ação cultural para a liberdade

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Cedo percebem que a indispensável Páscoa, de que resulta a mudança de sua consciência, tem realmente de ser existenciada. A Páscoa verdadeira não é verbalização comemorativa, mas práxis, compromisso histórico. A Páscoa na verbalização é “morte” sem ressurreição. Só na autenticidade da práxis histórica, a Páscoa é morrer para viver. Mas uma tal forma de experimentar- se na Páscoa, eminentemente biofílica, não pode ser aceita pela visão burguesa do mundo, essencialmente necrofílica, por isso mesmo estática. A mentalidade burguesa tenta matar o dinamismo histórico e profundo que tem a Passagem. Faz dela uma simples data na folhinha. A ânsia da posse∗∗ , que é uma das conotações da forma necrofílica de ligação com o mundo, recusa a significação mais profunda da Travessia. Na verdade, porém, não posso fazer a Travessia se carrego em minhas mãos, como objetos de minha posse, o corpo e alma destroçados dos oprimidos. Só posso empreender a Travessia com eles, para que possamos juntos renascer como homens e mulheres libertando- nos. Não posso fazer da Travessia um meio de possuir o mundo, porque ela é, irredutivelmente, um meio de transformá - lo. Da mesma maneira, aprendem que a consciência não se transforma através de cursos e discursos ou de pregações eloqiientes. mas na prática sobre a realidade. Assim, aprendem igualmente a distorção idealista, por exemplo, que faziam da tão incompreendida conscientização quando pretendiam ter nela uma medicina mágica para a cura dos “corações”, sem a mudança das estruturas sociais. Ou, noutra versão não menos idealista, quando pretendiam ter na conscientização o instrumento igualmente mágico para fazer a conciliação dos inconciliáveis. Dai que a conscientização lhes aparecesse como uma espécie de “terceiro caminho”, através do qual se evitassem os conflitos de classes. Milagrosamente, a conscientização criaria um mundo de paz e de harmonia entre classes opressoras e classes oprimidas, estabelecendo a necessária compreensão entre elas. Conscientizadas umas e outras, já não haveria nas sociedades opressores e oprimidos porque todos, amando-se fraternalmente, resolveriam as suas dificuldades através de mesas- redondas, com bom café, ou bom pisco, ou boa tequilla ou mesmo coca- cola. No fundo, esta visão idealista, que só serve aos interesses das clas- ses dominant es, é a mesma que Niebuhr condenou veementemente, chamando- a de moralista.∗ Tal mistificação da conscientização na América Latina e não apenas nela, feita, não importa se pelos “inocentes” ou se pelos “espertos”, se vem constituindo, naturalmente, em um obstáculo e não em uma ajuda ao processo de libertação.

desodorantes mil, assim como a possibilidade de mudar de roupa diariamente. Sem tais condições, que em nada são intrínsecas ao ser de ninguém, ele seria tão malcheiroso quanto os favelados de seu exemplo. ∗∗ A este respeito ver Erich Fromm, The heart of man. ∗ Referindo-se aos “moralistas”, diz Niebuhr: “They do not recognize that when collective power, whether in the form of imperialism or class domination, exploits wear-ness, it can never be dislodged unless power is raised against it... Modern religious idealists usually follow in the make of social scientists in advocating compromise and accommodation as the way to social justice”. 0p. cit, introdução, págs. XII e XIX.


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