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Este ensaio é o resultado de reflexões antropológicas, fotográficas e imagéticas sobre a cidade, a partir da experiência de confinamento/desconfina-
mento e deslocamento na cidade do Natal/RN — Brasil, 2020–2021. Trata-se,
mais especificamente, de uma abordagem dos cantos, ângulos e situações
a partir da qual percebe-se o abandono e o esquecimento. Essas categorias vieram à tona depois que a pandemia da covid-19 nos obrigou ao confina-
mento, interrompendo e modificando grande parte dos fluxos cotidianos das
cidades. Essa reflexão também veio no esteio de pesquisas e discussões que já pensavam os processos em curso na cidade de Natal anteriores à pandemia e já sinalizavam o abandono e a desvalorização de prédios e regiões.
Partindo de casa, quando foi preciso, e depois que por uma única vez as taxas de contaminação e morte diminuíram, propus uma etnografia visual
do tempo presente. Uma série de deslocamentos por ruas, avenidas, centros comerciais e bairros históricos permitiu atravessar uma paisagem visual marcada por prédios abandonados, imóveis à venda e lojas fechadas. Alguns
prédios históricos até pareciam intactos, enquanto outros sucumbiram à
ação do tempo impulsionados pelo abandono. Compondo esse mesmo tecido visual que chamamos paisagem urbana, as plantas e o mato desenharam
texturas nas superfícies, em grades e fiações. Nos meses em que ainda se respeitava minimamente o imperativo de ficar em casa, olhar para a rua implicava em ver as pessoas traçando trajetos, cruzando uma paisagem desacelerada, engolidas por um deserto de sociabilidades ao qual sucumbiu suas linhas costumeiras.
Em caminhadas exploratórias para fotografar e reconhecer essa cidade esquecida, para além da minha própria casa e do bairro em que resido, consciência do presente, vi minhas próprias memórias engolidas pelo “progresso”.
Visitando bairros tradicionais, como a Lagoa Seca, o Alecrim, a Cidade Alta, a Ribeira e as Rocas, busquei reviver minhas memórias e as lembranças da
minha família, ao mesmo tempo em que busquei ir além da “ilusão biográfica” tentando capturar pela fotografia os rastros de uma história compartilhada. Revivi ao nível das lembranças coisas que aparentemente nunca vou