-los concorrentes. A este motivo se soma ainda o fato de que o território provincial representa uma divisão territorial adotada pelo Estado Nacional, e não corresponde à divisão que alguns estados lhes consideram adequadas. Não é finalidade deste trabalho entrar neste debate, afirmar a necessidade de um governo supramunicipal, seja lá que nome tenha. Porém, o que uma sociedade em rede precisa e, em particular, a governança territorial também, é sobretudo de um governo intermunicipal. O governo supramunicipal é necessário para fornecer os equipamentos e serviços de competência exclusivamente municipal e que um segmento de prefeituras não pode proporcionar a seus municípios. O governo supramunicipal não é, portanto, uma noOs

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vidade. É, simplesmente, uma maneira de dar continuidade à função de prestação e gestão de serviços das prefeituras. Diferentemente, um governo intermunicipal constitui uma novidade e é uma dimensão com vocação para prosperar na sociedade-rede. As dimensões da atuação intermunicipal são fundamentalmente as seguintes: • Estabelecer um marco de referência comum sobre desafios e objetivos a serem desenvolvidos no território, para que facilite a colaboração entre municípios. • Produzir espaços de intermediação para articular a cooperação entre prefeituras. • Fortalecer as aptidões estratégicas, relacionais e organizativas dos governos locais para o desenvolvimento da governança, tanto no interior de cada território como nas relações externas com outros atores e níveis de governo. • Apoiar a liderança institucional das prefeituras e, em especial, de seus prefeitos e prefeitas, para fortalecer sua capacidade de representação e suas habilidades para construir o interesse geral em seu território, a partir dos interesses legítimos dos atores e setores cidadãos. Os Conselhos, como governos supramunicipais, estabeleceram relações de hierarquia com as prefeituras. Se bem que sua tarefa consista em apoiá-las no desenvolvimento de suas competências, ao disporem de recursos escassos e terem que priorizar as ajudas, se estas não são feitas através de instrumentos objetivos, acabam por gerar relações de domínio e subordinação. Em troca, a dimensão intermunicipal exige horizontalidade, atuação lado a lado com as prefeituras, uma vez que se trata de gerar redes de municípios.

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9. A Governança do Bem-Estar Social

Ideias Principais 1. O Bem-Estar Social: vanguarda da governança. 2. É

necessário reestruturar a gestão dos serviços públicos de

bem-estar social na governança.

3. A gestão de redes e a participação cidadã. Eixos estruturantes do governo relacional. 4. A

participação como envolvimento da cidadania no

dade”.

“fazer ci-

5. O apoio social às estratégias e políticas.

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O Bem-Estar Social: vanguarda da governança A governança, como assinalamos anteriormente, é a arte de governar ou modo de governar específico do governo relacional. Este, por sua vez, é o que emerge com a sociedade-rede, também denominada sociedade do conhecimento. Hoje a governança se encontra em uma etapa ascendente, deslocando o caduco modo gerencial de governar que, além disso, comportou – e, sobretudo, sua permanência ainda comporta – grandes déficits nas duas grandes dimensões da democracia: a qualidade da representação do eleito e a participação e colaboração cidadã na gestão da cidade. O bem-estar social é um setor que está tendo um papel de vanguarda no desenvolvimento da governança local na Catalunha. Esta afirmação se sustenta na constatação empírica. A cidade de Barcelona conta com um plano estratégico setorial, o Plano Integral de Serviços Sociais, primeiro plano que evoluiu no sentido de dar início aos processos de governança democrática. A associação público-privada criada para impulsionar seus projetos foi definida em 2005, de maneira totalmente pioneira nas políticas de bem-estar da Catalunha e Espanha, ao passar a definir-se como associação promotora de governança no âmbito do bem-estar na cidade. O fórum dos gestores, do qual falaremos mais à frente, é uma experiência singular e inovadora no âmbito europeu, já que reúne as pessoas eleitas com responsabilidades de governo na área do bem-estar social com o objetivo de fortalecer projetos, conteúdos, técnicas e boas práticas na nova arte de governar.86 O fato de que as políticas de bem-estar social na Província de Barcelona se encontrem em uma situação avançada para assumir o desenvolvimento da governança democrática deve-se, entre outras, às seguintes razões principais: 86 Vide nota anterior sobre o fórum. (Nota do tradutor)

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• O impacto do enfoque do desenvolvimento social comunitário, que teve um importante desenvolvimento nos anos 70 e princípios dos anos 80. Ainda que, posteriormente, este enfoque tenha ficado subordinado à necessária ordenação e gestão de um importante fluxo de recursos e serviços que chegaram, a perspectiva do trabalho social comunitário não se perdeu, apesar de não ter sido favorecida. A governança democrática não tem semelhança com o trabalho comunitário. A governança é um modo de governar e o trabalho comunitário é uma dimensão do trabalho social. Deve-se ter em conta, por exemplo, que os enfoques teóricos do trabalho comunitário não contemplam o papel do governo e do político eleito de uma maneira explícita. Mas, claro, têm em comum a finalidade de que a própria sociedade, em um caso, e a comunidade, em outro, assuma a realização de seus próprios desafios. • É um dos âmbitos do governo local em que se constata com a maior crueza a impossibilidade de que o crescimento dos recursos públicos satisfaça as crescentes necessidades sociais. Nasce daí sua disposição para inovar em políticas públicas. • A gestão próxima ao usuário e seu entorno social e territorial permitiu o desenvolvimento do trabalho social como um trabalho relacional, destinado a estabelecer os vínculos entre os grupos sociais vulneráveis com a comunidade territorial e os usuários com seu entorno relacional, familiar e de trabalho. Estas atividades foram denominadas trabalho social comunitário e social sistêmico, respectivamente. • A tradição de colaboração entre governos locais e ONGs foi muito maior na Província do que no conjunto da Catalunha e Espanha, o que permitiu a rápida compreensão A

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da necessidade de coordenar atores para gerir projetos sociais complexos. Por outro lado, permitiu que as organizações sem fins lucrativos fossem contratadas pela administração para gerir os serviços financiados com fundos públicos. Em muitos lugares do Estado espanhol a abertura de processos de terceirização dos serviços significou, desde o começo, a entrada de grandes empresas comerciais procedentes de setores sem experiência na área de prestação de serviços sociais. • Os serviços de bem-estar social, em especial a assistência social, opuseram maior resistência à cultura empresarial, própria da última etapa do governo provedor. O trabalho relacionado com as temáticas de alta necessidade social, pobreza e exclusão, próprias de muitos setores do bem-estar social, levou à recusa da apropriação lucrativa dos recursos que poderiam ser revertidos a estes âmbitos de atuação. Esta resistência às empresas de fins lucrativos e a existência de um importante tecido social facilitaram a transição rápida do modelo burocrático ao modelo de governança com pouca influência do modo gerencial, que provoca uma rejeição na maioria dos profissionais do setor. • Uma tradição bem assentada na assistência social é a diferenciação entre demanda e necessidade na atenção à população usuária. Esta distinção que aparecia como conflito no modo gerencial, que entendia a qualidade como satisfação aos pedidos dos clientes ou usuários, constitui um bom enfoque para um dos pilares do desenvolvimento da governança, uma vez que esta, como já apontado, distingue entre o que é interesse ou necessidade e o que é posicionamento ou demanda. 188

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A reestruturação da gestão dos serviços públicos do bem-estar social A governança, como modo de governar próprio do governo relacional, incorpora, naturalmente, a função de prestação e gestão de serviços públicos no município. Esta função deve desenvolver-se, sem dúvida, através dos critérios de eficácia e eficiência. Entretanto, a gestão de serviços e, em especial, a sua eficácia e eficiência são reconfiguradas na governança relativamente ao modo gerencial de governar. O modo gerencial tem como preocupação a improdutividade dos serviços financiados com fundos públicos geridos burocraticamente, e busca na imitação das empresas privadas os métodos e instrumentos para melhorar a produtividade e, deste modo, alcançar um maior número de usuários ou clientes dos serviços públicos. A eficácia, definida na realização dos objetivos (ser eficaz é cumprir objetivos), no modo gerencial de governar era e é entendida como a cobertura dos serviços, financiados com fundos públicos, sobre a população potencialmente ou manifestamente demandante. Eficiência, que se define pela relação entre eficácia e custos, consiste, no modo gerencial, em aumentar a cobertura com o mínimo custo possível. A aplicação do modo gerencial na área do bem-estar social, em comparação com outros setores das políticas públicas, era e é delicada porque o incremento da cobertura não necessariamente significa a satisfação das necessidades dos usuários, que é o verdadeiro objetivo das políticas sociais. Assim, por exemplo, ainda que exista uma relação direta entre pessoas vacinadas e a prevenção de uma enfermidade, o aumento do número da cobertura dos serviços à infância não significa, que tenha sido reduzido o risco de exclusão ou sua dependência psíquica ou sua vulnerabilidade social. Isto depende de como se trabalha no serviço e, logicamente, de haverem sido definidos com clareza A

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os objetivos do mesmo e feita a sua avaliação com sistemas de indicadores adequados. Um dos principais problemas das políticas sociais é que se passou de um sistema de gestão burocrático, baseado em procedimentos administrativos e com funcionários públicos, à terceirização através de licitações, em que a produtividade é o critério dominante. A uma crítica injusta à gestão por procedimentos burocrático-administrativos (que ainda que não sirvam para gerir serviços, mantêm a função da garantia de direitos e de racionalidade legal) se juntou a exaltação de tudo que procede do mundo dos negócios. Na governança, ainda que admitindo que o aumento de cobertura se relacione diretamente com a satisfação da necessidade do usuário, como no caso de alguns serviços em domicílio dedicados a pessoas com grandes dependências permanentes, o critério de eficácia não é o mesmo do modo gerencial. Não é simplesmente o incremento da cobertura, mas o impacto do serviço na capacidade de organização e ação do conjunto da cidadania para satisfazer ou dar respostas às necessidades e desafios sociais. Isto é, o que a governança exige como critério de eficácia ou, o que é o mesmo, como cumprimento de objetivos próprios do seu modo de governar, é que a prestação e gestão de serviços financiados com fundos públicos tenham uma dimensão comunitária. Que contribuam para melhorar a capacidade de resposta do conjunto da sociedade. Na governança é preciso exigir da gestão dos serviços a complementaridade com outros serviços do município, para formar redes de atuação público-privadas sob a responsabilidade pública, assim como o envolvimento comunitário de famílias e usuários em ações de melhoria do capital social, ou, em termos mais tradicionais, de desenvolvimento comunitário. O esquema que diferencia o modo de governar gestor ou gerencial da governança aplicado à área do bem-estar social é o seguinte: 190

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Esquema gestor

Esquema governança

Desenvolvimento social

Desenvolvimento social

Infraestruturas e serviços

Participação desenvolvimento comunitário

Políticas de Bem-Estar Social

Infraestruturas e serviços

Capacidade de organização

Políticas de Bem-Estar Social

Damo-nos conta de que a prestação de serviços públicos deve impactar o desenvolvimento comunitário, e, por isto, o envolvimento social é um critério essencial para abordar a eficácia dos serviços na perspectiva da governança. A eficiência se relaciona diretamente, na governança, com o custo dos serviços que não são eficazes. Quer dizer, que incidem diretamente tanto na satisfação das necessidades dos usuários como no desenvolvimento da capacidade da comunidade no território em que se situam. Em qualquer política pública de um governo relacional, a governança – e, naturalmente, a área de bem-estar social – responderia ao seguinte esquema: A

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Governança Territorial: nova arte de governar

(1)

Âmbito legalburocrático (2)

Gestão relacional ou estratégica

Capacidade de organização do território

Progresso econômico e social

(3)

Provisão e gestão de recursos

(1)

(1) A posição da função de âmbito legal gerida pela burocracia profissional e a provisão da gestão e recursos gerida por profissionais não burocráticos são suporte de gestão estratégica. A linha pontilhada (2) significa que a gestão relacional e de recursos têm que responder à legalidade e normas democráticas. A seta (3) significa que os recursos próprios devem articular-se com os objetivos da gestão estratégica.

Assim, temos um âmbito de legalidade para garantir os direitos de todos os cidadãos, dirigido por funcionários, isto é, por trabalhadores especialmente protegidos das mudanças políticas e institucionais para garantir ao máximo a neutralidade e adequação à lei dos procedimentos de contratação, participação e colaboração interinstitucional e público-privada. É de se supor que a participação e colaboração serão as áreas de maior desenvolvimento normativo na governança. Trata-se de uma prestação e gestão de serviços que não impactará somente na melhoria dos índices de cobertura, mas especialmente na capacidade do desenvolvimento comunitário. O âmbito relacional, que assume na governança o papel estrutural de todas as funções de governo, é o que terá maior nível de 192

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desenvolvimento, uma vez que consiga apoiar-se em um conjunto de metodologias e técnicas específicas que constituem a gestão relacional. No âmbito da função de prestação e gestão de serviços, a passagem do modo gerencial para a governança deve significar a promoção das seguintes mudanças mais importantes: • De perspectiva: será contemplado, por parte do governo, o conjunto da oferta de serviços de bem-estar social no território. • De concepção da qualidade: será priorizada a qualidade das redes – a intensidade e qualidade das interações entre serviços para assegurar uma ação integral. • De contratação de serviços: importância da gestão comunitária.

A visão do conjunto da oferta de serviços do território Ao centrar-se em objetivos para o conjunto da população do território e, a partir daí, gerir as interdependências de todos os atores que atuam em uma situação social, o governo local, na governança, não apenas se fixará na oferta de serviços específicos, mas no conjunto da oferta de serviços no município e em sua área de influência. E, no mínimo, tentará articular os atuais e futuros prestadores para que, em conjunto, possibilitem que sejam alcançados os objetivos de cobertura para toda a população do município. É próprio do modo gerencial de governar atender apenas o percentual da população que será coberto pelos recursos públicos oriundos do município, sejam estes próprios ou obtidos por transferência de outros níveis da administração. Assim, por exemplo, um planejamento municipal pode indicar um objetivo de cobertura para os serviços de assistência em domicílio finanA

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ciados pelo município que alcance 4% da população-alvo e, na verdade, só atingir os 2%. A partir dessa defasagem definirá, com data precisa e possível – digamos, quatro anos –, o incremento de recursos próprios e das transferências de outras administrações para conseguir o aumento da cobertura. Esta forma de atuar dos governos locais, tão centrada na atividade setorial e no impacto populacional que pode obter, desconsidera o nível de cobertura necessário para o conjunto da população que depende do município, esquecendo que foram escolhidos como representantes por todos os cidadãos para cuidar da satisfação de todos e não só daqueles aos quais pode chegar através de sua ação setorial. Um governo relacional se fixará nos níveis de cobertura a serem alcançados no conjunto do município e buscará articular e coordenar com todos os atores as medidas necessárias para tal. É preciso um planejamento compartilhado e também uma gestão das interdependências dos atores para atingi-los. Assim, no mesmo município do exemplo anterior, detecta-se que o nível de cobertura necessário é de 6%, a oferta financiada é logicamente a mesma, 2%, mas na nova perspectiva identifica-se que outros 2% são cobertos pela iniciativa social e privada, e, além disso, 75% da população dependente está sob o cuidado de familiares. No novo modo de governar, o que procede é constituir um grande acordo estratégico entre a prefeitura, a iniciativa social e empresarial e os demais níveis de governo para desenvolver ações coordenadas destinadas a alcançar os 6% de cobertura necessários. A aplicação da “Lei de Promoção da Autonomia Pessoal e Atenção a Pessoas em Situação de Dependência”, denominada coloquialmente “Lei da Dependência”, está significando um aumento da oferta de serviços nos municípios. Dadas a procedência distinta dos fundos públicos, a terceirização da gestão dos serviços e o incremento da variedade dos mesmos, torna-se necessário assegurar a coordenação e a complementaridade da oferta de serviços. Não 194

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fazê-lo (a capacidade de conseguir maior bem-estar pelo aumento da oferta) diminuirá em função da muito provável fragmentação da oferta. A tarefa de liderar a constituição de um marco referencial para a colaboração e complementaridade dos serviços no município é um novo tipo de ação que corresponde à prefeitura, para o que necessitará de nova capacidade de organização. Um objetivo se destaca de maneira especial na governança: a oferta de serviços públicos deve contribuir para o fortalecimento da sociedade civil e, em particular, de sua capacidade para assumir maiores responsabilidades sociais. As políticas de oferta de serviços públicos devem contribuir para a melhora da qualidade de vida da população com necessidades e também dos familiares e vizinhos que assumam tarefas de solidariedade social. Trata-se de evitar que o compromisso social da sociedade civil seja debilitado por uma configuração inadequada de políticas de bem-estar social. Um exemplo de má política se produziu em alguns municípios da Província de Barcelona, ao contratarem externamente, sem analisar as redes sociais do território, e com fundos públicos, a figura dos profissionais de atividades recreativas para a infância nos bairros (monitores), cujo efeito foi o contrário do que se pretendia: destruíram a atividade profissional e também a voluntária, que se desenvolvia nas paróquias e entidades de moradores. O conjunto da oferta para a infância diminuiu. Em troca, a introdução dos serviços municipais que dão suporte às famílias acolhedoras, denominadas “respir”,87 está favorecendo a incorporação de pessoas acolhedoras e a qualidade de sua atenção, ao disporem de diversas atividades para as pessoas assistidas. Deste modo, familiares e voluntários acolhedores podem combinar suas atividades cotidianas com a solidariedade familiar e de vizinhos. 87 Centros de descanso de curta permanência para idosos ou pessoas com problemas físicos ou psíquicos, para dar um tempo para "respirar" aos familiares que se encarregam do seu cuidado, para permitir-lhes tirar férias, alguns dias de descanso ou mesmo um dia para cuidar de algum assunto pessoal. (Nota do tradutor) A

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A qualidade das redes: as marcas de garantia O novo modo de governar implica integralidade na concepção das necessidades das pessoas e, portanto, precisa da articulação do conjunto de serviços para que representem uma oferta de qualidade. Em outras palavras, que o conjunto de serviços públicos e de iniciativa das organizações sociais possa cobrir todas as necessidades das pessoas, no caso em que elas sejam de natureza pública – objetivo das políticas sociais. Uma pessoa com necessidade de assistência em um momento determinado pode precisar de ajuda domiciliar e teleassistência. Em outro momento, pode precisar do seu ingresso em um centro de descanso, ou em uma residência assistida e, outra vez, de uma assistência domiciliar, etc. A atenção integral, portanto, precisa de uma coordenação de serviços baseada na qualidade. Dado que a oferta de serviços para propiciar a atenção integral em um município se acha fragmentada em uma pluralidade de instituições, torna-se necessário o estabelecimento de uma marca que englobe o seu conjunto. Na Espanha, as autoridades portuárias são exemplos do bom funcionamento de uma marca. Os portos precisam, para sua competitividade, assegurar objetivos, como garantir, por exemplo, que um carregamento de calçados chegue a seu destino no prazo de sete dias. Para conseguir isto, um porto precisa coordenar a ação de diferentes operadores e atores, tanto na cidade de origem como no destino: consignatários, transportadores, agentes aduaneiros, empresas de contêineres, estivadores, rebocadores, operadores ferroviários, entre outros. Para alcançar tal coordenação, organiza-se uma marca de qualidade. A marca tem um conselho de direção formado pela autoridade portuária, o Estado e a prefeitura da cidade. Os operadores também integram a marca, desde que cumpram uma série de 196

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condições e compromissos operacionais. Por sua vez, os clientes que contratam os serviços da marca têm a garantia do cumprimento dos mesmos. Em caso de descumprimento por parte de algum operador, a marca impõe as sanções previamente estabelecidas e, se reiterada a falha, cabe a sua expulsão. Para a articulação de serviços, a qualidade é insuficiente – o procedimento das normas ISO e a metodologia EFQM se centram na qualidade, no interior de cada serviço. As marcas de qualidade podem exigir de cada operador tais normas, mas elas garantem a qualidade de cada serviço e, também, a sua coordenação. Em uma oferta de serviços de bem-estar social, cada vez mais ampla e fragmentada, é preciso uma ação dos governos locais apoiados pelos demais níveis de poder para promover e dirigir uma marca de qualidade em um território. Uma marca de qualidade em serviços de bem-estar social deverá, no mínimo, dispor dos seguintes elementos: • Um serviço de recepção de novos sócios que solicitem ingressar na marca de qualidade. • Exigências mínimas de funcionamento interno para cada um dos serviços distintos incluídos na marca. • Uma identificação dos compromissos de coordenação entre cada tipo de serviço. • Um serviço de queixas e reclamações próprio da marca de qualidade para usuários, familiares e vizinhos. • Uma normativa de bonificações e sanções, inclusive expulsão, para os serviços que não cumpram as regras. • Uma política de comunicação e divulgação da marca de qualidade para a cidadania e entidades sociais. As marcas de qualidade são, sem dúvida, um claro instrumento de gestão relacional, de governança. Através deste instrumento, o governo local assume um papel de maior relevância social como A

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fiador da qualidade e da atenção integral do que desempenhava como simples prestador ou gestor de determinados serviços. Na governança, a responsabilidade pública não somente consiste em responder pela qualidade dos serviços financiados com recursos públicos, mas, e fundamentalmente, em responsabilizarse pela resposta coletiva aos desafios e necessidades sociais da população, e garantir a qualidade da atenção integral aos usuários dos serviços. As marcas de qualidade começam a ter uma clara expansão quando são aplicadas no âmbito turístico, assistência sanitária, nas instalações esportivas, no transporte coletivo intermodal de passageiros, etc., e, em breve, seguramente, nos serviços de bemestar social na Província de Barcelona. É preciso que se vá preparando o futuro das marcas de qualidade na área do bem-estar social, assim como também a organização da oferta de serviços com critérios de governança, isto é, para que tenham um impacto positivo na capacidade de organização e resposta comunitária. Deve-se iniciar, de imediato, a revisão dos critérios de adjudicação nas licitações públicas para a contratação externa dos serviços de bem-estar social.

A contratação externa para a gestão de serviços com base no desenvolvimento comunitário A experiência da gestão burocrática de serviços, cuja crítica e superação deu origem ao modo gerencial, é suficiente para pensar que a gestão pública dos serviços de assistência social não seja direta, através de profissionais da administração, mas por terceirizados contratados externamente. Por outro lado, a complexidade de situações e necessidades sociais requer uma ampla gama de profissionais e uma grande capacidade de adaptação e, portanto, de flexibilidade, que fazem com que uma organização burocrática 198

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– no sentido de que sua finalidade é zelar pela legalidade, tem natureza necessariamente normativa e é protegida para garantir direitos – não possa assumir a gestão destes serviços. A governança exige contratação externa dos serviços financiados com recursos públicos em igual ou maior proporção do que no modo gerencial, mas será preciso suprimir e introduzir critérios de prioridade nos processos de contratação externa. Em especial, os seguintes: • Um critério essencial para a terceirização, que já podia ter sido estabelecido no modo gerencial, é definir os objetivos de impacto na população usuária. A identificação destes objetivos permite a medição posterior de resultados nos serviços sociais, e levam a não pressupor que um incremento de produtividade seja suficiente para aferir a eficácia no cumprimento de objetivos de fortalecimento da autonomia pessoal ou de inserção social. É muito importante recordar que se eficiência é um cociente em que o numerador é a eficácia e o denominador é o custo, no caso em que a eficácia tenda a zero, por mais produtivos e de baixo custo que sejam os serviços, a eficiência será zero. Este resultado é com bastante frequência esquecido por aqueles que se consideram entusiastas da produtividade em serviços sociais, uma vez que, se não há resultados, de nada serve a produtividade ou o baixo custo das atividades ou serviços ineficientes. • Parece óbvio que, na contratação externa de serviços sociais, o fundamental seja a existência de cláusulas perfeitamente mensuráveis através de indicadores, tanto para identificar as características das entidades a serem contratadas e garantir sua responsabilidade social como para regular e controlar a qualidade da atenção na atividade dos serviços e medir os resultados. Ao contrário do que é hoje prática habitual, a variável custo A

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na contratação de serviços na área de assistência social só deveria pontuar na adjudicação no caso de um hipotético empate na pontuação dos critérios de qualidade, na atenção e nos resultados sociais propostos a serem alcançados. Só pela pequena capacidade de inovação, pode-se entender que na gestão dos serviços públicos, ainda hoje, persistam critérios econômicos próprios do industrialismo, que, entre outros, considera em sua contabilidade as pessoas como gasto e os equipamentos e máquinas como ativo. • À parte deste critério de racionalidade própria de qualquer tipo de gestão dos recursos públicos, a gestão relacional – ou de interdependências, própria da governança – exige uma série de outros critérios para que a prestação dos serviços repercuta positivamente na geração de tecido social, ou no seu fortalecimento, e na adaptação à diversidade social própria do território. Só desse modo conseguirá os resultados essenciais e a articulação necessária com as políticas de desenvolvimento comunitário e as políticas públicas do território. • A coordenação com os serviços sociais e pessoais do território para estabelecer uma cobertura na rede que permita uma resposta integral aos desafios sociais através da complementaridade dos serviços. • A dimensão comunitária da gestão do serviço, de tal modo que facilite a máxima inserção dos usuários e familiares em associações e movimentos de interesse social. São muito destacados na Província de Barcelona os serviços geridos por associações dedicadas à assistência a pessoas com dependência física e psíquica, assim como os dedicados à prevenção e assistência aos dependentes químicos, em que se canaliza a participação de pessoas 200

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usuárias e familiares para as tarefas de voluntariado para a prevenção de riscos e à ajuda mútua. • A contribuição ao desenvolvimento da cultura cívica no território e, deste modo, contribuir para a geração de capital social. Dado que “o hábito não faz o monge”, não se pode concluir que as entidades sem fins lucrativos sejam as depositárias da contratação externa dos serviços em um governo relacional. Porém, parece razoável que não sejam empresas ou entidades sem finalidades nem práticas sociais, muito menos as que procedem de setores como construção civil, construção de estradas, canais e portos ou com especialidade na coleta e tratamento de resíduos sólidos, para citar alguns exemplos reais, as que consigam maior pontuação nos processos licitatórios de serviços sociais públicos. Esta é, no mínimo, uma prova da confusão de critérios a que se pode chegar na gestão pública. E, sem dúvida, constitui uma prova da permanência do modo gerencial baseado na denominada escola da “Nova Gestão Pública”, que optou pela imitação das empresas privadas, em vez de inovar na gestão pública, que é do que realmente se trata.

A gestão de redes e a participação cidadã A gestão relacional – ou seja, das relações sociais que constroem a sociedade propriamente dita, já que esta é uma configuração espaço-temporal de relações sociais que se localizam em um território – é o instrumento fundamental da governança democrática, como observamos anteriormente. A gestão relacional tem duas dimensões fundamentais: a gestão de redes ou das interdependências88 propriamente ditas e a 88 Ver M. Castells, La Galaxia Internet. Barcelona: Ed. Plaza y Janes, 2001, pp.15 a 29. A

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participação cidadã, à qual podemos agregar uma terceira, que é o apoio social às estratégias e políticas públicas. Por redes entendemos uma série de nós interconectados. Os nós não são em temas sociais homogêneos, pois têm uma importância desigual ou assimétrica. Uma situação social tem a configuração de rede se esta depende da interação de um conjunto de atores e seu desenvolvimento ou evolução depende da dinâmica que estabeleçam de maneira consciente ou inconsciente entre si. Neste sentido, ainda que não se tenha atuado em consequência disso, toda questão social é uma questão de redes ou de interdependências de atores. As redes sociais têm um sentido mais forte que as interações sociais. Tudo interage com tudo, mas a rede se distingue porque existe uma clara interdependência de um número reduzido de atores para enfrentar um desafio ou uma situação social. De maneira semelhante, um projeto em rede significa que a realização do mesmo depende da ação de diferentes atores que contribuem com recursos econômicos ou humanos para a realização do mesmo, e sem eles a realização não seria possível. As redes, portanto, implicam horizontalidade para poder identificar os interesses e desafios dos distintos atores, articular estes interesses de maneira complementar em estratégias, projetos, e compromisso de ação para realizá-los. O exercício da liderança na gestão de redes por parte do governo local significa a possibilidade de criar e programar redes em função de distintos objetivos sociais compartilhados, e, por outra parte, a capacidade e habilidade para conectar distintas redes de atores de tal modo que compartilhem objetivos e possam dispor de um maior volume de recursos para os seus objetivos. Na opinião de Castells, a importância de um nó em uma rede depende de sua capacidade de contribuir para os objetivos da 202

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rede.89 Em nosso caso, em uma rede de atores, a liderança política é alcançada pela capacidade de representação dos distintos interesses e pelo desenvolvimento das habilidades para realizá-los através de políticas e projetos. Na perspectiva da governança, enfrentar um desafio ou um projeto significa a necessidade de convocar todos os atores, mas não todos os setores ou organizações que têm a ver, quer dizer, que serão direta ou indiretamente beneficiados ou prejudicados pelo mencionado desafio ou projeto. As redes, como observado, agrupam atores interdependentes – organizações e pessoas que têm tanto a capacidade para desenvolver o projeto como para impedir que este atinja seu objetivo. Falamos de interdependências de rede ou, inclusive, de cooperação público-privada e institucional só nestes casos. A colaboração que a partir do governo local deve ser estabelecida considera, no mínimo, os seguintes âmbitos: • As relações intergovernamentais: tanto com governos de distintos níveis territoriais como multilaterais com governos do mesmo nível, sejam intermunicipais ou inter-regionais. • As relações com grandes instituições: universidades, centros de pesquisa e desenvolvimento, câmaras de comércio, fundações culturais e educativas de prestígio, igrejas, etc. • As relações com o setor econômico privado: setores econômicos produtivos e financeiros, empresas de capital de risco, confederações e associações empresariais, etc. • As relações com agentes sociais e profissionais: sindicatos, associações profissionais, associações de moradores, movimentos sociais importantes, etc. 89 M. Castells, La Sociedad Red: una visión global. Madri: Ed. Alianza, 2006, p. 27. A

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A gestão relacional não é apenas gestão de redes, pois incorpora também a dimensão participativa. Do contrário, ela seria uma gestão excludente, uma vez que as organizações ou setores com pequeno poder de ação ou reação não seriam levados em conta. O que nos assegura de que estamos falando de governança democrática, de uma construção do interesse geral, é a dimensão participativa, o fato de contar com todos os setores envolvidos e interessados. A distinção entre gestão de redes, participação cidadã e apoio social a políticas ou projetos é muito importante devido a suas consequências práticas. Uma indiferenciação dificulta a operacionalização da governança.

A participação como envolvimento da cidadania na construção da cidade Em um sentido amplo, a gestão de redes e a política de apoio social podem ser entendidas como participação cidadã. Mas aqui, justamente para dar maior capacidade operacional à governança e seu principal instrumento, a gestão relacional, será preciso mais. Entende-se por participação cidadã o processo de envolvimento do conjunto de setores da sociedade através de entidades e organizações sociais, que não são propriamente atores em um âmbito concreto. O objetivo principal é conhecer seus interesses, desafios e necessidades para poder diferenciá-los dos seus posicionamentos. A participação cidadã implica necessariamente a criação de espaços de cidadania para a deliberação. Estes espaços devem ser, por sua vez, flexíveis e bem organizados, com metodologias rigorosas e bem orientadas para o objetivo de identificar, sistematizar e dar prioridade aos interesses e necessidades sociais. A participação da cidadania tem um impacto básico na capacidade de organização e ação que a gestão relacional persegue 204

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– a articulação de uma ampla rede social e o fortalecimento do capital social. Por capital social se entende o conjunto de redes que as pessoas podem formar para resolver problemas comuns. São redes de compromisso cívico como entidades esportivas, associações de moradores e culturais, etc. Quanto mais densas são estas redes, maiores as possibilidades de que os cidadãos cooperem para gerar oportunidades comuns de bem-estar.90 Construir capital social requer conhecimento do “outro”, a geração e preservação da confiança e compromisso de atuar conjunta e coordenadamente. A participação cidadã é entendida como um conjunto de processos que têm por finalidade o envolvimento da cidadania no desenvolvimento da cidade, isto é, que cidadãos se sintam parte da cidade. Participação não é, na governança, um simples processo para canalizar demandas, sugestões ou recomendações à administração municipal. Trata-se de que as pessoas reconheçam sua importância no passado, presente e futuro da cidade e se responsabilizem pelo andamento da mesma. Participação é compromisso e colaboração cidadã. No modo gerencial de governar, também encontramos processos de participação, mas neste caso se dirigem à administração como clientes e usuários, para que esta melhore a prestação e gestão de recursos e serviços. Assim, encontramos processos participativos para fazer recomendações e sugestões em: • Análise das situações sociais. • Programas para a gestão pública. • Serviços que se adaptem às necessidades dos usuários. • Realização de serviços públicos. • Avaliação de resultados. 90 Ver D. Putnam, Making Democracy Work: Civic traditions in modern Italy. Princeton: Princeton University Press, 1993. p. 125. A

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Na governança, estes processos são uma dimensão subordinada. O importante é criar espaços, como fizeram muitos planos estratégicos, em que o cidadão descortina o conjunto do território e não apenas a oferta municipal ou pública, e se coloca em uma situação de corresponsabilidade. Para finalizar esta seção, é importante observar que muito frequentemente ocorrem erros na concepção dos processos participativos, que levam à inoperância dos mesmos e debilitam a importante contribuição da participação cidadã à democracia local e como dimensão que não só completa, mas qualifica a democracia, que é fundamentalmente representação. Entre os principais erros, encontramos: • Confunde-se participação com elaboração de estratégias ou de projetos. A elaboração de estratégias e projetos é uma tarefa complexa e precisa, de rigor técnico e conceitual, pelo que não se pode deixar esta tarefa aos processos participativos. Tal como já observado, os processos participativos devem identificar desafios e interesses, e estes são o principal insumo para a elaboração de estratégias. O contrário significaria obter estratégias e projetos sem legitimação nem apoio social, e o processo de elaboração não teria impacto na melhoria da capacidade de organização. • Atribui-se erroneamente à participação cidadã a aprovação das estratégias e projetos. De fato, a participação irá referendar e dar consentimento majoritário à estratégia e, sobretudo, aos projetos. Mas a aprovação dos mesmos depende dos atores que têm capacidade para levá-los a termo. A aprovação participativa de projetos sem o compromisso prévio dos atores relevantes para a sua execução não traz a garantia de que estes serão concretizados, com o que se produz uma importante frustração de expectativas nas pessoas e uma desconfiança 206

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nos processos participativos. Desconfiança que surge de serem propostas aos participantes deliberações que não lhes dizem respeito. Dos processos participativos podem, sim, sair critérios de atuação que orientem a ação política e a gestão de redes. • Juntamente com o ponto anterior, verificamos que os processos participativos se colocam como o lugar adequado para a tomada de decisões que correspondem à atuação dos eleitos e, de fato, reivindicam substituir os órgãos de representação política. Este é um erro de graves consequências democráticas, uma vez que qualquer processo participativo é setorial-corporativo. A convocação para os processos participativos se subordina a temas predefinidos e os participantes, quando muito, representam suas organizações, e não são escolhidos pelo conjunto da cidadania. Considerar estes processos como substitutos das instituições surgidas de votações gerais é, sem dúvida, uma atitude antidemocrática e só explicável em situações em que os processos eleitorais tenham sido corrompidos. • Não se distingue com clareza duas dimensões da participação. A participação cidadã na elaboração de políticas municipais financiadas com recursos públicos da participação cidadã no “fazer cidade”, em fazer parte de organizações sociais, desportivas, culturais, de moradores, etc.; de adotar comportamentos cívicos e, naturalmente, da participação eleitoral. Ambas são importantes e se condicionam mutuamente, mas os métodos para o seu desenvolvimento são distintos e, sem dúvida, a segunda dimensão é determinante. A participação cidadã na elaboração e monitoramentos das políticas, em condições de normalidade democrática, qualifica a democracia. Por isto, sua finalidade deve ser concebida de tal A

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modo que favoreça a participação eleitoral e o interesse pelo monitoramento da política. Um dos principais indicadores dos processos de participação cidadã (embora não dependa apenas da participação) deveria ser o aumento da participação eleitoral, o interesse pela política e o prestígio da figura do representante político.

O apoio social às estratégias e políticas O apoio social frequentemente engloba a participação, mas tem finalidades próprias. Aqui não se trata de identificar os interesses dos distintos setores da sociedade, mas de buscar o apoio social às estratégias e projetos. Dito de outro modo, trata-se de promover e dar visibilidade ao apoio da cidadania. Uma das regras principais da eficácia do marketing de cidades é que não se pode dar visibilidade ao que não se tem, isto é, o marketing urbano deve assentar-se nas qualidades que efetivamente existem no território. Da mesma maneira, os métodos para conseguir o apoio estão destinados ao fracasso se as estratégias ou projetos não correspondem aos interesses e necessidades expressadas ou sentidas pela população. Sem a existência prévia da participação cidadã, no sentido anteriormente dito, dificilmente se conseguirá um amplo apoio social. Muito embora sejam necessárias medidas que vão muito além dos processos participativos para se alcançar um amplo apoio social. Ainda que existam eventos que combinam com êxito um amplo processo de participação com a visualização do apoio social, como no caso das conferências de exploração estratégica, ambos os processos devem ser pensados de maneira diferenciada.91 91 Trata-se de uma metodologia criada pela equipe da “Estrategias de Calidad Urbana”; ver www.equ.es

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Conseguir um amplo apoio social é básico para uma estratégia de futuro, porque proporciona a coesão da base social que pode sustentar as mudanças sociais envolvidas. A visibilidade do apoio social constitui, por sua vez, uma “demonstração de força” para os promotores das estratégias, políticas e projetos e, ao mesmo tempo, serve para dar-lhes a coesão necessária para empreender as ações. Para conseguir um apoio social é necessária, sem dúvida, uma política de comunicação e difusão da estratégia ou dos projetos estruturantes. Embora este não seja um livro de técnicas sobre políticas de comunicação urbana, é preciso dizer que a comunicação para a sociedade com o objetivo de conseguir um forte apoio deve enquadrar-se em uma cultura que promova o envolvimento da cidadania e não a simples aceitação. Para isto, a comunicação deve ter duas dimensões: comover e convencer. O convencimento virá dos conteúdos estratégicos e da facilidade com que possam ser explicados. Para comover é preciso comunicar valores, muito especialmente os seguintes: • O sentimento de enraizamento e de identidade com a cidade, que deve ser fortalecido como instrumento para gerar responsabilidade social e predispor para ações voluntárias e solidárias para com os outros. • A autoestima cidadã para enfrentar os desafios do futuro com esforço, porém com confiança. • O sonho realista em relação ao futuro, se as ações individuais são inseridas na tarefa coletiva; trata-se de valorizar a contribuição cidadã no trabalho coletivo. • A união entre tradição e modernidade na cidade, para articular todos os setores da cidadania em uma mesma perspectiva de futuro, que será aquela que olhe o passado com os olhos de futuro. A gestão de rede de atores, combinada com um amplo processo de participação cidadã e de apoio social, inseridos A

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todos os três em um marco estratégico, articula a coesão social prévia e necessária para que se produza o desenvolvimento humano na cidade.

A organização municipal necessária para a governança democrática Em uma organização municipal cujo foco principal seja a prestação de serviços e a gestão de recursos, o principal apoio para o político com responsabilidades de governo é um gerente ou uma gerente de serviços com especialidade em gestão. É comum que esta pessoa de apoio seja especializada em administração de empresas – é o que já mencionamos como o modo gerencial. Na governança democrática, em que a gestão municipal sofre uma importante transformação, também os organogramas passam a ser modificados. O principal apoio ao prefeito será as pessoas especializadas em gestão relacional. Isto porque se trata de direcionar a gestão dos recursos e serviços no sentido de apoiar a melhoria da capacidade de organização e ação da cidade ou município. Nas prefeituras que optam pela governança, se produz uma mudança no peso específico dos profissionais e departamentos. As mudanças de organograma dependem do tamanho e complexidade das prefeituras e áreas municipais. Porém, com a exceção do topo da estrutura executiva, que é assumido por uma pessoa com enfoque e capacidade nas técnicas de gestão relacional, nestes governos locais já se observam tendências para a organização municipal da governança como: • O surgimento dos departamentos de participação e cooperação cidadã que dependem diretamente do prefeito ou secretário responsável por uma área de atuação. Logicamente a participação não é entendida apenas como participação na elaboração e monitoramento das polí210

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ticas municipais, mas como participação na cidade, nos processos de melhoria da coesão social. • Uma concentração, em um só departamento subordinado ao líder político, de profissionais com responsabilidade na definição e promoção de estratégias, participação e comunicação cidadã, assim como dos programas ou projetos interdepartamentais. • Uma importância maior para as políticas transversais e, sobretudo, para a gestão das interdependências de departamentos para alcançar objetivos sociais. Em geral, os departamentos e áreas são definidos por prestações de serviços: esportes, ensino, serviços sanitários e serviços sociais. O que ocorre é que alguns não se definem pelo tipo de benefícios e serviços que prestam, mas por objetivos de impacto na população, e se denominam, por exemplo, saúde em vez de serviço sanitário, educação em vez de ensino, ou inclusão social em vez de serviços sociais etc., que são objetivos compartilhados por outros sistemas de serviços e benefícios. A gestão relacional vai além da transversalidade das políticas, como por exemplo a promoção da igualdade de gênero. Sua finalidade é que os departamentos, áreas, etc. – só as estruturas verticais – compartilhem a consecução de um objetivo comum sem que seja objetivo de nenhuma delas em particular. A transversalidade exclui a gestão operacional, os órgãos transversais não participam de projetos operacionais, apenas monitoram o impacto produzido na sua finalidade. Todavia os objetivos sociais de impacto, como “dar cobertura às necessidades básicas” ou “reduzir as desigualdades em capital educacional ou cultural”, exigem a articulação de diferentes sistemas de benefícios: serviços sociais, serviços sanitários, ensino, moradia, etc., mas neste caso se necessita de uma gestão de tipo operativo interdepartamental e interinstitucional; por esta razão, fala-se de gestão das interdependências. A

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Estas tendências irão se configurando de maneira progressiva na maioria dos governos locais e nos departamentos de bem-estar social ou serviços sociais, em especial, dada a falência do modo gerencial como consequência da mudança das condições econômicas e sociais que o fizeram surgir.

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A seguir são indicadas as referências bibliográficas e páginas eletrônicas mais diretamente relacionadas à temática do livro e possivelmente úteis ao leitor que queira se aprofundar na mesma.

1. Bibliografia AERYC (II Conferencia Internacional). Regiones y Ciudades ante el Desarrollo Humano Contemporáneo: La Governanza Democrática. Sevilha: Junta de Andalucía, 2006. AERYC (I Conferencia Internacional). Estrategia Regional y Governança Territorial: La Gestión de Redes de Ciudades. Sevilha: Junta de Andalucía, 2004. ALGUACIL, J. (org.). Poder Local y Participación Democrática. Barcelona: El Viejo Topo, 2006. Banco Interamericano de Desenvolvimento. Desarrollo más allá de la Política. Washington D.C.: BID, 2001. BAUGMAN, Z. En Busca de La Política. México: F.C.E., 2002. BECK, U. La Democracia y sus Enemigos. Barcelona: Paidós, 2000. BLANCO, I y Gomà, R. Gobiernos Locales y Redes: Retos e Innovaciones. Instituto de Gobierno y Políticas Públicas, 2002. CASTELLS, M. Observatorio Global. Barcelona: Ed. La Vanguardia, 2006. CENTELLES, J. El Buen Gobierno de la Ciudad. La Paz: IIG, 2006. CERRILLO, A. (org.) La Governanza Hoy: 10 Textos de referencia. Madri: INAP, 2005. GIDDENS, A. Europa en la Era Global. Barcelona: Paidós, 2007. INNERATY, D. El Nuevo Espacio Público. Madri: Espasa, 2006. 214

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2. Links eletrônicos www.abas.org ABAS (Asociación Barcelona para la Acción Social) é uma parceria público-privada dedicada à promoção da goverReferências

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nança na área do bem-estar social na cidade de Barcelona. É interessante pelos seus documentos e projetos que promovem esta nova forma de governar. www.aeryc.org AERYC (América-Europa de Regiones y Ciudades), é um movimento internacional que tem como finalidade o desenvolvimento da governança territorial. A página eletrônica contém, entre outros temas de interesse, os livros com as principais conferências e apresentações de suas conferências anuais, assim como boas práticas em governança. São de especial interesse, por sua singularidade, os temas de gestão regional através dos sistemas de cidades e as conclusões de suas conferências anuais. www.diba.es/servsocials É interessante para o conhecimento dos programas de apoio das políticas de bem-estar social às iniciativas locais na Província de Barcelona. www.iigov.org É a página do Instituto Internacional de Governabilidade da Catalunha. Suas publicações eletrônicas têm grande interesse e, em especial, a revista do instituto especializada na temática da governança. Sua revista eletrônica Instituciones y Desarrollo também merece atenção.

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