IN-MODE: Economia Criativa #7

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economia criativa mudar como mudamos — novas dinâmicas

Alberto Serrentino / Álvaro Machado Dias / Ana Carla Fonseca / Cairê Moreira / Cesar Paz / Flavia Aranha / Flavio Grynszpan / Francine Lemos / Fred Gelli / Léo Rodrigues / Lia Coelho / Lindalia Junqueira / Miriam Rocha / Olivia Merquior / Renato Meirelles / Ricardo Catto / Ronaldo Fraga / Sergio Marcondes

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mudar como mudamos

— novas dinâmicas


EXPEDIENTE Projeto editorial Bell Kranz Francisco L. Junior Coodernação editorial Bell Kranz Edição de textos Bell Kranz Mariana Tavares Eduardo Viveiros Direção de arte Francisco L. Junior Uma publicação do IN-MOD (Instituto Nacional de Moda e Design) Apoio Governo do Estado de São Paulo, da Secretaria de Cultura e Economia Criativa, do Programa de Ação Cultural – ProAC e da Lei Aldir Blanc Abril de 2021

encontros de economia criativa — #7 Esta publicação traz os melhores momentos dos 8 encontros realizados pelo In-Mod com 18 convidados nos dias 30 e 31 de março e 6 e 7 de abril 2021 sob a curadoria de Graça Cabral, Lala Deheinzelin e Lídia Goldenstein. Foram transmitidos pelo YouTube e estão disponíveis no canal do IN-MOD. youtube.com/InstitutoINMOD


—apresentação

mudar —como mudamos

O momento em que vivemos é bem diferente das revoluções anteriores, que mudaram a economia mundial, nossos hábitos e relacionamentos, em dois aspectos fundamentais: a velocidade e a abrangência das mudanças. É muita mudança acontecendo de uma vez só. Quais são as consequências desse redesenho? Podemos dizer que estamos vivendo uma quarta revolução industrial, que é a revolução digital. Em uma era na qual o processo de digitalização está revolucionando todas as indústrias, a principal variável de qualquer projeto passou a ser o quanto é capaz de se adaptar às mudanças que podem, da noite para o dia, transformar completamente o cenário previamente estabelecido. Tudo ao nosso redor foi pensado e desenhado por alguém. Segundo estudo, 1 em cada 20 pessoas está envolvida no design de alguma coisa, direta ou indiretamente. São várias as dimensões a serem consideradas no design, desde as necessidades de quem irá utilizar o produto aos processos produtivos, a origem e propriedades dos materiais e os impactos sobre o território – impactos a curto, médio e longo prazos, que envolvem vários ecossistemas.

Graça Cabral Jornalista, fundadora e consultora do SPFW e do IN-MOD

Os primeiros encontros de Economia Criativa, realizados pelo IN-MOD, ainda na primeira década do novo século, tinham como objetivo aproximar lideranças empresariais e de governo com a comunidade criativa para, juntos, buscar pontos de convergência em torno de um caminho estratégico de desenvolvimento. Abrir possibilidades para pensar modelos econômicos inovadores e mais equilibrados em busca de respostas aos desafios do século XXI. Os novos tempos parecem marcar a busca de soluções que sinalizam outros desejos e visões de mundo mais humanas e sustentáveis. O mundo já vem sendo remodelado em muitos aspectos. A tecnologia da informação vem transformando

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rapidamente o ambiente e o relacionamento entre as pessoas e as organizações, criando facilidades e ampliando fronteiras. Há algum tempo, começamos a questionar o atual modelo econômico linear, baseado em extrair, produzir e descartar, com exploração desenfreada de recursos, produção em série e consumo em massa. Nunca foi tão evidente a necessidade de uma mudança drástica de paradigma para responder aos desafios de crises financeiras permanentes, desigualdade extrema na distribuição da riqueza, pressão irresponsável sobre o meio ambiente e, agora, os efeitos de uma pandemia prolongada.

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A boa notícia é que já existe uma comunidade global de líderes trabalhando nessa direção. E não são iniciativas pontuais O que o design pode fazer para acelerar a transição rumo a um projeto melhor, mais contemporâneo e alinhado com os interesses e objetivos de um novo mundo? Como redefinir a ideia de sucesso para incluir não apenas os resultados financeiros, mas também o bemestar da sociedade e do planeta? Como usar nossos negócios para construir um sistema mais inclusivo, equitativo e regenerativo? Ao traçar um paralelo entre os princípios de design utilizados tanto pela natureza quanto pelos seres humanos, como podemos aprender com a natureza a fazer negócios, que, além de

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oferecerem funcionalidades inovadoras para a sociedade, sejam capazes de sobreviver a um ambiente de mercado cujas crescentes adversidades exigem constante transformação e adaptação? A boa notícia é que já existe uma comunidade global de líderes trabalhando nessa direção. E não são iniciativas pontuais. É cada vez maior o número de empresários(as) que estão assumindo o compromisso de rever todos os seus processos para identificar pontos de melhoria e revisão de seus modelos de negócio. Existe hoje uma predisposição e um maior engajamento das pessoas em geral no sentido de contribuir com essa mudança de mentalidade. E, nesse aspecto, as novas economias vêm se consolidando rapidamente em resposta às novas necessidades e exigências do mercado. O futuro já é agora. Tudo está em aberto, provocando novos olhares e possibilidades. O foco é a experimentação e a produção de conhecimento. Em busca de mais perguntas e respostas, iniciamos um novo ciclo de encontros com empresários, economistas e criativos, pensando em mobilizar mais uma vez os mais diferentes setores, grupos e pessoas, levandoos a refletir e interagir com as mudanças que já estão em curso e com outras tantas que ainda estão por vir. Uma das questões mais sensíveis continua sendo a necessidade de maior articulação e coordenação entre as várias áreas da sociedade. E, portanto, aí residem as soluções. Não existe inovação sem colaboração e troca de experiências. Partimos sempre da ideia de conectar lideranças criativas e de mercado que estão criando no presente o futuro que queremos. Estamos diante de uma oportunidade única de gerar avanços e soluções com propósito. Numa era de mudanças coletivas globais sem precedentes, o IN-MOD inicia um novo ciclo de conversas para promover novos pontos de convergência e ajudar a repensar, inspirar e transformar modelos e processos que não nos servem mais. Acreditamos que podemos aprender a partir da reflexão sobre a experiência e de forma colaborativa, transformando ideias em realidade, provocando questionamentos (os porquês) para repensar prioridades, fazer diferente e criar estratégias de mudança.

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—apresentação

Criar e apoiar ecossistemas que conectem o aprendizado a competências e as competências a oportunidades. Desafiar a comunidade criativa a buscar soluções inovadoras para questões atuais mais urgentes: como fazer uma moda com impacto positivo? Como conectar sustentabilidade e varejo? Como pensar novos modelos de negócio? Como se apropriar das novas ferramentas e usar a tecnologia para construir um mundo melhor? Como fomentar uma cultura de inovação? Como ser mais ágil e dinâmico? Como simplificar processos? Como fazer parte dessa mudança?

Nem tudo vai funcionar. O importante é começar já, com projetos abertos e compartilhados em rede, abrindo espaços de experimentação e diálogo O futuro definitivamente chegou. O maior erro neste momento é não se mover. Nem tudo vai funcionar. O importante é começar já, com projetos abertos e compartilhados em rede, abrindo espaços de experimentação e diálogo. Novas economias, fronteiras da tecnologia, novos materiais, novos arranjos de mercado, ecossistemas de startups, outras mentalidades e comportamentos são alguns dos assuntos que nortearam nossas conversas neste novo ciclo de encontros com pessoas que já estão compartilhando o futuro, e os seus impactos nos negócios, levando em conta a necessidade da inovação nas empresas, seja no produto, na comunicação ou na sua mentalidade. Que as conversas aqui transcritas possam surpreender e inspirar novos caminhos de mudança. Mudando os comos, mudando como mudamos. Fonte: © Shutterstock

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—apresentação

refresh: mudar como mudamos para surfar a transição

Lala Deheinzelin Futurista, especialista em novas economias e criadora da Fluxonomia 4D

Para melhor compreender este 7º Encontro de Economia Criativa, é preciso voltar um pouco às origens da Economia Criativa no Brasil e seu avanço no mundo, processo que tive o privilégio de fazer parte. A partir de 2004, a Economia Criativa ganhou presença quando o tema entrou como estratégia de desenvolvimento adotada pelo sistema ONU. O Brasil, naquele momento, tinha um papel importante no processo: seríamos a sede do Centro Internacional de Economia Criativa, o braço dedicado à pesquisa do tema. Para que isso se materializasse, era preciso engajar e informar os principais players sobre este tema ¬– até então desconhecido. O SPFW

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[São Paulo Fashion Week], além do perfil sempre pioneiro, era uma das poucas organizações com visão de futuro e tinha um planejamento de 30 anos, o que fez com que logo percebesse a importância da Economia Criativa para o desenvolvimento sustentável e se tornasse um importante catalisador de todo este processo. Num mundo onde não é mais possível depender de economia baseada principalmente em exploração de recursos naturais, o papel de negócios baseados em conhecimento, criatividade e informação – que não se esgotam ou consomem com o uso – é bastante óbvio. Se há dúvida sobre seu papel estratégico, basta ver que muitos dos principais negócios do

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mundo, como Google e Facebook, são negócios criativos que têm por base o conhecimento e a informação. Infelizmente, boa parte dos gestores públicos e privados parecem ainda estar no século XX, e a falta de visão, falta de ambiente institucional favorável e, principalmente, falta de continuidade de políticas (por exemplo, na descontinuidade dos projetos de Economia Criativa) fizeram com que ela avançasse menos do que poderia. Mas sua importância para os países é tão grande, que Economia Criativa e cidades foi um dos temas principais do pavilhão da ONU na Exposição Universal 2010, em Shangai. E o SPFW, um dos cases selecionados globalmente.

Este nosso encontro surge, então, para atender a essa necessidade de inovar, apertar a tecla refresh em nossas vidas e iniciativas A crise de 2008 fez surgir uma outra nova economia: a economia compartilhada, que otimiza os excedentes de infraestrutura, como habitações (Airbnb) ou carros (Uber). Passamos da lógica do “possuir” à lógica do “usar” em muitos âmbitos de nossa vida pessoal, empresarial e, nas cidades mais avançadas, na gestão pública. E agora a crise de 2020/21 exige de nós evolução em outras direções: os desafios são tantos, que só poderemos dar conta do recado atuando de forma coletiva e levando em consideração o bem comum. Crise climática, social, econômica e de sentido existencial colocaram em primeiro plano um “cliente” que até então era pouco considerado: o mundo. Impacto, reset, ESG, ODS, ecossistemas, inovação, exponencial entraram no vocabulário. E agora devem se converter em práticas. Este nosso encontro surge, então, para atender a essa necessidade de inovar, apertar a tecla refresh em nossas vidas e iniciativas. Imagino que assim, como nomearam Renascimento a um período histórico, este nosso poderá ser chamado de Transição. Transição de modelo econômico e político, que aliás sempre ocorre

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quando há uma grande mudança no padrão de rede, ou seja, na forma como se conectam e distribuem informações, bens, serviços, tomada de decisão. Nossa Transição é consequência da vida em rede, desmaterializada, remota, fora do tempo e espaço, que a internet permite e provoca. A rede é exponencial, mas nossa capacidade de resposta é linear, como revela a pandemia e nossa pouca capacidade pessoal e institucional de lidar com ela. Exponencial x Linear, como fazer com que a conta feche? A curadoria deste encontro buscou trazer olhares e experiências para nos auxiliarem neste refresh: mudar como mudamos é urgente. O conteúdo deste caderno traz lentes para que possamos enxergar futuros possíveis e oportunidades. E trago aqui alguns tópicos que podem nos servir como mapa para navegar pelo conteúdo. Em estudos do futuro falamos de “forças moldando o futuro”. Compreendê-las é importante no momento de fazer melhores escolhas e estão em formato de dicas para quem empreende. Nosso futuro depende de nossa capacidade de colaborar. Não é mais possível sobrevivermos sozinhos. Competitividade hoje depende mais da capacidade de colaborar do que do impulso de competir. Aqueles que operam em ecossistemas colaborativos têm futuro, seja em arranjos de startups, ao coordenar uma cadeia produtiva sustentável, ou em ter estruturas organizacionais mais distribuídas, chegando até a sinergia entre empresas. Se nos dedicarmos a colaborar, é possível criar sistemas de apoio mútuo e operar como ecossistemas, em que todos se beneficiam. Mas colaboração é uma tecnologia extremamente sofisticada e para alcançá-la precisamos nos preparar. Preparados para lidar com o exponencial. Em um mundo com desafios e escalas que crescem a um ritmo vertiginoso, o “fazer juntos” é o caminho para lidar com o exponencial. E depende de integrar duas coisas. Primeiro, a tecnologia digital, com o cuidado de usá-la sem ser usado por ela – senão o problema estará no excesso, e não na falta. Na hora de colaborar, precisamos de métodos e ferramentas, a boa intenção não é suficiente. Mudar como mudamos é desaprender a competição, a desconfiança e o “cada um por si ”.

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Pensando em ESG, o E de ambiente (environment) e o S de social são mais familiares, mas a questão agora é o G: governança Valor intangível e propósito. Para ter mais valor, os diferenciais de cada iniciativa e pessoa precisam estar claros. Faça com que os talentos sejam conhecidos e usados e que tudo isto seja comunicado. Seu propósito é seu diferencial: crie produtos e serviços com impacto positivo. Seu negócio tem futuro se satisfaz as necessidades do mundo. Você cuida do quê? O “para que” é também a chave do seu marketing, é o que gera valor para seu negócio. Mapear e usar recursos além do monetário. Para viabilizar negócios, há mais recursos do que você imagina. Comece mapeando o capital intelectual, os talentos disponíveis, e a colaboração virá da troca de habilidades, criando vínculos. O compartilhamento de infraestrutura também otimiza custos e facilita a vida para todos: há espaços, equipamentos e insumos ociosos ou excedentes? O compartilhamento amplia capital tecnológico e natural, indo do possuir ao usar: lembre-se disso, compartilhe e reduza seu investimento em infraestrutura.

A chave de todo negócio está no relacionamento. Você já pensou nas competências e na infraestrutura, agora faltam as pessoas. Mapeie parceiros, clientes, influenciadores, líderes aos quais tem acesso. Quais parcerias podem ser feitas? Com quais redes se associar? O acesso às redes de seus parceiros vai ampliar exponencialmente o seu capital social. Pensando em ESG, o E de ambiente (environment) e o S de social são mais familiares, mas a questão agora é o G: governança. Para que fique bom para todos, pense como um órgão em um organismo, que depende de operar coordenadamente com outros órgãos.

Não tarde em apertar o refresh. Os cases deste sétimo Encontro mostram como inovar, fazer juntos e convergir. Se esta Transição fosse uma onda, mostram como surfá-la para chegar até um lugar melhor. Se para ser relevante, ter valor e longevidade garantidos é importante considerar as ODSs (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável), precisamos antes trabalhar o que uma aceleradora de impacto chama de ODS 0: a mudança cultural e de consciência. Sem mudar como mudamos, ou seja, mudar as lentes de percepção do mundo e os valores que norteiam nossas escolhas, essa Transição será uma onda que nos afoga, e não uma força evolutiva.

Tempo: o recurso mais escasso e valioso. O que pode ser simplificado na vida pessoal e profissional? Colaboração ajuda a desburocratizar, trazendo enorme economia de tempo, equipe, dinheiro. E potencializa o entusiasmo, motor de todo trabalho. A burocracia custa caro demais – em tempo, recursos, pessoas e entusiasmo. Um dos grandes desafios a enfrentar nesta Transição é reduzir a burocracia e criar parâmetros para que cada um, dentro de um projeto ou empresa, tenha boas condições para cogestão. Governança.

—apresentação

Alfabetizados em futuros. Antes, o futuro tardava séculos em chegar, agora chega em anos. A pandemia, por exemplo, acelerou em 20 anos a transição digital. Para não ser mais analfabeto em futuros, inclua o pensamento prospectivo no seu cotidiano e no seu negócio. E tente ter um enfoque que vá além das tendências, pois essa transição é como uma metamorfose: nada vale criar cenários possíveis para o ovo, precisamos cocriar a vida do pássaro. Uma visão de futuro compartilhada por todos é a melhor bússola para que indivíduos e organizações decidam para onde e como querem ir e também para engajar pessoas. A partir de uma visão comum de futuro, grupos que querem constituir ecossistemas se autorregulam, mostram mais entusiasmo, operam com base em confiança. O futuro que sua marca deseja é também o melhor mote para a sua comunicação.

O futuro de seu negócio depende de ir além da receita. Você precisa gerar valor, precisa ter e comunicar impacto positivo nas quatro dimensões: cultural, ambiental, social e financeira. Reconheça e relate seus resultados além do monetário. Se seu produto ou serviço cuida do futuro, você gera receita, claro, mas também cria valor, tem mais alcance, relevância. Além de colaboradores mais felizes e clientes que vão lembrar de você e voltar a te escolher. Ter receita como única métrica de resultados não faz mais sentido no contexto atual. Se seu impacto é positivo, você, profissional ou empresa, terá credibilidade no sentido mais amplo da palavra, já que crédito significa também “acreditar em...”. A convergência gera potência. Terminamos onde começamos: operar como ecossistemas. Em 2008, surgiram os hoje gigantes da tecnologia, com sua capacidade de convergir dados (Google, Facebook), infraestrutura excedente (Airbnb , Uber) ou mercados ( Amazon, Magalu). Nossa crise atual fará provavelmente surgir os gigantes da colaboração, capazes de convergir tempo, talentos, propósitos, pessoas. Capazes de operar como ecossistemas colaborativos.

Fonte: © Shutterstock

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—apresentação

a economia criativa e a 4° revolução industrial

Lídia Goldenstein Economista, pesquisadora e consultora O conceito de Economia Criativa surge em meados dos anos 90, quando a 3° Revolução Industrial e o processo de globalização ganham forte impulso.

os quais o design se destacava, tornavamse significativamente mais elevados do que os investimentos em ativos tangíveis, predominantes no velho paradigma.

Como resultado da extraordinária aceleração na tecnologia de computação, que permitiu um tremendo progresso nos desenhos de software e nas ferramentas, tornando os programas mais produtivos, assistimos a uma radical mudança nas formas de produção, nos determinantes de geração de valor e competitividade das empresas e economias.

Vários países, percebendo este novo panorama, cujo impacto vislumbrava-se dramático para suas economias, começaram a redirecionar suas políticas públicas de forma a incentivar os setores criativos e ligados às novas tecnologias.

Era um cenário novo, no qual a separação entre manufatura e serviços era ultrapassada. Os investimentos em ativos intangíveis, entre

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Era um contexto no qual as inovações tecnológicas vinham acompanhadas de uma mudança na geografia econômica internacional: uma crescente terceirização na Ásia da produção industrial de países avançados. A manufatura deslocava-se dos velhos centros industriais

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para países até então periféricos, como a China. A valorização da Economia Criativa deveuse à percepção de que a manufatura podia localizar-se na China, mas o “cerne” dos produtos dependia de P&D, design, marca etc., estes ainda localizados nas matrizes, nos centros desenvolvidos e geradores de empregos mais sofisticados. Ou seja, neste novo ciclo do capitalismo, a geração de valor concentrava-se nos chamados investimentos intangíveis. Consequentemente, o incentivo aos setores criativos, por definição ligados aos investimentos intangíveis, passa a ser sinônimo de políticas industriais modernas.

Se o debate sobre Economia Criativa estava atrasado no Brasil, hoje, ante a constatação de que uma 4° Revolução Industrial está em plena erupção, nosso fosso só aprofunda Infelizmente, no Brasil, esta percepção da profundidade das mudanças pelas quais passava o mundo capitalista não é percebida, e o país continuou insistindo em conceitos e políticas ultrapassadas, deixando de modernizar grande parte da sua estrutura produtiva moldada nos anos 50, ainda com o perfil da 2° Revolução Industrial. A própria China, mesmo tendo se tornado a grande fornecedora de manufaturas do mundo, percebe este processo de transformação e passa a incentivar fortemente o investimento em design, novas tecnologias e outros intangíveis como forma de elevar o valor agregado produzido. Mas tudo isso é passado. Se o debate sobre Economia Criativa estava

atrasado no Brasil, hoje, ante a constatação de que uma 4° Revolução Industrial está em plena erupção, nosso fosso só aprofunda. Dadas sua escala, seu escopo e sua complexidade, a transformação que vivemos, considerada a 4° Revolução Industrial, difere de tudo o que a humanidade tenha experimentado antes. Diferentemente das revoluções tecnológicas que a precederam, a 4° Revolução Industrial não tem uma invenção especifica, moldada que é pela combinação / fusão de várias tecnologias modernas nas esferas biológicas, físicas e digitais. Assistimos à combinação de várias inovações que agora estão amadurecendo. Uma revolução tecnológica que irá alterar a maneira de viver, trabalhar e se relacionar. Diante desta perspectiva, a ideia de que existem alguns setores que comporiam a Economia Criativa envelheceu. Neste novo mundo, que está sendo gerado pela 4° Revolução Industrial, todos os setores terão que ser inovadores e criativos, sob pena de perderem rapidamente sua capacidade de sobrevivência. Inovação virou a palavra-chave. Ou melhor, o processo chave, na medida em que tem de ser introjetada no cotidiano das empresas e dos negócios. Não pode ser vista como algo externo ou pontual. Repensar o significado da inovação, seu papel determinante na dinâmica econômica atual, e como ela depende de uma teia de conexões multissetoriais é condição para que qualquer empresa tenha sucesso, conseguindo fazer do dinamismo inovador um motor de sobrevivência e crescimento. Já a partir da 3° Revolução Industrial, os processos de inovação das empresas passam por transformações significativas. A importância crescente dos investimentos em P&D explode no novo ciclo de mudanças (4° Revolução Industrial), tanto por conta da combinação de tecnologias avançadas que vem gerando inovações disruptivas, como por conta do avanço dos até então novos produtores

Robótica avançada, Inteligência artificial, sensores sofisticados, computação em nuvem, IOT – internet das coisas, Captação e análise de dados em grandes volumes, fabricação digital (incluindo3D), software como serviço e novos modelos de mercado, smartphones e outros dispositivos móveis, plataformas que utilizam algoritmos para dirigir veículos motores (incluindo ferramentas de navegação, apps de compartilhamento, serviços de entrega e transporte e veículos autônomos)

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Tem início uma crescente “corrida tecnológica” entre países e empresas, que resultam em significativa ampliação dos dispêndios de P&D nos países avançados. Mas não só os gastos em P&D crescem como mudam os processos por meio dos quais as empresas inovam. Na verdade, vão consolidando-se dois novos caminhos, porém não excludentes, para a inovação: compartilhamento e startups definem as novas formas de inovação dos países e das empresas. Já desde a 3° Revolução Industrial e, mais ainda agora, em plena 4° Revolução Industrial, os ecossistemas de inovação vêm passando por transformações que afetam universidades, empresas, agências de fomento e as políticas públicas voltadas para o setor.A inovação ocorria primariamente dentro das empresas, por meio da compra de máquinas e equipamentos e do desenvolvimento de competências internas, mediante investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento, entre os quais a contratação de doutores saídos das universidades. O isolamento de núcleos internos às empresas é substituído por um sistema no qual o compartilhamento é valorizado, com múltiplas parcerias e propostas interdisciplinares, conformando ecossistemas de inovação internacionalizados e multidisciplinares. Inconcebíveis ate poucos anos atrás, laboratórios compartilhados para pesquisa, prototipagem, testes e formação de pessoas passam a ser construídos nos mais diferentes setores.

—apresentação

asiáticos, os quais, enfrentando velhas barreiras e investindo pesadamente em P&D, começam a disputar um espaço de liderança global antes restrito aos países capitalistas desenvolvidos do ocidente.

Espera-se que a força de trabalho participe, experimente, ofereça sugestões de como melhorar os processos de produção, e não apenas aplique a informação em sequência mecânica O papel das startups passou a ser estratégico. Tradicionalmente, inovação era concebida de forma hierárquica e linear: elite de ciências nas universidades e nos laboratórios das grandes corporações gerava fluxo de invenções, que eram comercializadas. Se a inovação não ocorresse ou ocorresse de forma insuficiente, a falha era da universidade, dos laboratórios de pesquisa e das empresas que investiam pouco. Agora, a chave para a inovação não está restrita a P&D, e as habilidades (high skills) estão mais difusas. Espera-se que a força de trabalho participe, experimente, ofereça sugestões de como melhorar os processos de produção, e não apenas aplique a informação em sequência mecânica. Além disso, a ideia de que só as grandes empresas têm poder de fogo para inovar é superada cotidianamente pela força inovadora advinda de pequenas e médias, viabilizando sua sobrevivência e seu crescimento e, muitas vezes, se espraiando para outras empresas e setores.

Concomitantemente à inovação decorrente de parcerias e processos compartilhados, e graças ao surgimento de startups disruptivas, muitas empresas vêm optando por núcleos internos de inovação menores e apostando na compra ou no investimento em startups. Grandes empresas, como Amazon, Apple, GE, GM, Intel, independentemente de participarem de projetos conjuntos com outras de grande ou médio porte, acompanham e investem em startups para não perderam oportunidades e baratearem seus custos de investimento em inovação. Fonte: © Shutterstock

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30.03 9h—11h convidados

Álvaro Machado Dias WeMind

Como destravar uma cultura de inovação? 18

Lindalia Junqueira Ions Innovation e Hacking.Rio

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A colaboração e a experimentação como caminhos para a inovação Lindalia Junqueira Fundadora e CEO da Ions Innovation e do Hacking.Rio

Para destravar uma cultura de inovação, é preciso destravar as mentes. Nosso cérebro consome grande parte da energia do corpo e foi adestrado para economizá-la. Ele, então, tende a repetir padrões e tem certo medo de coisas novas. Por isso, precisamos nos treinar a buscar inputs, a buscar outras fontes, para de fato começarmos a inovar e a compreender como é a cabeça do outro. Costumo dizer muito isso: não existe inovação sem colaboração, porque ninguém inova sozinho. Temos de criar squads ou, como eu chamava antes, células multidisciplinares. Se você coloca apenas engenheiros na mesa – todos tiveram a mesma educação, as mesmas experiências –, eles vão olhar o caminho de solução com os mesmos óculos.

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Inovação é a arte de resolver problemas complexos de maneira simples. Do contrário, o que se tem é uma invenção, e não uma inovação. Se você não consegue apresentar ao mercado aquela ideia brilhante, você não gerou, como diz Silvio Meira, mais e melhores notas fiscais. Quem valida sua ideia e demonstra que aquilo de fato é uma inovação são as pessoas que vão usá-la. Veja, por exemplo, que o celular da Apple não é o mais complexo em termos tecnológicos, mas, sim, o de uso mais fácil e instintivo. O ser humano só aprende fazendo, criando uma cognição, algum tipo de significado para ele; se você apenas decora, você esquece.

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Do site da The Green Hub, tênis com fibras de cânhamo, nome dado a fibra extraída da cannabis ruderalis

Enquanto a criança é capaz de aprender geometria desenhando livremente e, assim, começar a entender aquele universo, o adulto precisa desaprender para absorver coisas novas, porque ele repetiu um padrão tantas vezes que tem uma dificuldade, um medo. E em uma cultura de inovação, o primeiro aspecto a ser destravado, além das mentes, é o medo de errar. Se você não tem curiosidade nem experimentação, não é possível chegar às soluções simples. Trabalhei na Rede Globo de 2005 a 2013, e desde o início falávamos de open innovation, ou seja, inovação aberta, com colaboração entre as equipes, com outras empresas externas e até com concorrentes. Isso era um enorme tabu, porque a própria literatura da época falava de open innovation somente para a indústria, que desejava romper com o modelo de industrialização em escala para criar novas possibilidades. Empresas farmacêuticas, por exemplo, injetavam bilhões de dólares em laboratórios de pesquisa e, dali a oito anos, quando o produto era lançado, já não era o que o mercado queria. Então, era preciso introduzir no processo de desenvolvimento de inovação todos os stakeholders: usuários, parceiros, pessoas de outras indústrias etc. Foi isso que fizemos na Rede Globo. Começamos com uma equipe de nove pessoas e, depois de três meses, tínhamos 1,8 mil pessoas participando dessa comunidade. Então, em uma cultura de inovação, que às vezes leva cinco anos para você mudar dentro de uma organização, você começa atraindo esses early

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adopters, mas dando liberdade para eles testarem, errarem, jogarem as ideias que estavam escondidas. Eles conhecem os processos do dia a dia da organização, sabem o que é preciso mudar. Então, nós nos reuníamos toda segunda-feira e convidávamos pessoas de mercados totalmente diferentes do audiovisual – especialistas em moda, sustentabilidade etc. É o que eu chamo de inspiração. Criei uma metodologia chamada 5 Is, que envolve diferentes ciclos de trabalho. O primeiro ciclo é o da Inspiração. Na Rede Globo, abríamos para a participação totalmente voluntária de qualquer pessoa interessada. A área de Recursos Humanos dizia que eu era maluca, que os funcionários trabalhavam 24 horas por 7 e não teriam tempo para isso, mas eles compareciam porque estavam sedentos por experimentar, falar, trocar ideias. O ciclo seguinte é o da Ideação, em que a pessoa tem de defender a sua proposta. A ideia pode ser ótima para você, mas não funcionar para a empresa ou o mercado. Cria-se, então, uma estratégia de convencimento, você tem que levantar hipóteses para o problema que pretende resolver. O terceiro ciclo é o da Interação, em que você forma a célula multidisciplinar sobre a qual falei anteriormente. No caso da Rede Globo, era incrível ver a equipe de figurino se juntar com a de engenharia, com a de pós-produção.

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Nasceram projetos incríveis. Desenvolvemos uma troca de roupa com realidade aumentada, que dispensava a pessoa de experimentar as peças – bastava ficar diante do espelho e clicar no vestuário desejado.

Se você estuda engenharia, vá a uma exposição de arte. Se você está em uma determinada indústria, explore outra – às vezes, por associação, você pode converter para o seu segmento o que é aplicado em outro.

Isso deu muita agilidade ao processo, considerando que, na época, o Projac, complexo de estúdios da Rede Globo, envolvia 18 mil pessoas. Junto com o Instituto Nacional de Tecnologia, criamos também uma tecnologia que captava uma malha poligonal por meio de sensores, o que seria impossível para a emissora desenvolver sozinha em tão pouco tempo, por isso a colaboração é fundamental.

Ou seja, temos hoje tecnologia em abundância, cada vez mais barata e acessível. De alguma maneira, todos estamos mergulhados no mundo digital

Há outros exemplos que mostram como a roupa é algo importantíssimo para o ser humano, não só porque ela nos veste e nos faz sentir bem, mas porque pode ter utilidades fantásticas. Uma startup desenvolveu uma peça com sensores para medir a temperatura dos bebês nas maternidades, de forma a monitorá-los constantemente. No esporte, a partir da biomimética, que observa a natureza para extrair dela possibilidades de solução, os uniformes dos atletas olímpicos passaram a cobrir todo o corpo, pois se percebeu a partir da pele dos golfinhos que isso gera menos atrito. Outro exemplo é o uso do cânhamo para criar novos materiais, desde vinho até matéria-prima para a moda, como mostra a Green Hub, hub brasileiro de inovação baseado em soluções a partir da cannabis.

Então, outra coisa que temos que acabar no Brasil é com o complexo de vira-lata. Nós sempre nos achamos inferiores aos outros, nos autocriticamos, somos autofágicos Portanto destravar uma cultura de inovação é, em primeiro lugar, destravar mentes, ou seja, ajudar as pessoas a terem outros olhares, outras visões, outros inputs.

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É importante também criar uma rede de colaboração dentro e fora da empresa. Isso permite realizar coisas que, sozinho, você não conseguiria com a aceleração necessária. Eu vim de escola pública; então, pobre de marré de si. A minha mãe me dizia que a educação transforma, então devo a ela a minha vida atual. Daí eu fazia cursos de tudo. Eu tinha perna torta, então consegui um curso de balé no Parque Lage. Tinha dificuldade para dormir, então descobri um curso de significado de sonho de Freud. Aos cinco anos, eu queria tocar piano, mas não tinha o instrumento; nem por isso deixei de arrumar uma mesinha e imaginar que estava tocando. Aos 12 anos, recebi um piano como doação e, aos 15, eu já era premiada. Toda essa jornada me fez chegar à NASA e pensar: “Se eu posso, qualquer um pode”, porque eu não sou gênio. Então, outra coisa que temos que acabar no Brasil é com o complexo de vira-lata. Nós sempre nos achamos inferiores aos outros, nos autocriticamos, somos autofágicos. Tendemos a minimizar nossa população, e os brasileiros têm conquistas incríveis, temos uma forte capacidade de criação. O brasileiro é muito criativo. Na NASA, estudei com o astronauta Dan Barry, um dos maiores especialistas em robótica no mundo. Em quatro horas tinha que aprender robótica. Mas ele ensina lógica e depois com o grupo, formado por uma pessoa de cada país, de forma a reunir diferentes culturas, desenvolvemos o projeto. E eu me “achando” porque resolvi fazer um robô-babá – tenho três filhos, e essa era essa a minha dor na época.

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Lindalia Junqueira durante o encontro

Desenvolvemos um projeto em quatro horas e, depois da apresentação, Barry fez apenas a seguinte pergunta: precisa de um robô-babá? Se esse robô estiver avariado, ele mata a criança e a culpa é do inventor, da loja, do pai que não fez a manutenção? Ou seja, temos hoje tecnologia em abundância, cada vez mais barata e acessível. De alguma maneira, todos estamos mergulhados no mundo digital. No entanto, não importa o que você sabe, mas o que você faz com o que você sabe. A sua tecnologia deve ser usada para aquilo que de fato resolve um problema real de maneira simples. Infelizmente, às vezes as invenções criadas para o bem são deturpadas e usadas para o mal, mas a humanidade está começando a ficar mais esperta. Quando criamos o Hacking.Rio [hackathon, ou maratona de programação, para buscar soluções para desafios reais do mercado e da sociedade através de tecnologia; é resultado do movimento Juntos Pelo Rio], não tínhamos a menor pretensão de organizar um evento, mas enfrentávamos mais uma crise no Rio de Janeiro em 2017, um problema de evasão escolar.

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É preciso despertar para o fato de que nós temos de ser os protagonistas da transformação. Não precisamos estar na política partidária para sermos seres políticos. Criamos então um movimento chamado Juntos pelo Rio e conversamos com um grupo de 200 pessoas de diferentes setores. Pensei: “Vamos parar de reclamar e ver o que temos de bom?”. Não se trata de uma visão otimista, mas uma visão realista. Se há projetos no Rio de Janeiro que dão certo, como a VTEX, que é uma das maiores startups de marketplace do mundo, e o Grupo Trigo, que controla a rede Spoleto, por que não multiplicá-los? Assim, em três meses organizamos essa comunidade, e isso começou a mudar totalmente a perspectiva, as soluções que eram geradas.

Agora, mais do que nunca, precisamos pensar em humanidade; não smart cities ou smart people, precisamos de humanity cities. 23


O humano tem de estar no centro de qualquer decisão em qualquer cadeia produtiva Uma solução que era adotada em uma empresa de energia, óleo e gás foi adotada por outra do setor de telecomunicação, por exemplo. Reunimos grandes companhias, investidores, startups, o governo, a academia e empreendedores. Se não ligarmos a tecla SAP e começarmos a falar uma mesma linguagem, nunca conduziremos o barco para uma direção comum.

É o que fazemos no Hacking.Rio: apresentamos desafios reais de cada setor aos jovens, e quando digo “jovens” eu me refiro a pessoas de 15 a 65 anos – já tivemos hacker de 80 anos. Eles têm 42 horas para desenvolver uma solução. Pode parecer impossível, mas não é. Ali, eles têm liberdade de experimentar, de levantar hipóteses, de validar com as personas, de se unir a pessoas de diferentes habilidades, e são incríveis as soluções que surgem em 42 horas. O ser humano tem uma capacidade infinita de inovar, de desenvolver soluções desde que ele tenha esse espírito de colaboração, de trocar, formar redes, comunidades, criar o seu ecossistema.

A Economia Criativa responde por 4%* do Produto Interno Bruto (PIB) nacional [os cálculos e conceitos são variados; segundo o site da Secretaria Especial da Cultura do Governo Federal, o setor gera 2,64% do PIB]. É importante analisar que todas essas atividades têm impacto e possuem cadeias produtivas imensas por trás. Exemplo disso é o Carnaval. A presidente da Associação de Mulheres Empreendedoras do Brasil, a Amebras Célia Domingues, conseguiu transformar aquelas artesãs que trabalhavam apenas na sazonalidade em produtoras de arte, de conteúdo. Hoje, elas desenvolvem produtos para o turismo. Criaram uma loja, que agora é virtual. São costureiras que, diante da paralisação do Carnaval pela pandemia, passaram a fazer máscara e avental. Don’t stop in the middle: vamos entender qual é a necessidade e fazer a pivotagem, como se diz na startup.

Álvaro Machado Dias Sócio da WeMind

Estamos em um momento de grande sofrimento no mundo, em particular no Brasil. Pensar como destravar uma cultura de inovação é, em si, um desafio, mas ele se torna muito maior no contexto atual. Dentro da pandemia de Covid-19, há uma segunda pandemia relativa a problemas de saúde mental, e jogar um pouco de luz sobre o futuro ajuda a combater esse problema.

Nas palavras de Peter Drucker, “a melhor maneira de prever o futuro é criá-lo”. Se você não entende de digital, junte-se a alguém que sabe. É possível vender pelo WhatsApp, inclusive desenvolver projetos em conjunto por meio dessas ferramentas gratuitas. Não existe desculpa, e sim o medo do ser humano de que esse novo mundo possa destruí-lo.

Gostaria de começar com a seguinte ideia: A pandemia de Covid-19 é o maior experimento cognitivo comportamental da história, no sentido de que ela alterou a nossa relação com os espaços físicos, com a fixidez espacial do trabalho.

Agora, mais do que nunca, precisamos pensar em humanidade; não smart cities ou smart people, precisamos de humanity cities. O humano tem de estar no centro de qualquer decisão em qualquer cadeia produtiva.

Isso vem promovendo uma reorganização do espaço urbano, a necessidade de aplicação prática de princípios que levem à universalização obrigatória da Internet, o declínio dos grandes prédios de escritório e centros financeiros, a aceitação das interferências caseiras

Participante no Hacking.Rio

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Originalidade e ética na produção e no consumo em momento de ruptura com padrões

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nas relações profissionais. Outro dia, eu estava no telefone com o suporte técnico e havia uma criança chorando ao fundo. Hoje, isso é normal, e é legal que algumas bobagens caiam por terra. Por outro lado, junto com as questões positivas, existe uma série de elementos de base psicológica que ameaçam não só a vida como um todo, mas em particular o ecossistema da inovação. Em qualquer situação em que existe uma ameaça biológica – e a pandemia atual é um caso extremo disso –, o medo do contágio e da crise econômica faz com que as pessoas se fechem. Nessas situações, os estudos mostram que o conservadorismo impera: os indivíduos se tornam mais gregários, mais tribalistas, a desconfiança aumenta em relação ao diferente e isso gera, de um ponto de vista mais amplo, nacional e planetário, estruturas mais conformistas, com juízos morais inflexíveis.

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Uma das teorias mais conhecidas sobre a evolução dos juízos morais diz que eles são adaptações biológicas implementadas pela via da cultura para conter a propagação de doenças. Há também efeitos importantes sobre a vida sexual das pessoas, que acaba sufocada pela baixa energia, pela tensão. No caso do Tinder [aplicativo de relacionamentos], por exemplo, o seu uso cresceu, mas o faturamento da empresa diminuiu, porque parece haver menos interesse nas funções pagas, ou seja, em ir às vias de fato, aos relacionamentos. Sobretudo as pessoas jovens parecem migrar para uma lógica relacional muito mais platônica e ensimesmada, o que talvez torne mais difícil a retomada dos contatos humanos. Isso se aplica também em inovação no campo dos costumes.

A nossa espécie, assim como outras, tende a defender suas barreiras imunológicas de maneira espontânea e inconsciente Então, apesar do nosso otimismo, temos de lidar com essa realidade. O fato é que o progresso técnico-científico, excluindo o campo da evolução da medicina, está bastante secundado por outras preocupações.

Trocando em miúdos, existe na população como um todo o predomínio de sentimentos como tédio, medo, ansiedade, humor deprimido, irritabilidade, raiva, ansiedade, associados a uma sensação difusa de perda de controle, que está mais para uma angústia do que para uma ansiedade. Tais sentimentos acabam gerando uma maior refratariedade à inovação. É interessante pensar que no período da epidemia de SARS, que afetou principalmente a Ásia no início dos anos 2000, houve algo parecido. Diversos estudos sobre processos de inovação, sobre como as pessoas estavam se sentindo três anos depois, apontaram uma espécie de estresse pós-traumático, certo receio em arriscar, uma falta dos elementos essenciais para a tão importante transformação. Como conectar isso com o que vivemos atualmente? De fato, estamos vendo um mundo em mudança. E, nesse sentido, a minha visão não é das mais otimistas. Atualmente, nas empresas, o principal elemento é a transformação digital, que é basicamente o processo de criação de estruturas, de implementação de tecnologias e conhecimentos para que seja possível lidar com a produção a partir da separação física, bem como da própria organização digital da informação.

Uma pergunta que sempre me fazem é: Por que respondemos dessa maneira a situações de ameaça? Por que, como população,não tendemos a agir com maior ousadia, maior coragem? O senso comum, aliás, costuma assumir a premissa de que em situações de crise todos estão mais propensos à inovação, mas os dados dizem exatamente o contrário. As coisas são assim por causa de um sistema motivacional pouco conhecido, que é o sistema motivacional imunológico.

Alvaro Machado Dias durante o encontro

Ou seja, na maior parte das empresas, os departamentos de Pesquisa e Desenvolvimento estão parados.

O primeiro, e que considero ser o mais valioso nesse momento, é a tokenização de ativos. Tokenização tem a ver com blockchain A inovação disruptiva, entendida no sentido mais profundo, está bastante encolhida, enquanto há, por outro lado, uma necessidade de correr contra o tempo para lançar websites, incorporar sistemas de gestão tecnológica, criar rotinas de trabalho remoto que funcionem.

A nossa espécie, assim como outras, tende a defender suas barreiras imunológicas de maneira espontânea e inconsciente. Quando nos sentimos sob ameaça, costumamos fechar as fronteiras desse sistema, o que reduz a chance de nos expormos àquilo que é capaz de nos aniquilar. Fazemos isso por meio de barreiras emocionais, e as principais delas são justamente os sentimentos negativos.

Pensando em empresas médias e grandes, a migração de uma forma de trabalho para outra que mantém as características da primeira, com exceção do uso de ferramentas digitais de gestão, é muito pouco como inovação. Isso é muito mais translação de um sistema para outro. Esse é o pano de fundo. Fonte: © Shutterstock

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Por outro lado, sempre que há uma grave crise econômica, a necessidade de destravar processos exige avançar efetivamente rumo a um mundo diferente. Qual é a maneira adequada para fazer isso? O único caminho que podemos afirmar ser 100% adequado é o das políticas públicas. No entanto, neste momento essa discussão está fora de cogitação, seriam palavras ao vento, portanto não faz sentido seguir nessa base. Por isso, é preciso dedicar carinho e atenção aos poucos elementos que estão sendo genuinamente discutidos e pensar a inovação, sobretudo no mundo do design e da moda, a partir deles. O primeiro, e que considero ser o mais valioso nesse momento, é a tokenização de ativos. Tokenização tem a ver com blockchain. Para entender o que é blockchain, pense em uma grande base de dados que é distribuída e que serve, entre outras coisas, para registrar algo de uma forma que não possa ser alterada por terceiros. É como se fizéssemos inscrições em uma pedra com uma ferramenta, escrever algo que ninguém consegue apagar. Um dos usos do blockchain são as criptomoedas, como Bitcoin e Ethereum. As criptomoedas se tornaram populares porque, apesar de as transações serem

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digitais e descentralizadas, é muito difícil serem hackeadas, e a reversibilidade das operações é tecnicamente impossível.

O anti-fast fashion é a tendência. Não precisa ser a exclusividade do um, pode ser de algumas unidades, mas o modelo não é mais Zara Dentro desse princípio, existe hoje uma tendência de criar ativos, como um objeto de design ou uma peça de roupa, e associá-los a um token, ou seja, a uma unidade digital, o que torna cada peça única.

O anti-fast fashion é a tendência.Não precisa ser a exclusividade do um, pode ser de algumas unidades, mas o modelo não é mais Zara. Neste momento de ruptura com os padrões, em que não há apoio governamental, o modelo que buscamos envolve muito a especificidade. Esse aspecto vem acompanhado de outro, que é a rastreabilidade das cadeias produtivas. Ao longo das últimas décadas, o setor da moda e do design sofreu muito impacto, inclusive na sua própria moral, em função de problemas de disrupção na cadeia produtiva – muitos deles ligados à má governança dos processos éticos, trabalhistas etc. Há uma enorme transformação acontecendo nesse sentido, que considero irreversível e que pode ser catalisada pelo mapeamento da rastreabilidade dentro dos processos. Quais são as condições efetivas de produção desse produto? Quais as condições de remuneração e de valorização do trabalho das pessoas inseridas nessa cadeia produtiva?

Esse processo funciona como um gerador de certificados de autenticidade, a autenticidade pode ser transacionada. As unidades de autenticidade são chamadas de tokens não fungíveis [NFT, na sigla em inglês]. Então, o que eu vejo como um primeiro ponto importante para destravar uma cultura de inovação no universo da moda e do design são os registros de originalidade. Trata-se de sair cada vez mais do genérico em direção ao específico, ao que possui um componente fortemente autoral.

ESG: o mesmo que Governança Ambiental, Social e Corporativa, em inglês; referências fundamentais na avaliação de sustentabilidade e impacto social de uma empresa

Em termos de performance, os fundos de investimento ESG na Bolsa de Valores norte-americana têm consistentemente superado os fundos normais Há um número cada vez maior de marcas que acompanham essa evolução, e hoje vemos uma crescente disponibilidade do público consumidor em pagar por isso, em promover um consumo ético. Essa enorme tendência se insere na mesma esfera da tokenização de ativos. Na minha visão, esses dois fatores caminham juntos e, no plano das empresas maiores, elas se articulam fortemente à questão do ESG [sigla em inglês para Environmental, Social and Corporate Governance, ou Governança Ambiental, Social e Corporativa]. No plano dos fundos, por exemplo, o ESG é a grande marca. Em termos de performance, os fundos de investimento ESG na Bolsa de Valores norte-americana têm consistentemente superado os fundos normais. Antes, o investidor buscava qual opção lhe traria mais dinheiro, mas, hoje, depois de diversos escândalos, busca-se aquilo que não vá sofrer uma disrupção em função da falta de governança ou de políticas inadequadas. Então, o que temos visto é que, de modo paradoxal, as cadeias produtivas responsáveis têm gerado mais dinheiro do que as irresponsáveis,

Fonte: © Shutterstock

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que destróem o ambiente e exploram as pessoas de forma desumana, e isso é uma gigantesca transformação. Esse é o caminho que acredito ser poderoso. Tal caminho leva à ação de pessoas e empresas que estão fazendo algo que podemos chamar de niche fashion, um foco na proximidade absoluta com o produtor, de um lado, e o público, de outro, gerando certa experiência de escassez. Dada a especificidade da produção, o público fica sedento pelas criações desse designer ou estilista, ao mesmo tempo em que se aproximam as comunidades locais da rota produtiva. Um exemplo brasileiro é o Ronaldo Fraga, que trabalha diretamente com artesãos e mantém iniciativas de apoio às comunidades locais, além de projetos como o site Minha Casa em Mim, que é lindo. São peças feitas em poucas unidades, inovações específicas e pontuais, criando uma demanda continuada dentro de princípios de governança que são transparentes e humanizados. Neste momento do país, em que não se vê a intenção de o governo brasileiro promover o empreendedorismo do pequeno e médio empresário, acredito que essa seja a fórmula para destravar a inovação no design e na moda. Por essa via, podemos fazer a nossa parte, ajudar pessoas que estão passando por uma dificuldade imensa e, no final das contas, gerar um grande ganha-ganha.

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mais + dos convidados Graça Cabral Lindalia, gostaria de entender se as iniciativas criadas no Hacking.Rio são pontuais, ou seja, se isso se perde depois que acaba a maratona. O pontual é capaz de despertar, mas ele precisa da continuidade para acontecer de fato. Além disso, falamos muito em transformação, em indústria 4.0, mas onde estão os profissionais? Estamos conseguindo capacitar pessoas para atender à demanda do mercado?

Lindalia Junqueira O que acontece no Hacking.Rio é que criamos um Produto Mínimo Viável [MVP, na sigla em inglês], porque, se você não prototipa, você não valida o seu produto. Se você contratasse um software house pelos padrões normais, levaria nove meses para desenvolver e validar o MVP. enquanto na maratona nós fazemos isso em 42 horas. Depois que as soluções são criadas, há uma banca de seleção dos melhores projetos, e os escolhidos passam por um processo de aceleração. Em 2014, criei a primeira pré-aceleradora de startups no Brasil, a Espaço Nave, e é impressionante a crença existente de que as grandes startups só podem surgir no Vale do Silício, quando na verdade são nos países da África, no Brasil, onde há os maiores problemas. Exemplo disso é uma solução chamada Plataforma Saúde, desenvolvida pelo Tales Gomes, da comunidade da Providência, no Rio de Janeiro, que foi acelerada por nós e depois premiada pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT).

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Assim, nós acompanhamos as iniciativas, assim como as empresas que lançam os desafios, porque elas têm todo o interesse de que a solução criada e validada durante a maratona seja implantada na organização. Temos, então, três saídas do Hacking.Rio: a empregabilidade; o estímulo ao empreendedorismo e à criação de startups próprias, e um índice medido pelo Sebrae apontou que 34% da nossa base dá continuidade ao desenvolvimento, o que é bastante alto em comparação com o indicador de uma startup week, por exemplo, que é de 2%; e a conexão direta com as companhias, o que permite a pequenas empresas e startups atingir e cocriar com as grandes empresas. A intenção é promover uma revolução educacional de maneira exponencial. Estamos tentando fazer com que a nova revolução industrial não seja apenas uma mudança de sistema. A transformação digital significa alterar por completo o processo interno de criação, capacitar as pessoas para novas visões e novas decisões. Já a questão da empregabilidade é fundamental. A missão do Hacking.Rio é educacional, com base em uma metodologia Project Based Learning (PBL), que deve ser cada vez mais difundida, por que hoje, nós temos 750 mil vagas em aberto no Brasil nas novas profissões ligadas ao universo da tecnologia digital. É preciso ter uma aceleração desse modelo educacional, e não precisa ser somente na área de programação. Você pode digitalizar a cabeça de um profissional da Saúde, como já tivemos uma startup criada por uma enfermeira de Maceió. O pessoal quer contratar os craques, mas cadê a escolinha de futebol? Há centenas de cursos

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Cena de edição passada do Hacking.Rio, o maior Hackathon da América Latina

gratuitos, inclusive em português, e as pessoas não fazem. No Brasil, temos mais de 10 milhões de brasileiros que são da geração “nem-nem”: nem estuda, nem trabalha e, pior, nem procura. Por isso o primeiro objetivo do Hacking.Rio é inspirar e quebrar a barreira invisível que diz “essa área não é para mim, eu não sou capaz, não tenho condições, não gosto de matemática, portanto não vou saber programar”. Não, programação é processo. Chamamos de computational thinking, ou seja, pensamento computacional.

Para mim, tecnologia é apenas um meio. O blockchain, por exemplo, trouxe o conceito de descentralização, então em vez de precisarmos de um aplicativo como o Uber, para criar um processo de uberização entre motoristas e clientes, podemos ter transações diretas. Ou seja, até as grandes cadeias de startups estão ameaçadas, terão de se repensar, porque viraram monopólios de informação ou de transação.

Em 2021, vamos criar o Hacking Olympics Rio, que será a primeira olimpíada de hackathons no Brasil entre instituições de ensino. Precisamos mudar a cabeça dos educadores. Para isso, desenvolvemos uma matriz de competências e vamos formar os professores para que adotem a metodologia PBL e sejam mentores, ou seja, despertem as pessoas para o aprendizado. Vamos criar uma plataforma, e essa olimpíada rodará entre universidades, escolas públicas e privadas. Fico muito triste quando vejo que se criou no Brasil uma geração de seguidores. Uma coisa é você ser fã de uma pessoa, gostar do que ela fala, outra é consumir conteúdos sem qualquer critério. Desejo ter no país uma geração de fazedores, de criadores, de desenvolvedores, e não só de seguidores e haters. Isso é muito sério, porque, se a mudança não vem por meio de políticas públicas, tem de começar pelo nosso comportamento. A sociedade tem de dizer aos gestores públicos o que ela deseja. Há hoje muita tecnologia barata e recursos que nos permitem descentralizar.

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Hacking.Rio: olimpíada hacker este ano será on-line

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damental porque se você for ler um material, aprender um tutorial, ele nunca estará em português. Então, antes de falarmos em decisões, precisamos olhar as condições, e elas são: hardware, Internet e inglês. Dito isso, no plano efetivamente decisório, o elemento principal é o de mentalidade. Há um paradigma muito importante, que é o paradigma da mentalidade de crescimento. Quando você está em um determinado platô, qualquer que seja ele, você pode se esforçar para se tornar mais inteligente a partir da aquisição de conhecimento.

Painel de convidados da conversa “Como destravar uma cultura de inovação?”

Lala Deheinzelin Você falou sobre tomada de decisão e, ao fim e ao cabo, tudo se traduz nisso: eu tenho de escolher, escolher onde aplico meu conhecimento, meu tempo, meus recursos. Álvaro, você, que integra o Centro de Estudos Avançados em Tomadas de Decisão, poderia dar três dicas sobre o que devemos prestar atenção ao tomar decisões? Que conselhos você nos daria nesse momento em que estamos todos um pouco perdidos? Álvaro Machado Dias Gostaria de fazer um comentário para, então, chegar a sua pergunta. Precisamos observar qual é o nível de poder intencional do sujeito individual, ou seja, quanto uma pessoa que está na favela, que estudou em determinada escola, está de fato empoderada para fazer o processo de se transformar em um empreendedor. Quanto esse indivíduo carece do ferramental e da mentalidade de que aquilo é, sim, para ele. Antes de falarmos sobre tomada de decisão, é importante pensarmos sobre essas questões. Em 2015, a Índia deu início ao projeto Digital India, uma iniciativa de digitalização do país e de implantação em larga escala de cursos de tecnologia e transformação digital. O projeto fez com que pessoas que estavam desempregadas, em subempregos, em atividades rurais de subsistência se tornassem programadores de plataforma de freelancer, ou seja, fez com que o país se tornasse o berço da programação no mun-

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do da tecnologia barata. Não estamos falando aqui da tecnologia do MIT, e sim de tecnologia barata, que elevou o nível dessa população de uma maneira brutal. Portanto, dar um computador para uma criança que mora na favela cedo é crítico para esse processo. Temos de tomar muito cuidado para não responsabilizar o indivíduo, não assumir que é apenas uma questão de ir lá e fazer. Nesse sentido, precisamos ter atenção a três pontos. O primeiro é o hardware. Aqui, os hackathons são importantes porque colocam as pessoas em contato com o próprio hardware, ou seja, fazem com que elas entendam que um computador não é para ser usado somente da forma que está, mas é também um sistema que permite programar algo. Essa mentalidade tem de ser colocada em prática no Brasil. E as pessoas precisam ter um computador com Linux, inclusive nas escolas, para inovar. As crianças devem ter o instrumental para que criem seu próprio jogo. Eu desconheço uma criança que não queria fazer isso.

Pesquisas mostram que a maioria das pessoas que se veem em situações difíceis incorporam tacitamente a premissa de que não são capazes de romper com o platô no qual estão. Por quê? Porque o dia a dia ensina para aquele sujeito que ele não tem força, e é muito fácil você confundir a força com a sua própria capacidade. “Se o mundo me achata, é porque eu sou uma pessoa achatada” – quando se tem apenas sete anos de idade. Então, qual é a decisão a ser tomada? Reflito muito sobre isso como pai, mas vale para todos: devemos trazer aos nossos filhos, aos nossos alunos, às pessoas que nos cercam e a nós mesmos a percepção de que essa sensação é falsa, e as pesquisas demonstram isso. De acordo com o Efeito Flynn, o QI [Quociente de Inteligência] vem crescendo linearmente desde o fim do século XIX. Ou seja, uma pessoa com o QI médio da virada do século XX teria

hoje um rebaixamento cognitivo. Podemos dizer que a humanidade está mais estúpida em alguns sentidos, mas do ponto de vista daquilo que Charles Spearman chamou de “fator G” para se referir à inteligência geral, em cem anos a nossa inteligência só aumentou, e de maneira muito rápida. Uma das razões para isso – ainda que seja bastante discutível – é o aumento na abstração. Hoje, desde criança você compreende assuntos digitais, abstrações que não entrariam de modo tão fácil na cabeça de uma pessoa da passagem do século XIX para o século XX. E toda essa mudança acontece no tempo de uma única vida. Portanto, se o indivíduo se agarra a uma mentalidade de que ele só sabe fazer algo de um determinado jeito e – o que é ainda mais grave – um jovem acreditar que as condições dele estão dadas e que não há como crescer, o processo de desenvolvimento pessoal como um todo fica efetivamente prejudicado. Isso é uma questão de decisão, não tanto no sentido do que você faz consigo mesmo, mas de como você comunica às outras pessoas o que elas podem ser, sobretudo para aquelas sobre as quais você tem ascendência. Isso tem a ver com a plasticidade dos seus limites. A maioria das pessoas, com esforço e uma mentalidade de crescimento, consegue atingir níveis nunca imaginados por quem convive com elas. A meu ver, essa é a grande decisão

O segundo ponto é que não podemos esquecer que no Brasil a Internet não está universalizada, e esse é um dos grandes problemas do trabalho remoto durante a pandemia e um dos principais obstáculos para a inovação no país. Como uma pessoa vai acessar conteúdos e levar isso para o mundo se ela não tem banda larga? A Internet como direito do cidadão é base para termos inovação em larga escala neste país. Por fim, o terceiro aspecto é o inglês, que é uma linguagem universal da inovação. Independentemente de onde você esteja, o inglês é fun-

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Fonte: © Shutterstock

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Lídia Goldenstein Partindo da clareza e do consenso sobre quais são as etapas imprescindíveis para que o Brasil tenha uma inserção mais positiva no mundo atual, de que forma podemos forçar esse tipo de compromisso por parte das autoridades públicas? Seria a inovação uma saída para o país enfrentar seus 14 milhões de desempregados, já que, sabendo programar e falar inglês, o mercado de trabalho se torna global? Lindalia Junqueira O que fez a Índia mudar a partir de 2015 foi que a indústria nacional de audiovisual, Bollywood, não só foi “drivando” para a capacitação de novos profissionais, mas também criando mercados e gerando mudanças inclusive de gestão pública, desde a emissão de um passaporte específico até o intercâmbio cultural com outros países. Ou seja, eles mudaram o desenvolvimento econômico, capacitaram as pessoas e elas criaram toda uma cadeia produtiva, um ecossistema que possibilitou ir além das capitais e penetrar no interior.

Recomendo um filme chamado Pad Man [2018], que conta a história de um empreendedor de uma cidadezinha muito pobre que descobre que a dor real do mercado é o fato de as mulheres indianas não terem absorventes higiênicos. É interessante acompanhar todo o processo até que ele chegue a influenciar de fato uma política pública e a causar mudanças de comportamento na sociedade.

Tela da plataforma digital Resonate, construída pelos próprios músicos.

Eu acredito que não deveria haver limite entre os países, porque somos uma unidade. Costumo desenhar esse futuro na cabeça. No Brasil, há somente 700 programadores de blockchain, que é a nova plataforma, a nova forma de transação de tudo.

A pandemia nos dá uma oportunidade única de reconstruir as relações, porque para formarmos um ecossistema, uma rede de colaboração e inovação, temos de repensar as relações humanas. Não existe concorrência. Concorrência é correr junto.

Deveríamos ter muito mais profissionais. Na favela da Maré, no Rio de Janeiro, o banco digital Maré está formando pessoas que poderão estar aqui e trabalhar para empresas no Canadá, em Portugal. Hoje, é o contrário: importamos programadores.

Se você não se unir ao seu concorrente, muitas vezes você vai ter um mercado destruído. Não dá para ser uma grande empresa global e quarteirizar a sua produção para a Índia ou outros países. Nesse sentido, talvez não exista mais emprego no futuro, mas sim relações de comprometimento de profissional para profissional, de pessoa para pessoa.

Nesse sentido, temos uma missão e um propósito muito fortes de formar essa nova geração e possibilitar que esses jovens mudem inclusive de status social. Um programador de Java começa no mercado ganhando R$ 20 mil por mês. Por isso, eu digo: tem de aprender português, inglês e javanês

Estamos em uma época de construção de novas cooperativas. Se eu puder deixar uma contribuição de novos modelos econômicos e de

negócios capazes de gerar uma disrupção de fato, não são os sindicatos de antigamente, mas sim as novas cooperativas. Da mesma forma que você tem o Spotify, há o Resonate, que é uma plataforma digital construída pelos próprios músicos. Todos aqueles que fazem parte são donos. Assim, eles conseguem tanto atender ao público quanto distribuir os valores por toda a cadeia. É uma nova forma de criar negócios com potencial de mudar o modus operandi de fato. É preciso deixar o individual de lado e aproveitar o momento de digitalização para humanizar as relações, pensando que só há ganho se todos ganham. Uma lição que compreendi é que a melhor forma de aprender a multiplicar é, antes, aprender a dividir.

Esta conversa é de extrema relevância, porque poucas pessoas falam de tecnologia e inovação a partir de uma perspectiva que considere economia, impacto social, todas essas visões que fazem parte daquilo que precisamos construir.

Cartaz do filme PadMan: empreendedor influencia política pública em prol de mulheres que sofriam por falta de absorvente higiênico em uma pequena cidade na Índia

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30.03 11h—13h

As novas estruturas de mercado: como participar? 36

convidados

Alberto Serrentino Varese Retail Renato Meirelles Instituto Locomotiva

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efetivamente transforma os negócios é a mudança na postura das pessoas, que começa sempre pela da liderança.

Ecossistemas de negócios: clientes e dados na base de tudo Alberto Serrentino Fundador da Varese Retail

O varejo está sendo desafiado nos últimos anos pela maior transformação estrutural da história desse negócio, que é a transformação digital, o impacto do mundo digital nas jornadas de compras de clientes e como isso redefine a relação dos consumidores com o varejo e seus processos de escolha. A mudança estrutural mais impactante na história do varejo, até agora, talvez tenha sido o autosserviço alimentar, os supermercados no pós-guerra, na década de 1950. Mas a velocidade com a qual as transformações moldaram e mudaram o negócio foi de décadas. Agora estamos vivendo experiências que provocaram mudanças e estão provocando mudanças estruturais por um período de anos e até meses. Obviamente, a pandemia trouxe essa questão para o holofote porque houve uma aceleração digital dramática no mundo todo, e o Brasil está absolutamente sintonizado com isso. Isso causou, inclusive, uma aceleração naquilo que é o principal fundamento da transformação

digital dos negócios, que é a evolução cultural organizacional. Mas há um fenômeno que gera discussões sobre isso quando falamos de novas estruturas de mercado, são os novos modelos de negócio.

O que me fez mergulhar muito nesse desenho dos ecossistemas de negócios foi a percepção, uns cinco ou seis anos atrás, de que aconteciam mudanças importantes particularmente no mercado chinês, que é o maior varejo do mundo. Ele foi absolutamente transformado, colocando os chineses alguns anos à frente do mundo ocidental nesse setor. Essa transformação, porém, não foi promovida por empresas de varejo; elas vieram a reboque. O que liderou o processo de transformação, tanto do varejo como de toda a cadeia de meios de pagamento, crédito e serviços financeiros na China, foram os ecossistemas de negócios. Empresas que são muito difíceis de serem rotuladas exatamente porque possuem origens distintas, mas características muito claras que permitem colocá-las sob um mesmo rótulo e guarda-chuva. Vamos dar exemplos práticos. A maior tradução de ecossistema de negócios com poder transformador no nosso mundo de consumo e varejo é o Alibaba, que nasceu de marketplaces B2B, negócio que consistia em conectar quem tinha produto para vender e não tinha canal, e quem tinha necessidade de comprar e não tinha acesso. Daí nasceu o DNA de uma empresa que tenta resolver problemas de outras empresas e, a partir disso, começa a diversificar o negócio. O Alibaba tornou-se um grande monstro, em cuja base de tudo estão clientes e dados. Não existe mais um vínculo com a origem do negócio.

A Tencent, outro exemplo de ecossistema chinês, nasceu de uma ferramenta de comunicação, o WeChat. Em dado momento, foi catapultado pela incorporação de uma carteira digital, virou a melhor tradução do que é um super app no mundo e inspirou todos os outros.

Essa, portanto, é uma mudança fundamental no modelo mental dos negócios: eu paro de querer dominar tudo, de querer saber tudo e vou buscar pronto aquilo que demoraria demais para ser desenvolvido Dali, se transformou em uma grande plataforma, ampliando seu alcance para uma base de mais de 1 bilhão de usuários ativos com uma recorrência brutal. Só para ter ideia desse super app: dentro do WeChat, existem mais de 1 milhão de apps embarcados. É possível comprar, acessar e se conectar com quase tudo, de serviços públicos a cartórios, viagem, serviços e qualquer tipo de demanda de consumo. São empresas muito diferentes na sua configuração, na origem e até na fonte de monetização e efetivamente traduzem esse valor da base do cliente em valor econômico para o negócio. Mas, na essência, funcionam com um modelo mental muito parecido.

É importante dizer que a transformação digital em um negócio de varejo não é vender mais pela internet ou fazer crescer o canal digital ou ainda incorporar mais tecnologia. A transformação digital é essencialmente uma mudança cultural organizacional pela qual a empresa redefine processos e a maneira de organizar as pessoas. E o eixo central do negócio muda de um negócio orientado a silos funcionais, a processos operacionais e a canais de venda para um negócio efetivamente voltado a cliente e dados. A partir disso, a tecnologia passa a ser um componente natural de enfrentamento das dores dos clientes e dos negócios e de aceleração nos processos de inovação. Mas a tecnologia não é fim, ela é meio. O que Alibaba - a maior plataforma de negócios B2B on-line do mundo. Alibaba, 2021. Disponível em: <https://portuguese.alibaba.com/>. Acesso em 30 de março de 2021.

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O importante não é mais de onde eu vim e aquilo que é a minha competência fundamental no meu negócio de origem, mas essa capacidade de escalar exponencialmente negócios a partir de grandes bases de clientes com muita recorrência, na qual os dados, a captura e o tratamento dos dados geram as grandes oportunidades com as quais os negócios se diversificam. O crescimento exponencial dessas empresas aconteceu de múltiplas formas. Primeiro, elas não têm trajetórias de crescimento orgânico, porque foram buscando via investimentos, aquisições estratégicas, aquisições sinérgicas, aquisições não óbvias em muitos casos e investimentos onde entendiam ser componentes fundamentais. Possuem uma sólida base de tecnologia proprietária e capacidade residente de tratar dados de maneira estratégica, além de abertura e a colaboração para atmosferas de negócios nas quais se usam terceiros para alavancar seu próprio crescimento. Essa, portanto, é uma mudança fundamental no modelo mental dos negócios: eu paro de querer dominar tudo, de querer saber tudo e vou buscar pronto aquilo que demoraria demais para ser desenvolvido. E, principalmente, vou criar ambientes de colaboração externa, na qual terceiros trabalham em prol do meu negócio, retroalimentam meu negócio e, assim, consigo crescer muito acima da minha capacidade financeira e humana de escalar o negócio.

O modelo chinês não é ipsis litteris transponível para mercados ocidentais, mas a essência daquilo que ele provoca como reflexão estratégica, sim Os ecossistemas chineses controlam hoje de 80% a 90% de todo o varejo digital na China. O mais importante é que eles adquiriram, implantaram, desenvolveram ou investiram em quase todas as empresas relevantes de varejo do país. Assim, o Alibaba hoje controla a maior rede de supermercados, a maior rede de lojas de departamento, algumas das maiores redes especializadas. A Suning, outro ecossistema que nasceu de varejo, comprou as operações de Carrefour, Dia e Tesco.

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Como transportamos isso para a realidade brasileira? O modelo chinês não é ipsis litteris transponível para mercados ocidentais, mas a essência daquilo que ele provoca como reflexão estratégica, sim. Frederico Trajano, CEO do Magazine Luiza, que busca inspiração nos ecossistemas chineses para o seu modelo de negócio, sempre fala: “Olha, o varejo americano foi transformado por uma empresa americana, a Amazon. O varejo chinês foi transformado por algumas empresas chinesas. O varejo brasileiro pode ser transformado por empresas brasileiras”. Podemos encontrar um caminho próprio para interpretar as mudanças, tendo como inspiração aquilo que, efetivamente, desafiou os negócios no mundo. Dados da semana passada [quarta semana de março de 2021] do relatório Webshoppers, elaborado pela Ebit|Nielsen, o raio-x do varejo digital e do e-commerce brasileiro, 84% da venda digital no país foi feita por empresas que têm marketplace, primeiro degrau para um negócio evoluir de um modelo de varejo para uma empresa de serviços. Quando uma empresa escala o seu negócio a partir de um marketplace e ele se torna o seu principal elemento de crescimento, a empresa deixa de ser apenas de varejo e passa a ser uma empresa de serviços, porque seu crescimento depende do sucesso de terceiros. Também depende de uma infraestrutura que escale o crescimento de terceiros. Cerca de 60% a 70% do negócio da Amazon, por exemplo, é o chamado modelo 3P, vendas que os sellers fazem, não vendas que a Amazon faz. E os grandes geradores de resultado do negócio da empresa são os serviços: a AWS (Amazon Web Services), o marketplace e o negócio de mídia.

Temos um varejo digital que cresce muito acima do varejo físico, e os marketplaces crescem muito mais que o varejo digital

Alberto Serrentino durante o encontro

Então isso redefine o que é um ecossistema na prática: Um negócio que gravita em torno de grandes bases de dados de clientes com recorrência, que tem a capacidade de diversificar as suas frentes de atuação, solidamente baseadas em tecnologia e infraestrutura proprietárias. A partir daí, são integrados varejo, marketplaces, serviços, serviços financeiros, mídia, entretenimento, conteúdo. E tudo isso retroalimenta a capacidade de entender melhor e ativar melhor os clientes.

places, as plataformas, os ecossistemas serão cada vez mais dominantes nessa arena e para as empresas haverá dois caminhos. Ou elas têm musculatura, ambição e capacidade de escalar o negócio para uma plataforma, um ecossistema – caminho do Magazine Luiza, Mercado Livre, B2W e outras verticais, como C&A, Renner, Riachuelo, Centauro, Cobasi e Netshoes – ou precisarão aprender a navegar nesse ambiente, pois, além de tudo, entram os super apps nessa competição, em que a grande disputa é pelo cliente e pela recorrência do cliente.

Quando a empresa dá essa virada de chave, deixa de ser tão importante o que ela está vendendo e quem está vendendo, e passa a ser muito mais importante quem está comprando. Já assistimos no Brasil uma mudança clara na direção do que está acontece no mundo com as peculiaridades do nosso mercado. Temos um varejo digital que cresce muito acima do varejo físico, e os marketplaces crescem muito mais que o varejo digital, passando a dominar fortemente esse ambiente, o que impõe às empresas que estão no varejo duas agendas fundamentais. A primeira é a transformação digital, imperativo inevitável. A empresa que não entender isso vai se tornar menos relevante. Depois, os market-

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Tecnologia, dados e logística embalam dança de poder entre consumidor e indústria

Essas pessoas não são apenas os entregadores, mas pequenos varejistas de diversos setores que procuraram os marketplaces para não fecharem suas portas durante a pandemia, que buscaram na tecnologia soluções para manter abertos os seus negócios. É a boleira, a manicure, aquele cara que estampa boné, as afroestilistas, com um negócio focado em determinado nicho de consumidores e que conseguiram fazer movimentos via marketplaces. Uma parceria muito interessante se deu entre a Feira Preta e o Mercado Livre para abrir esse canal digital de venda a essas pequenas empreendedoras. Obviamente, depois dessas mudanças, as pessoas não tornam a ser como antes. É como imaginar a volta do uso do SMS depois de todos os avanços trazidos pelo WhatsApp. Ou como se, depois da comunicação digital, fizesse sentido manter três ou quatro chips no celular para conseguir a melhor oferta para uma ligação, sendo que não fazemos mais ligação telefônica, operamos muito mais pela ligação através de dados. Eu estudo o consumidor há 20 anos e percebemos ao longo da história, transformações que se dão ou pela lógica da oferta, ou pela lógica da

demanda, como uma dança de disputa de poder sobre quem conduz quem. Na época do Henry Ford, a indústria comunicava ao consumidor que ele podia escolher o carro que quisesse desde que fosse preto. Depois, veio a mudança da supercustomização, em que aquela lógica da indústria de “empurrar” qualquer coisa não fazia sentido. Houve então uma contraposição da indústria que, diante da supercustomização, tentava ter os grandes lançamentos, aqueles que falariam ou agradariam, pelo menos um pouco, a metade do mercado. Tivemos, então, um consumidor que começava a procurar cada vez mais algo que reforçasse a sua própria identidade. Foi um processo em que os formadores de opinião – se levarmos isso para o território da moda, fica bastante claro – deixaram de ser os grandes estilistas, as tendências internacionais de moda e começaram a ser os influencers, os pequenos blogueiros. Um padrão de referência muito mais horizontal do que vertical.

Renato Meirelles

Presidente do Instituto de Pesquisa Locomotiva

Meu papel é tentar entender a lógica da demanda, aquele sujeito que está descobrindo as oportunidades trazidas pelas tecnologias. Ao analisar o consumidor, chega-se a uma certeza: não voltaremos a ser como éramos antes. E ainda bem. A forma como éramos nos fez chegar a situações não muito boas, o que a pandemia deixa cada vez mais claro. Nas nossas pesquisas, as pessoas dizem ter saudade do abraço, saudade da convivência, saudade de uma experiência mais sensorial no consumo. Mas não encontro ninguém com a ilusão de que, após a pandemia, voltaremos a ser como antes. Alguns setores relacionados à tecnologia e à moda, de alguma forma, deixam isso claro. Temos mais de 20 milhões de pessoas que passaram a comprar pela Internet pela primeira vez

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em um ano. Temos 21,5 milhões de brasileiros que recebem renda por meio de um aplicativo – um aumento de 3,5 milhões de pessoas em sete meses.

Obviamente, depois dessas mudanças, as pessoas não tornam a ser como antes. É como imaginar a volta do uso do SMS depois de todos os avanços trazidos pelo WhatsApp economia criativa #7

Fonte: © Shutterstock

Em paralelo, vimos a consolidação, por meio de grandes marketplaces, a lógica da cauda longa – estratégia em que se oferece produtos mais nichados na Internet e um mercado enorme é formado pela soma de pequenos nichos. Mais uma vez, uma contraposição a uma demanda que surge dos consumidores.

passam a ser absorvidos, é possível perceber que o maior ativo que uma indústria pode ter é o conhecimento do seu consumidor. E esse conhecimento, os dados e a inteligência produzida por meio deles, somado a uma capacidade logística muito grande garante que se saiba o que sugerir para que consumidor e em que momento.

Obviamente, quando isso acontece e ganha grandes proporções em relação aos dados que

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Nesse sentido, a indústria de tecnologia começa a compreender que ela não precisa ser verticalizada, ser dona de tudo. Ela pode usar esses pequenos ou grandes avanços realizados por outras empresas para mais rapidamente resolver as demandas do consumidor.

Essas indústrias democratizam uma série de acessos, fazem com que o pequeno varejista do bairro possa vender para o mundo inteiro, que estilistas levem suas criações para nichos de mercados ao redor do mundo, disponibilizam para as pequenas indústrias e pequenos varejos um modelo de distribuição que de outra forma seria inviável a eles.

E o que acontece nesse momento com o consumidor? Também passa a ficar preso a bolhas algorítmicas, em que ele não sabe se está seguindo por determinada rua porque o Waze indicou ou porque aquele, de fato, é o melhor caminho.

Mas ao mesmo tempo fica-se amarrado a uma série de negócios, os quais se aceita ou fica fora do negócio. Ambos os movimentos são verdadeiros.

A vida fica mais fácil quando se permite que as máquinas saibam o que você pensa

Mas a verdade é que a grande maioria dos consumidores aceita trocar dados pessoais por comodidade sem se dar conta do real significado dessa ação. A vida fica mais fácil quando se permite que as máquinas saibam o que você pensa. Esse consumidor deixa, inclusive, que os algoritmos comecem a dizer aquela demanda que ele não sabia nem que tinha e que começa a surgir. Os grandes movimentos relacionados a LGPD [Lei Geral de Proteção de Dados] no mundo inteiro indicam uma próxima demanda, a do consumidor que passa a saber o real valor dos seus dados para os outros. E tem início, então, o questionamento desses dados – de forma ainda bastante reduzida frente à proporção que, acredito, isso tomará nos próximos anos. Quer dizer que os modelos de inteligência artificial e de criação de ecossistemas de negócios, que juntam diferentes expertises para mostrar ao consumidor aquilo que ele nem sabe que precisa, vão acabar?

Entender as relações de consumo, sobre o que são ou deixam de ser aspiracionais, entender qual o preço no mercado da comodidade são os caminhos que inevitavelmente devem ser percorridos a fim de compreender para onde vamos. O cenário ainda é incerto, mas parte da certeza de que não voltaremos para trás.

Levanto essa questão por causa da constante polêmica. O caso do entregador, por exemplo, é um subemprego ou uma solução financeira para quem está sem trabalho? As duas afirmativas são verdadeiras, depende da sua régua e do seu parâmetro de comparação. O fato é que a tecnologia sempre foi um meio para isso.

As facilidades trazidas pela inteligência artificial e pelo uso direto dos dados geram também uma série de condicionamentos no comportamento do consumidor. Muitas vezes falamos “eu disse algo na frente do Instagram e, logo depois, apareceu o anúncio daquele produto ou serviço que mencionei”. Depois de assistir ao documentário “O Dilema das Redes”, essa noção de que o seu cérebro está sendo hackeado começa a crescer.

sa a ter acesso? Que reação a demanda vai ter frente ao novo movimento do consumidor?

A forma de utilizá-la depende do jogo de poder, da queda de braço que se apresenta em um determinado momento social e econômico. E o entendimento dessa lógica é o que nos permite identificar para onde vamos. Hoje, o jogo está mais favorável para o lado da oferta do que para o da demanda. Para mudar esse placar, quais elementos o consumidor pas-

“Dilema das Redes”: documentário revela como cérebro humano pode ser hackeado

Não, significa que a valoração será diferente; a precificação muda quando as pessoas ficam cientes do valor que aquela informação tem. Alguns vão topar, outros não. O que esses ecossistemas de negócios, baseados em tecnologia, dados e logística, trouxeram e vieram para ficar é, objetivamente, o passo mais atual nessa dança de poder que se dá entre consumidores e indústrias.

Hoje, o jogo está mais favorável para o lado da oferta do que para o da demanda. Para mudar esse placar, quais elementos o consumidor passa a ter acesso? Renato Meirelles, do Instituto Locomotiva

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mais + dos convidados

muitos marketplaces verticais, especializados. Por quê? Na moda, o produto sempre vem embarcado com muito conteúdo e curadoria, ainda há um componente artesanal e uma fragmentação bastante expressiva. Embora haja grandes organizações, o mundo da moda não é um setor consolidado e há espaço para a especialização. A Amazon, que você citou, há anos vem tentando embarcar na vertical de moda e não consegue. Está prestes a se tornar a maior varejista de moda dos Estados Unidos em termos de commodities, assim como o Walmart é atualmente o maior varejista de vestuário norte-americano sem nunca ter sido reconhecido como empresa de moda. A Amazon tem tirado share do Walmart e de outros similares naquilo que é o produto básico, comoditizado e de compra muito racional, mas não consegue ser respeitada e reconhecida como plataforma de moda. O Alibaba conseguiu. Na China, rompeu-se o paradigma, inclusive nas faixas premium e luxo, de que o mundo digital não é lugar para a moda e, principalmente, de que não é possível replicar a experiência de marca com alto valor intangível atrelado ao produto se você não estiver em um ambiente físico. Isso foi quebrado pelo Alibaba, que criou um pavilhão de luxo dentro do Tmall Global, marketplace no qual o mundo vende para a China. Parte dessa venda é cross border, parte é local. Mas nenhuma empresa, nem as de luxo, conseguiu escalar o negócio de moda na China sem estar nas plataformas digitais e, particularmente, no Tmall Global. Todas as marcas chinesas que hesitavam em relação a marketplaces abandonaram essa reticência, o que abre um enorme precedente.

Convidados do painel As novas estruturas de mercado: Como participar?

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Graça Cabral

Alberto Serrentino

Estamos presenciando no Brasil de forma mais acelerada a criação de verticais de negócios. Vários ecossistemas de varejo que não tinham a moda e a beleza como ativo principal inicial estão abrindo espaço para esses setores, como é o caso do Magazine Luiza. Como uma pequena empresa de moda que trabalha com a questão do autoral, da originalidade, se pluga a um marketplace dessa natureza? Já existem pequenos marketplaces voltados para a moda e o luxo, mas nos grandes players, como a Amazon, o que existe de oferta ainda é algo mais básico. Como você vê essa mudança, Alberto?

Pensando no negócio da moda, acredito que, em primeiro lugar, vamos assistir no Brasil o que chamo de um congestionamento de marketplaces, porque todo mundo quer virar um marketplace, mas nem todos vão vingar como tal. Até descobrirmos os vencedores, teremos dois grandes banhos de sangue no país: os marketplaces e as carteiras digitais. Poucos conseguirão construir negócios efetivamente sustentáveis, e até esse cenário se acomodar muito dinheiro será torrado em iniciativas. Se olharmos em perspectiva e de maneira global, a moda é uma das categorias em que surgem

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tribuição para estar em poucos lugares qualificados e verticalizar onde ela domina. Mas existem plataformas verticais de moda, como a Farfetch, que conseguiram convencer as marcas de que ali elas estão protegidas, de que há uma carga de conteúdo e de respeito ao valor intangível que a moda aporta, principalmente em segmentos premium. Por outro lado, há o massificado, onde os marketplaces estão avançando muito rápido. Essa batalha não necessariamente será vencida pelas grandes plataformas diversificadas, e todas elas estão tentando vencer. O Mercado Livre está entrando em moda, a Amazon também, e nós teremos outros chamados horizontais ou multicategorias tentando vender moda, porque é uma categoria que gera margem e certa recorrência. Da mesma forma, esses grandes operadores estão entrando no setor alimentar, porque gera uma altíssima recorrência que mantém o cliente muito próximo, permite capturar bastante dado e escalar todo o resto. Temos coisas muito interessantes acontecendo. Os números de 2020 revelam que os brasileiros compraram R$ 23 bilhões via cross border. O que significa isso? São transações feitas por empresas que não estão no Brasil, mas exportam diretamente para os nossos consumidores: AliExpress, Wish, Amazon, Shein, que no ano passado foi o terceiro app de moda mais baixado no país, sendo o da C&A o primeiro.

Se olharmos o mercado brasileiro, temos de fatiar os segmentos. Partindo do luxo e do premium, existem plataformas globais que conseguiram dominar o ambiente no qual as marcas aceitam estar porque entendem que é um ambiente qualificado, que respeita o produto, protege imagem, preço e não destrói valor. A Nike, por exemplo, fez um movimento global nos últimos dois anos, que se intensificou em 2020, de dramático enxugamento em sua distribuição. Saiu de plataformas massificadas, incluindo a Amazon, parou de vender em várias lojas multimarcas que depreciavam o produto e focavam em preço. A marca enxugou a dis-

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Marketplace chinês Shein: terceiro app de moda mais baixado no Brasil em 2020

O que é Shein? É um marketplace chinês de fast fashion, uma plataforma digital que vende para o mundo todo. Já existe no Brasil uma base enorme, com grande recorrência, formada principalmente por um público jovem que se conecta pelo trabalho muito rápido de curadoria, de

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conteúdo, de dinâmica com influenciadores. Estamos vivendo o fenômeno do live shopping, que é a convergência de conteúdo, mídia, entretenimento e compras. O influenciador se torna um promotor de vendas, e você trabalha muito o senso de urgência, a capacidade de demonstrar o produto e explorar os atributos dele de maneira interativa, dialogando com a audiência em plataformas digitais. Todas as plataformas de moda estão investindo em ambientes de live shopping: C&A, Arezzo, Grupo Soma. Vamos ver essa tendência se multiplicar. Portanto, os marketplaces são uma alternativa para o pequeno. E existem outras coisas acontecendo. Por exemplo, a brMalls implantou um projeto chamado Trama Lab, que por enquanto é um protótipo. O primeiro piloto foi no Shopping VillaLobos, em São Paulo. É praticamente um marketplace físico, uma loja feita de store in store, de pequenos operadores que não tinham presença física e vendiam moda somente em ambiente digital. É feita uma curadoria que busca empresas com potencial de crescimento e pouco acesso a ambientes de venda física. Então, veremos os marketplaces via plataformas de live streaming, via uma carga de conteúdo embarcada dentro dos ambientes. Há também a possibilidade de segmentar e microssegmentar o acesso à demanda, além de pequenos operadores poderem construir sua base de clientes e, a partir dos dados, criarem os ambientes.

Hoje, vemos uma plataforma como o TikTok começar sua jornada de se tornar um marketplace. É uma mídia social, mas em breve vai criar ponte para compras. Começa a haver uma democratização da formação de grandes bases de seguidores, em que você pode influenciar e direcionar para compras, o que de fato torna o jogo muito aberto. Assim, o mundo digital abalou a percepção de que o mundo dos negócios é inevitavelmente de poucos dominantes e de consolidação. As grandes empresas nunca podem se sentir em uma zona de dominância confortável, porque elas são desafiadas o tempo inteiro, não por seus pares diretos, mas por empresas que vêm do nada, que são imprevisíveis, ou por fenômenos que, de repente, escalam exponencialmente, como é o caso da Shein. No primeiro semestre de 2020, a Shein não era ninguém; na Black Friday, explodiu no Brasil. Você se pergunta: quem são essas pessoas? De onde vieram? Então, vejo na moda um segmento menos suscetível à consolidação, tanto do lado do varejo quanto do lado das plataformas. Veremos movimentos de muita segmentação, há espaço para a verticalização e a especialização em plataformas de nicho, com curadoria, conteúdos embarcados e um senso de comunidade. A questão da ética também é muito séria. Abrese um novo capítulo, que é o ESG [sigla em inglês para Environmental, Social and Corporate Governance, ou Governança Ambiental, Social e Corporativa]. Isso não existia há um ano e, de repente, ganhou a mídia de massa, virou tema de Conselho, da pauta estratégica das empresas. De fato, os consumidores estão mais críticos, vigilantes e discriminatórios em suas escolhas. Não só em relação ao que vem como oferta óbvia de produto e preço, mas ao que está por trás de um produto – a ética, a responsabilidade, o senso de relacionamento com stakeholders e comunidades, o papel das empresas na sociedade. Acredito que a cobrança e a vigilância em relação à proteção de dados e à privacidade pessoal, de um lado, e à maneira como as empresas tratam os dados e o relacionamento com aquilo que circunda o negócio, de outro, vão compor os desafios, as agendas e a forma das empresas conectarem consumidores, que estão muito mais informados e conscientes.

Trama Lab, criado pela brMalls: espécie de marketplace físico

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Lídia Goldenstein Eu vejo um dilema. Por um lado, se o Brasil não trilhar novos caminhos, ficará fora do jogo. Por outro lado, isso nos leva a um nível de subserviência aos logaritmos que definem o que o consumidor deseja, o que ele vai receber de input, de propaganda. Como fazer para que o resultado dessa dança não seja um massacre ao consumidor? A pauta do ESG de fato entrou na moda – será por aí que conseguiremos promover as transformações necessárias na economia brasileira sem ser algo avassalador do ponto de vista do controle sobre os cidadãos? Renato Meirelles Faço um paralelo possível entre a moda e a seguinte frase: para que serve a utopia? Ela serve para dar o próximo passo, mesmo que ela não chegue nunca, porque será sempre utópica. A moda e a criatividade também têm essa função de trazer uma inquietude que leva a essa dança do poder entre oferta e demanda, disputa que é às vezes implícita, às vezes explícita, em outros momentos invisível, mas sempre presente. Por que a indústria de moda se autodenomina “indústria de moda”, e não “empresa de vestuário”? Porque ela se recusa ao papel funcional de apenas vestir o corpo. Desde sempre, a moda fala sobre identidade, grupo, futuro, uma forma de querer se postar no mundo, ser incluído em determinadas tribos ou movimentos. É preciso lembrar do crescimento das commodities de moda versus os outros modelos de plataforma de moda, que protegem o valor e a criatividade em um cenário em que a curadoria de moda, de conteúdo e de informação é muito importante. Porque todos sabem que é fundamental estar presente nas novas tecnologias para passar a mensagem da moda e falar com os diferentes nichos. Por que seria diferente na hora de vender? Quando encaramos o processo de formação da moda como algo que também envolve a venda e as relações comerciais como parte dessa cultura, entendemos que a criação de modelos e plataformas focados na proteção desse conteúdo pode demorar mais, pode demorar menos, mas virá. Se demorar, só vai crescer o espaço para as falsificações, a pirataria, o menos autoral. O grande desafio é: como facilitar essa integração, acima de tudo? E a questão ética que se coloca a partir disso é a arma que existe para o consumidor voltar a exercer um poder maior contra a demanda. Quando falamos dessa

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dança de poder, não nos referimos ao consumidor individual, mas a ferramentas que o consumidor enquanto sociedade tem, que vão desde elementos regulatórios até a formação de grupos e comunidades que passam a fazer essa exigência para as empresas – seja movimentos antirracistas, como vimos explodir nos Estados Unidos, ou a favor da diversidade de corpo, ou para uma fiscalização maior de toda a cadeia produtiva. A tecnologia também está a serviço de entender o compromisso ético de toda a cadeia, e não só da loja que está à frente. Esses são os instrumentos de poder que a demanda possui para, de alguma maneira, controlar a oferta. É um caminho sem volta e tão mais aberto do que se pode imaginar, tão sujeito a novos entrantes que podem rapidamente mudar o rumo para onde vamos. Não dá para fingir que isso não acontece, e muitas vezes a indústria da moda prefere colocar a cabeça debaixo da terra como um avestruz, como se isso a protegesse dos fatos que estão aí, que são a democratização tecnológica e a formação dos ecossistemas de negócios. A forma de lidar com isso e de entender as novas oportunidades é o que vai fazer a diferença para as indústrias. Lala Deheinzelin As falas dos convidados trazem o componente do fazer junto, da convergência, que é o nosso grande desafio estrutural. Não há nenhum campo que seja convergente: a educação, as estruturas organizacionais, o nosso cérebro, tudo está compartimentado. Mas a chave está na convergência, e a tecnologia é o meio para tal. Como contribuir para essa mudança de mentalidade? Se não há uma mudança cultural, nada mais acontece. Gostaria que você falasse mais sobre isso e também comentasse de que forma o fazer junto está associado à meritocracia, porque, para poder me juntar, é preciso ter mecanismos de qualificação dos meus parceiros, ou seja, não basta ter um propósito comum para a colaboração. Alberto Serrentino De fato, a mãe de todas as mudanças é a cultural. As empresas não se transformarão se não existir antes uma mudança cultural, e isso só acontece de cima para baixo. Ou a mudança parte de um nível de consciência e de um alinhamento muito grandes no topo das organizações, onde as prioridades estratégi-

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cas e a maneira de funcionamento das empresas são definidas, ou a mudança não vai andar, porque ela sempre será sabotada pelo sistema imunológico corporativo. Temos uma cultura de gestão de negócios que moldou praticamente toda uma geração de lideranças, que é a cultura do domínio do segredo. Quando você faz algo que dá certo, você protege, blinda, esconde e guarda a sete chaves. O mundo não funciona mais assim. Não importa ter dominado qualquer tipo de alavanca competitiva para um negócio, porque ela pode se tornar obsoleta em pouco tempo. A não ser no caso das empresas que estão em processo permanente de aprendizado ou que estejam elas próprias desafiando seu modelo, antes que alguém de fora o faça.

Por isso, as mudanças precisam começar dentro das companhias, na forma como organizam processos e pessoas, como transita informação entre as competências funcionais que os negócios precisam ter. A partir daí, você começa a abrir essa perspectiva para o campo externo. Trata-se de abandonar a arrogância de que as empresas são capazes de dominar tudo sozinhas, aprender e desenvolver tudo sozinhas. Começamos a ver grandes empresas serem desafiadas por startups que têm desprendimento e pensam o problema em uma perspectiva diferente e descontaminada. Começamos a ver também empresas que encontram respostas para suas dores por meio da oxigenação externa, muitas vezes até colaborando com pequenas empresas. Eu sou otimista em relação ao impacto do mundo digital, à abertura que isso gera para que pequenos negócios escalem, sejam competitivos e encontrem avenidas de crescimento se tiverem valor. Saímos de um modelo no qual a obsessão era a escala, a concentração, e no qual o tamanho definia a competitividade. Hoje, a velocidade é mais importante. Estamos vendo a dificuldade das empresas grandes e mastodônticas para fazer a transformação digital, porque nelas as barreiras culturais e de infraestrutura são muito maiores.

Fonte: © Shutterstock

Essa permeabilidade cultural só é conseguida quando a empresa rompe de fato com os silos tanto internos quanto externos. Ainda vemos empresas desenhadas em modelos industriais, nos quais é preciso criar economias de escala e de eficiência pelo tamanho.

Nelas, os legados presentes nos sistemas, na tecnologia e também em seu sistema imunológico são grandes travas para a mudança; as empresas sentem que têm muito mais a perder em todos os níveis, inclusive no individual, em relação às pessoas que defendem o poder estabelecido e o seu domínio dentro de um ambiente confortável.

E então você tem de compartimentar e especializar as funções internas, o que gera esses desenhos organizacionais de boa parte das empresas estabelecidas, montados em silos que não conversam. Elas acabam fatiadas em processos funcionais – um olha o planejamento, o outro, a venda, um terceiro, a logística etc. Onde está o cliente nessa história? Onde está aquilo que é integrador de tudo isso? Dessa forma, os silos se tornam silos de dados, funcionais, e atuam como as grandes paredes não só físicas, mas também simbólicas, que impedem a colaboração interna. Se não existe colaboração interna, como uma empresa vai ter colaboração externa?

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Uma empresa pequena, por outro lado, consegue se adaptar mais rapidamente e está mais próxima do cliente. Por causa da simplificação na sua arquitetura e nos seus sistemas, ela é capaz de moldá-los de maneira mais ágil do que as empresas grandes. Mas é preciso ter um modelo mental de ambição, de se colocar como um negócio que entende, captura e escala a partir de clientes. Hoje, há espaço para se conectar com as pessoas e gerar senso de pertencimento de comunidade, o que na moda é fundamental. Fala-se que, no fundo, os negócios são todos iguais. Não são. Em relação à moda, digo sempre: trata-se de um negócio complexo porque requer uma carga das chamadas soft skills, habilidades difíceis de ser ensinadas, desenvolvidas e sistematizadas porque envolvem sensibilidade, cultura, senso estético.

A perspectiva, inclusive para os acionistas que aceitaram investir em empresas que demoraram décadas para dar lucro — algumas ainda não deram —, era a de que havia uma visão de futuro, um questionamento a uma insatisfação em relação à indústria atual, o oferecimento de uma perspectiva diferente.

Não acredito que viveremos em um mundo dominado pela inteligência artificial, um mundo no qual as pessoas serão cerceadas da sua liberdade individual e da sua criatividade. Sempre encontraremos, em algum momento, o ambiente regulatório. Em relação à meritocracia, esse é um traço chinês. Para mim, o que ajuda a explicar os gatilhos que levaram a China a estar onde está é um trinômio: pragmatismo, meritocracia e disciplina.

Quando olhamos para as fintechs, percebemos que parte considerável delas cresceu pela crítica ao modelo tradicional dos bancos, que não colocava o consumidor no centro das discussões, levando-as a um ciclo de inovação.

Temos uma carência gigantesca desses três elementos no Brasil. Somos um país humano, um povo sociável, alegre, interativo, criativo, adaptativo, mas pouquíssimo disciplinado. Precisamos ter mais disciplina para o tipo de desafio de negócios e de ambiente que enfrentaremos pela frente. Precisamos educar as pessoas de que a disciplina não é antagônica à criatividade. E a meritocracia é o que permite filtrar aquilo que ainda está em desenvolvimento e regulamentá-lo quando se torna maduro.

E acredito que o Brasil tem diversas características aderentes ao que pode funcionar no cenário de negócios atual. No entanto, para

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Renato Meirelles O que move as pessoas e as indústrias é a perspectiva. Você pode ter uma perspectiva de crescimento ou de perda. Quando olhamos as grandes startups, na maioria dos casos elas surgiram como questionadoras do status quo. Não tinham compromisso com o passado, com o modelo antigo de se construir.

No Brasil, temos uma cultura de burocracia, de regulamentação excessiva, o que sufoca o ambiente de negócios, inclusive para os pequenos. Acredito que vamos destravar muita coisa nesse sentido. Acredito que o mundo é mais democrático, que os pequenos negócios que possuem valor, criatividade e empreendedorismo encontram mais espaço hoje.

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que isso seja escalável, precisamos incorporar traços que nos faltam culturalmente em termos de ambiente de negócios, de estilo de liderança.

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Já as indústrias tradicionais têm compromisso com o histórico de faturamento. São, portanto, amarras, silos, como usou Alberto, muito mais consolidados. Se você perguntar o que causou a transformação digital das empresas, a resposta é o vírus, não a necessidade. Em especial as de varejo, que vivem por caixa e quebrariam caso não avançassem na transformação digital. Nesse sentido, a pandemia promoveu uma união raríssima nas indústrias e no varejo tradicionais, que é a união entre o CFO [sigla em inglês para Chief Financial Officer, ou diretor financeiro], o CTO [Chief Technical Officer, ou diretor técnico] e o CEO [Chief Executive Officer, ou diretor executivo]. Eles se reuniram e falaram: “Vamos lá, se não, vamos quebrar”. O CTO dizia precisar de dois anos para implantar uma ideia, e ouviu que teria duas semanas. Essa aceleração forçada pelo processo do vírus e do isolamento social fez com que se avançassem anos na transformação tecnológica. Então, a primeira questão é: Que perspectiva está sendo oferecida? E quais são as amarras para essa perspectiva? Quando falamos que avançamos uma década em um ano, não é apenas na relação do consumidor com a tecnolo-

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gia, mas na relação das indústrias com a tecnologia. Quando o planeta mudou, os agentes tiveram de se transformar e se adaptar ao momento de forma rápida. Nesse cenário, a lógica colaborativa ganha uma relevância muito maior do que em outros tempos. O processo pandêmico fez com que a lógica de sobrevivência de uma parcela considerável dos negócios e também da sociedade passasse a ser a de que juntos podemos ir mais longe, com maior chance de sobrevivência. Não é verdade, como alguns querem fazer acreditar, que a pandemia aumentou apenas o lado destrutivo. Arrisco dizer que fez crescer o lado colaborativo mais do que o destrutivo. Lídia Goldenstein Pensando no setor editorial, os donos dos grandes marketplaces estão fazendo um massacre com as livrarias de rua e com as editoras. Recentemente, a Amazon exigiu delas um preço de venda direta que era absolutamente irreal. Então, de um lado, chegam mais livros em mais lugares; cidades pequenas sem livrarias passaram a vender livros, o que é positivo porque o segmento começa a ter uma capilaridade que não tinha. De outro lado, existe uma ameaça às editoras. Como trabalhar esse dilema? Renato Meirelles É realmente um dilema, porque a pergunta anterior a essa é: era justo que o negócio editorial chegasse ao consumidor de forma tão cara, deixando milhões de pessoas sem acesso a livros de qualidade? Ou seja, o dilema ético não se dá agora, mas é anterior. Quando isso fica claro, entendemos que novas soluções precisam ser buscadas para as editoras, que têm um papel de curadoria, conteúdo e produção. Que elas consigam repensar seus modelos de negócio de forma a contemplar oferta e demanda para todos ganharem e o conhecimento de fato se democratize. Alberto Serrentino Certamente, carregaremos uma herança muito perversa nos lados humanitário e sanitário da pandemia, mas, quando olharmos em retrospectiva para o ambiente de negócios, a herança será brutal. Teremos um legado na aceleração digital

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que não é destrutivo, e sim transformador.

Renato Meirelles

Obviamente, todo processo de transformação acelerada gera perdas aos que não entendem ou não reagem de maneira adequada. Mas a grande ficha que caiu para o varejo, principalmente nos períodos de forte restrição na circulação de pessoas, é a de que não é mais o cliente que vai à loja.

Há um entendimento necessário de que as coisas estão se organizando. Exatamente pela lógica de que o oposto não é o inimigo, mas, sim, algo complementar, novos arranjos passam a ser feitos. É preciso entender essa lógica dialética, digamos assim, de enxergar uma nova composição, que é mais fluida do que antes.

Agora, a loja precisa ir até o cliente. Acabou a passividade de esperar pelo cliente, e as pessoas que se acostumaram a ser atendidas e engajadas de um jeito diferente não vão desaprender.

Ninguém quer que as editoras fechem, é óbvio que a curadoria se faz cada vez mais necessária. Mas também é óbvio que o modelo do passado não serve mais, e não era um modelo que democratizava o acesso. Dado isso, a construção dos cenários futuros depende da importância e da valorização que cada ente atribui a isso.

Então, as empresas estão mais proativas, entendendo que há múltiplas formas de conquistar, interagir, comunicar-se com as pessoas. Descobrimos que o WhatsApp é canal de venda, que as mídias sociais são canais de venda, que é possível personalizar de maneira escalável a relação com o cliente por meio do uso inteligente da tecnologia mesclada ao contato humano. Em relação ao caso específico dos livros, nós tínhamos uma cadeia de valor muito saudável baseada em margens altas, em políticas comerciais quase únicas. O livro era um negócio trabalhado praticamente em consignação. As editoras tinham margens saudáveis que permitiam cobrir boa parte do estoque do varejo, que, por sua vez, também tinha uma margem saudável, já que não havia disputa de preços. No entanto, houve duas rupturas. Quando a Amazon entrou no Brasil, ao pagar à vista, mas com desconto, ela rompeu a prática das editoras de ter margens altas em consignação. As editoras deixaram que a Amazon começasse a praticar uma política de preços agressivos, o que acabou sacrificando boa parte do varejo. Dados de 2020 mostram que as duas principais redes de varejo de livros no Brasil, a Saraiva e a Cultura, estão com enormes dificuldades, que não são consequências só da pandemia. Porém, mais livros foram vendidos em 2019. As pessoas estão lendo mais, só que comprando de um jeito diferente. Acredito que esse mercado vá se reacomodar. Estão surgindo livrarias de nicho, espaços reinterpretados, isso vai ser de alguma maneira reinventado porque as pessoas se conectam de maneira emocional com a categoria.

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Gostaria de fazer outro paralelo com essa questão. Estudamos bastante a qualidade do ensino público no Brasil, se é melhor ou pior do que anos atrás. Ou seja, em termos de conteúdo, os estudantes saem da escola sabendo mais ou menos do que antes? Se olharmos stricto sensu, eles saem sabendo menos. Mas se olharmos o número de pessoas que passaram a saber alguma coisa, temos mais alunos do que antes. A média do estudante é menor e a média do país é maior, ou seja, tem muito mais pessoas sabendo algo do que no passado, quando poucas pessoas sabiam mais. Então, o que é melhor: quantidade ou qualidade? Esse é um falso dilema. É uma ilusão achar que a democratização se dá com o mesmo nível de qualidade que havia antes. Isso não vai acontecer na mesma velocidade. E é errado se conformar com o fato de muita gente aceitar algo com menos qualidade. É um processo que precisa ser trabalhado para aumentar as novas réguas de qualidade educacional. Para mim, essa comparação se aplica ao segmento dos livros, assim como a uma série de outras indústrias e relações que estão sendo reinventadas. Nenhuma das duas situações é ideal, mas, quando enxergamos o processo, identificamos as oportunidades que surgem para deselitizar o acesso a produtos, serviços e conhecimento. Alberto Serrentino Há às vezes um medo em relação ao poder da tecnologia, mas quando bem utilizada e regulada, ela é transformadora em todas as dimensões. Na saúde, por exemplo, houve democratização, salto de qualidade e de produtividade por meio

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da telemedicina, que permite a um profissional levar conhecimento a lugares e pessoas que jamais teriam acesso a isso. O mesmo vale para a educação, com o ensino a distância ou o ensino híbrido. Assim como muitos paradigmas do mundo do varejo foram superados pela pandemia, a transformação digital na educação foi promovida pela Covid-19. Quantas discussões ideológicas foram feitas sobre ser possível ou não ter educação de qualidade remotamente? De repente, descobrimos que, quando as pessoas estão impedidas de estar em uma sala de aula, elas continuam aprendendo. Alguém pode perguntar: “É 8 ou 80?”. Não, não é. Provavelmente é uma combinação de ambos. Não tenho dúvida de que, pós-pandemia, vai se estabilizar um mix muito diferente do que seria a trajetória natural, com as resistências que teríamos pela nossa herança cultural. Então, a democratização por meio da tecnologia vale para o varejo, para o consumo, para as empresas que têm acesso mais fácil a clientes, bem como para questões como educação, saúde e, se quisermos, para a esfera pública e dos serviços. Tudo depende de como você aplica a inovação, regulamentando-a do jeito certo, sem sufocá-la, mas dando a ela os limites éticos e a capacidade para que cresça de maneira virtuosa, produzindo mais benefícios do que consequências negativas. Graça Cabral Pensando em uma pequena empresa de moda que está lutando para equacionar todas as questões impostas pela pandemia, que passos que ela deveria tomar para participar desse movimento de evolução? Alberto Serrentino Em primeiro lugar, ela precisa colocar o cliente no centro, como uma obsessão e em todos os níveis. Você captura os dados dos clientes que compram na sua loja e no seu site? Você tem um cadastro? Você o atualiza? Você o utiliza para algo? Não existe mais desculpa, porque hoje o nível de acesso à tecnologia de uma pequena empresa é equivalente ou maior do que qualquer empresa de qualquer tamanho. Tudo virou serviço, tudo virou contratável sob demanda

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e em nuvem. Não precisa mais ter muito investimento, é preciso ter muita disposição.

mais. Quando acertar, pense: como eu escalo os acertos que vão transformar o meu negócio?

Outro aspecto é a forma como se lidera e busca caminhos em um ambiente de mudanças e incertezas como o atual. Não existe mais o líder autocrático, experiente e maduro que tem todas as respostas, dá todas as direções para onde o negócio deve ir. Ninguém é tão capaz de dominar tudo sozinho. O modelo mental da colaboração, do conhecimento coletivo interno e externo, vale inclusive para o pequeno negócio. Tenho certeza de que todas as empresas, da pequena lojinha ao grande negócio, têm a energia vital dos jovens dentro de casa e a usam muito pouco.

A pandemia trouxe uma mudança de postura até mesmo na forma como as empresas enxergam a concorrência. Estou vendo coisas incríveis, empresas que sempre foram concorrentes diretas deixando de ser inimigas e começando a dialogar, a compartilhar, a atuar muito mais em conjunto. Existem dores que afetam a todos, e o fato de você aprender junto com o seu concorrente não te faz menor nem mais frágil do que ele.

Então, ao olhar para o seu negócio, primeiro, veja as dores do cliente, as suas dores e fatie os problemas em desafios menores. Reúna as pessoas, delegue e assuma riscos de experimentação. Faça pequenos testes todos os dias, que geram muitos erros, mas também aprendizados. E use a energia vital da equipe, porque certamente há jovens dentro da empresa menos contaminados e mais conectados digitalmente do que quem está liderando o negócio. Faça um processo de construção coletiva. Vá buscar referências em startups. Há pessoas dispostas a ajudar. O Sebrae, por exemplo, apoia pequenas empresas quando elas têm problemas. E também observe os marketplaces. Hoje, em 24 horas, qualquer empresa está vendendo on-line com uma logística que entrega no país inteiro e, eventualmente, até no exterior. Fiquei surpreso na primeira vez que fui para a China e nos reunimos com a equipe do Alibaba. Eles disseram: “Temos uma busca orgânica em nossos sites por Havaianas, Melissa, Natura, mas existe uma pessoa aqui vendendo cross border. É uma pequena empresa de Minas Gerais que exporta mel e própolis brasileiros direto para os consumidores chineses”. Eu nunca tinha ouvido falar nessa empresa, que é de chineses que moram no Brasil e criaram um site na China para vender para lá. O que quero dizer é que não existe mais impedimento para fazer absolutamente nada. Mesmo as lojas fechadas mostraram que é possível chegar nos clientes. É preciso abrir a cabeça, olhar para as questões sob a perspectiva de problemas menores, ter um método ágil para encará-los, usar a energia das pessoas que estão dentro da empresa, colaborar interna e externamente, não querer ter todas as respostas prontas, experimentar muito

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A pequena empresa tem mais capacidade de adaptação e de flexibilidade do que a grande, portanto não deve ter medo. Obviamente, as dificuldades são grandes – muitas vezes, a pequena empresa não tem acesso a crédito, por exemplo. O Brasil é perverso, é difícil para quem quer empreender, mas sempre foi assim, então prosperam aqueles que conseguem interpretar o cenário melhor e uma liderança capaz de transformar isso em ação.

WhatsApp: grande e novo aliado dos negócios em tempos de crise

Graça Cabral Renato, como uma empresa pequena pode participar dessa evolução das novas estruturas de mercado? Renato Meirelles Existe uma questão de fundo, que é de postura. A situação não está fácil para ninguém, muito menos para quem não tem crédito, não tem a estrutura das grandes empresas, precisa vender o almoço para comprar o jantar. Essa, infelizmente, é a realidade de muitos pequenos empreendimentos. A questão é o tipo de postura que você adota em relação a isso. É preciso voltar à boa e velha barriga no balcão, usando as ferramentas tecnológicas para entender melhor o cliente, sistematizar essas informações, criar um processo direto de venda e de relacionamento? OK. Também compreender onde podemos nos inserir para vender, ou seja, como posso estar presente nos marketplaces. Fizemos uma pesquisa que mostrou que o WhatsApp é a maior plataforma de vendas no Brasil. Quem vende no WhatsApp é a marmiteira, que manda o cardápio do dia, é a dona da loja que escreve: “Acabou de chegar essa coleção, o que você vai querer?”. São pessoas que mantêm a clientela de uma forma mais direta.

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Vamos entender que nem mesmo o Facebook sabe ainda como o WhatsApp pode ser rentável; eles tentam de uma forma, tentam de outra, mas é um negócio novo. Só que a dona Maria, o seu João, o pequeno comerciante já sabe como fazer dinheiro a partir do WhatsApp.

Alberto Serrentino

Talvez essa postura de correr atrás e aproveitar as oportunidades não seja suficiente para conseguir se posicionar no novo cenário, mas sem ela será impossível. A ideia de que a pandemia vai passar e as coisas voltarão a ser como antes é uma ilusão.

Acredito profundamente que as empresas de cultura forte são mais capazes de navegar em ambientes de mudança intensa como este, sabendo distinguir os elementos que precisam ser desafiados daqueles que precisam ser protegidos e fortalecidos.

O consumidor não desaprende. E não existiu qualquer grande mudança no cenário de negócios, no posicionamento de marcas, que não tenha se dado em processos de crise.

A cultura é o norte que mantém as pessoas seguras em um momento de incerteza e instabilidade. É o que permite a delegação, o erro e a experimentação, sabendo os limites da empresa. É o que dá a régua dos valores e princípios que norteiam as decisões.

Aquele chavão de que “crise é oportunidade” é a mais pura realidade para as empresas e para os profissionais dispostos a se reinventar. Mais do que nunca, após a pandemia, o que nos trouxe até aqui não será o que nos levará adiante.

Vou deixar um insight final. As pessoas às vezes ficam confusas em relação a esse desafio cultural, como se isso significasse zerar a cultura e romper com ela. Não é disso que se trata.

Então, o líder deve zelar pela cultura, valorizar e proteger aquilo que trouxe o negócio até onde ele está, continuar propagando e perpetuando isso dentro da empresa. Ao mesmo tempo, é preciso incentivar essa cultura a evoluir nos elementos que precisam ser desafiados, para que a empresa se movimente de maneira mais rápida e consiga capturar as mudanças.

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31.03 9h—11h convidados

Ronaldo Fraga Estilista e diretor criativo

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É possível gerar valor e cuidar do bem comum?

Miriam Rocha ACG Francine Lemos Sistema B

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A cultura do país usada a favor da vida das pessoas e dos negócios

Ronaldo Fraga durante o encontro on-line

Ronaldo Fraga

Estilista e diretor criativo

O termo Economia Criativa virou moda, e a moda, muitas vezes, tem o poder de esvaziar os conceitos. Agora, as pessoas começam a entender o que é essa economia. Em poucas palavras, é o pensar de um lugar e a aplicação do seu intangível em produtos elab rados localmente e capazes de gerar renda para as pessoas daquele lugar. Tratamos, aqui, de um vetor extremamente diverso, que é a moda enquanto reflexo e agente transformador do tempo em que estamos vivendo. O Brasil tem um longo campo para ser arado, capinado, plantado. Mas é um lugar de ótimas sementes e de terra muito fértil. Em um país mestiço como o nosso, é de se esperar, no mínimo, o que somos, um povo criativo. Nesse momento, vivemos num mundo sob escombros e cabe a nós, homens e mulheres do nosso tempo, a reinvenção desse mundo -- entender o que ficou para trás, o que envelheceu e o que efetivamente precisamos continuar plantando e estabelecer diálogo com outras frentes.

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Houve um tempo em que eu dizia que a moda estava louca para se libertar da roupa. As pessoas não entendiam – “como a moda existir sem a roupa?”. Eu me referia ao fato de a moda ser algo mais amplo. A indústria da roupa fala de roupa e pode até migrar para os países asiáticos, mas a indústria da moda vai existir em cada país, porque ela é muito mais do que o produto em si. Envolve pensar o produto e estabelecer o diálogo com outras frentes. É nesse ponto que vou me focar para falar do projeto Minha Casa em Mim, que muito me orgulha. Por meio dele, pude colocar na prática o que eu tentava comunicar e não conseguia: o caminho que a moda deveria seguir. Nosso projeto foi desenvolvido em 13 distritos da região de Mariana, Barra Longa e Ouro Preto [Minas Gerais], com as famílias atingidas direta e indiretamente pela tragédia da Samarco com o rompimento da barragem.

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A Miriam Rocha me chamou para ser o curador de algo que ultrapassou o limite do universo têxtil, do bordado, e vai para a mesa, vai para o doce, para a comida. A ideia veio ao encontro de uma realização imensa; se eu terminasse aqui a minha vida, diria “acho que vim nessa existência para poder fazer esse projeto”. O Minha Casa em Mim atingiu um sucesso econômico em curtíssimo prazo – e isso é importante, porém o que precede essa dimensão são as realizações que conseguem gerar autoestima para uma população. Só a autoestima de um grupo é capaz de transformar a realidade dele, possibilitar um novo significado para a história das pessoas. A cultura do lugar foi colocada para trabalhar a nosso favor, para gerar produtos que provocassem desejo e gerasse rendam para o lugar, numa foram de organização que partiu do pensar o produto até a venda e a entrega final. Mas primeiro fiz uma provocação, partindo da ideia de que o primeiro a enxergar valor num trabalho é quem o faz. O prato com decoupage realizado com flores pelas mulheres locais eram ok, mas os panos de prato sempre com o mesmo desenho nas barrinhas, vendidos a R$10...

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Sempre me incomodou, como mineiro, chegar com um turista em Ouro Preto ou Mariana e o artesanato à venda, quando bom, vinha de Bichinho [distrito vizinho de Tiradentes], quer dizer, com o potencial da história daquela terra. Daí, pensei: “Agora, que você está aqui, nesse projeto, você resolve essa história desses panos de prato”. Decidi então: “Vão ser panos de casa e com outros elementos: as bordadeiras vão ter de trazer o jardim da casa delas para esses panos, um ramo de alecrim, uma espada de São Jorge, um chifre-de-veado, comigo-ninguém-pode”. Quando elas receberam essa provocação, foi como se eu as tivesse empurrado de um avião em movimento e elas descobrissem que tinham asas. O meu papel foi mais esse, de agente provocador, além do olhar do designer. Já havíamos vivido uma experiência extremamente bem sucedida, com o desfile As Mudas [de 2018, no SPFW, que levou à passarela uma reflexão sobre a tragédia e peças bordadas por artesãs de Barra Longa].

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O desfile foi mais uma das ações para uma semente crescer e florescer; o resultado se deu na região de Barra Longa, que outras comunidades desejaram para si. Na região, produzia-se uma rosquinha cujo gosto variava um pouco conforme o pacote, mas era maravilhosa.

Seremos libertos pela cultura, pontes serão construídas sobre esse abismo gigante por meio da cultura do país, e é hora de colocar isso para transformar a nosso favor.

Seremos libertos pela cultura, pontes serão construídas sobre esse abismo gigante por meio da cultura do país Então, trabalhamos para essa rosquinha provocar desejo: desenvolvemos uma ficha técnica para a receita, e eu entrei, criando uma história, uma mentirinha: as rosquinhas, não se sabe como, foram parar no Palácio de Buckingham e viraram as prediletas da rainha, saídas de Gesteira [Distrito de Barra Longa].

Rosquinhas da Rainha: produto da cultura local ganhou valor com história e design criados por Ronaldo Fraga

A marca foi lindamente desenhada com a imagem da Rainha Elizabeth. Assim, com muito humor, seja com a rosquinha ou com o canudinho de doce de leite, o objetivo é trazer o ingrediente fundamental: a cultura do lugar.

A Casa em Mim: projeto de Economia Criativa em favor das vítimas da tragédia de Mariana Miriam Rocha

Presidente da Associação de Cultura Gerais

Quando a Fundação Renova [responsável por reparar os danos da tragédia provocada pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, MG, em 2015] nos chamou para escrever a metodologia no atendimento das vítimas de Mariana e Barra Longa, primeiro município atingido diretamente pela lama, o único caminho que eu enxergava era a produção associada e as novas economias, entendendo a Fluxonomia 4D [conjunto de metodologias e ferramentas que combina a criação de futuros e aplicação de novas economias] como um resultado efetivo. Para desenvolver esse trabalho, pensava apenas no Ronaldo. Ao chegar em Barra Longa pela primeira vez, ele falou: “Por onde passou essa lama, haverá de nascerem folhas e flores”. Isso foi muito impactante para as Meninas de Barra Longa [nome do grupo de bordadeiras da região], que participaram da ação As Mudas [desfile de 2018, apresentado no SPFW], que se deu por uma linda passarela coberta de lama, ao lado de Marília Gabriela.

Ali nasceu a coleção Meninas da Barra e o resgate da autoestima de Barra Longa. É importante frisar que o projeto Minha Casa em Mim foi realizado durante a pandemia. No dia em que o país entrou em quarentena, liguei para o Ronaldo: “O que vamos fazer? Paramos ou continuamos?”. Ele respondeu: “Nós vamos continuar”. E foi assim que pessoas de 37 a 89 anos de idade aprenderam a usar a internet, a baixar e interagir no Zoom, a entrar nos esquemas de Facebook, Instagram e assistir aulas on-line. Como a boa mestra sempre me falou, Santo de casa é o que faz milagre. Faz milagre a partir do momento em que diz para as pessoas que elas sabem fazer. O Ronaldo, eu e a nossa equipe de consultores partimos para descobrir o saber daquele lugar. E escutar da bordadeira que a camisolinha que a avó bordou “deve estar lá no Espírito Santo”, ao que o Ronaldo responde: “Vamos bordar a camisolinha de novo e vamos trazer aquele

Detalhe do desfile As Mudas, em que Ronaldo Fraga levou ao SPFW o tema do maior desastre ambiental do país, o rompimento da barragem do Fundão, em Mariana

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Melhores empresas para o mundo, não necessariamente as melhores do mundo Francine Lemos

Artesãs atingidas direta ou indiretamente pela barragem da Samarco em Mariana reunidas com Fraga no projeto Minha Casa em Mim

Diretora executiva do Sistema B Brasil

bordado da camisolinha”. Essa foi a grande sacada, identificar e trazer o olhar deles para a construção.

metodologia, procuramos formar uma grande teia de aranha, o que o Ronaldo chama “o grande celebrar”, a comunicação entre as comunidades.

Na sua linguagem de aproximação, ele apresenta o “fazer com o outro”, a economia compartilhada

Na sua linguagem de aproximação, ele apresenta o “fazer com o outro”, a economia compartilhada: juntamos dois grupos, de forma que um tenha um resultado coletivo do outro. Não queremos que um grupo faça sozinho.

Fizemos vários encontros e reuniões com a comunidade. Como nem todas as pessoas eram associadas, mostramos a necessidade de ter um CNPJ, de formar um coletivo e dialogar, conversar. Mas alguns distritos, como Padre Viegas e Gesteira, foram atingidos pela lama, ficaram ilhados, sem internet. Como colocar isso em prática?

Ampliamos a discussão com a designer têxtil Ana Vaz; com o Babá Santana, que estava na Paraíba e apresentou a papietagem. O designer Marcelo Maia fez uma oficina de bambu on-line para atender um distrito de Padre Viegas, que mal tem internet. Foi muito impressionante. Acho que depois da coleção Minha Casa em Mim, Mariana nunca mais será a mesma, porque as pessoas entenderam o conceito de ser coletivo, de ressignificar e valorizar o que elas fazem. Não vai ser mais só pano de prato, vai ser o pano de prato.

Era uma conquista difícil. Se os grupos não se integrassem, não circulassem entre si, não haveria conexão e trocas. Dentro da nossa

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Passamos nesse momento por uma das maiores mudanças históricas e culturais no mundo dos negócios já vividas. E o que isso significa? O Sistema B é uma rede global que nasceu com o B Lab, nosso parceiro nos Estados Unidos. Estamos em mais de 70 países e existem quase 4 mil empresas B certificadas no mundo todo. Nossa visão é apoiar a criação de um sistema econômico mais inclusivo, equitativo e regenerativo para as pessoas e o planeta. Já estamos, portanto, falando em regeneração, de gerar, sair do mindset, ou seja, minimizar o que eu faço de ruim e regenerar, gerar impacto positivo, melhorar a vida das pessoas. Essa é a visão do futuro e acho que a Economia Criativa tem um papel fundamental de ajudar a transição para esse futuro que queremos. As pessoas antenadas estão entendendo muito bem o que está acontecendo na sociedade.

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Temos um senso de urgência, precisamos fazer essa mudança acontecer e rápido. A crise só revelou uma situação que é antiga e muito estruturante. Estamos vivendo uma crise climática – não dá mais para falar em mudança, é crise. Há pouca probabilidade de se atingir o acordo de Paris, e meio grau faz muita diferença na vida das pessoas e do planeta. Além disso, é impressionante a escalada de desigualdade. Segundo os últimos dados de Oxford, 1% das pessoas do planeta detem metade da riqueza de todo o mundo. A questão de gênero no Brasil é gritante; sobre a questão de raça, eu não posso nem falar. Então, no momento atual, precisamos nos responsabilizar e apoiar a transição para uma nova economia. Várias mudanças estão ocorrendo e já há algum tempo. Em 2019, houve várias movimentações nos Estados Unidos, como a do grupo de grandes empresas norte-americanas Business Roundtable, que trouxe a relevância de atuar

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com um propósito. Com a crise, esse movimento se acelerou, e é isso é bom.

concretos de redução de desigualdade. Poucas se voltam para tais questões.

Mas precisamos pensar de uma maneira sistêmica. O que significa ser uma empresa pertinente, relevante no século XXI? E isso é uma questão de sobrevivência das organizações que querem ser perenes para a geração que está por vir.

Como a empresa distribui seu lucro no final? Como capacita seus funcionários? E como é seu olhar para a comunidade? O projeto Minha Casa em Mim cuida de todo o seu entorno, tem um resgate da comunidade. Uma grande empresa, por exemplo, precisa cuidar da sua cadeia de fornecimento. Ela tem de se responsabilizar pela comunidade que gira em torno.

Com o mesmo rigor que olhamos para o setor financeiro, devemos mensurar o impacto do que fazemos, seja positivo ou negativo, social e ambiental Falamos de três elementos principais. Primeiro, o propósito de impactar positivamente por meio do que a empresa faz, de seu produto e serviço. O mundo do ESG [sigla em inglês para Environmental, Social and Corporate Governance, ou Governança Ambiental, Social e Corporativa], dos investidores, vem falando muito sobre intencionalidade. Quando estou incubando, trazendo uma nova ideia, preciso pensar como resolver, de fato, um problema da sociedade por meio do que eu faço.

O mesmo se aplica aos aspectos ambientais – que tipo de material está sendo utilizado? Como usa os recursos naturais? É uma empresa carbono neutro? Tem noção da sua pegada? E, por fim, o seu produto e serviço. É difícil pensar em tudo isso, mas é importante.

Ferramenta para medir impacto socioambiental de empresas

Costumamos dizer que as empresas B certificadas são as melhores empresas para o mundo, e não necessariamente as melhores empresas do mundo.

Lucro e propósito, sim, são conciliáveis e importantes. Posso dar alguns exemplos de empresas B certificadas no universo da moda.

O impacto nunca entrou tanto na pauta do mercado financeiro e de capitais quanto agora. Também precisamos da academia, criando cases, mostrando que isso é possível, é rentável e traz benefício

A segunda grande questão é a responsabilidade vinculada com acionistas, com o conselho de administração, com instrumentos concretos. Tenho dúvidas: se isso estivesse presente em Mariana, teria ocorrido o desastre? Não podemos garantir, mas a localidade que vocês escolheram para realizar o projeto diz muito sobre o futuro das empresas e que tipo de empresa precisamos ter no mundo.

A Flavia Aranha tem um cuidado que parte desde o desenvolvimento do produto e da origem dos insumos e sua forma de utilização – as tintas, as matérias-primas orgânicas, com uma mão de obra 100% brasileira – até o reuso, ou seja, como esse produto volta.

O terceiro elemento é ter transparência. Com o mesmo rigor que olhamos para o setor financeiro, devemos mensurar o impacto do que fazemos, seja positivo ou negativo, social e ambiental.

Sabemos que a indústria da moda — vou até me corrigir, de roupas — é altamente poluente. Desde produtos químicos e uso intensivo de água, olha muito pouco para a circularidade, para onde vai. Hoje, nos aterros, a roupa é um dos principais itens encontrados. Enfim, essa indústria tem muito para se desenvolver e repensar.

Quando falamos do Sistema B, apoiamos as empresas a pensar em ter melhores produtos e serviços, que tenham um impacto positivo no mundo, mas esse não é o único elemento. Elas devem cuidar da sua governança. Como é o relacionamento com seus colaboradores, por exemplo? As empresas têm instrumentos muito

A Básico é outra empresa que também está atenta para a cadeia de orgânicos. A Empty Clothing, que acabou de se certificar, valoriza artistas pretos da periferia.

As empresas B, para mim, são os líderes do futuro, que estão construindo, inovando e trazendo toda essa tecnologia; voltados não só para o seu lucro, mas para todos os seus públicos — do fornecedor ao consumidor. Essa mudança não vai se dar apenas por um empresário bem-intencionado. Precisamos de um conjunto de elementos para uma economia fazer sentido e beneficiar a todos. Isso passa por políticas públicas, ou seja, temos que cobrar e pedir medidas que incentivem e valorizem esse tipo de economia. Precisamos do setor financeiro e de mais Marcos Gorinis [empreendedor e investidor social], que consideram tanto o risco quanto o retorno e o impacto. O impacto nunca entrou tanto na pauta do mercado financeiro e de capitais quanto agora. Também precisamos da academia, criando cases, mostrando que isso é possível, é rentável e traz benefício. Apresentar os cases para o maior número possível de pessoas gera mais consciência por parte do consumo. Cada consumo, também, é um voto, é um ato político. Quando o consumidor opta por comprar um produto como este, do projeto de Mariana, ou de uma empresa B, está contribuindo para criarmos uma economia muito mais justa, equitativa e igualitária para todos. Em síntese, é isso que olhamos dentro do Sistema B. Não é simples, o empreendedor precisa se voltar para muitos aspectos, mas assumir essa responsabilidade é necessária para a nossa inserção no século XXI.

Site do Sistema B, que oferece diversas ferramentas para colaborar com uma mudança de cultura no mundo dos negócios

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mais + dos convidados Convidados do painel É possível gerar valor e cuidar do bem comum?

Lídia Goldenstein Vendo o trabalho maravilhoso que o Ronaldo e a Miriam desenvolveram, vou inverter a questão que geralmente se faz – como o pequeno e médio podem se inspirar no grande para que mudanças e transformações vinguem? E pergunto a vocês: como os grandes podem se inspirar nesse tipo de valoração do trabalho em conjunto, da valoração do intangível e da cultura da terra para os seus negócios? Francine Lemos Hoje, 80% da rede B é composta de pequenas empresas, por pessoas como a Miriam Rocha e o Ronaldo Fraga, que estão criando o futuro, têm uma paixão, uma vocação e acreditam nessa nova economia. Também verificamos uma busca impressionante de empresas grandes por essa nova mentalidade – seja por necessidade de adaptação, sobrevivência ou porque o capital está apontando para essa nova direção. A partir da pandemia, o número de companhias de grande porte que buscaram certificação aumentou em 50%. A fonte de inspiração está nas iniciativas pequenas. Vejam a estratégia da Unilever de comprar empresas B: a Mãe Terra e a Ben & Jerry’s, que são menores, mas ao entrar no DNA da grande

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mudam e chacoalham toda aquela estrutura interna. Acho, portanto, que mais e mais as grandes empresas podem e devem se inspirar nesses modelos de negócio. E, principalmente, no mindset de startup, porque, se elas não criarem essa agilidade, desculpe, não estarão aqui amanhã.

por quem? E em que condições? Isso vai cada vez mais valorar o produto final. E, queiramos ou não, o Brasil pode estar na periferia do mundo, nessa atual confusão econômica, sanitária e política, mas a mudança vai acontecer e, então, os grandes que se ligaram a isso vão estar com o carimbo do século XXI.

Haverá uma mudança de geração muito significativa. Se a minha geração tinha o celular com poder de derrubar uma empresa da noite para o dia, por meio de reputação, a nova geração está entendendo que o seu principal poder é o seu hábito de compra — e não só de compra, de consumo, mas também de investimento.

Lala Deheinzelin

Está havendo uma mudança significativa de geração de capital, com trilhões sendo herdados. E esses novos herdeiros é que vão investir no futuro. Sabemos que se trata de uma geração muito inquieta, que não vai tolerar – eu espero – uma empresa que não seja sustentável. Por isso essa aceleração e por isso essa corrida, porque é uma forte questão de sobrevivência dessas grandes empresas.

Ronaldo Fraga

Ronaldo Fraga Quando você me pergunta onde essas iniciativas dos pequenos vão influenciar os grandes, acho que é justamente na questão da procedência, quando há gente por trás daquilo que está sendo produzido – o seu produto vem de onde? É feito

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Ronaldo, você é um criador de cultura, é um criador de lentes. O que a gente pode fazer para mudar as lentes e conseguir reunir os dois mundos, o dos projetos e pequenos negócios ao dos investidores?

Setores como a inteligência, a execução, a gestão, a venda são importantes, são pernas de uma mesa, e não podemos ter nenhuma delas podre. A inteligência foi muito deixada de lado. Hoje, o mundo não precisa de 10 produtos dos 20 que ele produz. Se parássemos de produzir sapato e roupa agora, teríamos esses itens por muito tempo. Acredito que as coisas vão ter que ultrapassar o limite da própria tangibilidade, comunicar e trazer outras coisas.

veste, o que ostenta e consome, com quem ele anda. É aquela velha história do “me diga com quem tu andas que eu direi quem tu és”. O nosso papel, como compromisso civil, deveria ser de pontes nesse abismo gigante, do Brasil rural, do Brasil urbano, do Brasil feito à mão, do Brasil da indústria. Aí, sim, vamos fortalecer um país. Em relação à indústria, que ela seja fortalecida, com uma identidade. Nosso produto mais bem resolvido é a música, que é algo intangível, até nesse sentido. Mas, em termos de produto propriamente dito, ainda temos um longo caminho para trilhar e é o que já estamos fazendo. Essa nossa discussão, o próprio trabalho do IN-MOD, que é de extrema importância para fomentar, provocar e plantar essas sementes em todo o território brasileiro. Não me interessam mais os projetos com soluções simplesmente locais. Mas aqueles que, com o olhar local, tenham abrangência. E não me refiro apenas a colocar desejos no produto, mas realizações que podem ser facilmente aplicados de forma global. A mudança, para mim, está neste lugar.

O novo consumidor que descobriu o seu poder de compra, também está descobrindo que o seu corpo é a mídia mais importante – o que ele

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Lala Deheinzelin Nesse momento, estamos precisando de nortes e bússolas. Qual seria a recomendação final que vocês dariam para atravessarmos a maior transição da história que estamos vivendo e chegarmos a um bom porto? Miriam Rocha Gostaria de encerrar a partir do tema desse encontro – Gerar valor e cuidar do bem comum –, pois é exatamente isso que fizemos no processo Minha Casa em Mim. Geramos valor para três territórios. Geramos valor para 13 grupos, que se tornaram associativos e/ou coletivos. Geramos valor aos produtos e tudo isso visando o bem comum, por meio de mentes criativas, usando as novas economias. Ronaldo Fraga Não dá para estruturar ou pensar no macro sem um cuidado com o micro. O grande problema do Brasil foi sempre o desejo de ser o macro, mas construindo sobre pernas podres. Então, se a nossa indústria está nos anos 50, estão tentando jogá-la para os anos 20. Ou seja, nada está tão ruim que não possa piorar.

que resultou dele, não estávamos vendendo prato, pano de casa ou luminária. Vendemos junto uma região inteira e transformando a vida daquelas pessoas. Então, desejamos, sim, que isso vá para a indústria, que ela produza e possa também ser parceira desses pequenos. Mas isso só vai acontecer quando nos libertarmos do espírito escravocrata. A escravidão terminou ontem à tarde. Então, temos muito, mas muito terreno para capinar neste século. Atrasamos a entrega do dever de casa, então vai ser preciso ter agilidade. Francine Lemos A crise tem sido muito difícil para todos e todas. Por outro lado, também é um momento de reconexão. É muito importante olharmos para dentro de nós e questionarmos o que é valor, que tipo de sociedade queremos deixar, que tipo de sociedade queremos para a nossa vida. Esse momento de reflexão individual é muito importante para termos uma mudança maior no coletivo. Sempre noto que uma empresa B começa de uma pessoa inquieta. Então, minha dica é: vamos ser inquietos e vamos juntos pensar no que, individualmente, podemos fazer, seja no papel de consumidor, seja no papel de investidor, de empreendedor, de cidadão. Acho que o mundo está precisando de gente inquieta.

Peças bordadas pelos grupos de artesãs Minha Casa em Mim, à venda no site do projeto

Retomando o Minha Casa em Mim e a coleção

Final do desfle As Mudas, de Fraga, no SPFW

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Marcelo Maia, Ana Vaz, Miriam Rocha e Ronaldo Fraga no lançamento do Minha Casa em Mim

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31.03 11h—13h convidados

Cesar Paz Ecosys e POA Inquieta Sergio Marcondes Blend Lab e Instituto Dialog

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ESG está na moda?

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Caminho de construção coletiva e alinhada com os valores das novas gerações

Cesar Paz durante o encontro on-line

Cesar Paz

Fundador da Ecosys e articulador do movimento Porto Alegre Inquieta

No momento atual, as organizações estão se reinventando dentro deste mundo que é cada vez mais conectado, mais global, mais informacional, mais em rede. Ao mesmo tempo, ele é cada vez mais desigual. Hoje, enquanto discutimos inovações e soluções de tecnologia, milhões de crianças no Brasil estão sem aula, milhões de pessoas têm necessidades básicas não satisfeitas. Este cenário requer de todos nós posições em relação a propósitos e visões de mundo. A construção do que imaginamos ser uma sociedade em paz e com justiça exige atenção às demandas sociais e ambientais e aos valores que queremos trabalhar nesta visão de futuro. Estas são as grandes questões que nos movem como organizações em um ambiente de inovação. Quando discutimos Economia Criativa e ESG [sigla em inglês para Environmental, Social and Corporate Governance, ou Governança Ambiental, Social e Corporativa], conceito relativamente novo e cada vez mais em pauta nas discussões sobre futuro, propomos uma reflexão mais profunda sobre o papel das

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empresas. Para tanto, abordarei essa discussão a partir de três perspectivas. Minha visão individual, a experiência do que venho fazendo em Porto Alegre, é a primeira delas. A segunda refere-se à evolução dos modelos mentais e econômicos, e a última foca o contexto da pandemia, que nos traz reflexões mais específicas. Minha formação é em engenharia, mas não sou engenheiro de vocação. Sempre tive uma atitude empreendedora, que me levou para o universo digital em meados dos anos 1990, quando a construção da Internet promoveu uma inversão de paradigmas muito forte na tecnologia. A partir da percepção sobre o impacto das mudanças tecnológicas no comportamento e nos modelos de negócios, entro de cabeça na ideia de transformar o mundo a partir do universo de comunicação digital e me aproximo dessa visão de construção de modelos organizacionais, da importância do pensamento criativo e do quanto ele nos movimenta a favor de transformações mais definitivas.

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A partir disso, crio uma agência nativa digital, que se torna uma marca importante, sempre trabalhando na contracultura dos modelos clássicos da propaganda e acaba sendo adquirida por um grande player da comunicação global em 2010. Isso faz com que, ao terminar esse ciclo como empreendedor, depois de muito tempo fora de Porto Alegre, eu volte para essa cidade e comece a construir algo ligado à visão ecossistêmica, que valoriza esse pensamento menos linear — ou, falando de forma mais objetiva, o pensamento criativo. Monto então a Ecosys, um ecossistema de empresas independentes, que hoje chamamos de adtechs ou martechs. Com sociedades completamente independentes, acabo sendo sócio de vários empreendedores de uma nova geração, todos bem mais jovens do que eu. Essas empresas conectam-se entre si na medida da necessidade e da oportunidade, construindo uma morfologia muito específica, o que faz com que isso se caracterize como um ecossistema criativo, com dinâmicas completamente alheias

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aos modelos hierárquicos e uma capacidade de gerar um fluxo criativo, de conhecimento e de experiência. A partir daí, começo a entender que essa construção ecossistêmica entre empresas precisava, de alguma forma, se relacionar com a cidade e que esta também pensasse em Economia Criativa de uma forma estruturada. Então, nasce um coletivo, organizado fundamentalmente para discutir e articular todas as iniciativas e movimentos de Economia Criativa existentes em Porto Alegre, de forma a construir uma transformação de território preocupado com as dificuldades e mazelas locais. Dessa forma, nós nos conectamos muito fortemente com projetos que têm como base as questões de inclusão, diversidade e sustentabilidade. Isso foi se construindo a partir de projetos do Porto Alegre Inquieta e forma esse coletivo que integra, hoje, mais de 3 mil pessoas conectadas e organizadas em grupos temáticos.

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Essas pessoas se utilizam muito da experiência que tivemos ao estudar a transformação de Medellín, na Colômbia. Fizemos três missões ao país para entender como Medellín saiu da condição de cidade mais perigosa do mundo para, em menos de vinte anos, se transformar numa das metrópoles mais criativas do mundo — e com uma preocupação muito grande de utilizar tecnologias sociais que favorecessem essas conexões, que construíssem essa relação no campo do afeto e da confiança. As rodas de conversa, que foram muito utilizadas em Medellín, integraram a nossa prática no dia a dia. Ao longo desses últimos anos, fizemos mais de 500 rodas de conversa, dialogando, realmente, com a cidade e com todas as expressões dessa cidade. A partir da articulação com o POA Inquieta, sentimos a necessidade de trazer o movimento para dentro de uma visão mais institucionalizada: fazer conexões com o poder público, com a universidade e outras expressões da sociedade civil organizada. Há dois anos, começou a ser construído o que chamamos de Pacto Alegre, em que conectamos todas as forças da cidade, representadas por diferentes setores, tentando trazer uma visão que fosse a mais ampla, participativa e democrática possível.

Através do Porto Alegre Inquieta e do Pacto Alegre, passamos a articular recursos para produzir transformação local e desenvolver esse grande ecossistema de inovação, que é um caminho de construção lenta, mas completamente possível, de transformação de território. Um movimento muito inspirado, reforço, nesta visão de transformação encontrada no Sul global, na cidade de Medellín, que foi nossa grande referência. Expresso aqui de forma reduzida uma construção coletiva relativamente complexa, que se constitui como um modelo também de inovação social, de inovação organizacional. Inicia-se num negócio, multiplica-se em vários, conecta-se com uma dimensão social da cidade, articula-se num polo, que é um ecossistema de inovação e de transformação, e então tem a pretensão de contribuir de forma objetiva com uma transformação nas próximas décadas dessa cidade.

Nas empresas, a cada profissional que se aposenta, entra um funcionário novo com uma consciência socioambiental muito maior A partir dessa primeira perspectiva, da experiência individual, abordo o segundo assunto, que dialoga um pouco com a ideia da evolução dos modelos mentais e dos modelos econômicos. Penso que, em tempos de complexidade e de incertezas, quando não realizamos uma discussão mais aberta e sistêmica e optamos, como muitos vêm fazendo, pela linearidade do pensamento associado à negação da evolução do mundo e do conhecimento, seguimos um caminho para o isolamento. Encontramos essa linha de pensamento com frequência quando debatemos a necessidade de transformar o conceito usual de capitalismo, que contém, em uma das suas principais dimensões, o papel da empresa.

Desafios do Pacto Alegre, movimento voltado para projetos de transformação da cidade em polo de inovação e atração de investimentos

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Nesse momento, nós nos deparamos com pen-

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samentos mais conservadores que encontram no artigo referencial de Milton Friedman, de 1970, a ideia de que a responsabilidade social das empresas é aumentar seus lucros e o resto é consequência. Uma enorme parte dos empresários e empreendedores, especialmente da velha economia, acredita fortemente nisso – como se aquele artigo, escrito há mais de 50 anos, ainda tivesse validade no contexto atual da nossa realidade. Muitos seguem essa cartilha e caminham para uma visão de isolamento. Importante entender que, na prática, as relações são circulares. O conceito transforma o ambiente, o ambiente se ressignifica e transforma o conceito. E as organizações evoluem e inovam, até mesmo para sobreviver dentro dessa sociedade em rede. Junto a isso, há uma questão geracional. Nas empresas, a cada profissional que se aposenta, entra um funcionário novo com uma consciência socioambiental muito maior. Na minha juventude, nós jogávamos papel no chão da rua; fazíamos coisas que nos envergonham hoje. Faço um exercício com os meus alunos para que eles pensem o que fazem hoje e que vai causar vergonha a eles daqui a vinte anos; e saem coisas incríveis. Então, precisamos dessa evolução do pensamento. A evolução do modelo mental caminha com a evolução dos modelos econômicos. Por isso, todos os meus negócios são com pessoas muito mais jovens do que eu, porque eu preciso do modelo mental delas. Não adianta o meu padrão mental pautar esses negócios, eu não posso estragar esses negócios, querendo ser o principal executivo. O máximo que posso ser é um mentor, um orquestrador desses novos modelos. Existe uma necessidade de entendermos que essas transformações acontecem dentro dos modelos mentais, que influenciam os modelos econômicos, que vão revisar toda a visão e o conceito. Dessa forma, a visão de construção de empresas que propõem causar impacto positivo e se comprometem com o ambiental e o social, dentro de modelos de governanças absolutamente transparentes, está alinhada com os valores contemporâneos dessas gerações, que vão, no processo civilizatório, se refinando.

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Fonte: © Shutterstock

Não é para mostrar que fazemos filantropia ou que estamos apenas colocando um selinho. Essa certificação nos traz negócios Elas pautam essas novas economias, como a Economia Criativa, mas poderíamos abordar também a colaborativa ou a economia da experiência. A partir disso, surgem movimentos que começam a ganhar força quando saem de uma visão de iniciativas isoladas e disruptivas e se conectam em rede. É o caso do Imperative 21, nos Estados Unidos, e das operações do Sistema B, no Brasil. A produtora de conteúdo audiovisual Eixo, primeira das nossas empresas independentes desse ecossistema, é certificada dentro do Sistema B. Buscamos essa certificação voltada para as empresas que apresentam impacto positivo em dezenas de dimensões Quando há, nesse ecossistema, um esforço como o que fazemos para certificar todas as empresas no Sistema B, entende-se que isso não é um custo. Não é para mostrar que fazemos filantropia ou que estamos apenas colocando

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um selinho. Essa certificação nos traz negócios. As empresas que estão hoje no Sistema B conectam-se e querem fazer negócios entre si. A maior delas na América Latina é a Natura. Recentemente, a Danone também foi certificada. Então, é nessas empresas que normalmente se encontram conexões, construções em rede e fluxos de negócios criativos de conhecimentos e de experiências.

A pandemia do novo coronavírus é apenas uma entre inúmeras catástrofes ambientais, sociais e sanitárias das últimas décadas que têm origem nessas falsas teorias.

Por fim, a terceira perspectiva, que parte deste momento atual de pandemia e que nos leva também a reflexões profundas. Só estamos atravessando este momento, e eu acredito muito nisso, devido a algumas falsas teorias de desenvolvimento.

O ESG não está de passagem, mas em evolução num processo longo e estruturado Sergio Marcondes

Vice-presidente do Instituto Dialog e fundador do BlendLab

Empresa B: certificação é conferida a empresas que respondem por impacto positivo em dezenas de dimensões

Nessa lista, focando apenas na dimensão ambiental, temos Chernobyl, Exxon Valdez, no Brasil, Vila Socó e, mais recentemente, Mariana e Brumadinho. São todas grandes consequências destas visões das teorias de desenvolvimento que focam apenas os indicadores econômicos. Só se fala em PIB, IPCA, dólar, a Bolsa de Valores está todo os dias na televisão, mas nunca há um indicador humano associado. Pensar sobre essa visão de uma sociedade em que as pessoas são mais felizes e têm liberdade e consciência humana, implica realmente rever essas visões acerca do que é desenvolvimento. Os assuntos se conectam: não podemos discutir a construção de um projeto de desenvolvimento sem falar, ao mesmo tempo, em Economia Criativa.

hierárquicas. Lembro aqui o que Albert Einstein dizia: “Insanidade é fazer a mesma coisa repetidamente e esperar resultados diferentes”. Quando falamos sobre modelos organizacionais, temos de garantir espaço para o pensamento criativo ao mesmo tempo em que nos comprometemos com as questões ambientais e sociais e buscamos as melhores práticas de governança, para efetivamente fazermos uma construção de sociedade da qual nos orgulharemos no futuro. Uma sociedade que possamos deixar, especialmente para os nossos filhos e netos, como algo melhor. E isso depende muito de discussões, parte sempre de um processo de reflexão profunda e, depois, de práticas, como as que nós temos buscado aqui, em Porto Alegre.

Temos, portanto, de construir uma sociedade que tenha uma visão de futuro muito diferente daquela do século passado, que foi um século de construções extremamente

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Gostaria de começar frisando a pergunta propositiva do painel: o ESG [sigla em inglês para Environmental, Social and Corporate Governance, ou Governança Ambiental, Social e Corporativa] é uma moda que vai passar? Existe a ideia de que termos vão surgindo e se acumulando, enquanto deixamos de ouvir outros conceitos e tendemos a supor que eles perderam a importância. Então, começo respondendo categoricamente a essa pergunta: o ESG não é uma moda e não passará. Digo isso com toda a segurança. Pode até mudar de nome, como já aconteceu outras vezes. De certa forma, é natural que surjam novas nomenclaturas. Mas, quando analisamos a história e entendemos qual foi o caminho trilhado por esse movimento para chegar até aqui, fica fácil perceber que ele não é passageiro. Não há nada de novo no olhar das empresas sobre os seus impactos e as formas como elas se relacionam com o meio ambiente, com a sociedade, com as comunidades ou mesmo com a sua governança. Há registros na literatura a

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respeito do tema desde o início do século XX, com muito mais intensidade a partir dos anos 1960 e 1970. A primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano foi realizada em 1972, em Estocolmo, na Suécia, momento em que se discutiu com mais profundidade a relação das atividades produtivas com o meio ambiente, ou seja, a maneira como as estruturas produtivas criadas pelos seres humanos – indústrias, fábricas, logística etc. – geravam impacto no meio ambiente. Portanto, desde os anos 1960 essa é uma discussão viva, presente na ciência, na academia e nas articulações institucionais e multissetoriais. De lá para cá, essa história evoluiu muito. Passamos pela Conferência Eco-92, ou Rio92, que aconteceu no Brasil e provocou a necessidade de acordos mais firmes entre as diferentes partes, como empresas e governos. Mais tarde, o protocolo de Quioto, discutido em 1997 e em vigor desde 2005, foi uma primeira tentativa de estabelecer compromissos em

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torno da redução dos impactos. Ou seja, pensar como podemos trabalhar melhor as emissões, o gasto de energia, etc. Desde então, essa discussão ganhou um corpo enorme, seja na esfera do multilateralismo e das relações entre as nações, seja dentro das empresas.

e ambiental das empresas enquanto critério para a alocação de capital de investimento. No entanto, nesse movimento mais recente sob o guarda-chuva da nomenclatura do ESG, é inegável a ampliação da escala, e acredito que isso, sim, é uma novidade.

Fazendo uma brincadeira a respeito das diferentes nomenclaturas, por algum motivo parece haver no universo das empresas uma necessidade de reciclá-las ao longo do tempo. De certa forma, isso é até saudável, porque gera certo senso de novidade.

Se observarmos dados recentes, a Organização das Nações Unidas propôs em 2006 os Princípios para o Investimento Responsável (PRI, na sigla em inglês). Naquele momento, 63 empresas de investimento que eram provedoras de serviços, proprietárias e gestoras de ativos foram signatárias do PRI. Juntas, elas tinham 6,5 trilhões de dólares em ativos sob gestão. Doze anos depois, em abril de 2018, quando o PRI publicou um novo relatório, esse número havia passado para 1.715 empresas, que geriam 81 trilhões de dólares em ativos nas suas estruturas.

Passamos pela responsabilidade social, pela filantropia, momento em que as empresas entenderam que precisavam contribuir, ou seja, dividir um pouco da riqueza que produziam com a sociedade por meio de programas estruturados de suporte social, ambiental etc. Depois, veio a onda da sustentabilidade, termo que, na minha opinião, foi um pouco castigado. É uma ideia bonita de que aquilo que se faz hoje tem efeitos no médio e longo prazo, e que, no caso das empresas, é preciso atuar no presente para preservar a capacidade de continuarem vivas e atuantes em 50, 100, 200 anos. Agora, temos esse novo guarda-chuva temático, conceitual e técnico do ESG. Qual a “novidade” – entre algumas aspas – aqui? É a tomada desse assunto pelo mercado de capitais. Mas não só isso, porque o mundo dos investimentos e do mercado de capitais já havia criado os índices de sustentabilidade nas Bolsas de Valores, como o Dow Jones Sustainability Index, lançado em 1999, ou o Índice de Sustentabilidade Empresarial, no Brasil, que é de 2005. Logo, há mais de 15 anos o mercado de capitais fala sobre isso, observa o comportamento social

Então, de fato, percebe-se que isso não é uma brincadeira. Estamos falando de quem faz o mundo girar, quem decide em quais indústrias se investe para crescer, quais empresas estão aptas a receber volumes significativos de investimento.

Sergio Marcondes durante o encontro on-line

Esses grandes tomadores de decisão têm cada vez mais adotado tais questões como critérios para a alocação de capital. A estimativa atual é que mais da metade das empresas de investimento, dos proprietários e gestores de ativos incorporou ativamente parâmetros, práticas e procedimentos de ESG na sua tomada de decisão.

Mais do que nunca, esse debate faz parte, em altíssimo grau, do dia a dia de qualquer empresa, independentemente do seu porte — seja pelo lado da consciência, da evolução do processo acadêmico e do entendimento sobre os impactos sociais e ambientais corporativos, seja pela pressão do tomador de decisão de investimento.

É uma referência de comunicação simples, direta e inteligível para que os stakeholders compreendam as informações. A Puma, da qual a Kering era acionista, também tem um trabalho extraordinário de mensuração. A Patagonia é outro caso conhecidíssimo, inclusive de criação de cultura interna, estabelecimento de compromissos e mensuração de impacto.

Hoje, o mercado global de capitais detém 350 trilhões de dólares em ativos sob gestão. Isso significa que pelo menos metade desses recursos considera aspectos ambientais, sociais e de governança para a sua aplicação.

Por isso, respondo com tranquilidade que esse movimento não é passageiro, porque o cenário já é esse há muito tempo e está em evolução. Ou seja, essa nova nomenclatura não surgiu agora, e sim é mais um passo em um processo longo e estruturado.

O que essas empresas estão falando? Como o guarda-chuva do ESG faz parte do dia a dia delas? Quando observamos as questões ambientais, principalmente na indústria da moda, há vários temas bastante sensíveis. Um deles é o uso da terra. Essa é uma indústria que adquire insumos agrícolas, como algodão e fibras, e isso está diretamente vinculado ao uso da terra, que envolve preservação de florestas, produção de alimento, monocultura.

Dito isso, precisamos entender o que significa na prática. “Já entendi que veio para ficar, que tem a ver comigo de alguma forma, que eu não tenho como escapar. E aí? O que eu faço?” Há casos muito interessantes na indústria da moda – não só interessantes, mas também reconhecidos internacionalmente como bons exemplos, sob diversos ângulos de observação. Do ponto de vista da mensuração e relatoria dos impactos, a Kering Holding controladora de marcas de luxo como Gucci e Balenciaga, tem um trabalho brilhante que é reconhecido internacionalmente como um benchmark.

O próprio cultivo desses insumos é um assunto: de que forma são feitos, como é a mão de obra, se são ou não transgênicos, se são ou não orgânicos. Tudo isso faz parte do universo da moda, e há cada vez mais pessoas olhando para isso.

Kering 2017-2025 Roadmap Sustainability Strategy. KERING, 2021. Disponível em: <https://bit.ly/3ap3S8W>. Acesso em 31 de março de 2021.

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Patagonia é um caso conhecido pela mensuração de impacto e criação de cultura interna

Essa discussão está invariavelmente ligada ao risco de desmatamento. Tanto a Patagonia quanto a Kering, por exemplo, falam muito sobre a rastreabilidade dos seus insumos, de modo a poder dizer para a cadeia de stakeholders que os insumos utilizados na fabricação das roupas, dos calçados, dos acessórios não vêm de terras onde há potencial de desmatamento. Outro aspecto são as emissões de carbono, a logística, ou seja, de que forma os insumos chegam até a fábrica e o produto acabado vai até o consumidor — seja de caminhão, navio ou avião. No que se refere à água, há preocupação não só com o consumo – que pode e deve ser reduzido – e a coleta de fontes naturais – que prejudica a disponibilidade global –, mas também com a poluição da água pelos tingimentos e pelos resíduos eventualmente tóxicos para o meio ambiente. Ou o gasto energético: de onde vem a energia utilizada nos processos fabris e na logística? É uma energia limpa? Existem procedimentos e mecanismos de eficiência energética para reduzir o consumo? Sobre os aspectos sociais, esse foi um tema muito presente na indústria da moda recentemente, inclusive gerando boicotes. Aqui, falamos sobre condições de trabalho;

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relacionamento com comunidades vizinhas; questões de diversidade e inclusão; pautas de gênero, raça, cor e etnia. Tudo isso faz parte do universo de impactos que está em torno das empresas.

Costumo dizer que não é o mundo do “mas”, e sim o mundo do “e”: gero impactos negativos e gero impactos positivos É interessante entender que há na cultura corporativa uma visão geral que é “empresocêntrica”, ou seja, que tem a empresa no centro e tudo o mais flutuando ao redor. Na verdade, é muito fácil constatar que isso é uma bobagem. As empresas fazem parte de vários sistemas e estão conectadas em diversas cadeias de causa e efeito, seja disparando-as, seja no meio delas, intensificando o efeito de algo que aconteceu lá atrás. Precisamos compreender onde nos situamos, qual é o nosso papel em cada cadeia, quais são os impactos positivos e negativos criados, estimulados ou aumentados por nós.

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As empresas que possuem uma visão muito pragmática buscam estabelecer uma relação de saldo – “gero impacto negativo no meio ambiente, mas também gero emprego”, por exemplo. Assim, estabelecem uma falsa balança, em que pretensamente pode haver um resultado positivo. Mas o mundo é mais complicado do que isso. Essa balança não existe na prática. Costumo dizer que não é o mundo do “mas”, e sim o mundo do “e”: gero impactos negativos e gero impactos positivos. Essa é a realidade, então vamos medir ambos os lados, tentar melhorálos e, principalmente, ter uma postura evolutiva ao longo do tempo. Trata-se de pensar: o que é possível fazer hoje, diante da nossa capacidade operacional, do contexto que o mundo nos impõe e dos recursos que dispomos? É preciso assumir compromissos claros, ser transparente ao longo do processo e também admitir quando não for possível dar conta.

de cinco anos, mas talvez seja factível em uma década”. Não há mal nisso. Ninguém espera que as empresas, de uma hora para a outra, se transformem em organismos absolutamente perfeitos em termos dos impactos que geram, mesmo porque isso talvez nem exista. Espera-se, sim, que elas tenham compromissos claros, assumidos publicamente e que mantenham uma postura evolutiva, sendo transparentes ao longo do percurso. Há duas perguntas que gosto sempre de me fazer. O que seria do mundo se as empresas fizessem o que dizem? O que seria do mundo se as empresas dissessem o que fazem? É sobre isso que falamos: achar um termo interessante entre o fazer, o ser transparente e o dizer, sempre dentro dos seus limites operacionais, mas assumindo esse compromisso publicamente com a sociedade.

Todas as marcas que citei, e esse é um aspecto interessante, são muito transparentes em seus relatórios. Elas podem dizer: “Tenho rastreabilidade de 30% dos meus insumos, e a minha meta é chegar a 70% daqui a cinco anos”. Ou: “Não é possível chegar a 100% no horizonte

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mais + dos convidados Convidados do painel ESG está na moda?

Lídia Goldenstein Gostaria de ouvir de vocês sobre alguns aspectos complexos do comportamento do empresariado brasileiro. De um lado, os problemas relacionados a tributação, burocracia, todas as mazelas do custo Brasil, usados como desculpa para ignorar questões ambientais, sociais e de governança. De outro, o uso do pretexto de uma ação boa em um aspecto para “pecar” em outro. Quais as ferramentas disponíveis para lidar com essa realidade? E como projetos muito específicos, num território específico, como o POA Inquieta e Pacto Alegre, podem contribuir para que o processo deslanche de maneira mais profunda? Cesar Paz Todo processo tem de ser construído a partir de uma visão de futuro e de longo prazo. Somos decision makers, executivos treinados para refletir com poucos elementos e tomar decisão – sempre acertando mais do que errando. Esse modelo mental muito comum nas iniciativas privadas deve ser mudado. Outro ponto importante: não se consegue transformar desejos

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de um grupo social ou de um território em política pública se essa construção não for coletiva, envolvendo não apenas muitas pessoas, mas com as representatividades certas; e isso passa por uma visão de compromisso e responsabilidade cidadã, e não delegada. O projeto é da sociedade, e não da classe política, mas cumprido e executado por meio dela.

Sergio Marcondes

É preciso romper um outro padrão, o modelo mental de quatro anos dos representantes eleitos, pois os problemas exigem construções de anos, às vezes de décadas.

Evidentemente, houve um avanço técnico, acompanhado de estudos, e uma dimensão alimenta a outra. O fato é que esse conflito não acabou. Então, cabe se perguntar: de que lado a minha empresa está nessa briga?

Um exemplo clássico, enfrentado por todas as grandes cidades, é o colapso do sistema de transporte público. Não há solução de quatro anos para esse cenário. Uma discussão sobre taxar a externalidade do transporte privado visando criar fundos para construir um desenho de mobilidade urbana não se apresenta por uma solução de curto prazo. Essa é uma construção que deve se constituir como política de projeto da cidade, não de um governo.

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Gostaria de enfatizar que a revolução desse tema [ESG] não se deu de maneira natural ou como uma evolução no campo da consciência. Foi fruto dos movimentos estruturados, de muito conflito nos campos econômico, social e ambiental.

Existe um discurso comum do empresariado em torno da ideia do “fazer a minha parte” – “eu faço a rastreabilidade do meu insumo, faço o meu inventário de missões e o meu relatório, e é isso; não esperem mais de mim”. Para além do campo da ação, esse “fazer a minha parte” pode envolver também o campo da articulação, na associação a pares, a redes, seja temática num determinado tipo de impacto, seja setorial e participar do debate público, exercer

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pressão sobre política pública. Ou seja, além daquilo que você faz na prática, há o que o seu grupo, o seu setor, a sociedade ou os governos podem fazer e você deve desempenhar um papel nisso. Em relação a ferramentas, a articulação em redes é absolutamente fundamental, tão importante quanto o campo da ação e, às vezes, até mais. Você não existe sozinho no seu setor. Por mais brilhante que seja o seu trabalho, se realizado sozinho, o impacto é praticamente nulo, não importando o seu tamanho. Os grandes avanços no mundo acadêmico, técnico e científico facilitaram o nosso caminho, disponibilizando muito ferramental. Existem, por exemplo, referências de orientação estratégica, como os ODS [Objetivos de Desenvolvimento Sustentável], um trabalho brilhante e consensual dos Estados-membros das Nações Unidas, que nos oferece uma direção para estabelecer metas e indicadores. Também da ONU, há o Pacto Global, que indica direções às empresas sobre como se engajar em temas importantes, inclusive governança

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e anticorrupção, com cartilhas, manuais e indicadores. Sistemas internacionalmente reconhecidos de métricas e indicadores também ajudam muito. Monitorar impacto pode ser caro e complicado, sim, mas existem vários atalhos para encurtar o caminho. É possível começar barato, sob controle e de maneira bem-feita — principalmente quando nos aproveitamos dos percursos já percorridos por essas instituições. Cito algumas: o GRI [sigla em inglês para Global Reporting Initiative], que oferece formatos de relatório e de indicadores; o IRIS+, um banco internacional de métricas e indicadores reconhecidíssimo, cujas ferramentas são cada vez mais usadas por empresas em todo o mundo; o SASB [sigla em inglês para Sustainability Accounting Standards Board]; o CDSB [sigla em inglês para Climate Disclosure Standards Board]. No Google, encontra-se com alguma facilidade muitos bancos de ferramentas, de métricas que podem ser utilizadas. O próprio Sistema B é um caminho razoavelmente simples de se engajar e ainda propicia um duplo ganho, porque, ao mesmo tempo que fornece as ferramentas, ele é a articulação em rede, provendo o sentimento de grupo, de trocas. Então, eu enfatizo esses dois caminhos: articular-se em redes e se amparar em referências. Lala Deheinzelin Sergio, pode contar um pouco sobre o BlendLab, a lógica de pensamento da Din4mo e de que forma vocês contribuem com elementos para a criação desses ecossistemas de impacto? Sergio Marcondes Nos últimos cinco anos, temos estudado a ideia do financiamento do desenvolvimento sustentável, de onde vem o dinheiro e como isso pode ser feito para custear os grandes desafios desse desenvolvimento. Quando digo “nós”, refiro-me ao nosso grupo, o Instituto Dialog, a Dín4mo, mas também em vínculo com redes internacionais. Participamos dos últimos Fóruns Urbanos Mundiais, discutindo financiamentos de urbanização sustentável, e a a Organização das Nações Unidas instituiu um grupo de trabalho interagência para essa discussão, que é longa e complexa.

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Em 2015, o Fórum Econômico Mundial e a OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] cunharam o termo blended finance (ou finanças híbridas) para tratar de arranjos financeiros de diferentes tipos de investidores, com perfis e ambições de investimento distintos, para financiamento de desenvolvimento sustentável, sobretudo em países emergentes. Partiu-se do entendimento da existência de um grande volume no mercado de capitais aplicado segundo regras muito pragmáticas, com uma determinada expectativa de retorno, risco e prazo, e que muitos daqueles investimentos, necessários para melhorar a vida das pessoas, não atingem essas expectativas – ou seja, não são negócios bons o suficiente segundo os atuais requisitos do mercado de capitais. Dito isso, o Fórum Econômico Mundial fez a seguinte provocação: existem outros tipos de capital e, se fizermos as junções inteligentemente, haverá jogo para todo o mundo. Se entendermos o papel das associações, fundações, dos filantropos, dos bancos de desenvolvimento, das agências multilaterais, dos governos, e como isso tudo pode se unir ao mercado de capitais, por meio de produtos financeiros, eventualmente se viabilize a locação de capital em larga escala para projetos de desenvolvimento. É o que temos tentado fazer no BlendLab. Assumimos como vetor inicial de transformação a habitação de interesse social, o qual entendemos ser um vetor encorajador de outros investimentos, como em infraestrutura urbana, transporte e saneamento. Temos montado esses arranjos com diferentes perfis e fazendo essas fatias de investimento, cada uma para um perfil de investidor, de forma que a habitação social seja feita não só como investimento público, como ocorre hoje, mas com participação do investimento privado, o que habilitaria uma escala muito maior. É mais um exemplo de que a visão sistêmica sobre as formas de estruturar um investimento pode alavancar investimentos muito maiores.

uma resposta. O tema tem evoluído e nosso envolvimento é grande. Lala Deheinzelin Para finalizar, dentro dessa ótica propositiva, Sergio, o que é mais importante para nos nortear? Sergio Marcondes Com o olhar para a indústria da moda, que é um motor em impactos tanto positivos quanto negativos, gostaria de reforçar algo que falei rapidamente e pode ser feito por empresas de qualquer porte: ter compromissos claros, visão de futuro, entender onde se está e para onde se quer chegar, ter uma postura de evolução permanente e transparência ao longo do percurso. Isso é o que se espera hoje das melhores companhias. Ao longo desse caminho, articular-se em redes, fazer parte de discussões, ouvir e assimilar o feedback dos seus stakeholders e permanecer evoluindo. Acredito que essa é a regra do jogo.

Refiro-me ao quanto começa-se a falar sobre algo, reúnem-se as pessoas e isso se transforma. Hoje, no Governo do Estado e na Prefeitura, fala-se muito de Economia Criativa, há estruturas ligadas a essa visão, e tenho certeza de que houve influência nossa. Trata-se de um aprendizado, pois eu achava esse um trabalho difícil, muito distante. Entender que as construções coletivas levam tempo, mas são possíveis, é um aprendizado. Do ponto de vista coletivo, e de novo trago o assunto para a questão da pandemia, nada é mais poderoso do que as tecnologias sociais, que nos permitem criar confiança, afeto e, fundamentalmente, conexões verdadeiras. Isso se faz por meio da prática. As rodas de conversa, que realizamos há três anos de forma sistemática, são um grande aprendizado coletivo. As metodologias usadas para construir essas discussões e os debates sobre os problemas mais variados e mais diversos da cidade têm sido transformadores para todo o coletivo.

Lala Deheinzelin Cesar, partindo da estrutura da sua fala inicial, desenvolvida sob a ótica das dimensões individual, empresarial e coletiva, quais os três aprendizados destacaria em cada uma delas? Cesar Paz A primeira é entender que empreender é um ato coletivo, um ato humano e um ato transformador de verdade. Do ponto de vista individual, a experiência do POA Inquieta tem me dado um aprendizado que jamais imaginei experimentar e construir em tão pouco tempo.

Essa ideia do Blended Finance pode ter várias aplicações: a um determinado território, a um setor – você pode ter uma operação de finanças híbridas para financiar energia limpa – ou até mesmo a uma circunstância – caso atual da Covid, por exemplo, em que vamos montar uma operação de finanças híbridas para custear

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6.04 9h—11h convidados

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Ecosssistemas de inovação: a chave para este momento?

Flavio Grynszpan iCorpsBrasil Flavia Aranha Designer e empresária

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O processo de formação das startups: da irresponsabilidade inovadora à escalabilidade do negócio Flavio Grynszpan

CEO do Instituto iCorps Brasil Gostaria de compartilhar a maneira como compreendo o momento atual, especialmente como nós podemos avançar a partir do ponto em que estamos. Para começar, farei uma breve introdução sobre como entrei nesse mundo de startup. Em 2014, eu estava nos Estados Unidos a trabalho e soube que algo estava acontecendo em torno desse tema. Até então, tínhamos ouvido falar do Vale do Silício, além de outros polos em Nova York e do Research Triangle, na Carolina do Norte. Mas era limitado a áreas de business. De um momento para o outro, isso transbordou para demais setores. Por que transbordou? Porque em 2008 houve uma crise econômica nos Estados Unidos que fez com que todos se repensassem, e a maneira de o Congresso norteamericano repensar foi exigindo outro papel das universidades: o de criar o novo setor produtivo do país.

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sujeito chamado Steve Blank, que é o grande papa de todo o processo. Por causa da crise de 2008, ele adaptou o que ensinava em Stanford para outros setores e criou uma metodologia chamada Costumer Development [desenvolvimento do cliente, em tradução livre]. Então, o que eu vou contar é um pouco desse pensamento de adaptação do que se faz no Vale do Silício para a realidade das instituições. São aspectos sutis, mas com um impacto enorme.

um modelo capaz de se sustentar como negócio.

O curso que ministramos na FAPESP tem dois meses de duração, mas muda de cabeça para baixo o pensamento das startups. A partir de todo esse processo, que iniciamos em 2016, chegamos a algumas conclusões. Primeiro, o que é essa coisa de ecossistema? Na minha interpretação, é um conjunto de atores que devem criar algo novo, a nova empresa.

Então, na etapa seguinte à ideação, você precisa testar a sua ideia para ver se ela se ajusta à necessidade do cliente, e aí há a grande mudança, porque você nunca parou para pensar nele, e ele é quem manda no negócio. Como fazemos essa adequação? Por meio de entrevistas com muitos clientes, e posso dizer que 95% das startups mudam o que elas pensavam para se adequar ao cliente.

Como eu sei se estou pronto para o negócio? A metodologia de capacitação que adotamos leva à transformação da ideia a partir de testes feitos com a pessoa mais importante do negócio. Essa pessoa não somos nós, não são os idealizadores, não são os pesquisadores, não são os financiadores – a pessoa mais importante do negócio é o cliente, é para quem fazemos as coisas.

O ecossistema é composto por todo o processo de criação mais a possibilidade de desenvolvimento da criação. O processo inicia com uma ideia, uma necessidade de alguém. Essa ideia inicial é individual, ou seja, cada um tem a sua.

Quem financia essa fase, que chamamos de product market fit [ajuste do produto ao mercado, em tradução livre], são os três “F”: friends, family e fools [amigos, família e loucos, em tradução livre].

Hoje, existem inclusive startup studios, onde as pessoas se juntam para criar uma ideia inédita. Nesse início, você dedica tempo e dinheiro próprios, até o ponto em que você tem de tomar a decisão de levar adiante, em uma fase que passa da ideação para a tentativa de implantar

Friends são seus amigos, aqueles que vão entrar nessa com você. Family, porque todo mundo tem uma tia que vai deixar uma herança, alguém que está sempre ajudando. E os fools são muito importantes, porque são os que apostam em você, acreditam no que você faz. Temos de

Desde então, toda a administração federal norte-americana passou a estimular a criação de startups, começando quase do zero – e esse é o papel da startup, começar do zero para fazer o novo. Portanto, há hoje nos Estados Unidos uma rede em que todas as universidades desenvolvem pesquisas voltadas a gerar startups. Existe facilidade lá para fazer isso; no Brasil, é mais complicado. Mas foi com esse pensamento que nós criamos o Programa de Capacitação de Startups na FAPESP [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo], onde já existia o programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas, o PIPE, de apoio a pequenas empresas inovadoras que fazem pesquisa. O que nós trouxemos dos Estados Unidos foi uma outra visão para as startups. Um pensamento que nasceu na Escola de Negócios da Universidade Stanford, por obra de um

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Flavio Grynszpan na tela do YouTube durante encontro do IN-MOD

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aprender como tratar esse público. Por exemplo, você pode reunir os fools em um financiamento coletivo – e preciso ter uma história para contar, porque nem todo mundo é tão fool para acreditar em qualquer coisa. Passada essa etapa, você acha que está pronto para ir ao mercado, e essa é uma grande sacada. Enquanto você é uma startup, você muda o quanto quiser, não há o menor compromisso. A startup é uma organização irresponsável, ela vai pivotando até encontrar um modelo de negócio que possa ser desenvolvido. Terminada a farra e virou empresa, é hora de concorrer, ir à luta.

E o que é um bom negócio? É aquele em que um investidor com muito dinheiro, em vez de investir em Bitcoin, em imóveis, na Bolsa de Valores, resolve investir em você

Esse é o momento mais difícil de uma startup. Chamamos essa fase de “vale da morte”, em que as startups morrem porque não têm capacidade de competir, não têm equipe, dinheiro e, principalmente, não têm cliente. Nessa etapa perigosa, você ainda não é um bom negócio, não consegue atrair investidores e fica perdido. Aqui, entra o papel da aceleradora, algo que o IN-MOD pode se tornar, ou seja, uma aceleradora para ajudar as startups a vencer o vale da morte. A saída é você se transformar em um bom negócio.

processo de ideação, como instituições de pesquisa, instituições de ensino, geradores de novidades. Estão as empresas estabelecidas, porque elas querem e precisam das startups. Estão os financiadores e, muitas vezes, o governo, que também ajuda a financiar. E há também o elemento central, que são as aceleradoras das startups. Portanto, você tem todo mundo que participou dessa cadeia até a startup se tornar uma empresa. Depois, essa empresa escolhe se quer ou não continuar dentro do ecossistema.

E o que é um bom negócio? É aquele em que um investidor com muito dinheiro, em vez de investir em Bitcoin, em imóveis, na Bolsa de Valores, resolve investir em você. Então, a função dessa etapa é transformar o processo inicial de empresa em um bom negócio. Consiste em uma fase complicada, quando as pessoas desistem, voltam a ser empregadas.

Quem imaginaria que algo inexistente há cinco, sete anos valeria mais do que a maior empresa do mundo?

Assim, eu comecei com a ideação, passei por um processo em que eu atraí um dinheiro inicial para ajustar o meu produto ao mercado e, agora, eu tenho de atravessar o vale da morte. Por que a startup consegue vencer todas essas etapas?

A vantagem do ecossistema é ser um processo contínuo de geração de coisas novas. Tive uma experiência recente com a FEBRACE [Feira Brasileira de Ciências e Engenharia], coordenada pela professora Roseli de Deus Lopes, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, que estimula a inovação de alunos da educação básica de todo o Brasil. Fazem um concurso com premiação, e vocês precisam ver como é incrível o que essa garotada está pensando.

Sua grande vantagem é poder qualquer coisa, enquanto uma empresa não pode, porque tem de manter os funcionários, pagar a folha de pagamento, pagar impostos, etc. A startup faz o que quiser, sem responsabilidade.

É a próxima geração das startups. Não podemos contar isso a eles porque queremos que continuem estudando; se estimulá-los demais, eles pulam fora da escola para tocar o seu negócio, mas muitos poderiam fazer isso. Então, é um processo contínuo. Antigamente, você precisava de muito dinheiro para criar uma empresa. Hoje, é possível criar uma startup com um telefone celular. Há uma multiplicação de experiências de criação de novos negócios em todo lugar do mundo por meio dessas coisitas chamadas startups. É muito fácil, muito barato e, por incrível que pareça, elas concorrem com as grandes empresas, muitas vezes em bastante vantagem. Há cinco anos, não existia a Tesla, e hoje ela vale mais do que a General Motors. Quem imaginaria que algo inexistente há cinco, sete anos valeria mais do que a maior empresa do mundo? Então, o convite é: nós podemos criar hoje qualquer coisa que vai valer mais do que todas as grandes empresas, e isso é exatamente adequado para a realidade da pequena empresa.

Alguns dizem que ela pode até ser ilegal. O Uber e o Airbnb, por exemplo, são ilegais. Por quê? Eles vão contra a lei, mas depois as leis se adaptam à nova realidade. O Uber tem meia dúzia de funcionários e 200 advogados para se defender da ilegalidade da qual ele vive. Nunca uma empresa estabelecida poderia fazer o que o Uber faz, mas ele conseguiu transformar totalmente a indústria de mobilidade. Então, o processo tem de ser tal que você possa gerar Ubers, ou seja, pessoas que vão fazer uma grande transformação. Levanto esses assuntos para mostrar que, sim, vocês podem e, sim, vale a pena. Nós devemos e podemos criar coisas novas, há competência para isso. Só falta nos organizarmos. Voltando então ao início: o que é o ecossistema? É um conjunto de participantes para que, no fim, possa acontecer a inovação por meio desse elemento chamado startup. Dentro desse ecossistema, estão aqueles que ajudam no

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Startup valiosa: a Tesla é empresa pioneira na inústria de carros elétricos

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Hoje, startup é um nome tão comum que virou arroz de festa. Todo mundo tem uma A empresa faz um investimento na startup e acompanha. Eventualmente, se aquele negócio der certo, ela compra a startup; se não, ela apenas acompanhou e perdeu dinheiro lá. São esses os três níveis. Atualmente, toda inovação que existir será puxada pelas startups, porque a inovação interna das empresas é somente incremental, feita para que ela se defenda do mercado. Outro ponto que eu gostaria de mencionar é o seguinte: hoje, startup é um nome tão comum que virou arroz de festa. Todo mundo tem uma. Na verdade, estamos incorporando um nome que significa a criação de algo novo, e os objetivos podem ser diversos.

Polo de tecnologia mundial, o Vale do Silício, na Califórnia (EUA), abriga as empresas gobais de tecnologia e muitas startups

Portanto, é fácil, basta estimular a criatividade, e o problema é depois. Por que esse negócio se mantém? Eu tenho o seguinte raciocínio: empresa existente não cria startup.

Hoje, um dos objetivos de uma startup não é conquistar o mundo, e sim ser comprada por alguém É muito difícil que isso aconteça, porque ela não tem tempo nem estrutura para segurar uma startup, pois precisa manter o seu negócio. A empresa não tem o direito de correr riscos. Ela faz o melhor possível, entende do seu produto, do seu cliente, ou seja, inova para concorrer, para manter ou expandir o seu negócio, mas essa inovação é incremental. Ela não faz nada fora da caixinha. Então, existem três possibilidades de inovação no setor produtivo. Uma é essa feita internamente pela empresa. A segunda é algo que a empresa gostaria de fazer, mas se ela se dedicar a isso, ela vai atrapalhar o seu negócio. Portanto, para ela é mais barato comprar uma startup.

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Nesse sentido, hoje um dos objetivos de uma startup não é conquistar o mundo, e sim ser comprada por alguém. Chamamos isso de open innovation, ou seja, inovação aberta. E não é feio ser comprada, você enriquece e, depois, cria outra startup. As startups que integram o open innovation fazem com que a empresa entre no ecossistema, porque é uma inovação externa que a empresa internaliza. E é complicado internalizar, porque a regra da startup é diferente da empresa. Não tem fluxo de caixa, não tem retorno de investimento, não trabalha no horário de expediente normal, startup é bagunça. Por isso essa fase de integração é complexa, e normalmente a melhor solução para a empresa é manter a startup separada do resto para sobreviver, porque, se você a obriga a seguir os padrões da empresa, ela morre. Já o terceiro nível de inovação é aquele maluco em que ninguém acredita, que inventa um troço muito louco, algo completamente novo e disruptivo. A empresa não vai entrar nesse barco, mas se a startup der certo, ela quebra a empresa. Então, é preciso ficar de olho. Como assim?

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Por exemplo, eu sou do Rio de Janeiro, e lá existiam pessoas que viviam da praia, vendendo mate, sanduíche, arrumando barraca de praia. Isso não era um bico, elas faziam isso da vida. É opção delas. Então, tem um tipo de startup cujo objetivo é individual, e você chama de startup também. Há um segundo modelo, composto pelas que não conseguem deslanchar. Elas vão ficar bem pequenas, como uma consultora, um fornecedor. Cerca de 90% das startups são desse tipo, mas não é isso que queremos aqui. Essas se tornarão pequenas empresas, sustentarão a família. Há outras startups corporativas, ou seja, a empresa faz um hackathon etc. E tem a do tipo social, que quer resolver o problema do mundo, focar no coletivo.

crescem com o recurso de investidores, porque o dinheiro próprio da startup serve apenas para ela se manter; ou são compradas pelas empresas que precisam de inovação. E agora vamos defninir que startup é essa de que eu tanto falo, a competitiva. Ela é uma organização, e não uma empresa. Essa distinção foi grande sacada de Steve Blank, porque assim ele livrou a startup das responsabilidades da empresa. Trata-se de uma organização temporária e tem um objetivo: encontrar um modelo de negócio que possa ser lucrativo, crescente e reproduzível. Quando eu chego nesse ponto, eu tenho condições de propor que eu me torne uma empresa escalável, ou seja, capaz de crescer, se possível, como eu disse, com o dinheiro dos outros – os outros também devem achar que você vai crescer. Nessa fase, eu transformo a startup em empresa. Por fim, gostaria de dizer que existem quatro tipos de mercado para os quais as startups podem olhar. O primeiro é o mercado existente, onde ela vai concorrer com quem está lá. Outra estratégia importante é ressegmentar esse mercado existente. Depois, há uma terceira possibilidade, que é o mercado novo. Aqui, a vantagem é ser totalmente novo, mas a desvantagem é não haver cliente – é tão novo que não tem ninguém. E, finalmente, há o mercado clonado, onde eu copio dos outros e adapto aquilo. São esses os diferentes mecanismos das startups.

Agora, temos de escolher o que queremos. Em geral, eu tenho trabalhado com startups chamadas de competitivas, ou seja, elas nascem para competir no mercado, para crescer e gerar uma disrupção nele. Esse é um tipo especial de startup. A pergunta é: sabemos distinguir aquilo que vai ser competitivo de todos os outros tipos? É possível, mas difícil. Grande parte das criações de startup está nas outras categorias, não são as que competirão no mercado. As competitivas nascem com dois caminhos possíveis: ou elas

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Inovação a serviço da transformação de toda a cadeia produtiva Flavia Aranha

Designer e empresária

Acredito que esta conversa é fundamental nos tempos atuais. Completamos um ano de pandemia em um governo que investe em morte, e não em vida, inovação, criatividade. Por isso considero este encontro muito urgente. Penso que eu nasci como uma startup que é ao mesmo tempo uma empresa. A falta de investimento em startups e em inovação que marcou os últimos anos no Brasil nos forçou a virar empresa, a virar adulto logo de cara. Eu criei a empresa a partir de um desejo de inovação. Para quem não me conhece, minha marca Flavia Aranha surgiu em 2009, a partir de uma experiência de trabalho no mercado de moda. Eu vim para São Paulo fazer faculdade e, quando entrei no mercado, descobri o impacto extremamente negativo da moda no planeta. Pude ir para a China em 2006, e lá eu vi com os meus próprios olhos o que assistimos no

Cena do documentário “True Cost”, que denuncia exploração de trabalhadores de países em desenvolvimento

Foi com essa cabeça que eu abri a Flavia Aranha, sem muita ideia de que eu estava sendo uma startup. Abri já com uma loja, sem saber exatamente o que faria, se teria cliente ou não, mas eu tinha um desejo muito legítimo de revisitar todos os elos da cadeia produtiva, pensando desde o campo, a agricultura até o pós-consumo, ou seja, o destino dado pela cliente após o uso.

O documentário “The True Cost”, de 2015, revela a face sombria da produção fast fashion, como exploração social e impacto negativo ao meio ambiente

documentário “True Cost” [2015]. Quando eu entendi que a minha força de trabalho, a minha força criativa, a minha potência, estava colaborando para uma indústria de impacto tão danoso para a Terra, eu recuei, repensei a minha missão, o que eu estava fazendo com a minha própria trajetória. Considerei desistir da moda, porque pensei: “Então, não funciona; moda, para mim, não serve”. Mas, investigando um pouco, eu entendi que era um problema do capitalismo como um todo, que essas práticas são transversais a qualquer indústria, seja moda, seja tecnologia. Para servir ao capitalismo, todas elas precisam se basear na desigualdade social, o que gera o impacto ambiental e social. Nesse momento, eu tive uma visão muito forte de usar a criatividade e a inovação a serviço da transformação.

Nesse sentido, eu entendo o ecossistema de inovação também a partir dessa raiz: identificar um problema e deslocar o eixo do processo criativo de maneira que uma empresa, uma ideia, uma inovação estejam a serviço do futuro que queremos tecer.

Consegui visitar toda a rede, tentando propor mudanças estruturais a partir da ideia de tingimento natural. Então, quando eu olho para a empresa, entendo que ela tem o tingimento natural como eixo central de pesquisa. A marca inova ao beber da ancestralidade, mergulhar nas raízes de um conhecimento mais integrado, mais orgânico, mais plural, e conectar isso com a tecnologia de ponta, com conhecimentos contemporâneos. Ou seja, não se trata de negar o futuro nem a tecnologia, mas fazer a conexão com essa ancestralidade.

Qual é o mundo em que eu quero viver daqui para a frente? Como eu quero que a moda impacte no tecimento desse futuro? Na época, eu não identificava isso como um movimento, mas, quando me juntei ao Sistema B, entendi que há, sim, todo uma articulação de resistência a esse capitalismo superagressivo. Uma alternativa dedicada à transformação para uma economia mais colaborativa, com a criação de ecossistemas voltados ao cooperativismo, em que uma empresa ajuda a outra, apresenta uma solução para outra, e assim vai sendo tecido esse organismo vivo.

Flavia Aranha e equipe de produção no ateliê de tingimento natural

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Partindo dessa premissa, por que petróleo? Por que plástico? Por que trabalho escravo? Por que não conseguimos redesenhar um ecossistema de benefícios para todas as etapas da cadeia produtiva? Então, quando eu vejo o ecossistema que desenhamos nesses dez anos, entendo que o esforço foi de costurar essa teia viva, que parte, por exemplo, da agroecologia. Dessa forma, falamos de agricultura familiar, desconstrução do monopólio, da monocultura e, de repente, fomentamos outras formas de agricultura regenerativa, até chegar nesse diálogo com o consumidor. Ou seja, utilizar a plataforma do consumo e da roupa para inspirar e instigar essa reflexão no cliente. O que ele consome? Como ele usa o dinheiro dele? Como ele entende que o consumo pode ser um ato político de transformação, de tecer esse mundo que ele quer no futuro?

um exemplo: junto com duas startups, vamos fazer um consórcio de empresas para criar uma agrofloresta têxtil que vai plantar algodão, linho, cânhamo, índigo, açafrão, urucum, enfim, vamos plantar corantes e fibras. Olhando para o futuro, em um deslocamento que considera também os biomas, como podemos descentralizar e conectar as produções? Na minha visão, eu tenho uma responsabilidade muito grande de entender que, se esses problemas existem, nós, as empresas, também precisamos ser responsáveis pelas soluções. Sempre digo que a moda é um mercado que pensa muito no imediato, tem grande dificuldade de investir no longo prazo. Quando falamos em desenhar hoje uma agrofloresta têxtil, quanto tempo vai levar para desconstruirmos a ideia dos grandes maquinários e pensarmos em mini máquinas que gerem essa mobilidade?

Então, a Flavia Aranha é, sem dúvidas, uma empresa que nasceu com esse propósito muito forte. Eu brinco que quem investiu em mim foram os bancos, eu era sócia dos juros altíssimos do Brasil. Não tive investimento semente, não tive nenhum tipo de aporte para eu errar – eu não podia muito errar.

Marquetaria do Acre: trabalho do artista Maqueson Silva utilizado em coleção da Flavia Aranha

Só nesse sentido, temos três, quatro novas empresas. Isso também foi muito importante nessa trajetória: identificar os gargalos e os lugares onde poderíamos ter ideias inovadoras para conectar esses pontos. Como é que hoje, com o meu tamanho, eu dou conta de cuidar da cadeia produtiva de costureiros e costureiras que trabalham na nossa rede? Temos o Instituto Alinha, uma startup que faz essa ponte. É uma plataforma que conecta marcas e oficinas que estão alinhadas, ou seja, passaram por um processo de aperfeiçoamento, de gestão, de legalização, de estrutura física, de empoderamento no sentido de saber o preço justo.

Cuidado com a cadeia produtiva: na costura, Flavia conta a com a parceria do Instituto Alinha, plataforma que assessora pequenas oficinas e faz a ponte com empresas

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Lá atrás, brincavam que eu era muito romântica. “Imagina, Flavia, você vai ficar tingindo tecido em panela, com essas plantinhas” Esse exemplo mostra que todos os elos desse processo precisam de startups para criar soluções que não existem. Quando pensamos no resíduo têxtil, temos uma grande parceria com o Banco de Tecido, uma startup preocupada em gerar impacto positivo. O que eu faço com esse resíduo têxtil? Existe política pública para cuidar disso? Não existe, então, vamos criar. Assim, gera-se esse ecossistema de colaboração, ou seja, as empresas que precisam lidar com os seus resíduos têxteis dialogam com empresas preocupadas em gerar uma nova vida para esses materiais, e dessa forma criamos soluções para algo que não existia.

É inova e acerta, inova e acerta. Se errar, tem de acertar duas vezes, porque vem um boleto. Eu também vim de um lugar com uma cabeça mais progressista e de esquerda, por isso eu sempre pensei que precisava garantir uma estrutura formal para os funcionários, com CLT, benefícios etc. Isso me obrigou a ter uma responsabilidade de empresa muito cedo. Hoje, eu vejo que tenho todos os compromissos de uma empresa, mas ainda com um pensamento extremamente inovador de startup. Para dar

com as oficinas para que eu possa ter uma rede, crescer junto com ela. Agora, essa startup criou um modelo de QR Code, o permite ao consumidor saber quanto o costureiro recebeu de remuneração, com a autorização dele para que a tecnologia dê essa informação.

Ela conecta e garante esse acompanhamento

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Desde as matérias-primas brutas até o pósconsumo, em toda essa cadeia eu tenho parceiros que são startups, que estão olhando para o futuro e, muitas vezes, desenhamos isso juntos. O que hoje é um problema para mim é uma solução para essa empresa amanhã, e assim unimos grupos de empresas que compartilham dessa visão. Então, a ideia de inovação é inerente à Flavia Aranha, e a marca parte muito da noção de que precisamos criar o que não existe. Lá atrás, brincavam que eu era muito romântica. “Imagina, Flavia, você vai ficar tingindo tecido em panela, com essas plantinhas.” Mas criamos um processo, uma tecnologia de industrialização dos corantes naturais superescalada. Hoje, estamos na segunda rodada de investimento para escalar a empresa muito em função do nosso braço de tecnologia chamado Teia, para o qual eu vejo muito valor no futuro. A própria marca está bancando a possibilidade de

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Banco de Tecido: startup que compra e vende sobras de tecido, dando solução sustentável para os resíduos têxteis

uma pesquisa de fibras novas. Temos uma fibra vegetal que pretendemos transformar em uma seda vegana, temos outra fibra na Amazônia que seria um primo do linho e promove um impacto muito positivo para famílias ribeirinhas. Entendemos que, no futuro, a Flavia Aranha será um hub de novas fibras, novos corantes, novos processos biodegradáveis, circulares, que tenham um compromisso com a regeneração, que estejam conectados com esse futuro que queremos tecer. Quando falamos de negócios B, estamos nos comprometendo a puxar esse movimento de transformação da economia. Não dá mais para continuar destruindo a Amazônia, acreditando que o Brasil precisa ser o país da soja, das commodities. Precisamos criar uma economia mais regenerativa para que ela possa transformar o Brasil e este sistema capitalista em um ambiente um pouco mais viável para a nossa vivência no planeta Terra pelos próximos cem anos. A marca tem isso como cultura, para nós é muito claro que devemos usar a nossa estrutura e a nossa criação para gerar essa possibilidade.

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Urucum, macela, erva-mate, romã e jabuticaba são algumas das espécies usadas no processo de tingimento natural dos tecidos da marca Flavia Aranha; acima e à dir., o ateliê onde é feito o processo

Nesse sentido, eu me vejo no lugar de uma startup social, mas com uma missão grande de ocupar espaço no mercado, porque se eu não for maior, se eu não for líder de mercado, como eu vou influenciar a mudança desse mercado? Quando decidimos escalar a Flavia Aranha – e demorou muito para eu querer, desejava ser uma empresa –, entendi que, para gerar influência nessa transformação e criar novas tecnologias, eu precisava ganhar um tamanho.

O mindset vem desse lugar de usar o processo criativo e a inovação para resolver os problemas e desenhar uma nova sociedade, e então fazemos isso dentro da moda

lucro é o combustível para essa transformação, mas não é o objetivo final da Flavia Aranha. Ele é o alimento para isso. Quando tomamos essa decisão visando gerar um impacto mais sistêmico, a tecnologia veio junto, porque ela permite a escalabilidade, a possibilidade de impactar mais pessoas tanto na cadeia produtiva quanto no produto final, ou seja, nos consumidores. O mindset vem desse lugar de usar o processo criativo e a inovação para resolver os problemas e desenhar uma nova sociedade, e então fazemos isso dentro da moda. Mas quando falamos de Sistema B, vemos que há “n” colegas criando startups e negócios que se conectam com os nossos. Quando falamos de agricultura familiar, falamos de moda. Quando falamos de uma agrofloresta têxtil, falamos de moda, de cosmético, de produtos de limpeza. Assim, criamos ecossistemas em todos esses elos, o que forma essa grande teia de impactos.

Se não existe tingimento natural industrial, como podemos criar isso em um ciclo 100% biodegradável, 100% vegetal, sem uso de petroquímica? Para isso, precisamos escalar. O

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mais + dos convidados Convidados do painel Ecossistemas de inovação: A chave para este momento?

Flavio Grynszpan Gostaria de fazer um comentário a respeito da fala da Flavia. É sobre a introdução do meio ambiente nessa equação. Existe uma pressão internacional nesse sentido. Os Estados Unidos definiram um programa para promover ações que não impactem o meio ambiente, enquanto a comunidade econômica europeia determinou um imposto mais alto para produtos que emitem carbono em comparação com aqueles que o absorvem. A produção de algodão, por exemplo, é altamente emissora de carbono. A partir de um sistema bem-feito de rastreabilidade, é possível definir o quanto todo esse processo está emitindo ou absorvendo carbono. A Tesla é financiada pela indústria automobilística, porque ela economiza o carbono que os combustíveis emitem. Então, é possível ter compensações interessantes se você introduzir o meio ambiente nesse processo. Flavia Aranha É fundamental utilizar apenas algodão orgânico, agroecológico, regenerativo. Todos os corantes usados na marca são vegetais e biodegradáveis. Então, no próprio nascimento da Flavia Aranha, que foi pautado pelo tingimento natural, o elemento ambiental já era muito forte. E eu não consigo ver o ambiental sem o social, e vice-

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versa, porque as empresas do futuro precisam entender a Terra como um só organismo. Isso não é um papo hippie ou de astrologia, mas sim a interdependência de todos os seres – os vegetais, os animais, os oceanos, o vento, enfim. Se não formos capazes de respeitar essa interdependência, sabemos o caminho que trilharemos, com pandemias, desastres. Portanto, é visceral para a Flavia Aranha que todos os produtos e processos sejam circulares, biodegradáveis e regenerativos, ou seja, o meio ambiente é uma pauta fundamental para o nosso modelo de negócios. Lídia Goldenstein Flavia, gostei do que você falou sobre não se tratar de uma coisa hippie, alternativa. Nada contra opções individuais, que são absolutamente válidas, mas não são soluções macroeconômicas, não geram uma economia necessária para um país tão desigual quanto o Brasil. Então, o seu discurso não é incompatível com o do Flavio, no sentido de que você está pensando soluções que sejam economicamente viáveis, possam ser replicáveis e gerem valor. Sobre a ideia apontada pelo Flavio, de que no início se tem dinheiro da família, dos amigos e dos loucos, percebo uma certa ilusão de que crowdfunding é uma solução para os

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problemas, quando, na verdade, é um círculo de recursos, girando dentro de uma bolha e que não gera valor. Flavia Aranha Na minha opinião, é extremamente elitista, porque se você depende da sua família, dos seus amigos, então está sendo feito um recorte de que você só pode ter uma ideia inovadora se você for rico. Se você morar em uma favela e tiver um problema de esgoto do seu lado, então já era para você. É muito importante desconstruirmos essa ideia, criarmos políticas públicas de fato e fazermos volume sobre a necessidade de descentralizar os recursos. Essa é uma pauta muito importante. Estou em um processo de captação de recursos e fiz questão de buscar o dinheiro de mulheres, porque eu comecei a fazer rodadas com investidores e percebi que existiam somente homens, ou seja, o dinheiro está na mão de homens. Cadê as mulheres com dinheiro? Será que o dinheiro das mulheres gera um impacto diferente do dos homens? Vamos medir isso? Depois que eu entrei nesse universo, percebi que também são bolhas. No Brasil, principalmente, não existe projeto de

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fomento para você descentralizar esse poder, o que é muito preocupante. Se a inovação estiver concentrada no privilégio, não vamos resolver os problemas que precisam ser resolvidos, porque muito desses problemas e muito da criatividade são de quem não é privilegiado. Construir essa ponte, quebrar essas bolhas, como você falou, é mais do que urgente no mundo de hoje. Graça Cabral Flavio, você citou em sua fala o impulso dado pelo governo norte-americano a partir de 2008, de uma forma completa e coordenada, para a busca de um novo sistema produtivo no país. Esse impulso, nós não temos no Brasil. Temos indivíduos fazendo esforços incríveis, como a Flavia; vemos vários empreendedores querendo trabalhar com um sistema mais circular, pensando no meio ambiente, no social, mas que encontram diversas barreiras, desde o fornecimento de matérias-primas, por exemplo, que é um problema sério no Brasil. Então, quando a Flavia fala de escalar um negócio, muitas vezes não tem o material disponível para isso. Então, como podemos trabalhar essa questão no Brasil? Flavio Grynszpan Eu passei a vida inteira lutando com todos os governos para melhorar as políticas públicas. Eu

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já cansei de lutar. Eu desisto porque eu acredito que nós podemos fazer. A sacada da startup é essa: eu não preciso esperar o governo, eu vou e faço. Hoje, eu dirijo um instituto que criei do zero e que, no momento tem 72 startups. Então, eu convido vocês a fazerem, como a Flavia fez. Não estou propondo que desistam, mas que não usem o governo como uma justificativa para aquilo que nós não fazemos. A proposta é fazer, ir implementando um ecossistema. Ao longo do tempo, esse negócio começa a aparecer no radar das instituições. Lala Deheinzelin Flavia, quais elementos você considera principais para conseguir operar de forma colaborativa? Quais são os aspectos necessários para aproveitar o melhor do estar junto? Flavia Aranha Antes de responder a essa pergunta, gostaria de comentar rapidamente sobre a questão do investimento em inovação no Brasil. Acredito que as políticas públicas são fundamentais para transformações sistêmicas. Nós não precisamos separar esses elementos em um pensamento cartesiano, mas integrar política pública e iniciativa privada. Por isso é muito importante espalhar essas ideias no setor da moda, porque as grandes empresas precisam destinar parte do seu lucro a projetos de longo prazo, a projetos de inovação, à criação de startups. Vamos pensar em rede, vamos fazer para todo mundo. Se considerarmos que as empresas grandes não têm tempo, não têm risco, mas têm dinheiro, precisamos criar um sistema de integração, de maneira que elas destinem parte do seu lucro ou até dos seus impostos a isso. Quando lembramos da Lei Rouanet e do uso de parte do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para fomentar a indústria da cultura, vemos a riqueza cultural que se produziu no Brasil, o quanto essa indústria foi potencializada. Então, se pensarmos o mesmo para as empresas de moda, de que elas precisam destinar recursos e se comprometer com projetos de inovação nos pilares que tangenciam os maiores impactos

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negativos, responsabilizando-se por criar soluções para isso, distribuímos uma potência por todo o Brasil e criamos dezenas de startups. Se fizermos essa ligação entre grandes e pequenos, vamos retroalimentar uma cadeia de abundância, porque o que não falta no Brasil é potência. Somos um país de pessoas extremamente criativas, que têm jogo de cintura para lidar com tantos desafios – pensando em termos culturais. Temos uma das maiores biodiversidades do planeta, o que não falta é planta para pesquisarmos e encontrarmos inovação. Ao mesmo tempo, temos um volume gigante de pessoas, de resíduos, de processos, ou seja, os problemas existem aos milhares. Portanto, se olharmos em uma perspectiva positiva, temos um cenário muito rico para criar inovação, para criar startups, para gerar uma cadeia regenerativa. Gosto de usar esse espaço para falar isso porque, se conseguirmos realmente criar um comprometimento das empresas grandes com as empresas pequenas, passamos a gerar um fluxo positivo para a cadeia. Sobre a questão de como trabalhar em cooperação, acredito que seja uma mudança de mindset em relação ao propósito. O que me faz acordar todos os dias e enfrentar os meus desafios, lembrando que estamos em plena pandemia e que eu sou uma empresa que vive de varejo? Como é essa resiliência? Ela parte do propósito, do que me fez fundar a empresa. A minha geração e, principalmente, a geração que está vindo pensam em colaboração. A ideia de concorrência vai perdendo o sentido, e passamos a pensar em integrar, em somar, em colaborar, a partir de uma perspectiva de não escassez. Se você colabora, você gera valor para ambas as empresas. Então, acredito que a grande chave é o propósito, aquilo que te move a liderar uma empresa, uma ideia, uma inovação. Isso torna muito mais confortável a compreensão de que, juntos, podemos criar uma solução. O projeto de agrofloresta têxtil, por exemplo, é megainovador, eu nem sei como vou desenhar isso do ponto de vista contábil ou jurídico. Mas é um pensamento de cooperação, que eu acredito ser extremamente contemporâneo e voltado para o futuro.

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Outro grande exemplo é a Justa Trama. É uma cooperativa que existe há mais de 15 anos, formada por um conjunto de cooperativas que trabalham com algodão agroecológico – uma se dedica ao algodão, outra à fiação, uma terceira à tecelagem, uma quarta à confecção. Ou seja, essa ideia do cooperativismo também pode integrar e se fortalecer na narrativa das empresas do futuro. Como podemos ter empresas que lucram, mas colaboram, trabalham em cooperativa, se retroalimentam? A Justa Trama é um caso superlegal. Lala Deheinzelin Flavio, como isso acontece em outros países? Flavio Grynszpan Uma das coisas interessantes do mundo atual é que não existem mais barreiras, ou seja, podemos ter soluções das quais todos participem. É claro que há culturas mais adaptadas às ideias colocadas pela Flavia, como é o caso da Europa. Mas estender um projeto ao mundo é fácil hoje, porque todos estão antenados. No entanto, eu tenho uma visão de que, no fundo, vamos precisar de dinheiro, ou seja, não basta só a ideia. Há muitas ideias, e todas elas são importantes, mas aquelas que sobrevivem dependem de resiliência e de que alguém acredite nelas. Então, para atrair o capital privado, você precisa ter um negócio, porque o capital privado não é bonzinho. O ESG [sigla em inglês para Environmental, Social and Corporate Governance, ou Governança Ambiental, Social e Corporativa] trouxe uma visão, uma pressão corporativa sobre temas que começam a ser interessantes para as grandes corporações. Mas é preciso ter algo que puxe – ser um bom negócio, ter uma visão ambiental –, porque as empresas não são boazinhas. Então, o que quero dizer é que é possível avançarmos pelo lado corporativo, seja criando uma empresa, seja juntando várias startups e trabalhando em conjunto com elas, que é outro tipo possível de cooperação. Graça Cabral Flavio, como você atrai investimentos para o Instituto iCorps Brasil?

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Flavio Grynszpan O meu modelo de negócios é o seguinte: como eu não consigo bancar a operação inteira durante todo o tempo, estabeleci uma espécie de membership, ou seja, as empresas e os parceiros pagam uma anuidade. À medida que eu sou bem-sucedido, eu atraio mais parceiros. E por que eles se associam? Porque querem ter acesso às startups, ou seja, as startups são o bem comum. Portanto, eu as atraio com uma anuidade relativamente baixa, elas participam e eu as ajudo a vencer o vale da morte. O que eu faço para os meus parceiros? Eu crio ecossistemas com as startups deles, ajudo a aprovar projetos na FAPESP, uma série de coisas. As startups querem a parceria com eles, e vice-versa, então é um processo de integração entre os participantes. Por sua vez, esse ecossistema atrai mais membros, porque outros querem participar. É uma bola de neve que vai crescendo. Quer saber quanto tenho de ajuda do governo nisso? Zero. O ecossistema precisa funcionar, todos têm interesse em sobreviver, em crescer, mas há zero participação do governo. Graça Cabral Flavia, existe algum modelo no exterior que trabalhe do mesmo modo que você? Flavia Aranha Há vários modelos. Existe uma tendência de tecer esses ecossistemas de maneira a criar uma rede mundial. Um exemplo legal é a Maiwa, um instituto no Canadá onde eu estudei, por isso pude conhecer de perto. Eles também trabalham com tingimento natural, com uma presença bastante forte e de muitos anos na Índia. O instituto tem um modelo de negócios com vários braços que se retroalimentam: vende decoração e roupas; vende conhecimento por meio de uma escola de tingimento natural, com professores e artesãos do mundo todo; vende as matérias-primas, os corantes, os extratos. Eu sou estilista de formação e fui aprendendo a ser empresária na marra. Vivemos em um mundo extremamente cartesiano, em que precisamos ser objetivos e pragmáticos, as ideias devem ter

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Ateliê da marca Flavia Aranha

foco e ir direto ao ponto.

Graça Cabral

Quando eu cheguei com a minha empresa, que tinha roupa, curso, projeto, tecnologia, quantas vezes eu ouvi: “Flavia, você tem de focar, você abre muitas portas”.

Flavia, estamos vendo uma mudança grande de hábitos e de comportamento do consumidor, que está mais atento, mais crítico, mais preocupado com essas questões. Como isso ajuda no movimento de transformação?

Mas a Maiwa está aí há 30 anos, expandindo, fazendo parceria com faculdade, então você começa a ter um olhar de rede, integrado. Por isso é um bom exemplo de que, claro, é preciso ter um foco, que no caso deles é a pesquisa com tingimento natural e, no meu, é a pesquisa com as matérias-primas circulares, mas a partir daí podemos criar braços e conexões, fortalecendo outros negócios e nos retroalimentando. Em todos os continentes, há empresas e empreendedores olhando para sistemas mais naturais e tentando incorporá-los nos negócios do futuro. Há realmente uma mudança de visão. Posso citar “n” exemplos de empreendedores que estão estudando e trabalhando com isso em todos os cantos do mundo.

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se identifique com esse estilo – e nesse aspecto voltamos para uma ideia de moda.

Flavia Aranha É fundamental, e nós vemos essa mudança. É interessante observar também a relação das marcas com o seu público a partir da ideia de transparência, de dividir processos. Desconstruímos um pouco uma noção criada nos anos 1980 e 1990 de que as marcas têm de domesticar e induzir os seus clientes.

Mas, além de usar essa roupa, a cliente começa a entender que ela faz parte desse movimento. Vemos “n” situações de clientes que começam a colaborar conosco ou que, a partir do encontro com a marca, começam a criar projetos que têm sinergia. Então, de novo, há ideia de retroalimentação. Dessa forma, vamos formando uma comunidade, e eu acredito que isso é uma tendência. As pessoas estão mais abertas a esses temas, querem de algum jeito se abrir a essas mudanças e espalhá-las.

Nós partimos de uma troca, uma integração entre marca e consumidor. Eu sinto que os clientes passam a ser uma espécie de embaixadores das marcas, porque essa relação transpassa a ideia de compra e venda, é mais próxima à de comunidade.

Tenho muitas clientes influenciadoras digitais que faziam parte de uma moda extremamente fechada e começam a nos chamar para pensar novas parcerias. Ou marcas pequenas que buscam um diálogo para juntar duas, três empresas e criar uma solução porque não dão conta sozinhas, e aí essa cliente vem junto. Então, o contexto está propício.

É claro que uma cliente só vai comprar uma roupa da Flavia Aranha se achar bonita, ela só vai vestir essa peça caso se sinta bem com ela e

Óbvio que ainda são nichos, óbvio que temos um comportamento de massa que pode parecer

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totalmente contraditório a essa narrativa, mas, sem dúvida, é um movimento crescente de mudança de comportamento e de mindset. Isso colabora muito com startups e com ideias que querem olhar para esse caminho, sem dúvida.

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06.04 11h—13h convidados

Ana Carla Fonseca Garimpo de Soluções Lia Coelho SciGrow

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Inovação é só para as grandes?

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Casos exemplares de inovação que parte de pequenos e transborda para vários setores Ana Carla Fonseca

CEO da Garimpo de Soluções

Eu reuni uma série de gráficos e exemplos que podem ser interessantes para a nossa conversa. Começo trazendo o fio dessa provocação – inovação é só para os grandes? – a partir da imagem ao lado. Trata-se de uma plataforma de estudos organizada pelo Fórum Econômico Mundial, mas cada pedaço dela tem a curadoria de alguma instituição — de grandes escolas de negócios ao Nesta [instituição de inovação do Reino Unido]. Da forma como ela funciona, você escolhe uma palavra, começa a ver todos os desdobramentos dessa palavra e vai puxando os fiozinhos. Eu trouxe para o centro desta conversa a palavra “inovação”, para que possamos ter certeza de que olhamos todos para a mesma foto nessa nossa conversa. Quando falamos de inovação, abrangemos cinco subcategorias: inovação em governo, inovação

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em modelos de negócios, inovação tecnológica, inovação para o benefício social e sistemas de inovação. O interessante, quando puxamos esses fios, é entender onde nós podemos dar foco num contexto como o nosso, no Brasil, e os elementos que devem ser considerados para conseguirmos ao menos enfrentar um desafio tão complexo como o que envolve o conceito de inovação. Sistemas de inovação, por exemplo, abrangem de questões vinculadas a investidores privados, agências governamentais à Quarta Revolução Industrial, a cidades e urbanização, a como fazemos capacitação. São todos ingredientes que temos de compor de uma forma muito própria, à luz dos desafios que enfrentamos, para dar conta do imbróglio que temos pela frente. Trouxe aqui alguns dados para situar melhor o contexto do Brasil frente

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Agenda / Innovation - The stories shaping the Global, Regional and Industry agendas. World Economic Form, 2021. Disponível em: <https://intelligence.weforum.org/topics/a1Gb0000000LrSOEA0?tab=publications>. Acesso em 14 de abril de 2021.

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ao resto do mundo. Outra referência da qual gosto muito é do Nosso Mundo em Dados, um site livre que reúne de questões vinculadas a saneamento até a que vocês veem aqui: o número de envolvidos em pesquisa e desenvolvimento

por milhão de pessoas, com dados de 2015 – o mais recente disponível para nos situarmos no contexto mundial.

Se observarmos, acima, que a curva de crescimento populacional da América Latina e do Caribe, onde o Brasil se encontra, percebemos que muitos desafios que temos que enfrentar dialogam com questões do século 21, mas também com questões quase do século 19.

Researchers in R&D per million people, 2015. Our World in Data, 2021. Disponível em: <https://ourworldindata.org/grapher/ researchers-in-rd-per-million-people?country=~CHN>. Acesso em 14 de abril de 2021.

Se olharmos, no quadro acima, a Coreia do Sul, Estados Unidos, Alemanha, Escandinávia, temos no mapa tons de roxo e violeta; e uma série de outros países com cores mais esfumaçadas, como é o caso do Brasil, que mostra o nosso fôlego.

Voltando à questão da inteligência estratégica, que é a base de dados do Fórum Econômico Mundial, trouxe um recorte em inovação social, porque eu acredito que tem muito a ver com nosso contexto de Brasil e, especialmente, com o que enfrentaremos pela frente.

Acho importante levar isso em conta porque se percebe que, apesar de o Brasil ter proporcionalmente uma quantidade menor de pesquisadores — e isso tem uma série de causas —, temos uma qualidade que é incrível.

Ao falar sobre inovação social, o que devemos considerar? O papel de governo, o investimento de impacto, a inovação social por parte das empresas, um empreendedorismo voltado também às questões sociais e mudanças de sistemas.

O que leva à conclusão de que, se o país tivesse mais investimento em pesquisa e desenvolvimento, conseguiríamos dar saltos maiores para recuperar o atraso proporcional que temos em relação aos outros.

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crescimento populacional na região —, na década de 2050, ou até 2060, pelo andar da carruagem. Então há muita gente entrando no mercado, necessitando de acesso a bens e serviços, e teremos que lidar com isso.

Uma delas é ainda o crescimento populacional: no gráfico, segundo os dados disponíveis na ONU, só devemos atingir um decréscimo de população — ou seja, a reversão da curva de

Então temos uma série de questões vinculadas a isso, de modelos de financiamento até governança ágil, como se costuma falar nessa nova metodologia, economia circular, negócios familiares, e daí para a frente. Por que isso é importante?

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Continuamos com um índice de desigualdade muito grande: o Brasil essa linha vermelha que vocês veem acima, à direita, que está próxima aos 60 em 1979. Quando chegamos perto do final da série histórica, em 2015, vemos que há um decréscimo dessa linha, mas ainda próximo de 50 – quão mais alto o Índice de Gini, pior é a situação do país.

como é o caso da desigualdade, que terão de enfrentar em algum momento — a China segue a mesma pauta. Abaixo, um último gráfico, para somar essa nossa cesta de desafios, é o que vem do relatório fresquinho de tecnologia e inovação da UNCTAD, a Conferência da Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento.

Para referência, as duas linhas mais baixas são da Finlândia e da Itália, que é um país com o qual nós nos sentimos mais próximos. Vejam que a Itália está por volta de 35, uma situação mais ou menos estável, e a Finlândia, que é um desejo de consumo, está abaixo de 30.

Ele compara uma base de países que investem bastante em pesquisa e desenvolvimento, que são o que eles chamam de “core”, a linha laranja, com os países mais periféricos, nos quais o Brasil se insere.

Então, há idas e vindas no grosso da América Latina, de modo geral, mas sempre numa base muito alta. Paralelamente, há os Estados Unidos, que é outra situação, porque eles investem muito em ciência aplicada e em pesquisa de ponta.

Até 1700, 1800, 1860, quando começa a segunda safra da Revolução Industrial, nós tínhamos uma distância relativamente pequena. Ou seja, com investimentos um pouco mais focados, contínuos e robustos, conseguiríamos alcançar os países que estão na ponta.

Vejam como as coisas não estão necessariamente correlacionadas: eles têm um Índice de Gini crescente. O país tem uma base de desenvolvimento de ciência e tecnologia, mas, apesar disso, vêm com desafios sociais grandes,

Conforme o tempo vai passando – a série histórica vai até a última onda da indústria 4.0 –, essa distância passa a ser exponencial. De novo, o gráfico mostra essa ideia de que precisamos fazer investimento nas duas pontas, porque

temos desafios de diferentes séculos a vencer. Desafios com uma base social enorme por conta da desigualdade de um contingente populacional crescente, então é um desafio de inovação social; ao mesmo tempo, não podemos deixar de investir em tecnologia de ponta para conseguir, em algum momento, nos aproximar dessa curva laranja. Ou seja, temos que trabalhar esses dois flancos contemporaneamente. Essas questões em relação ao futuro se inserem num curto prazo, que já se mostra uma realidade para nós, e soma três ingredientes. Um é o desafio de investir em pequenos negócios, os que têm sido mais atingidos pela pandemia – e o Brasil não é exceção, obviamente. Outro desafio é o de lidar com empreendedorismo feminino – um estudo da Wunderman Thompson sobre 100 tendências para 2021 chama essa recessão em que estamos entrando, inclusive de forma jocosa, de she-session, porque ela atinge as mulheres de forma mais pronunciada. Então é sobre como trabalhamos esse contingente feminino com todo o empreendedorismo que ele traz. Também há uma questão vinculada aos jovens. Durante muito tempo falávamos sobre os millenials, essa turma que, grosso modo, nasceu entre 1980 e 2000. Agora, o novo termo que se cunha é dos pandemials. São os jovens que começam a chegar ao mercado de trabalho ou avançando na carreira acadêmica durante a pandemia e estão sem perspectiva. Porque se para nós, que temos mais safras, crises sejam algo com

Income inequality around the world, 2021. Our World in Data, 2021. Disponível em: <https://ourworldindata.org/income-inequality>. Acesso em 14 de abril de 2021.

Technology and Innovation Report 2021. UNCTAD, 2021. Disponível em: <https://unctad.org/page/technology-and-innovationreport-2021>. Acesso em 14 de abril de 2021.

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Então temos que lidar com especial carinho com esses três públicos: dos pequenos, das mulheres e dos jovens. Para ajudar a pensar nesses casos, trago alguns exemplos de temas vinculados a eles, que claramente começaram antes da pandemia, mas que se mostram ainda mais valorosos agora. Histórias feitas a partir de pequenos e que, invariavelmente, começam por uma questão de muita empatia e visão sistêmica ampla e conectada. O primeiro caso é do Ronaldo Tenório, um rapaz que tinha os seus 23, 24 anos e fazia faculdade em Maceió. Então, falamos de uma região periférica dentro de um país periférico como é o Brasil. Ele ouviu a entrevista de uma mãe no rádio, que relatava a sua dificuldade de se comunicar com o filho, que era surdo. Ela dizia ficar sem saber se o filho entendia, na sua completude, o sentido de “eu te amo”, quando ela dizia a ele.

No mundo, 80% das pessoas com esse problema auditivo têm também problema de alfabetização Ronaldo ficou profundamente chocado. Nunca havia tido contato mais próximo com pessoas com esse problema de acessibilidade por surdez. Também não tinha vínculos com essa questão em termos acadêmicos, mas começou a se enveredar por esse mundo e, resumo da ópera, criou uma startup chamada Hand Talk, que essencialmente trabalha com o Hugo, um avatar que traduz o que falo em português para a língua de libras. E aí eles vasculharam os diferentes sotaques, das diferentes versões de libras regionais. Porque, assim como temos variações regionais na língua falada, como do gaúcho ou do alagoano, também isso teria que ser traduzido em libras.

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o que já estamos relativamente acostumados, para quem nunca passou por uma, chegar a um batismo de fogo, como a que se enfrenta no Brasil hoje – uma crise econômica, política, sanitária e de organizações e instituições de um modo geral – é algo muito pronunciado.

Avatar Hugo, da startup Hand Talk, tradutor para libras

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Então o Hugo não só traduz o que eu falo em português para a língua de libras, como traduz

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libras para o português falado. De modo que se eu quiser me comunicar durante uma festa com alguém que fala libras, consigo colocar, no celular, esse avatar para fazer o trabalho de intérprete. Há uma grande justificativa de mercado envolvendo esse projeto. No Brasil, são 10 milhões de pessoas com esse tipo de dificuldade. No mundo, 80% das pessoas com esse problema auditivo têm também problema de alfabetização. É algo que nem sempre é óbvio para quem ouve plenamente. Costumase pensar que a pessoa não tem audição, mas consegue ler, e isso não é a realidade, tampouco no Brasil.

É um trabalho de pioneirismo, de responsabilidade social e até de geração de tráfego para o site dessas empresas, a partir do momento em que elas incorporam o Hand Talk. Uma questão que vem, cada vez mais, sendo respaldada por uma necessidade legal.

O segundo caso também começa por uma questão muito empática e muito interessante: a Boomera, do Guilherme Brammer, engenheiro que começou a ficar muito tocado com a questão de economia circular pelo envolvimento dele, inclusive, com o tema.

Eles ganharam uma série de prêmios, não só no Brasil - foram destacados pelo BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento] e no Impact Challenge de Inteligência Artificial do Google, conseguindo projeção mundial. E isso a partir de uma pessoa, que se une a dois colegas, que em princípio não teriam nada a ver com o problema para mostrar que todo o mundo tem a ver com todos os problemas, pois fazemos do mesmo contexto.

Ele desenvolveu, dentro dessa lógica, uma empresa que transforma qualquer coisa em ingredientes para novas produções — eles dizem que eles transformam até o inimaginável.

Para envolver as pessoas além do cargo e fazer com que esses executivos tenham a visão do que ele está falando, eles organizam, por exemplo, fins de semana em que vai o CEO, ou o diretor da empresa, com seu filho a uma praia que, em princípio, parece limpa. Daí eles se enveredam pelos mangues atrás da praia e recolhem dezenas de toneladas de resíduos num fim de semana, fazendo a pessoa sentir o drama na pele. Então, digamos assim, eles vão além do crachá: mexem com a pessoa física e com o executivo.

Então eles pegam tudo quanto é descarte e transformam o material em insumos para novas produções de grandes empresas, como Danone, Unilever, Procter & Gamble, e até para produtos como instrumentos musicais.

Vasculhando esses dados, eles perceberam que só 1% dos sites fazem esse trabalho de tradução. Então, deram um passo além, que consistiu em abrir a possibilidade de o Hugo ser inserido em sites, de modo que se abre uma janelinha e, a partir disso as pessoas conseguem ler os textos. Temos aí uma imensa possibilidade de inclusão, não só de cidadãos (como se já não fosse suficiente), mas também de trabalhadores. E a abordagem que eles fazem junto às empresas, por exemplo, é muito racional do ponto de vista de entregas e de metas.

O engenheiro Guilherme Brammer, criador da Boomera, que transforma qualquer tipo de descarte em matéria-prima para novo uso

Há também esse papel social da Boomera se envolver em questões que são vinculadas a necessidades de pessoas em dificuldade, como é o caso das crianças que gostariam de tocar e não tinham instrumentos. Então, através de parcerias, os resíduos são coletados, reprocessados e se tornam instrumentos musicais. É um trabalho que eles desenvolvem em paralelo à questão do desenvolvimento junto das empresas.

Ronaldo Tenório, criador da Hand Talk, startup pioneira de grande impacto social

Instrumentos musicais feitos de embalagem de refresco em pó pela Boomera

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Eles têm uma metodologia própria. Começaram com uma empresa pequenininha e foram comprando fábricas. Ao mesmo tempo, fazem questão de manter o laboratório de desenvolvimento dessa tecnologia de ponta fora dos prédios da empresa, na Faculdade de Engenharia Mauá, onde o Guilherme estudou, justamente para manter um diálogo com a academia.

da Folha de S. Paulo e foram reconhecidos pelo Fórum Econômico Mundial dentro daquelas pílulas de sucesso [Reunião Anual de Novos Campeões, criada pelo Fórum]. O próximo exemplo está em outra temática, mas os processos são muito próximos do ponto de vista de entendimento de contextos, de análise sistêmica, de empatia e de promoção de conexões.

A partir dessa empresa pequena, a Boomera ganhou prêmios como o de Empreendedor Social

Brasil em 2013, da cooperativa La Juanita. A Juanita fica na periferia de Buenos Aires. Durante uma safra de grandes programas de alcance social por meio de um repasse de renda, eles tiveram a ousadia de dizer para o governo que não queriam esse repasse. Eles não queriam “bolsas alguma coisa”, queriam acesso a emprego. Como não lhes era dado, resolveram criar uma rede de possibilidades para ter acesso a trabalho. Criaram uma creche para as próprias pessoas da comunidade da Juanita cuidarem dos filhos umas das outras, liberando tempo para que as outras pudessem trabalhar – porque não havia uma rede de creches nessa região, que inclusive é bem grande. Fizeram, em seguida, uma parceria com a Universidade de Belgrano, que é muito conceituada, para as pessoas da comunidade terem acesso a ensino, inclusive de formação técnica.

Criaram uma padaria para fazer com que as pessoas da comunidade conseguissem acesso ao que seria ao pão de todo dia, equivalente ao pãozinho francês daqui, a um preço mais baixo — e essa mesma padaria faz outros produtos como tortas, cookies, pizzas, panetones, que eles vendem ao longo do ano na cidade de Buenos Aires, com uma embalagem desenhada por um designer superconceituado na Argentina, que é o Martín Churba. Uma mulher que é um ícone da culinária, como a nossa Palmirinha ou a Rita Lobo, com programa de culinária na cozinha, endossa essas produções deles. Então eles unem “embaixadores” muito midiáticos para promoverem esse panetone, que é vendido na cidade de Buenos Aires a um preço alto, justamente para bancar os outros programas. A partir disso, eles seguiram promovendo uma série de outras coisas, como, por exemplo, catering corporativo, sempre com as pessoas da comunidade. Criaram também, a partir dos membros formados pela área educacional da cooperativa, serviços de call center, serviços

Pequenos produtores de orgânicos e senhoras cozinheiras de baixa renda são beneficiadas pela startup duLocal

A duLocal é uma startup que surgiu em São Paulo, vinculando questões como acesso à renda nas comunidades e as dificuldades das pessoas terem uma alimentação saudável assim como de entenderem que essa alimentação pode ser gostosa. Eles trabalham com grupos de pequenos produtores de orgânicos em Parelheiros, no extremo sul da cidade de São Paulo, pegam esses ingredientes superfrescos, colhidos no dia, e levam para um grupo de senhoras que cozinham na favela de Paraisópolis. Elas foram treinadas dentro desse trabalho junto aos ingredientes por nutricionistas, incluindo todo um cuidado com a água e com a forma como tudo é feito. Elas cozinham esses pratos e o resultado são dois menus por dia, entregues na

cidade de São Paulo em embalagens recicláveis para quem compra o prato avulso ou tem uma assinatura. Assim, a startup atinge tanto os pequenos produtores de orgânicos quanto essas senhoras, que têm um acréscimo de renda. Além de levantar essas bandeiras, ainda entrega uma alimentação saudável para pessoas na cidade. Isso mostra que há várias questões trabalhadas a partir do pequeno e que, muitas vezes, não são necessariamente escaláveis, porque chega uma hora que você bate no teto, mas são transponíveis como processos. Isso é muito potente: tanto a escala quanto a transposição. Mudando de contexto brevemente, quero falar de um caso da Argentina que trouxemos ao Creche criada pela cooperativa La Juanita para a respectiva comunidade

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digitais e de manutenção de computadores. Assumiram, por exemplo, uma parte do call center do Santander na Argentina. Com o trabalho de manutenção de informática, as crianças e os jovens da comunidade começaram a ter acesso a computadores e, a partir daí, criaram o trabalho mais de ponta deles hoje, que é o Potrero Digital.

A partir dessa dignidade é que hoje eles têm uma universidade local, colocaram asfalto na comunidade, que antes não tinha É outra vertente de serviços, com toda uma série de cursos, desenvolvidos com uma fundação chamada Fundación Compromiso, de capacitação dessas pessoas para os serviços digitais 4.0. Então vejam que de creches a cursos técnicos, de questões de ponta a capacitação em gastronomia, o que puderem imaginar: eles fizeram tudo isso a partir de um basta, dizendo “não queremos repasse de renda, queremos dignidade”. A partir dessa dignidade é que hoje eles têm uma universidade local, colocaram asfalto na comunidade, que antes não tinha, fizeram com que as pessoas pudessem estudar e lá

permanecer e, assim, ter uma série de novas possibilidades de inserção no mercado de trabalho. Tudo a partir de um conjunto de pequenos e dessa rede colaborativa. Para encerrar, vamos até o Chile, com um caso que, de novo, mostra a escala do pequeno fazendo uma tremenda diferença, tanto como ponta de lança, como aglutinamento de pessoas capacitadas. A história parte de um casal: ele é chileno e ela, alemã. Eles resolveram, com os dois filhos pequenos, morar no Sul do Chile, quase na Patagônia — novamente, uma região periférica dentro de um país periférico — e passaram a reunir todos os elementos de mais primazia no feitio dessa região. Entre eles, uma turma de artesãos que trabalha barro como ninguém, outra que trabalha som como ninguém. O resultado é o projeto Mapuguaquén (o mesmo que “o som da terra”, na língua mapuche), que produz esses vasos/caixas de som Bluetooth feitos de argila, madeira, couro e lã. O que eles fazem é envelopar a expertise dos vários saberes ancestrais dessa região dentro de uma tecnologia de ponta. Há todo um trabalho de valor percebido, que eles incorporaram nesse produto. Esses speakers são vendidos na Europa por 600, 800 euros, então é algo dignamente remunerado para que eles possam remunerar todos os pontos da cadeia, e não ficarem só com o valor agregado, mas também com o valor compartilhado.

A invenção da caxemira sustentável made in Nordeste Lia Coelho

Fundadora da SciGrow e criadora do projeto Cashmere Brazil

O projeto Cashmere Brazil vem muito do propósito, do que você quer para a sua vida e para a vida dos outros. Não é sobre pensar no seu umbigo, mas no mundo em geral, nas pessoas, nos seres humanos, na natureza. Porque daqui um tempo, eu não estou mais aqui, mas e o restante das pessoas que estarão? Essa preocupação veio para o projeto, que surgiu sem querer no meu mestrado, quando descobri que alguns animais no Brasil apresentavam essa fibra de caxemira. Sou graduada mestre e doutora em zootecnia, que é um curso que cuida da produção animal em geral, assim como cuidados para não deixar os animais doentes, incluindo toda a parte de nutrição. Ali, eu descobri os animais produzindo essa fibra e já cheguei com o viés de cientista. A minha pergunta foi “cara, o que é isso?” – eu estudo

Produto eco-friendly high-tech: vaso/caixa de som de cerâmica, couro e lã do projeto Mapuguaquén

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o que está acontecendo no mundo, o que é e o que posso fazer com aquilo, se tem valor ou não. Então, eu me debrucei profundamente no mundo têxtil, apaixonei-me por esse mundo, e aí eu descobri o que era caxemira. A primeira definição de caxemira, para as pessoas comuns, é que “vem de cabra”. No papel de cientista, eu não podia ficar nisso: precisava de dados científicos para poder comprovar fisicamente que aquilo era caxemira; eu ia escrever uma dissertação e depois uma tese. Então, eu descobri que encontrei a fibra mais fina de caxemira do mundo. É uma descoberta importante, pois é algo que acontece normalmente em lugares muito frios, na região do Himalaia, com invernos rigorosos entre 10 e 40 graus negativos, por isso essa fibra é tão importante para os mongoleses e na China em geral.

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Mas reconhecemos que ela estava sendo produzida no Nordeste brasileiro, onde há micronichos de dias extremamente secos e noites frias. Ali, os animais estavam se protegendo do frio da noite, com 10 graus contra 50, 52 graus durante o dia: essa mudança brusca fazia com que o animal se tornasse capaz de deixar ativado o gene para a produção de caxemira.

animal come no coche. E isso tem vantagens.

O mais legal dessa caxemira brasileira é ser diferente do mundo todo. Lá, a fibra é arrancada num processo que eles chamam de dehair, enquanto aqui o processo é natural. Quando acaba o inverno, a fibra entra em contato com o calor e, no estresse térmico, ela simplesmente se desprende. Se você não tirar, ela sai da mesma forma.

Imagine o seu pet em casa, que adora uma escova: é exatamente a mesma que usamos, uma escova que custa R$ 11. Esse é o investimento para começar a produzir caxemira. Com ela, o criador escova os animais, o que faz bem para as cabras, que são bem tratadas. Elas adoram essa escovação, esse manejo, o contato com o ser humano.

Essa produção tem várias vantagens. Tanto que nós ganhamos muita visibilidade porque conseguimos atender a 9 dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Um deles é porque a fibra é muito limpa, então preserva o objetivo de número 14, que é em relação à água.

Esse processo diminui o estresse dos animais, o que faz aumentar a produção de leite, e melhora a aparência geral deles também. O que o criador quer é vender, e se ele chegar com uma fibra de baixa qualidade, cheia de piolho, sarna, eu não compro – ninguém no mundo compra uma fibra contaminada, cheia de problemas.

A produção também não degrada a natureza; as cabras da raça cashmere, que ficam na região do Himalaia, degradam o solo, elas comem tudo. Imagine que no começo eram 10 mil cabeças e agora são 10 milhões no mesmo lugar, comendo a mesma coisa.

Então ele tem a obrigação de manter os animais sadios, tem obrigação de mantê-los sempre escovados, porque cada micrograma de fibra que cai no pasto é um prejuízo para ele. Veja a quantidade de coisas que você soluciona só falando: “Colete a caxemira, se você não tiver os R$ 11, eu te dou a escova, e vamos inovar na fibra têxtil”.

Então, a natureza está bem degradada. No Brasil isso não acontece e muita gente pergunta: por que isso não acontece aqui? É por conta da forma de criação, pois a zootecnia brasileira avançou muito e produz-se o alimento que o

Outra vantagem é que o animal não sofre quando se tira a fibra para produzir a caxemira brasileira. É a coisa mais linda, temos muitos vídeos com as cabras felizes, porque elas adoram o processo. Algumas precisam ser presas porque querem continuar a ser escovadas.

A ideia também não é baratear esse material, que continua a ser uma fibra não só de luxo, mas de alto luxo. Muita gente comenta “ah, então agora o pobre poderá comprar caxemira”. Não é essa a função do projeto, pois, se você barateia esse material, vai remunerar menos esse criador. Para produzir um cardigã feminino, que consome menos matéria-prima que uma peça masculina, eu preciso de cerca de 300 gramas de caxemira. Isso equivale a cerca de 4 ou 5 animais por ano recebendo essa escovação. Imagine o trabalho que isso dá, são 40 processos até chegar à peça final. A maior parte são de processos industriais até chegar no fio e envolvem patentes — algumas minhas, outras que são segredos industriais das grandes manufaturas italianas sobre como processar um fio desse. Também sobre como trabalhar um fio ainda mais fino que o usual: o mais fino do mundo tem 14 micrômetros, e nós conseguimos produzir, com um animal adulto, um fio que tem por volta de 8,46 micrômetros.

Quem paga valores altos numa peça, quer algo não apenas fisicamente confortável, quer propósito, quer valor agregado dentro desse produto Outro ponto em que houve aumento de valorização: as cabras passaram a valer muito mais vivas do que mortas. Muitos criadores de caprinos Boer, que é uma raça de criação para corte, simplesmente pararam de abater os animais porque eles agora valem mais dentro de um leilão, para serem reprodutores e também para manter a coleta. Afinal, se depois de coletar a fibra, eu sacrifico o animal para retirar a carne, eu perco aquela produção. Então, o criador percebe que não vale tanto a pena e diz: “Não vou matar, a minha criação agora é de caxemira”.

pequena de material. Atinjo as grandes quando começo a chegar na moda de alto luxo, que é um mercado bem pequeno, extremamente único e que quer coisas únicas. Quem paga valores altos numa peça, quer algo não apenas fisicamente confortável, quer propósito, quer valor agregado dentro desse produto. A caxemira engloba tudo isso. Ela vem do meu propósito de ajudar esse criador, de ajudar a mulher que faz a coleta, porque ela tem mais paciência, é mais delicada.

A caxemira também erradica a pobreza, pois aumenta o nível social das pessoas, que passam a ter uma nova renda. A partir daí elas param de sair das pequenas cidades, se mantêm lá e não vão para os grandes centros. A força do projeto Cashmere Brazil vem muito desse propósito, essa vontade de pegar aquele produto, descobrir o que é e pensar quem pode ganhar dinheiro com aquilo. Se o criador pode ganhar, como vou fazer para chegar neles? Existe todo um envolvimento, uma cadeia gigantesca, que vai do início da coleta e criação desses animais até a moda final e a valorização dentro desse mercado.

Com tudo isso, eu afetei o pequeno criador, eu afetei a média e a grande empresa. Eu não preciso de uma grande empresa para processar esse material, porque temos uma quantidade

Fibra, fio e tecido de caxemira brasileira: matéria-prima para produto de alto luxo

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A cientista Lia Coelho

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mais + dos convidados Convidados do painel Inovação é só para as grandes?

Graça Cabral Lia, gostaria que você falasse sobre o transbordamento do trabalho de pesquisa dos cientistas, que muitas vezes fica enclausurado na universidade e não chega ao mercado. Como se faz a ponte entre a academia e as empresas, que também estão buscando soluções? Você criou uma plataforma pensando nisso, não é? Lia Coelho Sim. São poucos os cientistas que têm a cabeça empreendedora. Não somente a capacidade de empreender, mas de fazer um pitch e apresentar o que ele consegue realizar e como isso podegerar ganhos; a dificuldade é enorme. É como se falássemos um idioma extremamente diferente de qualquer outra pessoa. Os cientistas têm uma grande dificuldade. Vi na minha formação de mestrado e doutorado que eu conseguia fazer essa comunicação.

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Eu trabalho no NIT-Rio [Núcleo de Inovação Tecnológica], uma instituição federal que é um arranjo de oito órgãos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. Além desses órgãos, há universidades agregadas. Como eu faço a conexão entre esses cientistas e o cara da empresa? Veio daí a ideia da plataforma SciGrow, que ganhou o prêmio Shell Iniciativa Jovem em inovação. Recebemos também um selo de empresa sustentável. É um suor enorme, porque é muita documentação, e trabalhamos profundamente nisso. Temos em mãos 400 patentes, das quais 16 já estão em andamento. Eu sei que, do outro lado, existe a necessidade da empresa, então temos esses dois pontos para conectar. Como eu faço isso?

Daí, eu criei, além da Cashmere Brazil, a SciGrow, uma nova empresa de base tecnológica que vem da necessidade de traduzir essa linguagem do cientista para o mundo.

Não adianta ligar para a empresa e falar para ela contatar o pesquisador, como antigamente. Isso não estava dando certo e tudo continuava no papel. Entrei para substituir outra empresa que fazia esse serviço e pensei: “Não farei a mesma coisa. Já que sou cientista, penso como cientista, mas também penso como empresária, vamos unir esses dois jeitos”.

O Artigo 21 da Lei da Inovação permite atingir as micro e pequenas empresas, o que é muito importante. Então, como eu traduzo para o microempreendedor o que o cientista falou?

Quais são as dificuldades para essa comunicação? A primeira resposta dos cientistas foi: “Eu morro de medo”. Eles morrem de medo de fazer qualquer coisa e não estar na lei. Eles po-

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dem ser auditados pela União, e isso é um processo catastrófico par a eles. O meu primeiro problema era tirar esse medo, dar segurança jurídica a eles, porque não há como evoluir com medo. É esse o gargalo, e não só a tal da comunicação dos cientistas, como todo mundo acreditava. Há muito mais questões envolvidas nisso. Por mais que tenhamos uma linda lei, na prática não funciona de maneira tão fácil. Para solucionar isso, a plataforma, que está em pré-lançamento e será internacional, dá ao cientista acesso de forma 100% gratuita a todas as leis. Não é algo muito fácil, e a maior dificuldade está nas leis brasileiras. E quando eu falo “cientista”, estou me referindo desde o cara que inventou algo no Ensino Médio até o grande pesquisador, porque eles têm as mesmas dores. Também procuramos resolver como fazer para que o cientista possa criar um produto, um serviço ou transferir o seu know how de forma segura. A pessoa que é bolsista, por exemplo, assina um documento afirmando que ela não pode receber dinheiro de qualquer outra fonte. Então, como ela pode atuar dentro da lei? Para isso, fizemos uma unificação das documentações na plataforma. Cada universidade

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no Brasil tem as suas leis internas. Se tudo for baseado na lei maior, que é a Lei da Inovação, eu não vou infringir nada. Então, estabelecemos esse caminho jurídico, que é aberto e de fácil entendimento tanto para o cientista quanto para a empresa. Uma vez garantida a segurança jurídica, o cientista encontra outro problema, que é como acessar as empresas. A maioria daquelas que têm uma área de Pesquisa e Desenvolvimento são grandes, enquanto a Lei da Inovação foca no micro e no pequeno. Como eu o alcanço? Então, há contratos de parcerias e acordos de cooperação que podem ser feitos, o que facilita para começar essa conversa. Isso dá segurança a ambos os lados e permite que o pequeno tenha acesso a tecnologia. Isso é importante, porque se ficarmos no ciclo vicioso baseado na Vale e na Petrobras, como eu vou inovar no setor de moda, por exemplo? Outro fator: o cientista brasileiro não tem uma vitrine pessoal científica de verdade. Existe o Sistema Lattes, extremamente importante, mas como cientista eu tenho uma crítica: O Lattes não me define como ser humano ou como alguém capaz de desenvolver alguma coisa em qualquer empresa, em qualquer tecnologia. Eu não tenho onde colocar ali minha capacidade de liderança, por exemplo, e isso é muito importante.

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Então, junto com a segurança jurídica, nós damos vitrine aos pesquisadores. E outra questão é a inteligência competitiva. Não adianta o pesquisador desenvolver no laboratório algo muito específico em física quântica que, quando chega na indústria, o cara não tem como receber.

Lala Deheinzelin

Portanto, quando eu começo a entender o que a empresa quer, tudo muda. Eu conecto as duas pontas conversando em uma mesma língua, sabendo o problema de cada um e se há como o pesquisador resolver. A ciência tem que sair da bancada e chegar na indústria. Precisa desse caminho.

Ana Carla Fonseca

Lia Coelho

Tanto para o cientista quanto para o artista, há questões de falta de comunicação e de falta de decodificação do valor do que a pessoa está fazendo para outros contextos. Quando falamos de Economia Criativa como o que abrange a criatividade, seja a sua manifestação em ciências e tecnologia, seja em artes e cultura, percebemos os vínculos na proximidade das dificuldades.

Vou contar minha experiência. Sou bolsista PCI [Programa de Capacitação Institucional], uma bolsa específica de órgãos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. Em fevereiro, todos fomos afastados e perdemos a bolsa, sem qualquer comunicação. Ficamos nessa situação de “e agora, o que eu farei da minha vida? Não tenho como pagar as contas”. A maioria parou a pesquisa.

Vamos combinar que o Lattes é um inferno. Quantas vezes nós, que trabalhamos com pesquisa, falamos: “Poxa, em vez de fazer a pesquisa, eu fiquei preenchendo papelada”. A burocracia é absolutamente uma via-crúcis.

Eu parei de trabalhar, porque não tinha condição. Isso se resolveu depois, mas foi aquele desespero. Então, essa sensação de angústia dos bolsistas é enorme. Essa instabilidade emocional, nós vivemos desde a graduação. Temos uma gastrite do dia em que entramos na universidade até o dia em que morremos. E isso também promove uma coisa, que é a seguinte: o brasileiro é extremamente criativo. Mas poderíamos ser criativos sem sofrermos tanto.

O lançamento da plataforma vai mudar muita coisa em relação a essa conexão. Porque o LinkedIn e o Facebook, por exemplo, não adiantam nesse caso. Eu preciso ter um espaço para dizer que sou um cientista, que eu tenho uma habilidade em microscopia avançada de transmissão de células únicas, por exemplo. Isso faz grande diferença, porque uma empresa farmacêutica interessada nisso vai me encontrar, vai ler meus artigos. Aí, eu coloco esse cara dentro da indústria, aumento a empregabilidade do cientista, que é um problema. A quantidade de doutores desempregados é gigantesca no mundo todo, em especial no Brasil. Aqui, nós estamos em desvio da nossa função. A maioria faz qualquer outra coisa que não seja ciência. Você é bom, mas o mercado não te viu. Esse é o bom da plataforma: dar vitrine ao cientista.

Ana Carla, o que você recomendaria de ferramentas e métodos para fazer a ponte entre o mundo do dinheiro e do negócio, de um lado, e o mundo do criativo e do pesquisador, de outro?

Ao mesmo tempo, percebemos um esforço de várias instituições acadêmicas e de outras vinculadas a elas, como a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), de tentar fazer essas pontes. Muitas vezes, o que emperra é a falta de paz de espírito desse cientista por não saber se no mês que vem ele receberá a bolsa, se a instituição dele estará de pé. Como você pode ter paz mental para criar se não tem a paz de bolso? Não é sobre ser milionário, mas ter uma mínima estabilidade financeira. Nesse sentido, poderíamos reunir empresas que estão comprometidas e que são muito dependentes dos nossos pesquisadores para fazer um fundo garantidor de pesquisa, digamos assim. Uma “vaquinha” para reunir o que, para elas, é dinheiro de pinga, mas que daria uma sustentabilidade financeira a um grupo de pesquisadores ao longo de determinado tempo. Se, por acaso, a bolsa dele deixar de ser paga, ele pode recorrer a esse fundo.

A retirada da fibra do caprino se dá pela escovação, o que agrada muito o animal

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Você vê o pesquisador pivotando dentro do laboratório para poder sair de uma situação em que ele não tem reagente para fazer a análise dele, não tem dinheiro. Às vezes, não tem luz na universidade. Como dizer a ele que só haverá luz em um certo horário? Que ele tem que tirar o dinheiro do bolso para ajudar os doutorandos, para se ajudar, fazer o negócio andar. Aí, três meses depois, ele publica na “Science”, na “Nature”, e você pensa “como ele consegue sobreviver com R$ 14 mil por ano dentro de um laboratório?”. Pode parecer muito, mas não é nada. O cara está escondido dentro do laboratório e quando você abre a porta tem um equipamento enorme que não foi produzido na China, mas feito internamente pelos cientistas. As pessoas dizem “ah, ele tá ganhando dois mil e quatrocentos reais numa bolsa, facinho”. Não é nada fácil, estamos ali desenvolvendo inovação, trabalhando numa coisa que ninguém nunca fez. Eu preciso estar com a cabeça sã, criativa. Aí vem essas pauladas. Então, realmente um fundo poderia ajudar muito.

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Páginas do site da empresa Garimpo de Soluções, dirigida por Ana Carla Fonseca

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Levamos especialistas para ajudá-los com a identidade geográfica, porque a fibra de caxemira brasileira, principalmente do Nordeste, tem uma característica que a diferencia da fibra do restante do mundo. Mas esse processo teria de ser conduzido pelos produtores e, quando eu volto para o Rio de Janeiro, sinto a dificuldade que eles têm de se organizar. No momento, eu estou colocando dinheiro do próprio bolso, para mim é um investimento futuro. Sou a única profissional no mundo que certifica a caxemira brasileira, e hoje faço todas as análises e classificações da fibra dos criadores de forma gratuita. Ou seja, eu estou investindo no criador para que depois ele possa ser um fornecedor da fibra. Dou consultoria de como ele faz o manejo, dou toda a ajuda, mas vejo que eles têm dificuldade em fixar a produção. Eles precisam de alguém lá, trabalhando com eles de forma maciça. Ana Carla Fonseca durante o encontro on-line

Graça Cabral Trazendo um pouco para o nosso tema, Lia, de “inovação é só para os grandes?”, como foi a dificuldade de organizar essa produção com os criadores das cabras no Nordeste, que estavam acostumados a ter os animais para outra finalidade? E também como você faz a ligação entre o produtor e a empresa que vai usar a caxemira para fazer produtos? Lia Coelho O processo todo começou com a necessidade de provar que essa fibra era possível de ser fiada. Para saber como seria o comportamento em uma máquina industrial, tive de ir para a Argentina, porque não existe no Brasil um equipamento capaz de fazer esse processamento. Com o fio em mãos, qualquer malharia no Brasil consegue processar esse material, porque ele é altamente resistente. E tenho um parceiro que me disponibilizou uma máquina para fazer a peça sem costura a partir de 3D, o que torna o desperdício quase zero e agrega valor à peça. Há uma lista de compradores interessados na Itália, mas hoje não tenho como atendê-los. Para exportar fibra de caxemira, você precisa de 700 quilos, e eu não consigo isso em uma pro-

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dução. Então, eu consigo chegar no pequeno, ir devagar. Essa cadeia ainda não está totalmente montada. Precisa de uma grande força e estrutura, que é o convencimento do produtor. Como convencêlo de que ele tem de continuar a escovar as cabras no ano seguinte? Como fazer com que ele entregue esse material? Porque a função dele seria escovar os animais. A mulher também poderia fazer um processamento de separar a fibra grossa da fibra fina. Eles ganham três vezes mais se fizerem isso, porque é algo normalmente feito à mão. Se eu fizer à máquina, a perda é maior. Recebo muitos contatos de pessoas que querem comprar o fio, mas eu não tenho para vender. Por causa da pandemia, não tivemos coleta em 2020. O que tenho em mãos é o resultado de 2019, que foi a primeira coleta de caxemira brasileira e já está processada industrialmente para produzir uma peça de cerca de 300 gramas. Estamos na etapa de buscar alguém influente para assinar essa peça, para que possamos leiloá-la e, com isso, montar um polo no Nordeste, onde os criadores entreguem a fibra. Tentamos fortalecer a criação de uma cooperativa, mas houve muita dificuldade deles em compreender esse modelo. A zootecnista Lia Coelho faz análise de fibras para o seu projeto Cashmere Brazil

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7.04 9h—11h

Criar, distribuir e vender: quais os novos arranjos? 128

convidados

Olivia Merquior DACRI DEVIATI Cairê Moreira Ateliê 4.0 Léo Rodrigues VTEX

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Logo depois do evento, fui direto para o São Paulo Fashion Week, para o Estufa, falar um pouco sobre tecnologias, sobre o que estava acontecendo no ambiente geral. Naquela época, era 2017, eu começava a sentar com algumas empresas de moda, principalmente o departamento de marketing e de estilo.

Tecnologia e moda: amplificar o real e expandir a narrativa da roupa Olivia Merquior

Fundadora e diretora da DACRI DEVIATI

A DACRI DEVIATI é um anagrama de criatividade, e o que fazemos é organizar as cabeças criativas. Então, o que talvez eu tenha mais propriedade para falar é exatamente sobre essa parte da criação e como eu tenho me relacionado com os departamentos de estilo de pequenas e grandes marcas de confecção de moda e, também, em eventos como o Première Vision. Minha relação com a tecnologia na moda começa no South by Southwest, onde fui convidada para falar por meio do Première Vision, em 2017. O South by Southwest, evento conhecido por entretenimento e tecnologia, estava se aproximando da moda. Para mim, foi muito claro o nosso papel ali dentro e o que estava acontecendo nessa aproximação. No evento, foi lançado o Google Jacquard, uma jaqueta conectada, produzida pela Levi’s em parceria com o Google. E, não à toa, o Première Vision estava falando sobre tecidos conectados.

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Falávamos sobre QR Code e parecia um grande bicho de sete cabeças, um alien. Falávamos sobre o impacto das novas tecnologias na possibilidade da criação do estilo, de fazer roupas que tenham a ver com o ambiente mais conectado, e as pessoas diziam: “Tá bom, ótimo, depois a gente conversa”. E a coisa ficou estancada durante três anos, até a pandemia acontecer. O Première Vision é um evento que existe há mais de 40 anos, e demorou quatro anos para entrar nas redes sociais. É um evento de muita tradição que fala sobre tecidos e mercado de luxo. Logo que eu entrei lá, dez anos atrás, perguntávamos por que não existia uma conta no Instagram, no Facebook, e eles eram muito reativos para entender qual seria o papel de uma empresa de luxo, um evento que vende tecidos de alta gama nas redes sociais, que é um lugar meio B2C e é também um lugar, principalmente,

A Vogue estava presente, diversos outros players da moda mundial; o Marc Jacobs participou de uma mesa com o Instagram. E o que estava acontecendo ali é que a tecnologia entendeu muito bem o que nós fazemos: criamos desejo, falamos sobre o imperfeito do ser humano, consideramos o simbolismo das coisas. Nós vestimos o que faz sentido para a nossa vida.

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Com a pandemia, tivemos que criar um evento digital em poucos meses. Esse timing e essa experiência do Première Vision, nós pudemos ver também no nosso mercado de maneira geral, de grandes a pequenos empresários. Todo mundo sabia que mergulhar no mundo da tecnologia era essencial para manter um negócio robusto num futuro muito breve, mas de certa maneira ficamos tentando apagar o fogo mais próximo e deixando essa estruturação sempre para depois. Nós já estávamos ouvindo sobre os impactos da tecnologia 5G no nosso mercado. Mas ela sempre pareceu algo muito distante. Só que, diferentemente do que muitos pensam, a virtualização, a digitalização da moda, dos espaços de trabalho, não é um distanciamento do real, a tecnologia na verdade tem a capacidade de amplificação do real ¬– acredito muito nisso. Talvez tenha ficado na nossa cabeça, por causa do filme “Matrix”, que vamos virar todos pilha, porque as máquinas vão dominar o mundo, e aí vamos viver em uma realidade virtual, paralela. Na verdade, está todo mundo em casa, estático, sem fazer nada. Não acredito que seja isso. Quando a gente começa a fazer as brincadeiras de realidade aumentada, as pessoas falam: “Nossa, não, realidade aumentada não é para mim”, mas estavam lá jogando Pokémon Go, fazendo filtro no Instagram. E tudo isso é realidade aumentada. Minha pergunta é: a sua moda, o seu produto, seu tecido, seu evento, está preparado para um mundo de realidades expandidas? Um mundo onde a sua roupa tem a possibilidade de criar uma nova camada em cima dela e expandir a narrativa da sua coleção?

Eu acho que o papel da moda é diferente do que os algoritmos, na sua precisão, fazem. Pessoas de arte e pessoas de estilo criam desejos erráticos. Conseguimos entender o que está acontecendo no mundo de uma forma menos programada e, assim, criamos significado para as peças que usamos. Naquele momento do South by Southwest, o que estava acontecendo era: não basta fazer uma jaqueta conectada, é preciso fazer com que essa jaqueta se torne desejável, que faça sentido no armário de alguém, que faça a pessoa se conectar de uma forma emocional com esse objeto.

de varejo final. E demorou quatro anos para entrar, para criarmos o “wearepremierevision”.

Eu sempre brinco: o que a gente faz quando cria uma coleção é contar uma história. Pode ser encenada num teatro mambembe, e ela vai ter recursos muito bons e afetar as pessoas num teatro de poucos recursos. Ela pode estar num teatro de grandes recursos, e aí você tem que pensar essa história de uma nova maneira.

Detalhe da jaqueta smart Jacquard, que permite interação com o celular; parceria da Levi’s com o Google

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É a mesma narrativa, mas contada com uma iluminação diferente, com possibilidades de cenários diferentes, de interação com o público diferente. Ela pode ir ao cinema e vai ter um outro tipo de interação. E, ao final, ela pode ter uma experiência num cinema 3D ou num

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ambiente de realidades expandidas. A questão, em termos de criação, é entender se aquilo que estamos fazendo hoje ainda está vivendo em um mundo anterior a todas as possibilidades trazidas pela tecnologia para expandir isso que a gente veste. Então, não é para se distanciar do real, e sim amplificar o real.

Desenvolvimento de tecnologia que cria produto para uma pessoa só

E quando discutimos se a tecnologia é boa ou má, acho que talvez uma das melhores fontes teóricas dos últimos tempos tenha sido o livro do Evgeny Morozov, “Big Tech”, onde ele diz claramente que tecnologia não tem moral, ela não é boa ou má em si, quem tem moral são as pessoas por trás da tecnologia. Então, podemos ter, sim, tecnologias ministradas, organizadas, gerenciadas por pessoas com fins exploratórios, de uma maneira geral, e podemos, sim, ter a tecnologia positiva com impactos benéficos para todo o mercado. Para entendermos o que é a tecnologia positiva, precisamos saber do que estamos falando e não deixar, como deixamos até então, para falar isso mais para a frente, quando a onda chegar. A transformação vem através do conhecimento, e é isso que a gente vem tentando fazer aqui, nos trabalhos em que tenho participado.

Cairê Moreira

Fundador do Ateliê 4.0

Eu gostaria de contar um pouco sobre o desenvolvimento do Ateliê 4.0, pois acho que essa jornada contribui muito com nossa discussão hoje. O Ateliê 4.0 é uma junção de diversas tecnologias espalhadas em diversos outros segmentos de mercado, trabalhando em conjunto para resolver um único problema: dar fim ao P, M e G, essas grades de tamanho preestabelecidas que já causaram diversos problemas para as pessoas com dificuldades de aceitação do corpo. Então, fomos procurar mercado, ferramentas que pudessem contribuir com isso. Essa trajetória teve quatro momentos: o primeiro foi de entender a dor do mercado; o segundo, a procura das tecnologias para uma solução; o terceiro momento, a evangelização da indústria de moda para fazer essa ferramenta funcionar; e o quarto, finalmente, foi conseguir colocar isso no mercado. Entender essa dor do cliente para dar um possível fim para o P, M e G não foi uma premissa que nasceu de mim. Na verdade, eu comecei ouvindo o consumidor. Mais ou menos cinco

anos atrás, eu tinha uma carteira de clientes com lojas de roupa que queriam entrar no mundo virtual, ficar em primeiro lugar no Google, fazer as suas vendas nas redes sociais. Entendendo a necessidade dessas pequenas marcas, falei para eles que ter um bom posicionamento no Google e abrir um e-commerce é praticamente como abrir um negócio no mundo físico. O Google é como uma avenida. A pessoa chega nessa avenida, que tem o tipo de produto que ela está procurando – digamos, camisetas pretas lisas. Como numa avenida, você entende que as primeiras lojas são as que têm maior fluxo de cliente. Mas não é fácil ser uma das primeiras lojas. Você precisa ser muito atrativo. E como nós nos tornamos desejados? Assim como no mundo físico, precisamos entender o que o consumidor quer, qual o desejo dele, qual o problema que nós temos de resolver. Seguindo essa linha, fui pesquisar o que os consumidores desses meus clientes estavam querendo. A maioria era de adolescentes, o que a

A diretora da DACRI DEVIATI, Olivia Merquior, no encontro do IN-MOD

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e costura no Senac. Lá, a professora olhou para a minha cara e perguntou: “O que você está fazendo aqui? Expliquei: “Quero fazer isso aqui, revolucionar a moda”. Ela então falou: “Mas você sabe que, para fazer uma roupa adequada para o corpo da pessoa, você precisa tirar a medida, né?” e entregou umas duas páginas de papel com números de 1 a 37.

gente chama hoje de geração Z. Os consumidores mais velhos desses clientes tinham idade próxima da minha, que é a geração Y. Então, ouvindo essas pessoas e até acompanhando o percurso de compra delas dentro de uma loja, percebi duas coisas muito interessantes. A primeira é que, andando com as meninas, elas não iam para o setor feminino de uma grande varejista. Elas iam para o setor masculino porque o masculino não era tão estereotipado, tinha uns designs mais legais. Elas pegavam, por exemplo, um moletom masculino, jogavam na mesa da loja e ficavam falando: “Se cortasse aqui, jogasse uma tinta ali”. E eu perguntava: “Por que você está querendo comprar uma roupa e já querendo cortar, rasgar. Qual é o motivo?” Elas respondiam: “Para ficar mais a minha cara, para ter mais a ver comigo, com o meu estilo”. Escutando isso, então, fui atrás daqueles dados de busca na internet, dados do Google Analytics, e percebi que existe um movimento crescente muito grande da expressão do it yourself – faça você mesmo. Então, eu entendi que essa nova geração é muito diferente da passada, dos nossos pais, que é uma geração um pouco mais de uniforme, em que todo mundo queria ter o mesmo blusão da GAP. Agora não, é uma geração do “eu não quero ser igual a todo mundo, eu sou diferente”. Então, um ponto importante: customização, cocriação. Esse público quer fazer parte do desenvolvimento de um produto; ele quer dizer qual produto é para ele. E faz muito sentido, quando a gente entende que é uma geração já muito conectada num mundo onde os algoritmos das redes sociais preparam todo um ambiente customizado para ela. Então, é difícil esse público entender que as roupas não são feitas para cada um. E quando pensamos também nisso, caímos em um segundo grande problema: a roupa não servir exatamente no corpo de todos. Nem precisamos ir muito longe, nas questões de plus size ou de deficiências; às vezes, você tem um braço um pouco mais longo, um pouco mais curto, uma perna um pouco mais larga, menos larga, e é difícil atender a essa diversidade. Então, com esses dois dados, cocriação e roupa feita para a pessoa, eu apresentei para esses meus clientes uma solução muito simples, na minha visão: vamos entregar um produto que o cliente possa customizar no site e seja feito para o corpo dele.

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Disse “não, pode esquecer”. Voltei para casa praticamente chorando, achando que não iria dar certo. Mas comecei a circular mais no mercado. Fui a uma palestra de indústria 4.0 do mercado automotivo, uma fabricante de caminhão.

Avatar e roupa digital, por Cairê Moreira

E os clientes falaram: “É impossível fazer isso, você não sabe do que está falando”. Eu já tinha muito conhecimento de 3D na época, para mim era muito natural, qualquer coisa a gente resolve no computador. Mas, não, não era isso. Em um certo momento na minha vida, resolvi tirar esse projeto do papel. Tranquei o curso de graduação em Publicidade e Propaganda, que eu estava fazendo, e decidi entrar de cabeça em um mercado novo, que estava começando: modelagem 3D, porque eu via que o caminho da propaganda estava seguindo com força para a realidade aumentada, realidade virtual, vídeos.

Na apresentação, os engenheiros falaram sobre um processo que escaneava a peça e produzia em uma impressora 3D. Com isso, reduziram prazos e resolveram vários problemas. Achei interessante. Depois, fui a uma palestra de indústria 4.0 de engenharia de produção. Falaram de uma máquina alemã que teve uma peça pequena quebrada, parando uma produção que custa milhões por hora. E até vir uma máquina de navio era demorado, então, eles implementaram uma metodologia

de escaneamento de peça com impressão em 3D para substituir a danificada até a nova chegar. E meu subconsciente lá, trabalhando. Num evento de arquitetura, o pessoal mostrou o escaneamento de uma sala, depois colocaram os móveis no 3D, e o cliente conseguia ver como ficava.

O outro passo era bem mais simples: como desenvolver uma modelagem no corpo digital dessa pessoa Numa conversa com meus parceiros de game, eles falaram que odiavam desenhar personagem. Para fazer um jogo de futebol, queriam escanear o Neymar, e não desenhar. Havia uma coisa em comum em todos: o escaneamento. Se é possível escanear o Neymar, por que a gente não escaneia o corpo da pessoa, cria uma cópia digital do corpo dela, e aí fica muito mais fácil trabalhar com a modelagem? Então, investi o dinheiro que eu tinha nessa

O YouTube, naquela época, começava a se tornar uma ferramenta mais popular dentro da publicidade. Então, resolvi apostar. Fiz um curso e comecei a entender que algumas ferramentas de 3D poderiam contribuir com meu projeto. Elas eram voltadas para o mercado de jogos, de animação, onde também há corpos, os corpos dos personagens, que precisavam ter as roupas desenvolvidas. As coisas então começaram a se ligar na minha cabeça: precisava entender exatamente quais as ferramentas poderiam resolver aqueles dois problemas do início. Procurei faculdades e profissionais de moda, mas todos diziam ou que não existia solução, ou que o custo era alto e não compensava. Pensei então que, se para mim era possível e esses profissionais diziam que não, eu deveria ter um pouco de humildade e tentar entender como funcionava o processo produtivo de uma roupa. Fui fazer um curso bem básico de modelagem

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Roupa digital customizada ao máximo para o corpo do consumidor

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Mia, influenciadora digital e modelo brasileira, criada por Cairê

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Vender qualquer coisa, por qualquer canal e distribuir de “n” maneiras

Com tablet, Cairê Moreira capta e digitaliza a imagem do corpo em 3D

etapa; comprei um scanner, testei e funcionou. O outro passo era bem mais simples: como desenvolver uma modelagem no corpo digital dessa pessoa. Para isso, eu já tinha a ferramenta, também no mercado de games, e hoje existe uma versão desse software focado para a moda. Implementei essa ferramenta. E, por último, fui entender como incluir isso no processo industrial, porque a roupa feita no computador teria que vir para o mundo físico. E aí, no SENAI CETIQT [Centro de Tecnologia da Indústria Química e Têxtil do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial], voltado à indústria 4.0 para o mercado de confecção e moda, eu encontrei as ferramentas adequadas para viabilizar esse produto tão customizado de forma produtiva e financeiramente viável. Por fim, consegui tirar esse projeto no papel e chegar a um custo de um moletom customizado por R$ 200, que podemos entender como um preço acessível para uma tecnologia avançada. E os meus últimos anos nesse projeto foram dedicados à evangelização do mercado, porque entendemos que a coisa é muito nova. Se eu quiser fazer um produto para uma pessoa só, preciso ter uma cadeia de produção de matériaprima que me permita trabalhar com dois metros, dois metros e meio de tecido.

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E existe uma resistência muito grande do mercado da moda para fazer esse tipo de trabalho, porque eles estão acostumados com grande produção. Tive que ficar muito tempo ali evangelizando o mercado para conseguir parceiros que acreditassem em exceções de produção sob demanda. E consegui. Tirei o projeto do papel, teve um volume legal de venda, mas aí veio a pandemia e acabou com o meu modelo de negócios, porque a gente precisa de contato físico para escanear. Mas abriu outras oportunidades, justamente com a Renner. A Renner enxergou toda essa trajetória e entendeu que eles precisam também de pessoas que ajudem na trajetória deles, de como vai ser o futuro da empresa. E embora as tecnologias estejam acessíveis para os pequenos, são os grandes que permitem que outras tecnologias surjam e se tornem viáveis para os pequenos. Enxergando isso, pensei que agora é um bom momento de se ligar aos grandes e fazer com que eles ajudem outros grandes a fazer a curva e, ao mesmo tempo, colaborem com os pequenos. Até porque na Renner, a maior parte do time de criação e produção é feita pelos pequenos. Então, nada mais certo do que a gente estar do lado dos grandes para ajudar também os pequenos nessa nova trajetória.

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Léo Rodrigues

Líder da área de Sucesso do Parceiro na VTEX

Uma coisa que eu ouço bastante no mundo da moda é que todo mundo se considera D2C, ou direct to consumer, que é a venda direta do produtor para o consumidor. Só que nas marcas de moda isso não necessariamente é o que acontece. Muitas vezes, o criador vende para o consumidor, mas quem está produzindo fica atrás desse criador, então a cadeia de produção é toda descentralizada. Às vezes, ela é de fora do país; às vezes, é específica do Brasil; às vezes tem um cunho social; às vezes, um cunho de volume. Existe uma variedade gigante, e é importante entender o quanto nós conseguimos afetar a cadeia de produção, usando a criação e chegar na customização, no do it yourself, de uma forma que seja possível distribuir o produto muito facilmente. O Mariano [Mariano Gomide, fundador e coCEO da VTEX] fala que o objetivo, a missão da VTEX é vender. Queremos vender qualquer coisa para qualquer pessoa, entregar em qualquer lugar, ter a distribuição completamente aberta.

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A ideia é que a pessoa sentada atrás do computador consiga comprar o que ela quiser, de qualquer marca, em qualquer canal, ao mesmo tempo; se possível, no mesmo pedido, e receber tudo dentro do mesmo pacote, por exemplo. Quando digitalizamos o acesso, não temos uma barreira física, você não precisa entrar numa loja, sair e entrar na loja do lado. Podemos ter um marketplace com todas essas lojas juntas. E a pandemia fez a gente forçar esse exercício. Quem já estava nesse exercício saiu na frente e está entregando hoje uma coisa muito mais sólida, mais madura. Estamos há dez anos falando “vai para o digital”, e esse foi o ano do “eu te disse”, “eu te disse que você tinha que ter ido para o digital, e agora você estaria salvo, teoricamente, muito mais bem posicionado”. Tenho alguns exemplos dentro da VTEX que se aproveitaram dessa flexibilidade. Um cliente nosso de moda, na Romênia, assim que começou a pandemia, fez um acordo com um supermercado e passou a vender produtos alimentícios dentro da estrutura de e-commerce dele.

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A VTEX já tinha uma estrutura pronta para isso e o processo foi foi supersimples, porque o pensamento de marketplace, de multiplicação de canais, já estava internalizado na plataforma. Não foi um processo criativo novo, uma inovação que tivemos que implantar. No caso da Romênia, o nome da loja é Miniprix e ela já deixou de vender alimentos porque os dois evoluíram para ter os seus próprios canais. Ela estava vendendo refrigerante num site que era de moda, porque entendeu que o consumidor era o mesmo. A pessoa que precisa comprar uma roupa precisa comprar uma Coca-Cola do mesmo jeito, são seres humanos da mesma forma, então essa simplicidade de conexão é que alavanca o processo todo. No começo da pandemia, o shopping teve que ser fechado de uma hora para a outra, e as lojas de rua também. Você passeava na cidade e via vários avisos nas portas das lojas informando “estamos fechados, mas continuamos on-line”. Parece uma coisa meio óbvia e muito simples, do tipo, se não consigo vender na loja, vou jogar o pessoal para o meu site. Mas já estávamos disponíveis 24 horas por dia, você já não precisava entrar nessa loja para comprar, e essa é só uma ficha que precisava cair na cabeça de todo mundo. Uma imagem que eu mostro sempre é da vitrine da Nordstrom. Em vez de informarem “estamos fechados temporariamente, já já vamos abrir, enquanto isso você pode acessar o site”, colocaram “estamos temporariamente fechados, mas estamos sempre abertos no site”. É um detalhe no discurso, mas que muda bastante a visão da pessoa. Você prefere a loja física? Claro, os humanos são feitos para se

conectar e se comunicar, precisam de contato. Entendemos o valor gigante nessa experiência de compra. Mas se não podemos ter isso, seguimos disponíveis, com os canais abertos. Tínhamos algumas barreiras clássicas, históricas, que precisaram ser ultrapassadas durante a pandemia, como a necessidade de experimentar a roupa. Hoje já temos movimentos muito fortes de política de troca e devolução, de devolução gratuita, de estorno simples. O Brasil é um dos top 3 em evolução de tecnologia financeira. No Japão, a opção de cash on delivery, de pagamento na hora em que você recebe o produto, ainda é muito usada. Pensamos no Japão como uma nação altamente tecnológica e completamente despreocupada com o contato, onde certamente o cartão de crédito seria a única forma de trabalhar. Mas ainda existe um público considerável no Japão que prefere cash on delivery. A forma como Brasil opera – pagamento com cartão ou com o nosso famoso boleto, que não é presencial – está à frente de todo mundo. Por que não usamos isso e internalizamos isso na hora de comprar? É um pulo, é uma virada de chave. E a pandemia nos forçou a virar essa chave.

E existem muitas outras formas, como o restaurante que fechou porque não precisa mais de salão para atender os clientes, mas vira uma dark kitchen, fazendo comida e entregando diretamente para as pessoas. Percebemos que isso está acontecendo muito rápido e cada vez mais. Há uma preocupação em manter o produto perto do seu cliente, mesmo que ele não esteja dentro de uma loja. Era assim que acontecia com os armazéns normais: uma estrutura de logística que aproximava o produto do cliente naturalmente e, às vezes, aproximava o produto da loja em que o cliente ia comprar. Não estou nem falando de uma estrutura digital, pois você já está preocupado em colocar o produto próximo do seu cliente. Qual é a diferença em fazer isso digitalmente, num projeto de tecnologia, e não em uma loja física? Basicamente nenhuma.

Outra situação é a do consumidor que gosta do contato, de ser atendido pelo vendedor, de ter seu vendedor preferido na loja. Isso é muito comum no mercado de luxo; o cliente tem seu vendedor preferido e o atendimento dele faz a diferença. Hoje falamos com a família basicamente pelo WhatsApp, estamos começando a nos acostumar a ter um contato próximo e emocional por esse aplicativo e podemos fazer isso com a marca também.

VTEX recebe aporte de R$ 1,25 bilhão em rodada liderada por Tiger Global e Lone Pine Capital. VTEX, 2020. Disponível em: <https://vtex.com/br-pt/press/vtex-tech-unicorn/>. Acesso em 14 de abril de 2021.

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A experiência da loja física é local, sensorial, e é possível ter esse contato direto com aquele mesmo vendedor de forma remota, assim como precisamos criar contatos emocionais e sensoriais remotamente com quem já estávamos emocionalmente conectados.

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Uma pesquisa recente da Search Node diz que a tendência do mercado aumentou muito mais para in-store pickup e home delivery. O home delivery é meio óbvio. Se você não pode sair, precisa que as pessoas entreguem na sua casa. Mas, ao mesmo tempo, você pode pegar o carro, ir ao drive-thru de uma loja e pegar o seu produto. A Cobasi foi a primeira que lançou isso, pelo menos no mundo da VTEX. No aplicativo, o cliente informa que vai fazer o pick up, escolhe o pick up drive-in e recebe a data e o horário para buscar. Quando chega com seu carro no estacionamento, avisa qual é placa do carro, e a pessoa da loja sai com a proteção devida, vai até o carro, entrega o produto, e o cliente vai embora. Para isso, utilizamos uma série de tecnologias que já existiam, como entrega agendada, pick up point geolocalizado, estoque local de uma loja física vendendo on-line, de distribuição regionalizada de acordo com o cliente e outras micro features, que já tínhamos prontas e as colocamos juntas, trabalhando de um jeito inovador. Temos também o live commerce, em que se vende por vídeo e está na moda hoje em dia. Mas a Polishop e o ShopFácil já faziam isso há 15 anos, só que na TV normal. O cliente ligava para o telefone 0800 e comprava. Em um shopping fechado, o estoque pode estar dentro das lojas. É possível usar uma estrutura de delivery center com motoboys, entregadores rápidos, para poder atender o entorno do shopping, onde estão os seus maiores clientes. E há ainda os marketplaces do shopping em si. Se você entrar no site do Shopping da Cidade Jardim, poderá comprar os produtos que compraria se estivesse indo fisicamente até lá. Pode entrar no site do RIOgaleão, por exemplo, que é um shopping, e as marcas estão lá fazendo a venda, fazendo a entrega do mesmo jeito.

Cobasi no seu carro. Cobasi, 2020. Disponível em: <https://www.cobasi.com.br/retirar-naloja?BANNER=cobasi-no-seu-carro>. Acesso em 14 de abril de 2021.

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Para terminar, tenho uma provocação legal a fazer. Digamos que o Léo, por exemplo, é o CEO de uma startup de cinco pessoas. Estamos antes da pandemia. As reuniões são no escritório do cliente ou num café, porque é uma startup, então o Léo trabalha num coworking ou de casa, não tem um escritório bonito com secretárias e estruturas. O almoço é em restaurante por quilo, quando dá tempo de almoçar, ou um salgado numa padoca qualquer. Ele faz as compras, pesquisa no on-line antes ou vai na loja já certa

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para comprar. Nos contratos, precisa rubricar tudo, fazer duzentas mil vias, escrever um monte de coisas – ele usa caneta basicamente para assinar contratos, mais nada. A roupa é a que puder usar do jeito mais tranquilo, uma calça, uma camisa, nada muito absurdo. E o transporte normalmente é Uber, patinete, bike etc. E aí tem a Pati, por exemplo, que é CEO de uma multinacional com cinco mil funcionários. A reunião da Pati é na sala dela, ou pegando um helicóptero até outra cidade, no escritório de uma outra empresa multinacional gigante. O almoço é sempre num bom restaurante,

com tempo, ou fazendo uma reunião durante o almoço, o famoso lunch meeting. A comida é específica, a que ela mais gosta, pois tem uma preocupação com o alimento que consome. Ela faz as compras num passeio pelo shopping ou um vendedor vem visitá-la para oferecer algum produto. Ela nem encosta nos contratos, a secretária faz tudo. Ela se veste como uma executiva, se apresenta de uma forma estruturada. E o transporte é o seu carro, um avião, um helicóptero. E aí, entrou a pandemia para o Léo e para a Pati do mesmo jeito, impactando ambos. Nos dois casos, a reunião deixou de ser como era

e passou a ser no Meet, no Zoom, Teams ou Discord, remotamente, sentado na cadeira. O almoço saiu do shopping, no restaurante Michelin, do quilo, da coxinha na padoca, para um almoço em casa com os filhos, com o pet do lado, ou sozinho, porque você mora sozinho. A comida é o que dá para entregar, um iFood, Rappi, Uber Eats. As compras são feitas pelo computador, celular, iPad. Ninguém vai mais até a loja. Nos contratos, não se assina mais nada, usa-se DocuSign, Contraktor, alguma ferramenta digital. Quanto à roupa, pode botar uma camisa social para parecer bonito, mas fica de bermuda, com certeza. E o transporte é zero, nenhum. Isso é igual para o CEO da startup de cinco pessoas e para o CEO da multinacional do cinco mil. Isso é uma estrutura que vai fazer todo mundo, todo tipo de pessoa, com todo tipo de tamanho de empresa, com todo tipo de operação de mercado virar pessoalmente um agente de transformação. Antigamente, havia uma transformação por time. Você tinha uma empresa totalmente offline, criava um time de transformação digital e pegava aquela pessoa com o pensamento superágil e sabia tudo do digital para bater na porta de todo mundo para espalhar a palavra do digital. E era muito difícil, porque você conseguia evangelizar um departamento, outro departamento, e todos os evangelizadores estavam presos dentro de uma mesma estrutura. Agora, você tem um monte de gente que foi evangelizada na marra e que está no departamento financeiro, na logística, na costura, no estilo, em todas as áreas. Com isso, a transformação vem de dentro para fora, não precisa mais convencer ninguém, pois há três, quatro, cinco pessoas dentro do departamento que já estão transformadas digitalmente no seu dia a dia. É muito mais fácil. A pandemia forçou todo mundo a evoluir, e muita gente pergunta: “Vocês acham que, quando acabar a pandemia, isso vai voltar?” Acho difícil. Não vai continuar igual. Não pelo fato de o digital ter se provado útil, mas porque as pessoas, não profissionalmente, mas pessoalmente mudaram. Elas precisaram usar todas as estruturas digitais. Então, a transformação vai acontecer de dentro para fora, não de um profissional, de um departamento, uma empresa, objetivo financeiro ou de negócio.

Marketplace de shopping: compra-se o mesmo que compraria na loja física

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mais + dos convidados As curadoras e os convidados

Lala Deheinzelin

Lala Deheinzelin

Hoje apareceu uma palavra muito interessante, muito repetida nas falas, que é evangelização. O grande desafio de uma inovação não é criar uma inovação, é a sua adoção. Então gostaria que vocês dessem três dicas ou caminhos de evangelização para que as inovações possam ser criadas e adotadas.

É muito claro na fala de vocês três a importância das inovações, a importância de determinado tipo de arranjo novo para viabilizar os negócios. Infelizmente, tenho um papel chato aqui, eu sou economista de plantão, então as questões estruturais às vezes me deixam com dúvidas talvez um pouco diferentes. Um exemplo muito claro que me vem à mente e que gostaria de trocar com vocês é o da Gap, que quebra quando surge uma Zara com um novo modelo de negócios e depois uma Uniqlo, que chega também com um novo modelo de negócios.

Cairê Moreira É, a minha função na Renner é muito mais centralizar as pessoas de todos os setores do que, de fato, implementar diferentes tecnologias. Dentro dessa grande instituição, aplico a mesma metodologia que usei no projeto do Ateliê. Eu me coloco para escutar as pessoas nas suas funções sobre os medos e sonhos delas e percebo que todas querem fazer parte da inovação, querem cocriar. E essa vontade é muito mais forte do que o medo do novo. Então, diferentemente da atitude de muitas pessoas que alertam ser preciso correr atrás para não perder empregos, pois a tecnologia vai substituir as pessoas, a minha função é muito diferente: mostrar o que vamos fazer, o que já conseguimos fazer, mostrar algo novo e divertido que pode ajudar. A pessoa então diz fala que não sabe como fazer, mas quer participar. Na minha experiência de evangelização, isso tem funcionando muito bem.

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No caso brasileiro, a pergunta é como impactar a produção de forma que o varejo possa usar dessas ferramentas tão criativas e tão inovadoras que vocês trazem para permitir que nós continuemos players no mercado, criando emprego, criando renda e, portanto, ter indústrias que permitam usar essas inovações na distribuição? Como usar as inovações que vocês apresentam para forçar um setor produtivo a se renovar também, ter essa cabeça na manufatura 4.0, de forma a ter um efeito mais redondo no mercado, especificamente da indústria têxtil e de confecção? Léo Rodrigues São duas coisas para mim diferentes. Uma é a Gap quebrar quando entra uma Zara, a Zara

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quebrar quando entra uma Uniqlo, e assim sucessivamente. Outra é que ninguém quebra quando entra uma Shopee, uma Alibaba, um Mercado Livre; quando entra uma outra força, outra forma de comprar, outro canal, que junta todo mundo e cria uma “Zap”, uma “Unira”. Quem sobreviveu mais facilmente, em se tratando ao mercado de micro brands, de marcas com atuação de nicho, foi definitivamente o mercado de multimarcas. Porque ele tinha a opção da marca de nicho, e naquele dia os clientes estavam comprando aquela marca, mas o cliente pode vir para o mesmo lugar no dia seguinte e comprar outra coisa. Se você pensar coletivamente como negócio, você acaba fazendo todo mundo ganhar, todo mundo avançar. Sendo economicamente chato, isso espreme o mercado de produção na parede. A Amazon Fashion, por exemplo: todo mundo viu que há uns dois anos e meio, a Amazon tentou abrir uma área de fashion e acabou entrando no mesmo bolo do Mercado Livre, por exemplo, que é mais de fast fashion do que outra coisa. Então, o caminho, por um lado, é duplicar ou multiplicar os canais para você poder construir, pulverizar o acesso aos produtos. O outro lado, é o retorno disso. A Gap precisa estar de olho no que está vendendo no mercado. Se o share dela dentro dessa venda está menor do que o da Zara e da Uniqlo, ela precisa reagir no pro-

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duto, se retroalimentar na cadeia de produção, aprender com isso e evoluir de alguma forma. O insumo final dessa quantidade de canais de marketplace, por exemplo, de multimarcas, de controle, é isso: se você fica muito preocupado em proteger a sua marca pelo canal, e não pelo seu produto, acaba ficando preso dentro do seu próprio mundo e não consegue se multiplicar ou evoluir. Cairê Moreira Falamos muito de tecnologia, tecnologias virtuais e tal. Mas é importante entender de onde ela vem também. Não estamos criando novas tecnologias porque elas são só legais. Existe um propósito por trás, que é justamente o da indústria 4.0. Todas essas novas tecnologias se reúnem como um grupo, como uma coisa maior. A indústria 4.0 surgiu porque atualmente nós não somos produtivos no nível de escala que precisamos para o futuro. Nosso modelo de negócio de industrialização não vai se sustentar por muito tempo. Daqui a alguns anos, não vamos conseguir industrializar produtos na quantidade necessária para a população. Fazemos fábricas cada vez maiores para atender a um volume de consumo cada vez maior, o que fica insustentável, porque

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é cada vez maior e mais caro. E existe uma preocupação sobre o futuro, se os meus netos vão conseguir consumir, pagar o preço que vai ser cobrado e se vamos ter matéria-prima para o consumo. Pensando nisso, começamos a perceber que o único caminho é ser mais produtivo, é ser mais assertivo. E não, necessariamente, ser maior. Um exemplo é a roupa em realidade aumentada. Temos roupa em realidade aumentada só porque é legal e bonita de ser vista? Não, é porque existe um comportamento dos jovens, principalmente da Europa, em que eles compram o produto de uma fast fashion, vestem esse produto, tiram foto e devolvem, dizendo que não gostaram. E esse produto, de alguma forma, vai ser descartado. Mas eles só queriam mostrar para os amigos uma imagem diferente para se expressar. Então, pensando assim, isso é produtivo? Tudo bem, estou de alguma forma ganhando dinheiro vendendo roupa ali, talvez eu possa até evitar essas devoluções, e a pessoa terá de pagar. Mas isso é produtivo, isso é bom para o ambiente? Como vamos estar daqui a alguns anos seguindo esse comportamento? Não é legal, então vamos pensar uma solução tecnológica para atender a essa necessidade do consumidor de forma que não gere tanto impacto. Isso entra em cada área do processo produtivo, repensando por que colocar máquina, ou não colocar máquina. Ou, em nosso caso, por ser um trabalho muito manual, será que estamos valorizando os nossos pequenos, será que não precisamos empoderar esses pequenos, será que não devemos tomar mais cuidado com o ambiente onde eles trabalham? É importante termos ciência do porquê estamos falando de digitalização, onde ela faz parte, qual é o movimento, quem é o responsável por fazer isso. Graça Cabral Estamos vivendo uma situação de vulnerabilidade geral e que trouxe também uma transformação do outro lado, do próprio consumidor. Vemos vocês pensando em como atender uma demanda que quer facilidades de compra, sejam elas porque eu não posso ir na loja, sejam elas porque eu quero uma modelagem só para mim, uma customização. Então, vemos que o consumidor também se impõe, também está no centro dessa decisão de mudança geral. Olivia, como você está vendo isso?

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Olivia Merquior Gostaria antes de contribuir com a pergunta anterior e depois passar a para esta. Tem uma frase que reverbera muito nesse tipo de atualização do mercado, que é aquela brincadeira de não mexer em time que está ganhando. Acho isso extremamente complicado e fico me questionando se a Gap desapareceu porque a Zara surgiu e a Uniqlo surgiu ou se a Gap se acomodou no modelo de negócio antigo e não mexeu no time que estava ganhando quando deveria ser mexido. Eu geralmente falo para as empresas que, quando o time está ganhando, é exatamente o momento de experimentar novas soluções, porque o mercado está bem, a coisa está fluindo, então experimenta. É muito mais difícil fazer essas transformações no momento de crise, quando há diversos focos de incêndio para apagar. Diversas empresas italianas centenárias de tecido diziam que não queriam trabalhar com mercado digital, não queriam entrar no marketplace ou não queriam diminuir a quantidade mínima de pedido porque elas fazem aquilo há 100 anos, há 50 anos, então não querem mudar. Neste momento, por conta da tecnologia, nunca vivemos um mercado tão dinâmico e estamos, sim, no início de um processo de transformação, o que é muito excitante. Sinto que estamos indo para Marte e, na verdade, tem um planeta para ser repensado, para onde não deveríamos levar as nossas práticas ruins e começar em um novo ambiente. Sobre essa mudança e essa produtividade: tem que mexer em time que está ganhando, tem que repensar, pelas novas dinâmicas do mercado, como você vai estabelecer o seu plano de negócio. Lembrando que, quando a gente fala de produção e realidade expandida, a realidade expandida ainda parece uma coisa de game, de garotada, de Pokemón Go. Só que, por exemplo, o Lucas Leão [estilista carioca] acabou de lançar agora uma coleção virtual [projeto Novos Designers, da Shop2gether]. E nessa coleção virtual tem uma t-shirt branca só com o logo Lucas e um QR Code, que já deixou de ser há muito tempo o que aparece no “Big Brother”, com aquele quadradinho.

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O QR Code, na verdade, pode ser uma estampa, pode ser o próprio logo da empresa que aciona uma experiência. E qual é o barato dessa camisa do Lucas? É uma camisa branca, mas essa camisa, a partir do acionamento desse logo, vira um monte de coisa. Então, tem algo aliado a um serviço que vem por meio da tecnologia expandida.

embalagem precisa levar a história, e é isso que a realidade expandida faz. Você pode pegar uma embalagem, acionar a embalagem, ela estoura com a sua história. Já temos um holograma para fazer o diretor criativo contar a história para você. O próprio Cairê já fez uma experiência em que você visita uma loja da Renner virtual num filtro.

Da maneira como a gente pensava o mercado, da maneira como a gente pensava o produto, é muito difícil se tornar mais rápido, porque o departamento de estilo já estava todo desesperado, falando que não dava mais conta, porque botava uma roupa na loja e o cliente já queria uma outra tendência. Aí, tinha que ser rápido, mas a indústria já não consegue entregar o tecido no momento.

Então, realidade expandida é negócio, não é entretenimento. Mas queremos entender como expandir essa experiência do que fazíamos antes, e não ficar tentando consertar algo que eu não vejo como ficar mais rápido.

Eu venho falando: é o momento de entendermos que a roupa passou a ser outra coisa, é um lugar de experiência. Há uns dois anos, a Balenciaga fez aquele desfile com uns macacões vermelhos e azuis, e as pessoas acharam muito estranho ser só um macacão. Mas a marca estava usando a mesma técnica de mapeamento corporal que dá para fazer uma roupa expandida a partir dali. Assim, você veste um macacão com uma cor de reconhecimento digital, um cromaqui vermelho e azul, e a roupa em si tem uma experiência. Então, a roupa física é uma mídia, é um meio, não é mais o fim. Quando falamos de realidade expandida, estamos falando da roupa como meio, ela aciona alguma coisa. E aí você pode ter uma produção como o Lucas está tendo agora, de camisetas brancas, e qualquer empresa vai querer pegar esse pedido, porque é fácil produzir camiseta branca de algodão. O interessante ali é a experiência que vai ser acionada através da roupa, que já está sendo acionada. E não estou falando isso de uma grande empresa, de um grande investimento, estou falando de uma marca estreante da São Paulo Fashion Week, pequena, que acabou de sair do projeto Estufa e já está podendo fazer essa interação. Como estamos ainda com a loja fechada e estamos entregando uma caixa estática que não tem experiência nenhuma na casa das pessoas? Onde está a galera do VM, visual merchandising? Como você leva a loja para a casa das pessoas? Se ela recebe algo, e aquilo ali não faz nada, é chato, é ruim, não vai vigorar. Queremos

interação

com

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as

coisas,

E agora respondendo a Graça. Uma vez, há muito tempo, o Leandro Karnal contou que ele recriminava uma funcionária dele ou uma outra pessoa por comprar CD pirata, explicando que aquele consumo era ruim para a indústria. Daí, ela virou para ele e falou assim: “Você compra o original porque você pode”. É isso. Só vamos conseguir falar de sustentabilidade real e de inclusão geral quando tivermos uma disparidade social, no mínimo, atenuada – equilibrada, acho que já uma utopia no mercado em que vivemos. Mas, pelo menos, que a distribuição não seja tão abissal. Tenho conhecido diversas pessoas que não tiveram oportunidade de fazer uma faculdade e se tornaram criativos incríveis como autodidatas porque conseguiram ter acesso a um computador. Acho que é isso que muda a mentalidade, dar acesso e pensar em distribuição de renda, se não as pessoas vão continuar comprando pirata, porque só compra o legítimo quem pode. Por fim, quando pensamos em game, e sabemos que a maioria dos adolescentes e dos jovens estão em casa, principalmente agora na pandemia, fissurados no game, vemos aquilo como um entretenimento, como um lugar vazio. O game é um lugar de educação também, educação não no sentido formal, mas de uma maneira que essas pessoas, que estão muito tempo em frente a uma tela trabalhando com game, estão estruturando o labirinto delas, a forma como elas se relacionam com as imagens, como elas se relacionam com as coisas. Agora, você imagina, uma pessoa que está no game onde acontecem coisas o tempo inteiro, quando chega um produto em casa, quer que aquilo seja customizado para ela, quer que aquela caixa faça alguma coisa.

a

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Cairê Moreira Eu acho que essa é a maior revolução industrial que nós tivemos, isso até define a indústria 4.0. É você deixar de ser a inteligência que dita para o consumidor o que ele deve usar, o que ele deve fazer – e a moda é bem isso – e adotar a postura “agora, nós atendemos às exigências de vocês, temos que nos virarmos para atender o que vocês querem”. É o nosso posicionamento de ouvir e atender, que foi justamente a primeira questão do Ateliê 4.0. É o momento em que eu vou primeiro te escutar. “Ah, é isso que você quer? É essa a sua dor? Então vou fazer o possível e o impossível para atendê-lo.” Graça Cabral Para finalizar, uma pergunta para vocês três: com essa solução de uma plataforma integrada, acaba a multimarca? Léo Rodrigues

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A multimarca lá do interior de São Paulo que tem um nicho de mercado muito bom, que tem uma concentração de clientes com uma alta renda, por exemplo, e conseguia movimentar um lucro absurdo, precisa pensar que ela tem que mudar o tempo todo, que não pode fazer um hiato, ser forçada a trabalhar digitalmente durante a pandemia para sobreviver e esperar a pandemia acabar para poder voltar ao que ela fazia antes. Esse pensamento vai matá-la, como matou a Blockbuster, porque alguém já está fazendo alguma inovação, criando uma multimarca diferente, pensando em inovar o tempo todo. E quando acabar a pandemia, vai continuar fazendo isso e vai entrar na frente, porque vai poder voltar a fazer o presencial clássico e já está fazendo o novo com as pessoas que, como eu falei lá atrás, foram mudadas de dentro para fora digitalmente. A VTEX como plataforma impulsiona as multimarcas absurdamente. Temos ferramentas que conectam clientes entre si, porque todas as contas VTEX são conectáveis por configuração, você não precisa desenvolver nada.

Não, ao contrário, é exatamente o oposto, potencializa 100% a multimarca. Você pode criar um multimarca só digital. Se você for pensar bem, o marketplace não é nem uma operação física, você vende produtos de outras pessoas e quem entrega são as outras pessoas. A capacidade de você crescer com a multimarca é gigantesca.

A Mr. Cat, por exemplo, pediu ajuda da VTEX para poder ter outros clientes nossos, inclusive concorrentes, vendendo dentro do e-commerce dela. Acho que a multiplicidade é o ponto. Imagine que você é forte num canal e pode transformar esse canal no seu negócio, além de você ter um negócio de produto.

A penetração de uma marca específica no interior do Brasil, que é um país gigante, continental, é quase 100% através de multimarcas. É impossível você ter todas as cidades do interior com lojas single brand.

E isso já é um pensamento que quase ninguém tem. Por que o seu negócio não pode ser vender roupa dos outros? Por que o seu negócio não pode ser representação? Por que o seu negócio não pode ser realidade aumentada?

Por que não temos os outros mercados aprendendo com os erros e os acertos, por exemplo, do mercado de streaming de vídeo? A Netflix tem uma estrutura fixa. Ela está vendendo a mesma coisa que ela vendia quando começou a fazer streaming? Não. Eles estão produzindo os próprios vídeos? Sim.

Você inventa uma tecnologia que só você tem ou que funciona de um jeito mais abrangente, e as outras marcas acabam usando a sua tecnologia, e o seu negócio deixa de ser vender roupa e passa a ser serviços tecnológicos.

E agora, com a pandemia, há toda uma gama gigante de business plans de diferentes distribuições de filmes novos, a Disney Plus fazendo de um jeito, a HBO fazendo de outro, a Warner fazendo de outro, eles estão testando. O mindset é testar caminhos o tempo todo para você não virar uma Blockbuster, que fica gigante e morre de um dia para o outro.

Nós nos repetimos aqui quando falamos de coletividade. A tecnologia não pode ser pensada como uma ferramenta isolada do todo, como um alien que chega na empresa e que tem um mundo próprio, não integrada a um pensamento geral.

Todo mundo está falando aqui o tempo inteiro, essa evangelização, que o pensamento desse novo mercado, desse mercado dinâmico que está mudando, precisa estar em toda a cadeia, em todos que estão integrados na produção dessa história, que é contada na moda de uma maneira tão bonita. O pensamento coletivo seria a mensagem. E também pensando na estrutura em si: os grandes turning points que vemos em outros cases, outros lugares, aconteceram quando esteve presente união de governo, ensino, política pública e política privada. Precisamos pensar de uma maneira holística sempre.

Léo Rodrigues Tem gente que é muito focada em inovar o tempo todo e tem gente que é muito medrosa para inovar, são polos muito distantes um do outro. Se olharmos a inovação como meio, não como início nem fim, conseguimos deixar a inovação como uma coisa que faz parte do caminho, dá menos medo inovar, de se jogar no nada. E também, o contrário, se você fica muito preocupado em inovar, você não tem o resultado, você não está preocupado com o fim. O mais legal é usar o pensamento inovador como meio.

Cauê Moreira Eu gostaria de deixar uma mensagem para as pequenas indústrias, possíveis estudantes de moda ou outras pessoas que pensam em trabalhar nisso no mercado. Abram o olhar para um pouco mais fora da moda, adquiram mais conhecimento do que anda acontecendo no mundo para que vocês consigam encontrar nessa jornada a solução, o caminho que deve ter o seu negócio, a sua carreira. O que me ajudou muito foi me enxergar daqui a dez anos, se o que eu estou fazendo vai ter relevância.

Olivia Merquior

Léo Rodrigues durante o encontro on-line

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7.04 11h—13h convidados

Fred Gelli Tátil Design Ricardo Catto Chie e Grupo Anga

A natureza pode ser fonte de soluções? 148

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A natureza como inspiração para inovarmos e sobrevivermos

Fred Gelli, da Tátil Design, no encontro transmitido pelo YouTube

Fred Gelli

CEO da Tátil Design

A natureza é uma fonte de inspiração infinita e, de certa maneira, óbvia. Eu brinco que são 3,8 bilhões de anos de um processo infinito de R&D [sigla em inglês para Research and Development, ou pesquisa e desenvolvimento], com soluções para qualquer problema que possamos imaginar. Com uma enorme vantagem: é um sistema completamente open source, porque Deus não cobra direito autoral. Então, podemos simplesmente nos apropriar de ideias e inspirações sobre múltiplos olhares, porque essa é outra perspectiva muito in-teressante da biomimética. Você pode observar a forma dos golfinhos para desenhar um barco, que é uma inspiração mais formal e pragmática, em uma perspectiva de engenharia e de design. Estudamos frutos e organismos que contêm e transportam líquidos para pensar embalagens para a Natura, por exemplo. Mas há outra linha de investigação – que pessoalmente me interessa mais –, que é tentar entender como a natureza pensa, digamos assim. Temos uma bióloga no nosso time que me dá altas broncas porque falo uns

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absurdos. Essa é uma vantagem de ser designer. Eu brinco que o designer é o sujeito que não conhece profundamente nada, e nem deve. Ele tem de conhecer quem conhece para poder se permitir fazer colocações e perguntas até irresponsáveis, semelhantes às que as crianças fazem, porque nessa hora você abre espaço para a inovação. Inovação tem a ver com estabelecer novas conexões e depende de certa ousadia que as crianças têm de sobra. O especialista não, ele está sempre contido, com mui-ta responsabilidade. Então, gosto de tentar entender como a natureza pensa, como ela aborda estrategicamente um desafio. São 30 anos de conexão com essa ciência, porque a minha tese começou no segundo ano da faculdade. Querendo desenhar embalagens mais inteligentes, eu fui provocado a olhar para a barriga da minha mãe como uma super embalagem. Ana Branco, que até hoje é meu guru, disse: “Você já pensou na embalagem que te trouxe ao mundo?”, e eu falei: “Nossa, que pergunta ousada”.

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Porque é mesmo uma embalagem sofisticadíssima, que protege, nutre, expulsa na hora certa. Algo parecido à atmosfera do planeta, às cascas dos frutos. Quando tive a visão de que essa avenida de inspirações era possível, eu nunca mais consegui me desconectar disso. A Tátil, consultoria que cofundei com Gustavo Gelli e Patrícia Pinheiro, meus sócios desde 1989, sempre usou essa fonte poderosa como base do nosso jeito de abordar os projetos e das nossas metodologias. Quando você olha para a maneira como a natureza pensa, você tem resposta para tudo. Na verdade, “biomimética” é um termo recente, cunhado em 1997 pela Janine Benyus, uma bióloga norte-americana que popularizou o assunto no mundo, deu palestras no TED e virou uma grande amiga. Trouxemos Janine ao Brasil, fizemos projetos juntos. A partir de 1997, 2000, ela abriu espaço para que mais pessoas começassem a se interessar por essa ciência. Até então, era algo obscuro, inclusive para o próprio mundo da biologia. Cheguei a fazer palestras em universidades e escolas de

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biologia, e pessoas da área desconheciam essa possibilidade. Isso sempre me surpreendeu, porque é algo tão óbvio. É curioso, porque a biomimética é uma ciência que tem muita conexão com inovação. É vanguarda em termos de tendências, de fontes de inspiração para a inovação. Todas as publicações do mundo que falam sobre inovação destacam o assunto, então as pessoas associam com algo muito contemporâneo e de vanguarda. Ao mesmo tempo, é absolutamente intuitivo, porque nós sempre fizemos isso, desde a pré-história. Brinco que um sujeito acuado em um precipício por um tigre-dente-de-sabre, se esse cara foi um designer, ele olhou para aquele dente pontudo e pensou: “Esse cara está me ameaçando com essa ponta mas, se eu pudesse pegar uma pedra afiada ou um dente e botar em uma vara de madeira, eu poderia ameaçá-lo”. Isso é biomimética, ou seja, é olhar para as soluções dadas pela natureza a problemas semelhantes aos nossos e usar essas inspirações para desenvolver soluções que, obviamente,

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conciliam outras fontes de inspiração. Claro que não é uma ciência que opera isoladamente no processo criativo. Nós cruzamos com outras referências, benchmarks, soluções que podem ser complementares. Mas a beleza dessa abordagem é que, primeiro, os princípios usados pela natureza para projetar qualquer coisa são muito estruturantes, e parte dos nossos problemas decorre exatamente de termos seguido caminhos que não são apenas distintos, mas completamente opostos a esses princípios básicos no nosso jeito de projetar. A natureza, por exemplo, é obcecada por economia. Ela otimiza o tempo todo, enquanto nós somos extravagantes. Somos “máximo”, a natureza é “ótimo”. Ela opera sempre na lógica do círculo fechado, como a frase de Antoine Lavoisier: “Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Já nós operamos linearmente. E na natureza você tem a lógica explícita da interdependência e da interconexão. Tudo é conectado a tudo, a vida se estabelece em uma grande teia e, quando você puxa um ponto, toda a teia se mexe. Portanto, você tem ação e reação sempre relacionadas, algo que perdemos quando fragmentamos a visão de mundo em um pensamento cartesiano, que fatia a realidade de uma ma-

neira muito dura. É compreensível; precisamos fazer isso em um dado momento, inclusive para podermos mergulhar com profundidade em tantas possibilidades abertas pelo nosso córtex pré-frontal. Então, está tudo certo. Eu tenho uma visão de que a gente é apenas um bicho imaturo. A gente chegou outro dia. Por isso, tento não ser um cara que fica se autoflagelando, porque acredito que a gente é um bicho genial, que evoluiu de uma maneira completamente diferente de qualquer outro animal nesse tempo que a vida existe. A nossa evolução tão atípica, tão maluca, tão fora da curva é um projeto da própria natureza. Há 150 milhões de anos, uma tartaruga estaria fazendo exatamente a mesma coisa que ela faz hoje. Nós, 10 mil anos atrás, estávamos começando a deixar de ser caçadores-coletores para nos estabilizarmos por meio da lógica da agricultura, o que abriu espaço e tempo livre para pensarmos, fazermos ciência, filosofarmos, criarmos religião etc. Então, é pouquíssimo tempo.

Conversei com o físico Marcelo Gleiser na Asterisco, plataforma de curadoria e conteúdo da Tátil, e ele falou sobre isso. Claro que existe vida em outros lugares do universo, a matemática garante isso. Mas essa combinação que temos na Terra é muito inusitada, muito especial. E nós estamos aqui, como parte desse processo evolutivo, tentando aprender com os próprios erros.

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Na minha visão, os tropeços fazem parte do nosso processo evolutivo de transformação, a tal dor do crescimento. Aprendemos errando. Ainda mais um animal que é 98,8% idêntico a um chimpanzé, mas com esse 1,2% que fez toda a diferença exatamente por causa do precioso córtex pré-frontal, que surgiu por acidente no nosso cérebro. Olhando para a teoria da evolução das espécies de Charles Darwin, entendo que o que promove o processo evolutivo na natureza é, basicamente, o desconforto. Nenhum animal evolui por antecipação. Nenhum pássaro começa a

pensar: “Peraí, daqui a 20 anos o ar ficará mais rarefeito, é melhor eu começar a mudar a forma da minha asa para ter mais sustentação”. Isso não existe na natureza. O processo evolutivo é sempre uma resposta a uma mudança do meio. O que acontece é que, de modo geral, a natureza é extremamente conservadora, e isso complica a nossa vida. Como ela é obcecada por economizar energia, não quer que você se arrisque em nenhuma medida. A lógica é: se você está vivo, se reproduzindo, se alimentando, fique onde está. Você só é convidado a se movimentar e a se arriscar caso esteja ameaçado. É assim no processo evolutivo. Nosso cérebro reptiliano – que é uma parte muito relevante da nossa conduta, das nossas

Chegamos no apagar das luzes dessa história da evolução da vida, portanto é natural que sejamos imaturos, ainda mais com tanto potencial. É como aquela coisa do adolescente, que tem toda a energia do mundo, mas é um louco. Somos esses adolescentes neste planeta absolutamente precioso em que temos a sorte de viver. Hoje de manhã, saí cedo para pedalar aqui em Búzios e parei na Praia dos Amores, onde há um lugarzinho mais lindo. Você olha e pensa: “Isso aqui é uma joia do universo”. O universo é um grande deserto de espaços vazios. No momento, Marte está sendo fotografado pela sonda Perseverance, e é um desertão. E nós aqui, nesta preciosidade.

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evolução, essencialmente. E eu não acredito que tenhamos involuído.

Dentro da própria lógica da biomimética, há uma colocação que gostaria de fazer. É uma conclusão à qual eu mesmo cheguei, pode estar completamente equivocada nessa lógica do designer ignorante nos assuntos com profundidade. Estamos aqui falando de

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atitudes, do nosso modo de vida de operar dentro dessa frequência mais instintiva – é conservador também. Por isso não mudamos de emprego, ficamos em um casamento que não está legal: queremos conservar, porque mudar gasta energia e obriga a correr riscos. A própria natureza não quer que você faça isso. De certa maneira, é uma âncora biológica; é a própria ideologia te segurando onde você está. Só que nós somos o único bicho que tem o tal córtex pré-frontal, que nos permite imaginar futuros possíveis, no bom e no mau sentido. Conseguimos enxergar as ameaças que estão por vir de todas as dimensões, por isso muitas vezes somos impelidos a assumir riscos e ir em direções que nos tiram do lugar de conforto em nome de um desejo, uma intenção, uma visão, um propósito, uma ambição.

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Como operamos em uma alternância entre essas duas dimensões do nosso cérebro e da nossa consciência, atuando ora mais como bichos, ora mais como sapiens, travamos uma queda de braço com nós mesmos. Por isso somos um bicho tão conflituoso. Você não vê uma zebra indo para a terapia e pensando: “Ai, meu Deus, por que eu não sou uma girafa?”. Ela pode até ter certa inveja da girafa, que come as folhinhas mais frescas lá na ponta das árvores, mas se começar a querer fazer o pescoço crescer, a zebra está frita. Nós vivemos esse tipo de conflito diariamente. Queremos ser outras coisas, estar em outros lugares. Isso é parte do que nos torna um bicho incrivelmente bem-sucedido.

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Parte desse desconforto nos é apresentada pelo meio, por isso somos tão resilientes, nos adaptamos a tantas situações e ambientes diferentes. Estamos no alto do monte Everest, dentro de um submarino a 300 metros de profundidade no oceano, na Lua, em Marte. Ao mesmo tempo, ficamos o tempo todo naquela coisa: “Quero a minha mãe”, “Quero a minha cama” etc. Que coisa complica-da, não é? Mas sou otimista. Já fizemos um estrago gigante por aqui, temos um trabalho enorme para tentar recuperar essa preciosidade que é Gaia, esse grande organismo que custamos a entender ou ainda não entendemos – a maioria de nós não entendeu que se trata de um grande organismo do qual fazemos parte.

Temos de usar a nossa capacidade de enxergar o futuro e entender essas ameaças para garantir nossa própria sobrevivência E fazemos parte com um impacto sem precedentes na história da vida nesses 3,8 bilhões de anos. Mas acredito que isso integra o projeto da própria natureza, portanto não dá para querer ir contra. Temos de usar a nossa capacidade de enxergar o futuro e entender essas ameaças para garantir nossa própria sobrevivência. Esse é outro equívoco: dizer que temos de salvar o planeta. O planeta não precisa ser salvo, muito menos por nós, que promovemos todo esse dano.

Na verdade, temos é de garantir a nossa própria qualidade de vida. Porque nós sobreviveremos. Somos muito resilientes. Agora, imagine que saco se não pudermos mais desfrutar de pegar uma manga madura no pé, pedalar até a Praia dos Amores de manhã, respirar ar puro, velejar, criar os filhos correndo em gramados, mostrar a eles uma cachoeira. Imagine o prejuízo disso. Imagine a nostalgia que sentiremos ao olhar para trás daqui a trezentos anos, diante de uma Terra dos filmes de ficção. Construímos o futuro que imaginamos, e a ficção é toda distópica. Se estivermos de fato nesse lugar, imagine como nos arrependeremos por tantos passos equivocados, tanta imaturidade terem norteado as nossas ações. A pandemia tem um valor muito positivo no sentido de ser uma sacudida do meio, que faz com que aquele desconforto experimentado por qualquer bicho vivo sob ameaça de fato promova movimentos mais maduros e sensatos. Não teremos um futuro positivo e desejável sem estarmos em harmonia com Gaia. É nesse lugar que eu nos enxergo hoje, aproveitando essa porrada que o universo está nos dando. Como toda porrada, é um estímulo para a evolução. Que nós reconheçamos este momento como apenas um trailer do que pode aconte-cer em relação às mudanças climáticas, por exemplo, capazes de gerar um processo entrópico. Considerando o estrago causado, inclusive na economia, por um vírus microscópico que saiu de um morceguinho na China, imagine o tamanho do problema se a cadeia da vida começar a se desmontar.

Evolução da consciência e desenvolvimento sustentável Ricardo Catto

Facilitador e consultor da Chie, conselheiro e investidor no Grupo Anga

Tenho 56 anos e, ao longo de uma carreira profissional de 34 anos com diversas conquistas, algumas coisas passam a não fazer mais sentido, enquanto outras começam a te chamar. Costumo dizer que negócio é negar o ócio, não ficar parado, fazer algo no seu dia que gere impacto. E todos os negócios geram algum impacto — alguns positivos, outros nem tanto. Mas se podemos, intencionalmente, investir tempo, dinheiro, talento, conhecimento e experiência em negócios capazes de gerar benefícios para a sociedade, o meio ambiente, os stakeholders em geral, por que não fazê-lo? Comecei essa reflexão em 2010, 2011, quando estava envolvido em projetos de sustentabilidade. A partir de um olhar de contemplação da natureza como fonte de inspiração e criatividade, comecei a prestar atenção nos negócios e pensar: “O que eu posso aprender com os negócios tradicionais e com os inovadores?”. “O que a criatividade humana está gerando?”. Você começa a perceber que os negócios que contemplam a natureza são mais inspiradores e equilibrados em relação ao meio ambiente e

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à sociedade. Os empreendedores que têm uma conexão com a natureza são mais despertos. Aqueles que olham para ela e fazem miméticas com a biologia, com o descobrimento das coisas da natureza, produzem negócios mais saudáveis e mais interessantes para a sociedade. Por outro lado, os empreendimentos mais tradicionais, voltados para a busca de resultados financeiros de curto prazo e remunerar o capital financeiro dos shareholders, perdem a oportunidade de gerar impacto para a sociedade e para o meio ambiente. Então, fazer negócios de impacto é ajudar empreendedores que já estão despertos para isso. Tenho um amigo que fala: “Agora, nós estamos com o ‘proposinite’”, uma “inflamação de propósito”. Todas as empresas começaram a falar em propósito, e isso é uma construção de narrativa. Às vezes, para fazer greenwashing, ou seja, criar uma narrativa que justifique os seus comportamentos; às vezes com muito mais naturalidade, dizendo: “Quero fazer o bem, trabalhar para o bem comum, resolver uma questão da sociedade”.

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Os fundos de investimento em negócios de impacto existem há algum tempo. Mas especialmente depois do Fórum Econômico Mundial de 2020, em Davos, na Suíça, quando foi cunhado o termo “capitalismo de stakeholders”, começou a nascer uma onda, um despertar mais profundo sobre os assuntos de ESG [sigla em inglês para Environmental, Social and Corporate Governance, ou Governança Ambiental, Social e Corporativa]. Os fundos de investimento passaram a abrir os olhos ao tema e oferecer essa opção aos investidores. Famílias com grandes riquezas começaram a direcionar o seu capital para investimentos de impacto. Então, há aqui uma ressignificação do dinheiro, ou seja, o dinheiro como uma energia que possibilita a materialização de sonhos e ideias, capaz de nutrir programas que fazem bem social. Isso envolve uma reflexão sobre o que é filantropia, o que são negócios de impacto, o terceiro setor, que às vezes não se sustenta e precisa de ajuda para ser um negócio social, na definição de Muhammad Yunus, ganhador do Prêmio Nobel da Paz. Isso está crescendo no mundo todo e construindo uma nova realidade. Eu, como conselheiro, quase fundador, do Instituto Capitalismo Consciente Brasil, falei: “Temos um desafio no país”. Primeiro, nós não temos um capitalismo puro-sangue, digamos assim. Temos vícios do modelo capitalista com visões mais social-democratas, com formações dife-

rentes, uma mistura muito complexa no nosso caldo de cultura. E nós não trabalhamos o tema “consciência” como deveríamos. Então, o que é consciência? Mergulhei na teoria integral, na teoria quântica e no pensamento de Amit Goswami [físico quântico indiano], de quem sou um seguidor, para entender o que significa desenvolvimento de consciência. Nesse processo, percebi que um empreendimento está a ser-viço da sociedade e do meio ambiente, mas também do desenvolvimento de consciência do empreendedor e dos seus times de gestão e de colaboradores. Porque experimentar algo na natureza – desde uma expedição até um empreendimento, como desenvolver um negócio com produtos e serviços – não deixa de ser uma jornada de experiência que está a serviço da evolução da própria consciência. Se há uma jornada no pano de fundo de tudo o que está acontecendo no mundo, é uma evolução de consciência. Às vezes, nós não nos damos conta disso. Ficamos embriagados pelas notícias, pelo dia a dia da empresa em que trabalhamos. Mas quando damos dois passos para trás e olhamos o panorama, começamos a perceber que o que está acontecendo é uma jornada de evolução de consciência. E na sociedade, temos pessoas que estão nos chamados “early stages”, com estágios iniciais de maturidade de desenvolvimento de consciência, e um grupo bem menor de indivíduos nos “late stages”, em estágios evoluídos de maturidade

de consciência. A definição de “ego” nada mais é do que o desenvolvimento de narrativas por uma parte do seu cérebro sobre quem você é e como você explica o contexto do mundo no qual está envolvido. Essas narrativas evoluem ao longo do tempo. Na adolescência, você tem uma narrativa sobre quem é e o mundo que te cerca. Você amadurece, constitui família, tem filhos, desenvolve um empreendimento, e as suas narrativas vão evoluindo: você precisa ganhar dinheiro, se provar como profissional, conquistar títulos. Você vai construindo narrativas que explicam o seu comportamento. Parte desse comportamento é consciente, parte tem a ver com o seu instinto de sobrevivência. Há na natureza um instinto de sobrevivência que a todo tempo direciona a evolução das espécies, a simbiose entre elas. Como ser humano, nós fazemos isso naturalmente, porque também somos parte da natureza. Não podemos nos enxergar como algo dissociado. Mas como temos o neocórtex, construímos narrativas sobre isso e, às vezes, nos dissociamos, falando: “Há a natureza e há o ser humano”. Negativo, nós estamos dentro desse bloco chamado natureza. Só que nós conseguimos observar e criar narrativas sobre ela. É muito interessante o fato de que nós também estamos lutando pela sobrevivência ao construir essas narrativas.

energia vital não estar mais presente como corpo físico. Mas você tem um corpo vital, um corpo mental e um corpo espiritual. E do mesmo jeito que temos um ciclo biológico, há um ciclo psicológico. Passamos metade da vida construindo o nosso ego, a nossa identidade na vida psicológica, e a outra metade, desconstruindo quem nós somos. Nesse sentido, a contemplação da natureza é uma das formas de ressignificarmos nossa identidade. Nós nos apresentamos pelo currículo. Aqui, nesta mesa, eu fui apresentado pelo meu currículo, que formou a minha identidade em um período da minha vida; hoje, estou em uma fase de desconstrução de quem eu sou, de entender que, no fundo, tudo são narrativas. Agora, estou construindo a minha própria narrativa em direção ao campo da unicidade, ao entendimento de que faço parte da natureza, de que sou um grão de areia, apenas um elemento dessa natureza. É um resgate da humildade, de um campo do qual você faz parte. Em uma meditação quântica, nós temos de abrir mão de quem somos para acessar um campo quântico, em que você é tudo ao mesmo tempo.

Nem sempre é aquela sobrevivência dos níveis básicos da pirâmide de Hierarquia das Necessidades Humanas, desenvolvida por Abraham Maslow, que focam no financeiro e na segurança, mas sim a sobrevivência da imagem que você tem de si mesmo, da sua identidade, do seu papel na sociedade, da sua empresa. Você está lutando pla sobrevivência do seu negócio, que, no fundo, tem a ver com você, porque de alguma forma a sua identidade está espelhada na empresa. Por isso, você cria narrativas que justifiquem o motivo pelo qual a empresa tem de crescer e evoluir. Isso é um instinto de sobrevivência, porque se você perde a sua identidade, quem é você? Observando o nosso ciclo de vida biológico, temos uma as-censão e uma queda. Conforme a idade avança, as funções físicas do corpo dão sinais — andropausa, menopausa etc. —, até a

Conheça os critérios ESG e como eles impactam nos investimentos. RTM, 2020. Disponível em: <https://www.rtm.net.br/conheca-os-criterios-esg-e-como-eles-impactam-nos-investimentos/>. Acesso em 14 de abril de 2021.

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É interessante falar da contemplação da natureza como fator de ativação da criatividade. A ciência ainda não descobriu de onde ela vem. Você pode dissecar o cérebro, dissecar o coração, não há um órgão responsável pela criatividade. Ela está no campo quântico. E você é um seletor de canal, capaz de capturar a onda da informação, processá-la e ser um veículo de manifestação ao criar.

Para isso, nós temos de resgatar todo o conceito de economia. Não é somente o capital financeiro que flui na economia, mas também um capital criativo, social, humano, espiritual, psicológico, cultural. Gosto muito do modelo dos quadrantes de Ken Wilber, que considera os indivíduos e o coletivo, a parte subjetiva e a objetiva, tanto no campo individual quanto no campo coletivo.

Há alguns elementos importantes para colocar a criatividade em prática a serviço de algo: a curiosidade, a coragem, a comunicação, o carisma da comunicação. Tudo é muito direcionado pela intenção. A intenção de fazer o bem comum versus a intenção de desenvolver ainda mais algo da sua identidade, do seu ego. Esses aspectos se equilibram: não é “ou”, e sim “e”. É entender que desenvolvo a minha identidade e desenvolvo o bem comum. Quando faço isso, eu estou aberto a esse campo quântico da criatividade, para que a intuição – que não vem só da cabeça, mas também do coração, desse feixe de neurônios que temos no corpo todo – me oriente em uma tomada de decisão, me alimente na inspiração. Então, tomar consciência de que fazemos parte da natureza, de que temos esses processos de criação, de que temos a natureza como uma fonte de inspiração, de que a contemplação é importante tudo isso faz parte do processo do ODS [Objetivo de Desenvolvimento Sustentável] zero. Um não é sequência do outro. Os 17 ODSs, que os países assinaram como objetivos a serem alcançados na Agenda 2030, são uma narrativa criada por um grupo de pessoas que direciona uma agenda tanto do setor privado como do setor público em busca dessa narrativa. Essa busca é uma experiência da jornada de evolução de consciência. Então, ela acontece “e”. Não adianta colocar o ODS zero à frente dos demais. É buscando os outros ODSs que eu desenvolverei o ODS zero, que é a jornada de evolução de consciência, entende? Essa é a dinâmica em que sinto o universo acontecendo. E quando colocamos a energia para o novo, nós paramos de gastar energia com o velho, que é outro fator importante. Infelizmente, temos uma parcela gigante da população, talvez 80%, que está no estágio de desenvolvimento de maturidade do ego, ou

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Ali, temos um modelo de dez possíveis capitais, e a todo momento nós fazemos trocas desses capitais. Neste encontro, por exemplo, estamos trocando ideias, conhecimentos, experiências, que são trocas de capitais, para além do financeiro.

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seja, que está operando com outro nível de consciência, pautado pelo medo, pelo objetivo de desenvolvimento da sua própria identidade, das suas conquistas materiais, do seu retorno financeiro.

Enquanto a economia dedicar muita energia e muito foco para as trocas de capital financeiro, estaremos perdendo uma parcela muito importante, talvez até maior, em termos de valor dos outros capitais que trocamos diariamente na sociedade, como o acolhimento e a solidariedade – uma realidade na qual a pandemia serve como um alerta, mais um acelerador do despertar da consciência.

Essa é a realidade. Não dá para eu querer que o meu filho vire logo adolescente e adulto. Tenho de esperar o tempo acontecer. O que posso fazer é proporcionar experiências em cada um dos estágios dele como criança, como adolescente e como jovem adulto, para que, quando ele for autônomo, tenha o desenvolvimento da sua maturidade mais pleno possível. É muito clara essa intenção, podemos colocar isso em prática com as pessoas, seja crianças, adolescentes, jovens e também com as pessoas mais velhas. Sabemos que, em um determinado estágio, o indivíduo começa a pensar no seu legado, no que está deixando para gerações futuras, e há aí uma janela de oportunidade para redirecionar a energia para a construção do novo. Porque o novo substituirá o velho. Não adianta tentar consertar o velho, o novo virá e o substituirá. E, aos poucos, a nova economia florescerá, pensando que também a economia é uma narrativa que nós construímos para nós mesmos. Ela não é um fenômeno da natureza, como o ciclo da chuva, mas sim um fenômeno criado pela mente humana, portanto passível de ressignificação e reconstrução. Os elementos da economia podem ser redesenhados. Ricardo Catto durante o encontro on-line

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mais + dos convidados Convidados do painel A natureza pode ser fonte de soluções?

Lídia Goldenstein Por mais que se deseje um capitalismo mais decente no plano individual, sabemos que dificilmente criaremos barreiras ao capitalismo predatório sem regulações governamentais ou políticas públicas. Como é possível juntar o micro e o macro para fazer a diferença? Ricardo Catto

Voltando ao desenvolvimento da natureza, nesses bilhões de anos, o que conseguimos narrar na história da economia é muito pouco do que está acontecendo na evolução. Confio no desenvolvimento porque parto dessa perspectiva.

Mais de 80% da população vive na primeira metade da idade psicológica, que é a de formação da própria identidade. Muitas pessoas que ocupam posições de poder estão lutando para a sua própria sobrevivência, para a construção do ego, e o poder faz parte disso. Você pode ser poderoso dentro de uma empresa privada ou de um governo. Então, se sou um prefeito, um governador ou o presidente da República, o ego está lá, trabalhando o tempo todo.

Penso: “Vai acontecer. Dá para acelerar? Qual é o tamanho da massa crítica?”. Sabe aquela história de que cinco pessoas bem intencionadas podem transformar o mundo? Eu não sei qual é o tamanho disso. Talvez 25%, 30% de pessoas que estejam nos “late stages” consigam redefinir políticas e padrões sociais. É verdade que a pressão social é o que faz a diferença. O ativismo é fundamental para haver essa movimentação.

E não é a ausência de ego que vai resolver, mas passar para o estágio seguinte de desenvolvimento. Nele, começamos a pensar na inclusão, na pluralidade da sociedade, em direitos para todos. Os movimentos de direitos humanos, ambientalistas, são formados por pessoas que despertaram para isso e falaram: “Vou fazer advocacy por essa causa”.

Quando entrei no mundo da sustentabilidade, em 2010, conheci gente que estava na Conferência Eco’92, ou Rio’92, e falava: “Ih, meu amigo, você não sabe quanto já batalhamos por essa pauta”; “você não sabe, quando começamos lá atrás, como a gente falava e ninguém ouvia”. Na Rio+20, em 2012, eu saquei o problema das narrativas. No Forte de Copacabana, onde estavam as empresas, havia uma narrativa. No Aterro do Flamengo, onde estava o terceiro setor, havia outra narrativa. Na Barra da Tijuca, onde estava o agente de governo, havia uma

Quando começamos a ter pessoas que dedicam a vida a essas causas, há um pequeno shift, uma pequena mudança no centro de gravidade. Mas,

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lembremos, 85% dos indivíduos estão nos “early stages”, então a mudança dos outros 15% ainda não altera esse centro de gravidade.

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terceira. Pensei: “Essas coisas não vão fechar, demoraremos anos para convergir”. Graça Cabral Essa convergência talvez seja facilitada quando temos evidências. Nesse sentido, Fred, marcas com propósito, que se relacionam antes de tentar vender, funcionam na prática? Fred Gelli Na minha trajetória de 30 anos de relacionamento com com-panhias, empresas, líderes em diferentes estágios de consciência, eu sinto que — olhando de novo para a natureza como fonte de inspiração — a maior motivação para a trans-formação não será a ampliação de consciência desses líderes. Tenho um grande amigo físico que diz que as novas gerações, dos millenials para cá, estão vindo com “mutações”, o que tem a ver com uma resposta da nossa própria natureza para nos proteger da encrenca que estamos criando para nós mesmos. Juntos, esse instinto de sobrevivência e esse amadurecimento, que podemos chamar de “ampliação de consciência”, têm mais espaço para garantir a transformação. Sou cético em relação aos negócios sociais. Temos uma aceleradora de negócios de impacto, a Pipa, e a lógica de Muhammad Yunus [economista e banqueiro bengali, ganhador

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do Nobel da Paz em 2006] tem um papel importantíssimo. Mas quando pensamos em escala, na mudança nas dimensões que de fato precisamos, eu acredito, defendo e aconselho líderes a entenderem que todo negócio vai ter de ser social. Do contrário, não será negócio. E digo o mesmo em relação ao design. Essa coisa de ecodesign é algo do passado. Todo design terá de ser eco ou não será mais design. Então, por uma motivação que pode ser pragmática, no sentido de garantia da sobrevivência, os negócios precisam migrar seu entendimento. No processo evolutivo de qualquer espécie, a maneira de você lidar com um grande desafio numa sinuca evolutiva como a atual é usando o conjunto de competências acumuladas por gerações. Os castores fizeram isso quando começaram a construir barragens. Houve uma mudança de cenário, em que eles começaram a ser ameaça-dos por outros predadores que comiam os peixes com mais eficiência. A partir desse momento, eles desenvolveram, por um processo de amadurecimento da espécie, a capacidade de construir barragens. Represam uma área do rio, passam a pescar com mais facilidade e ainda vivem embaixo dessas barragens. Então, é uma solução de design que transformou a realidade daquela espécie. Eu acredito que o

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sapiens tem um grande repositório de inteligência e de capacidade de lidar com esse desafio evolutivo. Esse repositório mora essencialmente nos laboratórios, nas áreas de inovação das empresas e das corporações. Marcas e empresas precisam ser agentes de construção de um futuro desejável, sob risco de esse futuro não existir e de elas mesmas perderem relevância ou deixarem de existir. Então, de modo geral, é o próprio instinto de sobrevivência que empurra o negócio a partir do seu core. Nesse sentido, tem um conceito que exploramos na Tátil, que é o de lugar de potência. Cada negócio, assim como cada indivíduo, tem um lugar de potência particular, que é um cruzamento entre o que você tem de competências essenciais e aquilo que o mundo precisa. Você pode ter competências incríveis, mas, se o mundo não precisa delas, de pouco adiantam; da mesma forma, o mundo pode precisar de um monte de coisas que, se você não tiver para entregar, também não resolve. É por isso que muitas marcas, indivíduos e espécies são extintos. A natureza é impiedosa: 95% de tudo que ela criou nesses 3,8 bilhões de anos em que a vida existe está extinto. Tudo com o que nos relacionamos hoje representa 5% do que já foi criado. Então, nenhuma empresa, nenhum indivíduo, nenhuma nação podem contar com o jogo ganho. Acredito que as empresas precisam assumir esse papel de protagonistas na construção do futuro a partir do seu lugar de potência. Cada uma ocupará um espaço, que está hoje vago, no sentido de gerar soluções compatíveis com esse futuro desejável. E essa é uma mega oportunidade de negócios. É por isso que, na minha opinião, não é necessário que o CEO tenha um alto nível de consciência. Ele pode até continuar conectado no retorno para o shareholder, mas agora ele entende que só consegue ter um retorno sustentável para o shareholder se gerar valor para o stakeholder de modo geral. Isso tem conexão com a visão de interdependência na qual a natureza opera. É entender que você não consegue viver em uma ilha, com o shareholder cada vez mais rico e o entorno cada vez mais pobre. Tem uma hora em que isso explode, como está para explodir no Brasil e no mundo. Em 2020, o Brasil ganhou durante a pandemia 11 novos bilionários, e ao mesmo tempo aumentou

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radicalmente o número de pessoas nos limites da miséria. Há aí um balanço e um equilíbrio que precisam ser resolvidos pelo capitalismo e pela democracia juntos. Ambos precisam evoluir, e falamos aqui da espiral de Ken Wilber, de evolução em um modo geral. Hoje, essas duas estruturas, que são a base do nosso modo de vida ocidental ou até planetário, estão sendo desafiadas a evoluir. Acredito que as empresas precisam seguir nessa direção. Não é uma coisa ou outra. Lala Deheinzelin Ricardo, você poderia falar do resultado da pesquisa Empresas Humanizadas? A questão que sempre fica subjacente ao que estamos falando é a ideia de fantasia, utopia. Por isso as possibilidades trazidas pelo mundo real são superimportantes. Ricardo Catto A pesquisa faz parte da tese de doutorado do meu sócio Pedro Paro, aluno do campus de São Carlos da Universidade de São Paulo. Ele se inspirou em duas questões importantes. A primeira foi a pesquisa de 2005 do professor Raj Sisodia, que deu origem ao movimento Capitalismo Consciente nos Estados Unidos. Em 2009, outra versão do estudo mostrou que, na crise econômica de 2008, as empresas mais resilientes, com propósito, com mais desenvolvimento de consciência se recuperaram e evoluíram com mais rapidez, enquanto outras quebraram. Muitas das empresas good to greats [feitas para vencer, em inglês], de Jim Collins, foram para o buraco, e aquelas humanizadas levantadas pelo professor Raj Sisodia se saíram bem. Outro ponto de inspiração: a escolha do tema desse doutorado coincidiu com a semana em que a Odebrecht fez o acordo de delação premiada na Operação Lava Jato e, como uma das empresas brasileiras mais queridas, abriu a agenda de como as coisas acontecem no país. Daí veio a inspiração: existem empresas boas para o Brasil? Quais são elas? Porque, se você abre o jornal, vê apenas as falcatruas sendo reveladas. Normalmente, quem faz coisas boas cacareja pouco. Não está na mídia. A Natura, todos sabem. Mas quais são as outras?

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Paro fez uma primeira versão da pesquisa, buscando dados públicos e levantando stakeholders. A segunda versão foi anunciada no dia 25 de março deste ano, com a resposta de mais de 36 mil stakeholders e a avaliação de 230 empresas.

construir melhor e fazer diferente? Como vocês veem isso? Fred Gelli

Foi um universo de mais de 3 mil empresas com dados públicos de sites que conferem reputação, como Reclame Aqui. Você percebe que, das 230 empresas avaliadas, um conjunto delas está em um rating — usando aqui o mesmo conceito do rating de investimento – mais avançado de nível de consciência.

Eu acredito que sim. Sou uma pessoa otimista, acho que o tamanho da oportunidade de negócios nesse futuro desejável é muito maior do que seguir com a lógica ultrapassada dos negócios predatórios. Nós não precisamos romantizar o próprio processo evolutivo, essa motivação é muito poderosa. Basta ver o que a China vem fazendo.

Elas têm uma liderança inspiradora, produtos e serviços mais ecologicamente orientados, práticas voltadas aos stakeholders. Elas compreenderam, de modo consciente ou não, que uma estratégia de sobrevivência que leva em consideração a interdependência de stakeholders prospera mais do que aquela que briga sozinha para sobreviver.

Eles estão investindo mais do que qualquer outro país em uma economia limpa, uma economia que tem a ver com esse futuro. Não é por bommocismo, não é pelo nível de consciência ampliada, é porque são os melhores negócios no horizonte. E tudo bem ser assim, porque o que interessa é que nós consigamos.

A pesquisa tem servido a dois objetivos principais. O empreendedor recebe um feedback de como os seus stakeholders o avaliam a partir de uma fonte independente e de uma pesquisa cientificamente organizada. Isso dispara processos de desenvolvimento de cultura, de lideranças, de design de produtos e serviços, de estratégias mais interdependentes. E para nós, como sociedade, começamos a ter uma radiografia de quais são as empresas que fazem bem para o Brasil, a sociedade e o meio ambiente. Quais estão avançando nessa jornada de consciência e incluindo a interdependência sistêmica nas suas estratégias de sobrevivência. É essa a diferença. Isso vai substituir o velho jeito de fazer negócios, o velho capitalismo. Naturalmente, vai demorar. Porque, de novo, é uma questão de massa crítica. Agora, se divulgarmos isso nos veículos de comunicação corretos, se pararmos de dar atenção para as coisas erradas e começarmos a colocar energia naquilo que está construindo esse novo jeito de operar, talvez consigamos acelerar o processo de transformação. É nisso que eu acredito. Graça Cabral Na opinião de vocês, nesse momento de vulnerabilidade em que nos encontramos em função do vírus, o que eu vejo também como um recado da natureza, nós temos uma oportunidade real, e não só intencional, de

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Concordo com o Ricardo quando ele diz que o próprio processo transforma a consciência. Se imaginarmos que poderemos formar turmas de CEOs conscientes para que eles mudem o mundo, essa será uma luta inglória. Prefiro acreditar que isso será parte de um processo de transformação, que acontecerá simultaneamente com o reconhecimento dos dados da pesquisa que foi mencionada. As empresas performam melhor quando estão conectadas com esses valores. Do outro lado, as pessoas vêm fazendo escolhas – e na Tátil nós preferimos não nos referir a elas como “consumidores”, porque é uma redução da razão do existir do ser humano, ainda em um modelo mental do hiperconsumo. Essa é a beleza: as novas gerações vêm com outro chip. Elas já vieram com um upgrade de consciência. Estão muito mais interessadas em ser desfrutadoras do que consumidoras, o que, para mim, é a evolução dessa pessoa que se relaciona com produtos e serviços. Ser desfrutador é muito mais leve. Você não precisa ter um carro, pode desfrutar de um carro quando precisar. Uma furadeira, uma bicicleta elétrica, o que seja. Junto com a emergência dos negócios do futuro, que são mais leves, mais limpos e, por consequência, mais bem-sucedidos, você tem a emergência de novas gerações já motivadas pelo próprio instinto de sobrevivência, que cria um ponto doce de encontro dessas pessoas que querem se relacionar com marcas, serviços e produtos que não comprometam a própria existência delas.

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Elas demandarão isso das empresas. O empresário que for sensato e quiser manter o seu negócio vivo vai operar nessa direção. Ricardo Catto Gostaria de acrescentar que precisamos abrir mais espaço na agenda do empreendedor para a contemplação da natureza, para a reflexão e a atribuição de significado ao que ele faz. Isso é o processo de evolução de consciência. Não adianta você desenvolver negócios e não ter tempo para o autodesenvolvimento. Se ele atribuir significado àquilo que está acontecendo, às suas realizações, o processo acelera. Todas as crises pelas quais a humanidade já passou foram o momento em que mais houve desenvolvimento. A ciência nunca produziu tanta vacina de forma tão rápida. A pandemia intensificou as descobertas feitas pela comunidade científica em cooperação. Todas as pesquisas científicas que estavam engavetadas dispararam por conta da busca da vacina e do estudo desse vírus. Então, em breve, teremos outro salto quântico da ciência. Infelizmente, a evolução impulsionada na ciência não está acontecendo no nosso modelo de governança. Porque os partidos políticos não são integrais, eles são partidos, ou seja, têm visões parciais da solução. E ninguém vai conseguir resolver com visão parcial. Os problemas das mudanças climáticas, dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, da desigualdade e da pandemia são tão grandes que é preciso união de visões para dar conta desse desafio. Tenho certeza de que a pandemia não passará rápido, porque ela está a serviço desse processo de ressignificação do que é partido político. Esquerda e direita são simplesmente uma convenção de narrativas. Uma nova narrativa tem de ser construída, usando ideias boas de ambos os lados para construir algo novo. O setor privado pode encontrar soluções para os desafios da sociedade. Porque esse instinto de sobrevivência e essa elevação de consciência de interdependência andam mais rápido e, por conta do instinto de aproveitar oportunidades, ele traz soluções. Mas a parte governamental pensa nisso? Hoje, o governo tem um instinto de sobrevivência que é corporativista

Lídia Goldenstein Os partidos políticos e o governo não pairam acima da sociedade, ou seja, eles representam pedaços dela. Portanto, precisamos de um esforço ainda maior de transformação do comportamento desses representantes, porque sozinhos eles não vão mudar. Como fazer isso? De que maneira vocês acreditam que as instituições nas quais vocês transitam podem contribuir para isso? Ricardo Catto A mudança desse sistema que está estabelecido é a mais difícil de todas. Veja o esforço que alguns empresários estão fazendo para ajudar na compra das vacinas e acelerar o processo de vacinação. Há preconceitos instalados sobre o que é papel do Estado, o que é papel do setor privado, quem tem de fazer, quem não tem de fazer. Costumo dizer que pobre tem dono. Existe a ONG trabalhando, mas há também a igreja, o partido político. Então, fica o “deixa que eu cuido”, em vez do “vamos cuidar juntos?”. Que ideia você tem sobre o problema? Quais soluções você pode trazer? Que competência você tem que pode acelerar o processo de vacinação da população? É um processo que envolve reconquistar relações de confiança, pois há uma desconfiança do empresariado e da sociedade civil perante representantes do governo, e vice-versa. Essa relação de confiança tem de ser restabelecida, e o processo de fazer junto é o único jeito para isso acontecer. Estamos juntos nesta live, construindo confiança entre nós conforme concordamos e ajustamos as narrativas trazidas por cada um. As relações de confiança são necessárias para entendermos a interdependência e construirmos soluções para o tamanho do desafio que temos. Porque ele não será resolvido por uma entidade. Não é o governo de plantão que vai falar: “Eu tenho a solução, desenvolvi uma vacina que é a vacina do Brasil”. Esquece. Não é um governo que vai resolver, nem uma entidade, nem uma pessoa. Fred Gelli Se há algo que diferencia o sapiens de qualquer outro bicho é a capacidade, o desejo, o interesse e o histórico de colaboração e de cooperação.

Nenhum outro animal coopera tanto quanto o sapiens. Vem daí a nossa história de sucesso e, pro-vavelmente, as soluções para as questões complexas colocadas por esse desafio evolutivo em que nos encontramos enquanto espécie e que precisam ser multidisciplinares. Não tenho dúvidas de que precisa haver multiconhecimento. É evidente que temos uma lógica política absolutamente ultrapassada, que não representa mais o que o mundo precisa hoje. Não estou falando apenas da nossa sociedade humana, mas o planeta precisa de uma lógica de gestão pública compatível com o tamanho do desafio evolutivo que temos pela frente. Ficou evidente na pandemia o sucesso da ciência, mas o fracasso absoluto da gestão política planetária — não só no Brasil, que é a piada global, mas no mundo inteiro, mostrando inclusive a importância dos governos e o questionamento à crença de que o mundo do mercado pode cuidar de tudo. Ficou evidente que somos um ecossistema delicado, especialmente com os passivos de desigualdade bizarros que temos no mundo. Sem uma inteligência coletiva, uma visão holística que olhe para o público antes do privado e em equilíbrio com ele, não temos saída. Não podemos assumir que Adam Smith, com sua visão do século XVIII, daria conta de um universo tão complexo como o que vivemos em 2021 e que viveremos no futuro. Então, fico feliz que possamos estar na iminência da emergência de uma nova dinâmica política nesse momento tão delicado que vivemos. Ricardo Catto Pegando esse gancho, Adam Smith era filósofo, ou seja, ele não desenvolveu o capitalismo. Ele observou o fenômeno econômico em curso e o transcreveu. Esse é o papel dos pesquisadores. Costumo falar isso para Pedro Paro, da Humanizadas: observe o fenômeno, pegue dados e traga isso ao mundo. Então, a coisa vem acontecendo e algumas pessoas criam narrativas em cima disso, que vão se aprimorando. Temos uma capacidade gigante de criar narrativas.

precisamos mais nos sentir vira-latas, já somos campeões do mundo”. Mas, em 2014, aconteceu o 7 X 1 no jogo contra a Alemanha, e voltamos para a síndrome. Temos também de ressignificar o vira-lata, que é o cachorro mais resiliente, mais bacana que tem. Talvez seja um dos melhores amigos de todos os homens. Então, precisamos trabalhar isso na nossa nação. Precisamos também ressignificar o papel da China no planeta. Muitos dizem: “A China é fechada, não tem democracia”. Falamos de um país ancestral, que já viveu guerras, esteve nas Américas antes dos europeus, inventou tanta coisa. Não deve ser muito fácil ser governo lá, ter 1 bilhão e 500 milhões de pessoas para fazer a gestão, organizar saúde e alimento. Os chineses são o que são porque estão se desenvolvendo. Eles equilibram muito bem a medicina oriental chinesa, tradicional e ancestral, com as novas medicinas ocidentais, os remédios e as técnicas que a ciência desenvolve. Não abriram mão dos processos de energia, dos Chi. Temos muito que aprender com os chineses, desfazer alguns preconceitos e entender os desafios que eles superaram. Admiro demais todos esses países. O Japão, por exemplo, possui um território pequeno e uma população que é proporcionalmente gigante. Em países onde há restrições físicas, as pessoas entendem a questão da interdependência de forma mais automática. Nós estamos em um país tropical, onde a fruta dá no terreno do lado. Vejamos o norte da Noruega para entender a necessidade da colaboração para a sobrevivência. Precisamos olhar com mais humildade para esses aprendizados da humanidade e tentar implementar isso nas nossas comunidades, na nossa política. Continuo otimista. Sei que o caminho é doloroso, porque aprendemos ou no amor, ou na dor. E estamos aprendendo na dor, mas acredito que vamos evoluir como espécie.

Uma das narrativas em que precisamos trabalhar é a nossa síndrome de vira-lata. Começamos com isso quando perdemos a Copa do Mundo de 1950 e o Nelson Rodrigues cunhou essa expressão. Quando ganhamos a Copa do Mundo de 1958, ele escreveu em uma coluna: “Não Fonte: © Shutterstock

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