Linguagem e filosofia

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Linguagem e Filosofia Anais do Segundo Simp贸sio Internacional Principia


Universidade Federal de· Santa Catarina - UFSC Rodolfo Joaquim Pinto da Luz, reitor Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação Álvaro Toubes Prata, pró-reitor NEL - Núcleo de Epistemologia e Lógica Décio Krause, coordenador


RUMOS DA EPISTEM OLOGIA. VOL. 6

Alberto Oscar Cupani Cezar Augusto Mortari (orgs.)

Linguagem e Filosofia Anais do Segundo Simp贸sio Internacional Principia

NEL - N煤cleo de Epistemologia e L贸gica Universidade Federa l de Santa Catarina Florian贸polis, 2002


© 2_002, NEL - Núcleo de Epistemologia e Lógica, UFSC.

ISBN: 85-87253- 07-7 UFSC, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, NEL. Cx. Postal476, 88010-970 Florianópolis, se (048) 331.8803, fax: 331.975 1 nel@cfh.u fsc. br http://www.cfh .ufsc.br/-nel Eclitoração Eletrônica: NEL - Núcleo de Epistemologia e Lógica Impressão e Acabamento: Imprensa Universitária, UFSC

Ficha Catalográfica (Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina) S612a

Simpósio Internacional Principia (2:200 1: Florianópolis SC) - Anais do li Simpósio Internacional Principia I orgs. Alberto Oscar CUpani, Cézar Augusto Mortari. Florianópolis: UFSC-NEL, 2002. 334 p. Tema: Linguagem e Filosofia Inclui bibliografia. 1. Lógica. 2. Linguagem. 3. Filosofia. 4. Teoria do Conhecimento. I. Cupani, Alberto Oscar. li Mortari, Cézar Augusto. lli. Título.

CDU: 1 Reservados todos os direitos de reprodução total ou parcial por NEL - Núcleo de Epistemologia e Lógica, UFSC Impresso no Brasil


coleção

RUMOS DA EPISTEMOLOGIA Editor: Luiz Henrique de Araújo Dutra Conselho Editorial: Alberto Oscar Cupani, Cezar Augusto Mortari, Gustavo Andrés Caponi, José André Angotti, Luiz Henrique de Araújo Dutra, Marco Antônio Frangiotti, Sara Albieri.

Núcleo de Epistemologia e Lógica Universidade Federal de Santa Catarina

Criado em 1996, o NEL tem por objetivo integrar grupos de pesquisa nos campos da lógica, teoria do conhecimento, filosofia da ciência, história da ciência, e áreas afins, na própria UFSC e de outras universidades. Um primeiro resultado expressivo de sua atuação é a revista Principia, publicada desde 1997, que possui corpo editorial internacional. Principia aceita artigos inéditos, além de resenhas e notas, sobre temas de epistemologia e filosofia da ciência, em português, espanhol, francês e inglês. A coleção Rumos da Epistemologia aceita monografias ou coletâneas, textos inéditos ou traduções de textos consagrados.


Apresentação Os textos reunidos neste volume foram apresentados no Segundo Simpósio Internacional Principia, promovido pelo NEL - Núcleo de Epistemologia e Lógica, da UFSC, de 6 a I O de agosto de 2001, em Florianópolis, em homenagem ao fi lósofo Bertrand Russell. O encontro contou com o apoio financeiro do CNPq, da CAPES e da FAPESP, assim como da própria UFSC, do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e do Departamento de Filosofia. Como já aconteceu por ocasião do I Simpósio (1999), os trabalhos apresentados são representativos de diversas áreas da pesquisa filosófica. Os textos selecionados para este volume foram agrupados em quatro seções: (1) lógica, (2) fi losofia da linguagem, (3) filosofia do conhecimento, e (4) filosofia moral e ética. Outros trabalhos apresentados no simpósio ajustavam-se mais ao perfil de Principia, e foram publicados no volume 5 (duplo) da revista, correspondente a junho e dezembro de 2001. Os organizadores do simpósio e desta coletânea agradecem imensamente a todos os autores e às entidades acima mencionadas pelo apoio que receberam. Por fim, esperam que este volume exprima adequadamente os ideais que orientam a realização dos simpósios de Principia, principalmente o de estimular as propostas e trocas fecundas de idéias filosóficas. Alberto Oscar Cupani Cezar Augusto Mortari


Sumário Seção 1 - Lógica

9

Carlos Luciano Manholi

É possível construir uma Semântica Formal Universal?

11

Décio Krause

Lógica Sortal e Física Quântica Jaqueline Engelmann

23

Intuição e Lógica na Controvérsia entre Poincaré e Russeil Paulo A. S. Veloso

43

Jssues in Reasoning with 'Generally ' and 'Rarely "

51

Seç.ã o 2 - Filosofia da Linguagem

73

Celso Braida Funções Semânticas e Complexidade da Proposição Marcos José Müller

75

Expressão Fenomenológica e Ontologia Sofia Inês Albornoz Stein

98

Identidade em Contextos Modais

107

Seção 3- Filosofia do Conhecimento

123

Alberto Cupani Acerca da Natureza do Experimento Cientifico Danilo Marcondes

125

O Problema do Erro no Surgimento da Filosofia Moderna: Entre o "Abuso das Palavras" e o " Véu das Idéias "

146


Eros Moreira de Carvalho

Em Defesa da Percepção de Objetos Reais Gelson Liston

163

Falseacionismo Metodológico e Pragmática Lingüística Gigi Anne Horbatiuk Sedor

181

Davidson. Rorty e a Questão da Verdade Gustavo Caponi

19 1

Sobreviniencia de Propiedades e Jdentijicación Funcional de Entidades en Biologia Luiz Antonio Alves Eva Montaigne, Ceticismo e Costume Luiz Henrique de Araújo Dutra Mental Events and Properties Ronie Alexsandro Teles da Silveira

202 2 13 233

Reminiscência e Sonho em Aristóteles

245

Seção 4 - Filosofia Moral e Ética

257

Dar lei Dali'Agnol Russell's moral epistemology: noncognitivism?

from

cognitivism

Delamar José Volpato Dutra Legalidade e Estado de Direito em Weber e Kelsen Luiz Paulo Rouanet A Idéia de Razão Pública em Rawls Maria Cecília Maringoni de Carvalho

to 259 275 283

O Utilitarismo e os direitos morais Maria Borges

297

O Modelo das Emoções em Kant Nelson Gonçalves Gomes Axiomas Éticos

313 324


Seção 1

Lógica



É PossívEL CoNSTRUIR UMA SEMÂNTICA FoRMAL UNIVERSAL? CARLOS L UCI ANO MANHOLI

Universidade Estadual de Londrina

Tradicionalmente, os estudiosos de semântica se dedicam a investigar as relações entre a linguagem - ou uma linguagem específica- e algo exterior a ela, geralmente o mundo. No primeiro caso, diz-se que o estudioso em questão está se dedicando à semântica geral, enquanto no outro caso se diz que ele está a fazer semântica especial. Para a pesquisa em filosofia, que normalmente consideramos estar por natw·eza voltada para a generalidade, para as verdades universais (o que, aliás, se pode dizer também, em um certo sentido, da pesquisa científica), é quase óbvio concluir que imeressa sobretudo a semântica geral. Neste ensaio pretendemos considerar a possibilidade de se obter algo mais que uma semântica geral: estaremos considerando a possibilidade de se erigir uma semântica universal. Como acreditamos que a semântica formal é o modo mais apropriado de se fazer semântica, 1 estaremos falando aqui sobre a possibilidade de se obter uma semântica fonna/ universal. Em primeiro lugar, vamos distinguir entre nosso uso da expressão 'semântica geral' e nossa acepção da expressão 'semântica universal' . A semântica geral, no sentido que estamos atribuindo a essa expressão, pode permanecer no estudo de relações bastante gerais existentes entre a linguagem e, digamos, o mundo. Assim, podemos dizer, de um modo bastante abstrato. que a semântica geral tem por objeto a relação de denotação (entre outras), que ocorre entre as expressões significativas de qualquer linguagem e objetos extra-lingüísticos, 2 que podem ser objetos físicos - no caso de nomes próprios - ou conjuntos de objetos Cupani, A. O. & Mortarí, C. A. (orgs.} 2002. Linguagem e Filosofia. Anais do Segundo Simpósio Internacional Principia . Coleção Rumos da Epistemologia, volume 6. Aorianópolis: NEL, pp. 9-22.


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Carlos Luciano Manho/i

no caso de nomes comuns e predicados - ou ainda valores-verdade, no caso de sentenças. É fácil notar o caráter abstrato dessa especi fi cação do objeto de estudo da semântica geral. De fato, estamos falando de relações que se dão entre as expressões de qualquer língua, natural ou não, e objetos extra-lingüísticos quaisque r, e não, por exemplo, da denotação de expressões específicas de línguas específicas. Já no que se refere à semântica universal - sempre no sentido em que estamos tomando essa expressão-, temos objetivos bem mais pretensiosos a serem alcançados. De fato, se conseguirmos obter uma semântica universal, estaremos de posse de um instrumento capaz de nos fornecer, por exemplo, a denotação de uma expressão3 arbitrária de uma linguagem natural qualquer. Em termos matemáticos, o legado de uma semântica universal, se ela é algo possível de se obter, é uma função f, cujo domínio é o conj unto das expressões significativas de uma linguagem arbiu·ária, e cujo contradominio é o conjunto das possíveis denotações, e tal que f(e) dá a denotação da expressão e. No caso de possuirmos uma tal função, dizemos que obtivemos uma semântica formal universal. Em suma, de acordo com o nosso uso das expressões mencionadas, a semântica especial estuda as relações existentes entre as expressões significativas de uma linguage m determinada e objetos extra-lingüísticos. Por exemplo, o estudioso da semântica do português é um estudioso de semântica especial, e faz parte de seu traballio determinar que a denotação do termo ·mesa' é um determinado conjunto de objetos físicos, enquanto a denotação do termo ' homem' é outro conjunto de objetos físicos, e assim por diante. Já o estudioso de semântica geral faz abstração das línguas particulares, bem como dos objetos por elas denotados, e se dedica ao estudo da própria natureza das relações semânticas. Isso é possível porque, embora as linguagens e objetos extra-lingüísticos sejam muitos e variados, as relações semânticas entre eles são constantes, isto é, a relação que se dá entre o termo português ' mesa' e determinado conjunto de objetos é, supostamente, a mesma que se dá entre o lermo inglês 'table' e o mesmo conjunto de objetos, isto é, em ambos os casos trata-se da relação de denotação. Então, podemos fazer abstração das linguagens particulares, como o português e o ing lês, bem como dos


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objetos extra-lingüíst-icos que se relacionam com as expressões significativas dessas línguas, e nos dedicarmos ao estudo das relações semânticas em si mesmas, como a relação de denotação, ou a de satisfação (de expressões significativas de uma linguagem qualquer por objetos), etc. É isso, precisamente, que faz o estudioso de semântica geral. No caso, da semântica universal, por fim, pretendemos fazer o que a semântica especial faz, isto é, determinar as relações entre as expressões significativas de linguagens específicas e o mundo, apenas com o acréscimo de que pretendemos fazer isso para a totalidade das línguas específicas. Ao fazer isso, então, estaríamos também fazendo o que a semântica geral faz, isto é, estaríamos especificando as relações semânticas, mas não de modo abstrato, como acontece em semântica geral, e sim por extensão. Como é fácil perceber, ao determinar todos os pares-ordenados (x,y), tais que x é uma expressão significativa de uma linguagem arbitrária, e y o objeto denotado por tal expressão, estamos determinando a extensão da relação de denotação. O acréscimo do adjetivo 'formal' a qualquer dessas três expressões (de acordo com nosso uso do mesmo, não é demais lembrar), então, indica que estão sendo empregados recursos da lógica e da matemática para o alcance dos objetivos de cada área. Em um primeiro momento, e para alguns estudiosos talvez também nos momentos posteriores, somos compelidos a pensar que não é possível obter uma semântica universal nos moldes propostos acima, exceto se nos dedicarmos ao colossal trabalho de estudar a semântica de todas as línguas naturais, uma a uma. E as coisas seriam ainda piores no caso de se pretender construir uma semântica formal universal. Qualquer pessoa que tenha se dedicado à investigação da possibilidade de se obter uma semântica formal para uma língua natural específica sabe das dificuldades, às vezes aparentemente intransponíveis, com as quais devem se confrontar os projetos que visam alcançar esse objetivo. Assim, é evideme que faz sentido esperar que dificuldades muito piores apareçam quando o objetivo for a consecução de uma semântica formal única, capaz de interpretar qualquer língua natura1. 4 Assim, nosso trabalho aqui consistirá em tentar mostrar que, ao menos em princípio, não é absurdo pensar que seja possível obtermos uma


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Carlos Luciano Manholi

semântica formal universal. Para tanto, julgamos que é suficiente propor um caminho, ou um programa de Lrabalho que possamos seguir e que, caso formos bem-sucedidos, nos levará à obtenção de uma semântica formal universal. Se temos um projeto rigoroso, especffico, não evasivo, de como obtermos nossa função f de que falamos acima, isso significa que em tese é possível alcançar La) <>bjerivo. E para não ficarmos restritos a questões sobre possibilidade em tese, convém que nosso projeto seja razoável em Lermos práticos. Então. ao definirmos nossa função f, teremos um teste empírico óbvio para nossa suposta semântica f01mal universal. Se e é uma expressão significativa qualquer de uma língua natural qualquer, então f(e) deve dar a denotação de e, de um modo que, para usar uma expressão de Chomsky,5 sejam salvaguardadas as intuições lingüísticas do falame nativo daquela língua. No que diz respeito à construção de semânticas formais para línguas naturais específicas, temos não apenas um, mas dois programas bem rigorosos que se propõem à obtenção desse objetivo. Um deles é o programa de D. Davidson, apresentado por esse autor em artigos como ' Semantics for natural Janguages' 6 e 'Truth and meaning' .7 O outro é o programa de R. Montague, cuja melhor apresentação está no texto intitulado 'The proper treatment of quantificatlon in ordinary English' .8 Em linhas gerais, os dois programas propõem a seguinte abordagem para o problema em questão: não se deve consLruir uma semântica formal para uma língua natural diretamente, mas sim de maneira indireta. Em primeiro lugar, deve-se edificar uma Linguagem artificial dotada de recursos de expressão equiparados aos das línguas naturais. Depois, definir-se-á uma relação T, que mapeia a língua natural para a qual se pretende consLruir uma semântica fonnal (a linguagem-objeto) sobre a mencionada linguagem formal. Essa relação não precisa ser uma função (o que toma um tanto impróprio o uso do Lermo ' mapeia' na sentença anterior), pois, ca<>o exigíssemos isso, não poderíamos lidar com linguagens naturais que possuem ambigüidades (o que deve ser o caso de todas elas), exceto se nossa linguagem artificial tivesse ela mesma expressões ambíguas. Nesse último caso, se a é uma expressão ambígua da linguagem-objeto. T(a) = a, onde a é uma expressão de nossa linguagem formal cuja denotação é ambígua. Mas, nesse caso, nossa fun-


É Possível Construir uma Semântica Formal Universal?

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ção f, que dá a denotação das expressões significativas da linguagemobjeto (indiretamente), deve ser substituída por uma relação que não seja uma função, já que, no caso de a acima tomada como argumento, não haveria uma única imagem. Então, parece ser melhor definir T como uma relação9 composta por pares-ordenados (x,y) de X x Y, onde X é o conjunto das expressões significativas da linguagem-objeto, 10 e Y é o conjunto das expressões de nossa linguagem formal. Em tal caso a linguagem formal izada não contém ambigüidades, e a relação T pode associar mais de uma expressão da linguagem formal a uma mesma expressão da linguagem-objeto. Por fim, voltando à descrição do procedimento para a obtenção de semânticas formais para línguas naturais, se constrói uma semântica formal para a linguagem formal sobre a qual a linguagem-objeto foi mapeada. Em termos matemáticos, isso significa que se define a função f, cujo domínio é o conjunto das expressões de nossa linguagem formal, e cujo contradominio é o conjunto das denotações possíveis, e tal que, sendo a uma expressão da linguagem formal em questão, f( a) dá a denotação de a. Assim, em suma as coisas se passariam da seguinte maneira: seja L a linguagem-objeto, e M a linguagem formal sobre a qual L é mapeada por T; sempre que tomarmos uma expressão significativa de L, por exemplo, e, T relaciona e a uma ou mais expressões de M, digamos, a uma seqüência (a 1,a2 , . •. , a 11 ), n ~ 1, onde a; é uma expressão de M.ll Nesse caso, para cada a;, f( a;) dá a denotação de a; e, indiretamente, 12 a denotação (ou uma das possíveis denotações) da expressão e. Basicamente, essa é a proposta de Davidson e também de Montague, embora nos textos de Montague esteja bem mais claro que a proposta seja a que nós descrevemos acima, do que nos textos de Davidson. No entanto, julgamos que podemos dizer que, essencialmente, a proposta de Davidson também é coerente com o que expusemos acima. Assim sendo, a distinção existente entre o programa de Davidson e o de Montague está na construção da linguagem formal sobre a qual a linguagem-objeto será mapeada. De fato, enquanto Davidson pretende utilizar a linguagem do cálculo de predicados de primeira ordem, o que o exime da necessidade de dar o terceiro passo no procedimento que descrevemos acima, isto é, construir uma semântica formal para a


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linguagem artificial utili zada, Montague, por seu turno, propõe a utilização-de uma linguagem formal composta por diversos recursos lógicos, quais sejam: quantificação de primeira ordem e de ordem superior, operadores funcional-veritativos, operadores modais, símbolos funcionais, operadores intensionais e o utros extensionais (aplicados às intensões, para fornecer a extensão correlata). Davidson fica livre de Ler de construir uma semântica para sua linguagem formal porque, é claro, isso já havia sido feito porTarsk.i. 13 Mas Montague se deu ao trabalho de consllllir uma semântica formal para a linguagem artificial por ele utilizada, como podemos constatar no 'The proper Lreatmenl. .. ' .14 De qualquer modo, o resultado dessa diferença entre os dois programas, em termos técnicos, é que o mapeamento da linguagem-objeto sobre a Unguagem formal se torna muito mais difícil de se obter no caso do programa de Davidson do que no de Montague, já que ele deve fazer o que Montague faz com recursos lógicos bastante poderosos, dispondo de recursos bem mais limitados. 15 Na verdade, a razão pela qual Davidson fez essa escolha está baseada em questões de natureza ontológica, pois a linguagem empregada por Montague admite os assim chamados contextos intensionais, quantificando sobre imensões. E isso, segundo autores como Quine - de quem Davidson foi aluno, e com quem concorda e m muitos aspectos implica na aceitação de entidades estranhas, tais como propriedades de objetos, propriedades de propriedades de objetos, proposições e coisas do gênero, além dos objetos e conjuntos de objetos postulados pelas linguagens dotadas de semânticas extensionais, como é o caso do cálculo de predicados de primeira ordem. De qualquer modo, estão aí dois projetos bem concretos, nem um pouco evasivos, visando à obtenção de semânticas formais para línguas naturais específicas. A nosso ver, a própria existência desses projetos afasta as teses que defendem a impossibilidade de princípio da obtenção de uma semântica formal para uma língua natural , ficando a solução do problema da possibilidade prática condicionada ao sucesso ou fracasso de programas como esses. Mas, ainda assim, o que se pode dizer do propósito bem mais pretensioso de se obter uma semântica formal universal?


É Possfvel Construir uma Semtinrica Formal Universal?

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Em seu Aspects of the theory of syntax, 16 N. Chomsky propõe que uma teoria da estrutura lingüística que pretenda atingir o que ele chama de 'adequação explicativa' 17 deve satisfazer as seguintes condições: a teoria deve fomecer a) uma enumeração s 1 , s2, .. . , das sentenças possíveis: b) uma enumeração SD 1, SD2 , •.. , das descrições estruturais possíveis; c) uma enumeração G 1, G 2 , ... , das gramáticas gerativas 18 possíveis; d) a definição de uma função g, binária, cujo domínio é N 2 , onde N é o conjunto dos números naturais, e cujo contradomínio é o conjunto SD das descrições estruturais possíveis, e tal que g(i, j) dá a descrição estrutural atribuída à sentença s; pela gramática G j; e) a definição de uma função m de Nem N. tal que m(i) dá um número que mede o valor da gramática G;. Ora. supondo-se que obtenhamos uma teoria da estrutura lingüística que alcance o nível da adequação explicativa, 19 estaremos de posse da função g e da função m mencionadas acima. Nesse caso, poderíamos tomar uma sentenças; qualquer, do conjuntoS das sentenças possíveis (uma sentença arbitrária de uma Língua natural arbitrária, portanto) e, em seguida, selecionar o número natural j , tal que m(j) dê o maior vaLor associado a uma gramática para a língua natural a que s; pertence. Então, g(i, J) nos daria a descrição estrutural fornecida por Gj - uma gramática gerativa de alto valor com respeito à Linguagem em questão - para a sentença s;, sendo s;, não é demais repelir, uma sentença qualquer de uma língua natural qualquer. Em suma, teríamos um mecanismo capaz de nos fornecer a descrição estrutural de qualquer sentença de qualquer Língua natural, a ela fornecida pela gramática de maior valor com respeito à língua em questão. Desse modo, teríamos a base sintática que poderíamos usar, e m lugar de uma linguagem-objeto específica, em nosso mapeamento sobre dada ling uagem formal. O passo seguinte - partindo do pressuposto chomskyano de que a estrutura profunda subjacente às diferentes linguagens naturais é universal, estando radicada na constituição biológica de nossa espécie - seria então definir a relação T que associa uma fórmula da linguagem formal sobre a qual o mapeamento é realizado à descrição estrutural fornecida à sentença s; pela função g. Tal linguagem formal , supostamente, iria espelhar a estrutura profunda universal da linguagem. No caso de uma


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sentença ambígua, s; teria mais de uma descrição estrutural (e, nesse caso. g seria uma relação, mas não uma função), mas uma dada descrição estrutural de s 1 é unívoca. Assim, T, aplicada às descrições estruturais fornecidas por g, pode perfeitamente ser uma função, de modo que, se SDk é uma descrição estrutural fornecida por g à sentença s;, T(SDk) é a fórmula a de nossa linguagem formal associada à descrição estrutur al SDk. a q ual. por sua vez, está associada à sentença s; pela gramática G i• dada a função (ou apenas a relação) g. Por fim, estando nossa linguagem formal dotada de uma semântica formal, f(a) nos dá a denotação de a e, assim, indiretamente , f(a) nos dá a denotação (ou uma das denotações, caso houver ambigQidade) da sentenças; que, é mister lembrar, é uma sentença arbitrária de uma linguagem formal qualquer. Aí está, pois, um projeto rigoroso, nada evasivo, cujo propósito é nada menos que a obtenção de uma semântica formal universal. Mais uma vez, j ulgamos que a própria existência de um tal projeto põe de lado a tese da impossibilidade de princípio da obtenção de uma semântica formal universal. E mais uma vez, pensamos que a questão da possibilidade prática de uma tal realização fica condicionada ao sucesso ou fracasso de projetos dessa natureza. É claro que as dificu ldades de reali zação de projetos como o que propusemos aqui são muitas, e nós não as estamos eludi ndo, como Chomsky também não eludiu as dificuldades com a pretensão de se obter uma teoria lingüística que atinja o nível da adequação explicativa, embora continuasse a insistir que é precisamente esse o objetivo final da lingüística. Mas antes de ficarmos restritos às discussões de possibilidade de pd ncípio, estamos propondo uma tese que se baseia em hipóteses duvidosas sim, como a de que haja uma estrutura profunda subjacente a todas as linguagens naturais, mas que têm a vantagem de serem testáveis. 20 Dessa forma , pensamos poder concluir que, para a filosofia, um projeto como o que acabamos de propor tem o mérito de afastar a tese d a impossibilidade de princípio de se obter uma semântica formal universal. E para a dência da lingüística, se o projeto vier a obter sucesso, teremos oblido nada menos que um algoritmo capaz de fornecer a denotação (ou seja, as condições de verdade) de qualquer sentença de uma Língua natural qualquer. 2 1 Obviamente, um tal resultado também seria


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do iqteresse dos estudiosos de fundamentos teóricos da inteligência artificial, dada a sua relevância para o tópico referente ao processamento da linguagem natural.

Referências bibliográficas Chomsky, Noam. Aspectos da teoria da sintaxe. Coimbra: Armênio Amado, 1975. Davidson, Donald. lnquiries illto truth and interpretation. Oxford: Clarendon Press, 1984. Montague, Richard. Formal philosophy. London: Yale University Press, 1974. Tarski, Alfred. Logic, semantics, metamathematics. lndianapolis, Indiana: Hackett, 1983. Wittgenstein, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994.

Notas 1

Isso porque concordamos com o ponto de vista de R. Montague, de quem voltaremos a falar adiante, segundo o qual os três ramos da semiótica - isto é, a sintaxe, a semântica c a pragmática - fazem, na verdade, parte da matemática (cf. a introdução de R. Thomason em Montague 1974, p. 2). Isto, para Montague, se dá tamb6m no caso em que o objeto de estudo é uma língua narural, dado que, segundo esse estudioso, não há diferenças fundamentais entre as linguagens formais c as línguas naturais (cf. Mootague 1974, p. 222). 2 É claro que, no caso das linguagens semanticamente fechadas, categoria que inclui as lfnguas naturais, as relaçf>es semânticas podem se dar também entre as expressões significativas de uma linguagem e objetos intra-lingüísticos, como no caso de expressões portuguesas entre aspas. Não obstante, continuaremos a falar nas relações semânticas como relações entre as expressões significativas de uma linguagem e objetos exteriores a ela, devendo-se ter sempre em mente esta nossa ressalva. 3 No decorrer do texto, em alguns momentos nos referimos a um dispositivo formal capaz de nos fornecer a denotação de qualquer expressão significativa de uma linguagem natural arbitrária, ao passo que em outros, de modo mais restrito, falamos em uma semântica capaz de determinar a denotação de q ualquer selllença de uma língua natural qualquer. Caso entendermos que as expressões só possuem sentido dentro do contexto da sentença, uma semântica do segundo Lipo é suficiente, senão, é necessáJio especificar de algum modo o conjunto das


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expressões signi ficntival> das linguagens naturais, coisa que Montague faz para um fragmento do inglas no seu The proper trearment of quanti.ficatirm in ordinary English, ao mapear as expressões significativas desse fragmento sobre expressões significativas de sua linguagem intensional (cf. Momague 1974). 4 Cabe aqui uma observação sobre a razão pela qual estamos restringindo os objel.ivos da scmâul.ica universal ao conjunto das línguas naturais. Isso se deve ao fato de que estamos apoiando nossa defesa da possibilidade de se obter uma semântica universal, como explicaremos em mais detalhes adiante, na tese de N. Chomsky segundo a qual a estrutura profunda que subjaz às lfnguas naturais é única, c se radica na constituição genética humana. É claro que uma linguagem artificial poderia ter em sua base uma estrutura lógica diferente, pois obviamente alguém poderia construir uma linguagem artificial cuja estrutura lógica subjacente fosse, v.g., uma lógica inconsistente e trivial (isto é, uma lógica por cujas regras qualquer proposição da linguagem em questão pudesse ser demonstrada). 5 Cf. Chomsky 1975, p. 107. 6 Davidson 1984, pp. 55-64. 7 Davidson 1984. pp. 17-36. 8 Montague 1974, pp. 247-70. 9 É o que faz Momague (cf. Montaguc 1974, p. 262). 10 Essa exigência de que X seja o conjunto das expressões significativas da linguagem-objeto é, na realidad~. desnecessária, uma vez que T não é urna função. De fato, X poderia ser definido simplesmente como o conjunto das expressões da linguagem-objeto, e então, no caso de expressões destituídas de significado da mesma linguagem. a relação T não associaria nenhum elemento de Y a tais expressões, ou seja, nenhum par-ordenado (x,y), tal que x é uma expressão destituída de sentido da linguagem-objeto, está contido em T. 11 No geral parece que 11 < óJ, pois não parece ra7.oável pensar em uma expressão com infinitas traduções em Me, portamo, com infinitos significados. 12 É conhecida a objeção de A. Tarski à tese da possibilidade de se construir semânticas formais para linguas naturais, segundo a qualt.ais linguas apresentam sintaxes não especificadas, o que nos impede de dotá-las de semânticas formais, já que a construção de uma semântica formal pressupõe uma sintaxe exatamente especificada que lhe sirva de base. Assim, o procedimento indireto de Davidson c Momague tem por objetivo ultrapassar essa dificuldade. Mas, como é sabido, Tarsk.i possui outra razão para considerar despropositadas a<; tentativas de se prover semânticas formais para lfnguas narurais: o poder expressivo supost.amentc univ~rsal dessas línguas as torna suscetíveis de contaminação pelos paradoxos semânticos, como o do mentiroso. E se nossa


É Possfvel Construir uma Semiinticn Fomwl Universal?

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linguagem formal M deve ser equiparada em poder expressivo às línguas narurais, então também deve ser possível formular os paradoxos semânlicos em M. Uma saída para esse problema seria limitar o poder expressivo de M , de modo a excluir de M todo tipo de circularidade. Isso nos impediria de mapear toda uma Hngua natural sobre M, mas ai nda poderíamos Lrabalhar com um amplo fragmemo de tal língua natural. Outra saída, proposta por Davidson (cf. Davidson 1984, p. 28), consist~ em simplesmente ir adiante, a despeito dos paradoxos, já que estes afetam porções da linguagem natural que geralmente não ocorrem nos contextos científicos. 13 Cf. Tarslci 1983, pp. 152-278. 14 Cf. Montague 1974, pp. 257-60. 15 Mas a sernânlica de Tarski, empregada por Dav1dson, é muito mais simples que a de MonLague. Não obstante, parece-nos que a delinição <ht relação T se toma tão difíci l de obter quando se usam apenas os recur sos do cálculo de predicados de primeira ordem, que no fim das comas o programa de Monrague se apresenta tecnicamente mail' viável que o de Davidson. 16 Cf. Chomsky 1975, p. 114. 17 Uma teoria lingüística é explicativamemc adequada quando consegue selecionar uma gramática descritivamente adequada com bas~.: nos dados lingüísticos primários; onde por dados lingüísticos primários se entendem os dados lingüísticos de que uma crÜUJÇa dispõe e nquanto aprende sua üngua nativa, e por gramática descritivamente adequada se emende uma gramática que des~ crcve corretamente a competência de um falante narivo ideal de detenninada língua natural (cf. ChomsJ,.J ' 1975, pp. 107-8). 18 A teoria da gramática gcrativa, de Chomsky, é bem conhecida. Por 'grn mátiea gerativa', Chomsky entende uma exposição explíciw da competência do falante nativo ideal de uma língua (cf. Chomsky 1975, p. 85), ou, em outros tennos, ' um s istema de regras que, d e um modo explícito e bem definido, atribui descrições estruturais às sentenças· (id., ibid .. p. 89). 19 Embora Chomsky reconhc~a que mesmo o nível da adequação descritiva sej a difícil de alcançar. ele defende que o objetivo linal da lingüística deva se r o alcance da adequação explicativa (cf. Chomsky 1975, pp. 109 c L19). 20 De fato, a competência do falante nativo de determinada língua natural, para empregar a expressão de Chomsky, serve de .:ontraponto empírico para hipóteses como as que levantamos neste ensaio. Por exemplo, se obtiver mos. em nossas tenLalivas de construção de uma .semântica formal universal, uma função f que Começa, para uma dada sente nça de uma dada língua natural, uma especificação de condições de verdade (denotação) que não faz justiça às intuições do falante nativo da língua em questão. emão teremos nesse fato, está


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Carlo.f Luciano Manholi

claro, rudo o que precisamos para concluir que a semântica que obtivemos não é adequada. 21 As unidades sintáticas com que Ch omsky lida, ao propor seus requisitos para uma teoria lingüística explicativamente adequada, são as sentenças. Por essa razão, estivemos falando de uma semântica formal universal que fornece a denotação de sentenças arbitrárias de línguas naturais quaisquer, e não a denotação de qualquer expressão significativa de tais línguas. De qualquer modo, autores como Davidson pensam que as expressões só adquirem sentido no contexto de uma sentença (cf. Davidson 1984, p. 18), o que já era o pomo de vista de Wittgenstein no Tractatus Logico-Philosophicus, (cf. Wittgenstein, op. cir., prop. 3.3). Assim, parece-nos razoável dizer que nossa semântica formal universal não tem sua universalidade comprometida pelo fato de a funçãodenotação f ter seu domínio restrito ao conjuntoS das sentenças possíveis. manholi@uel.br


LóGICA

SoRrAL E FísicA QuÂNTICA DÉcro KRAusE

Universidade F'ederal de Santa Catarina

Neste trabalho são apontadas algumas relações entre a lógica smt al e a física quântica. Conjectura-se que este domínio é o local por excelência onde a hipótese básica da predicação sortal de que não devam haver indivíduos tout court, mas que as entidades devem ser concebidas desde o início como 'indivíduos-de-um-certo-tipo (sort)', pode ser vindicada. Caracterizamos então uma nova espécie de 'predicado sortal quântico' , e discutimos a sua descrição formal. 1. Idéias Gerais

As dificuldades em se estabelecer urna distinção clara entre predicados sortais, que se orginam a partir de termos universais como 'homem ', 'laranja', ou 'árvore' de outros predicados (alguns deles ditos vagos, como comentaremos abaixo), vindos de termos como 'inteligente', 'objeto' ou 'alto' é reconhecida na literatura filosófica. O tema está relacionado com discussões mais amplas envolvendo a natureza dos universais e dos termos gerais, e tem raízes que vão pelo menos ao conceito aristotélico de substância segunda. A menção de Frege a predicados que 'isolam' aquilo a que se aplicam de modo definido, e a consideração de Quine dos predicados que dividem sua referência, são usualmente invocados nas discussões sobre o assunto (ver Wallace 1965; Stevenson 1975). Na discussão sobre a predicação sortal, dois filósofos têm sido freqüentemente mencionados pelas importantes contribuições que realizaram acerca da natureza dos termos gerais; P. F. Strawson e P. T. Geach. De acordo com Strawson, os termos gerais podem ser divididos em caracterizadores e sortais; para Geach, a distinção é entre termos adjetiCupani, A. O. & Mortari, C. A. (orgs.) 2002. Linguagem e Filosofia. Anais do Segundo Simpósio Internacional Principia. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 6. Rorianópolis: NEL, pp. 23-42.


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vais e termos substantivais (Strawson 1959; Geach 1962). Mais recentemente, J. E. Lowe preferiu referir-se a eles como termos adjetivais e teroios sortais (tetminologia que adotaremos), e mencionou o critério de Dummett para diferenc iá-los, que consiste no seguinte (Lowe 1995, Cap. 5): (i) Os termos adjetivais envolvem um critério de aplicação, que pode ser entendido como sendo um princípio geral que determina a quais indivfduos o termo se aplica corretamente (enfatizamos a palavra 'indivíduos' em virtude das discussões a serem feitas abaixo acerca da física quântica). (ii) Os teimas sortais, além de envolverem um critétio de aplicação,

encerram ainda um critério de identidade, que pode ser entendido como um princípio que determina as condições perante as quais um indivíduo ao qual o termo corretamente se apli ca pode ser dito ser o mesmo que outro ou ser distinto de outro. Como bem lembrado por WaUace (op. cit.), a distinção entre esses tipos de termos é muito sutil, e podemos constatar que mesmo o critério de Dummett é por demais impreciso para que possa ser utilizado de forma eficiente. No entanto, na tentativa de dar uma caracterização algo precisa, os filósofos têm associado ao critério de identidade um processo de contagem, algo que de alguma forma permita que se conte as coisas às quais um termo (ou um predicado) sortal corretamente se aplica, e isso permitiria distinguí-los dos meramente adjetivais. Vejamos um exemplo dado por Lowe, que bem ilustra o que se passa. Consideremos o termo geral 'árvore'. De início, creio que concordamos haver um critério de aplicação envolvido, que nos permite saber a quais objetos o termo se aplica; em suma, sabemos distinguir uma árvore de um helicóptero. Além do mais, pelo menos em princípio, podemos contar árvores. Deste modo, mesmo que estabelecido de forma imprecisa (uma vez que podemos ter dúvidas se uma certa planta é ou não uma árvore), reconhecemos o termo 'árvore' como um termo sortal, e a expressão 'x é uma árvore ' como um predicado sortal. Tomemos agora o termo 'verde'. Ainda que haja um critério de aplicação, que nos perm ite reconhecer coisas verdes (a despeito da vaguidade envolvida, que será


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COll!.entada abaixo), não há um processo de contagem associado. De fato, tentemos contar as coisas verdes que há no campus da universidade. Podemos incluir a maioria das árvores na lista, mas devemos também incluir as suas folhas? Tome agora uma folha (verde) de alguma árvore. Ela pode ser dividida em partes, digamos, circulares, que também são 'objetos verdes'. Devemos incluí-los também na lista? Como observado por Lowe, na tentativa de contar coisas verdes em uma floresta (ou no campus), provavelmente não saberemos o que contar. Da mesma forma, tomemos um outro termo como objeto (Lowe usa o termo 'thing' coisa). Tente você, leitor, contar os objetos que o cercam. Certamente a porta do cômodo onde está no momento é um objeto, mas a maçaneta da porta também, assim como os seus parafusos. Quantas coisas há? Repare que, assim como no caso de coisas verdes, teremos dificuldade em contar os objetos que nos cercam. O processo de contagem tem sido reconhecido como a característica distintiva dos termos so11ais, bem como dos correspondentes predicados. Como comenta Wallace, "um predicado sortal ' F' provê um critério para contar as coisas que são 'F'", e continua: "se ' F' é um predicado sm1al, podemos determinar quantas coisas são 'F' em um determinado espaço contando-as" (op. cit.). Importa mencionar que mesmo entre os termos sortais há distinções a serem levadas em conta, pois termos como ' verde' e ' montanha' têm critérios de identidade distintos associados. Vamos seguir Lowe por um momento para vermos do que se trata. Diz ele: O critério de identidade para árvores é muito diferente do critério de idenlidade para momanhas ( . .. )Árvores( ... ) estão sujeitas a mudanças de forma c posição [ele se refere ao fato de que urna árvore pode ser transplantada de um local para outro, mas mesmo assim reconhecida como sendo aquela árvore], permanecendo numericamente a<; mesmas, isto é, sua idemidade persiste durante o tempo. Ao contrário, não faz muito sentido falar de urna montanha sendo sujeita a mudanças radicais de forma e posição. ( ...) Se o material de que é feita a montanha deixa um local e surge em o utro, não dizemos que a montanha se moveu, mas que a montanha deixou de existir e que uma outra montanha foi criada em um novo local. (No entanto, pemlitimos pequenas mudanças na forma e na posição de uma montanha, e isso abre a possibilidade de


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um paradoxo, desde que uma longa série de pequenas mudanças pode ocasionar uma grande mudança- como no notório caso do paradoxo do homem careca. Isto, no entanto, somente mostra que 'montanha' tal como 'vermelho' e, de fato, 'careca·- é um termo vago). (Lowe 1995, pp. 85-96)

É bem sabido que este critério de identidade transtempora/ está envolto em uma discussão anliga, relacionada à re-identificação de algo ou de alguém no tempo, tema que não será tratado aqui (veja Magee 1973, pp. 58ss). Porém, mesmo ignorando essas questões, e assumindo que 'sabemos' o que queremos dizer quando asseveramos que uma certa árvore, transplantada para a frente de nossa casa, é a mesma que estava na esquina há alguns dias, podemos notar que a discussão acima contin'Ua bastante imprecisa, posto que, na verdade, mesmo termos como 'verde' apresentam problemas para que se identiftque coisas verdes com absoluta precisão (dependendo da luminosidade ou de outos fatores, podemos ser enganados pelos nossos sentidos). É fácil perceber que a discussão filosófica adentra a temas muito interessantes e sutis, dentre eles a questão da vaguidade ou da especificação precisa de tais critérios de identidade. Antes de vermos o assunto ainda mais complicado com a introdução de termos (e de predicados) que nos são apresentados pela física quântica, vamos dar alguma atenção ao modo pelo qual, mesmo com essas questões não de todo resolvidas, os predicados sortais são trabalhados no âmbito de sistemas logicos. 2. Lógica Sortal O tema da predicação sortal tem sido tratado formalmente por meio do conceito de identidade relativa. Na década de 60. Peter Geach sugeriu que não há o que possa ser chamado de 'identidade absoluta', defendendo a tese de que todas as declarações de identidade são relativas. Em outras palavras, disse ele que sempre que dizemos ' x é idêntico a y' . na verdade queremos dizer 'x é o mesmo ' F ' que y', onde · F' é um predicado sortal (ver também Geach 1967). O objetivo da lógica sortal é, grosso modo, descrever fonnalmente esses predicados, e em particular distinguí-los dos predicados 'comuns' tratados pela lógica tradicional.


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O problema é que, usando (digamos.) uma linguagem de primeira ordem conveniente, podemos escrever 'x é o mesmo 'F' que y' da seguinte f01ma: ·x = y 1\ F(x)'. O que então distinguiria F como sendo um predicado sortal? O modo como essa distinção é realizada é fonte de controvérsias. Se vasculh<mnos a literatura. encontraremos alguns sistemas que pretendem ser qualificados como 'lógicas sortais' mas, como diz F. J. Pelletier, todos não passam de 'syntactic sugar' (Pelletier 1992). Pelletier menciona as referências pertinentes. de forma que, como não pretendemos realizar aqui uma revisão desses sistemas, deixaremos de lado a menção a tais lógicas, dando atenção ao que este autor comenta, que nos parece bem mais relevante, pois em seus escritos há a indicação de como proceder para se alcançar uma 'verdadeira lógica sortal'. Enfatizou ele que nenhum dos sistemas propostos realizou uma distinção adequada entre predicados sortais e predicados unários usuais. Ou seja (adaptando a notação), tudo o que se produziu foram meramente vruiações notaeionais na teoria quantificacional restrita clássica( .. .) Na teoria quantificacional restrita, 'abreviamos' fóm1ulas da fom1a V.x(Fx - Gx) e 3x(Fx 1\ Gx) respectivamente como (Vx : Fx)Gx e (3xFx)Gx. Estas últimas fórmulas parecem encenar a unidade sintática 'frase quanlificacional' (se F represenra 'cão' . enrão as frases quantificadas poderiam ser 'todo cão' e 'algum cão'). Mas na quantificação restrita isso é mera aparência, pois essas fórmulas têm exatamente as mesmas condições de verdade que as originais sem as restrições. Exatamente as mesmas fórmu las são teoremas, exatamente os mesmos argumentos são válidos após a tradução de um idioma para outro. ( .. .) A verdadeira lógica sonal é posta na quantilicação restrita exatamente do mesmo modo que na teoria quantificacional irrestrita (... ) e então conclui-se que nenhuma dessas alegadêL<; ' lógicas sonais' representam adequadameme a dourina desejada. (Pclletier op. cit.)

Para tentarmos adentrar um pouco na caracterização das lógicas sortais. vejamos como Pelletier qualifica a essência dessa 'doutrina' da predicação sortal. De acordo com ele. " um conceito sortal é um conceito (mental? objetivo?) de uma espécie {'kind"] ou sort de indivíduo [preservamos aqui a palavra sort por motivos óbvios]. Um predicado sotial


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é UJl! termo lingüístico que é correlacionado a um conceito sortal. Dentro deste ponto de vista não há algo como um indivíduo tout court; ao invés disso, os indivíduos vêm já pré-empacotados como indivíduos-deum-tipo-F (onde F é um conceito sortal)." Ou seja, para mantermos fidelidade ao que seria a 'essência' da predicacão sortal, não devemos partir de objetos 'puros' aos quais se atribui propriedades a posteriori, mas as entidades fundamentais deveriam já vir desde o infcio qualificadas como 'objetos de um certo tipo' . Como descrever um sistema que leve em conta essas intuições? Se ficarmos restritos ao nível sintático, o máximo que podemos fazer é qualificar alguns predicados da linguagem como sendo 'sortais', mas ficaremos à mercê da críticas postas por Pellelier em que a distinção será meramente notacional e portanto artificial Qual o critério para chamar este predicado de sortal em detrimento dllquele? Na verdade, Pelletier tem razão em que um tal sistema seri a equivalente a uma Lógica polissortida. Mesmo sistemas bem articulados como o de Stevenson (op. cit.) são passíveis de tal crítica. Se levarmos em conta aspectos semânticos, podemos ir um pouco mais longe, mas mesmo assim nos depararemos com dificuldades. Com efeito, suponha que F é um predicado unário que queremos classificar como sortal. De acordo com a semântica usual, a F associamos uma subcoleção do domínio de uma adequada interpretação da linguagem, a extensão de F. Mas esta extensão nada mais é do que um conjunto, a rigor dado pelos axiomas de uma teoria de conjuntos como Zermelo-Fraenkel, ZF (outras teorias podem ser consideradas sem que se altere o argumento aqui exposto), e um conjunto é, como disse Cantor, "uma coleção de objetos distintos de nossa intuição ou pensamento" (Cantor 1955, p. 58), que são coletados em um todo por uma ' lei ' (cf. Casari 1976, p. 23). Ou seja, os objetos que podem ser elementos de conjuntos (aqui. para todos os propósitos, podemos pensar em uma teoria que envolva átomos. ou seja, entidades que não são conjuntos, mas que podem ser e lementos de conjuntos) são de início entidades que podem ser ditos (como na literatura fil osófica) bare particulars (Teller 1995), naked individuais. ou seja. entidades que não têm, em princípio, qualquer propriedade ou atributo. como ocorre com os átomos das teorias de conjuntos com átomos. Somente a posteriori


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é que vamos paulatinamente atribuindo propriedades a esses indivíduos ou,-alternativamente- em contextos extensionais, reconhecendo-os como elementos de certos conjuntos. Em suma (pensemos nos átomos das teorias de conjuntos com átomos), nada há em princípio que diferencie um átomo de outro (eles são invariantes por automorfismos; ver Krause e Coelho 2002), e qualquer atributo que eles possam vir a ter somente pode ser estabelecido 'posteriormente' (esta característica dos átomos é, aliás, exatamente o que permitiu a Fraenkel usá-los provar a independência do Axioma da Escolha em tais teorias, como se sabe). Assim, como dizer que os átomos podem espelhar (representar) entidades que deveriam vir, como dito acima, pré-empacotados como objetos de um certo tipo? Nas teorias de conjuntos sem átomos (teorias puras) este fato é ainda mais explícito, uma vez que praticamente todos os 'objetos' são erigidos a partir do conjunto vazio, nada havendo, em princípio, que os qualifique como sendo de uma certa sort. Em outras palavras, não há na lógica e na matemática usuais nada que se assemelhe a objetos que venham ab ovo caracterizados como objetos de um cet1o tipo, ou sort. Isso é feito depois. Assim, as limitações da própria matemática clássica (que é no fundo uma teoria de indivíduos, os quais não têm atributos em princípio) parecem oferecer obstáculos adicionais à caracterização das lógicas sortais. Este é talvez o principal defeito do sistema de Stevenson, que usa a teoria padrão de conjuntos na sua contraparte semântica.

3. A ajuda das entidades quânticas A característica acima atribuída à matemática tradicional de certa forma se aplica aos objetos com os quais lida a mecânica clássica. Com efeito, a massa de um certo objeto (os objetos físicos de tal grupo de teorias são sempre indivíduos em algum sentido) pode assumir um valor qualquer de um certo intervalo de valores possíveis. Isso significa o seguinte. Como não há instrumento preciso o suficiente para determinar valores como a massa, o comprimento ou a carga elétrica de um objeto com absoluta precisão. o comprimento de uma mesa, por exemplo, pode ser medido (com bastante precisão) como sendo 1, 23246m, mas uma nova


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medida pode acusar 1, 23278m. Ambas as medidas seriam aceitas, pois admite-se ser possível um certo 'erro': assim, o comprimento da mesa é algo entre um certo valor e outro- digamos e E (I, 20- E. I. 20 +E), para um certo e > O. Um qualquer desses valores é admitido. que aproximamos dizendo que a mesa mede I, 20m. O mesmo oco;-re com as demais propriedades desses objetos. Observe o que se disse: lemos o objeto, que em alguns casos pode ser de nós completamente desconhecido, e depois tentamos descrever o seu comportamento, ou determinar a sua massa, por exemplo. Isso é quase que característico de grande parte da física clássica: dito grosso modo, descrever em teoria o que nos dava a experiência. Com o advento da mecânica quântica, um novo tipo de entidade e um novo tipo de procedimento adentraram à cena. Os físicos passaram a ·antecipar' os experimentos, postulando a existência de entidades que deveriam se compo11ar desta ou daquela forma em função da descrição matemática das teorias. Há exemplos célebres, como o méson (na verdade, o méson rr, como se soube depois), postu lado por Yukawa em 1934 e 'descoberto· exatamente como ele havia previsto anos depois (Griffiths 1987, pp. 17-18). No entanto, ainda que vinda com atraso, ainda havia alguma forma de 'comprovação experimentar. alguma forma de experimento que, mesmo que indiretamente, estabelecia a existência da entidade postulada. Teorias como a relatividade, como se sabe. foram ·comprovadas' em vários experimentos célebres. Bem mais recentemente (nas últimas décadas). os físicos praticamente deixaram de lado qualquer possibilidade de comprovação experimental. passando a trabalhar com teorias altamente especulativas, e a postular a existência de entidades que nem ao menos se tem a esperança de poderem vir a ser ·observadas·, como a'> supercordas e as membranas (uma supercorda é uma entidade unidimensional de comprimento da ordem de grandeza do 'comprimento de Planck', ou seja. algo em torno de J, 6 x I0- 33 rm. e uma membrana é um objeto que ·vive' em espaços de IO ou I L dimensões). Quando podem. os físicos ·vêem ' as partículas. ou meUwr. os seus efei tos. fazendo-as colidir em aceleradores enormes, que envolvem altas energias. Estima-se que nem mesmo os aceleradores que estão sendo construídos no momento poderiam oferecer condições para

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se ·enxergar' uma supercorda. Aparentemente, pode ser que elas não 'existam' de fato. tratando-se de um constructo matemático útil que faz com que a teoria funcione. Muitos físicos partilham a opinião do Prêmio Nobel Steven Weinberg, em que os físicos não estão interessados descrever o mundo, mas em explicru· porque ele é como é (Weinberg 1993, p. 175). Assim, estariam eles preocupados unicamente com o preciso funcionamento dos ·modelos' teóricos que elaboram, mesmo se as entidades postuladas 'não existissem de fato' (S. Hawking sustenta esta opinião- Haw.king 2001). É claro que isto traz questões interessantes para o filósofo. Uma delas é básica, a despeito do pouco caso de alguns físicos: se entidades como as cordas e supercordas são aquilo que ·explica' a existência de partículas (elétrons, protons etc. resultariam de certas formas de vibração dessas cordas, da mesma forma que as diferentes notas musicais se originam de cettas f01mas de vibração de uma corda de violino), então de que é constituída a matéria? Se por outro lado elas existem de fato, ou seja, se a ontologia é uma ontologia de supercordas, teremos sérios problemas conceituais com relação a vários conceitos, como por exemplo em estabelecer um critério de identidade, ou um processo de contagem para elas, da mesma forma que havia dificuldades deste mesmo úpo com relação às partículas elementares da 'antiga' mecânica quântica (ainda não de todo resolvidas). Uma série de conceitos com os quais estamos acustumados (como a relação intensão vs. extensão de conceitos, denotação e conotação, identidade e individualidade etc.) perdem por completo o sentido tradicional, e muitas vezes simplesmente não podem ser aplicados como de hábito (French 2000; Toraldo di Francia 1978). Deixando essas questões de lado, por mais importantes que possam ser para a filosofia da ciência de hoje, podemos constatar que há uma diferença crucial entre esses objetos e aqueles trabalhados pela física clássica: as entidades quânticas nascem com a teoria. Não são entidades das quais o cientista se acerca, analisa e passa a descrever as propriedades. Seus atributos e tudo o que deles se conhece estão determinados desde o princípio: eles são nomológicos, dados por leis físicas (Toraldo di Francia 1981, p. 222; 1978). Um elétron, por exemplo, não pode ter qualquer valor de massa (dentre os valores de um certo intervalo, como


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um objeto macroscópico), mas tem um valor fixo: 9.1 x w- 28g. Se os físiços encontram uma partícula que tenha todas as propriedades de um 25 elétron, mas massa 1, 9 x g, eles não dizem que encontraram um elétron peculiar, mas uma outra partícula, um múon (DaUa Chiara e Toraldo di Francia 1993). Neste sentido, as propriedades que caracterizam (definem) essas entidades são todas essenciais, e não contingentes. Vistos deste modo, os objetos quânticos, e deve-se adicionar aqueles previstos pelas ' teorias-de-tudo' mais recentes. como supercordas e membranas (uma descrição informal dessas entidades pode ser vista em Hawk.ing 2001; detalhes técnicos em Polchinski 1998) podem ser qualificados como sendo as entidades por excelência advogadas pela filosofia da predicação sortal: são entidades que vêm pré-empacotados como entidades-de-um-cer1o-tipo (evitarei a palavra ·indivíduos' pelos motivos a serem expostos a seguir). Será então que, considerando essas entidades, podemos nos acercar de uma caracterização do que sejam os predicados sortais? Veremos que isso ainda não pode ser afirmado de forma conclusiva, apesar do significativo avanço que a consideração das entidades quânticas oferecem. Ao menos, já dispomos de entidades que vêm desde a sua origem c lassificadas como sendo de uma certa sort, deste modo nos conformando parcialme nrc à filosofia da predicação sortal, como mencionado acima.

w-

4. Dificuldades que ainda persistem e uma proposta Um sistema de lógica sortal (de primeira e de segunda ordens) bem desenvolvido. com semântica ex plicitada e um teorema de completude demonstrado (para o sistema de primeira ordem) pode ser visto em Stevenson (1975), não obstante as críticas de Pelletier se aplicarem igualmente a estes sistemas. Porém, Stevenson dá uma indicação, que fundamenta a semântica que constrói, que pode ser útil para que caracterizemos uma espécie de predicado sortal que introduziremos abaixo, motivados pelac; entidades quânticas. De forma breve, o que se passa é o seguinte: Stevenson percebe que uma semântica adequada para caracterizar a sua lógica não podia ser dada da forma habitual, no sentido de Tarski, na qual conjuntos arbitrários são associados (pela intepretação) a cada pre-


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dicado, incluindo os sottais, não havendo nenhuma distinção em princípio entre quais conjuntos são associados a quais predicados. Cria então o conceito de 'conjuntos sortais' (S -sets), que consistem em coleções de indivíduos aos quais um dado predicado sortal se aplica. Ou seja, os predicados sortais são aqueles que são associados semanticamente aos S -sets. A semântica (para a lógica de primeira ordem) é provada ser completa, como dito. Do mesmo modo, consideraremos um tipo adicional de predicado que denominaremos de sortais quânticos {'predicados-sq', por simplicidade). Veremos que há sentido em considerá-los como sortais, apesar de não satisfazerem o segundo critério de Dummett acima mencionado, e então, depois de flexibilizar este critério adequadamente, veremos como se pode caracterizar tais predicados por meio de uma semântica fundada na teoria de quase-conjuntos (Krause 1992; 1996). Como dito, ainda persiste a questão de se encontrar uma forma de distinguir entre predicados usuais e sortais, como salientou Pellelier, e isso será retomado na prute final. Porém, tomando por base o que se considera como o ·estado da arte' da lógica sortal, o sistema abaixo certamente constitui contribuição adicional, apresentando um novo tipo de predicado sortal.

5. Predicados Sortais-Quânticos Daqui para frente, sempre que falarmos em ' partículas' (elementares), e ntenda-se que nos referimos àquilo que, nas teorias físicas usuais, constitui o stu.if do mundo. O uso desta tetminologia, ainda que imprecisa, é útil e auxilia a compreensão das idéias básicas. Assim, suponha que estejamos interessados em um predicado P da forma seguinte: ' x é um próton de um átomo de Lítio-T. Qualquer livro de química (como Russelll994) ensina que este isótopo do litio contém em seu núcleo sete ·nucleons', três dos quais sendo prótons (os outros quatro são neutrons). Como outro exemplo. podemos pensar no processo de ionização de um certo átomo, no qual um e létron é emitido pelo átomo, que depois pode voltru· ao estado neutro pela ·reabsorção' de um elétron, e então no predicado r definido assim : 'x é um elétron que foi emitido por um certo átomo no processo de ionização' e em J+ definido por 'x


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é um elétron reabsorvido por um cet1o átomo após o processo de ionizaçã_o'. É claro que a cada um desses predicados está associado um critério de aplicação, pois sabemos prefeitamente bem a que entidades eles se aplicam: prótons no pri meiro caso e elétrons nos dois últimos. Ainda mais, a distinção entre essas duas categorias de entidades não é menos clara ao físico do que são os termos 'árvore' e 'montanha' a uma pessoa comum. Assim, podemos dizer que o prime.iro critério de Dummett se aplica a esses predicados. O que dizer do segundo critério? Teriam eles um critério de identidade associado? O fato é que não têm, como já deve ser claro a este pomo. As entidades quântica não são individualizáveis, não têm o que se possa chamar de identidade transtemporal. e segundo pensadores como Schrodinger, não têm mesmo qualquer identidade tout court (Schrodinger 1952. pp. 17-18: 1998). Em particu lar, a coleções de tais entidades (que nem ao menos podem ser chamadas de 'indivíduos' -ver French 2000) não se pode associar um ordinal, um processo de contagem, ainda que em certas circunstâncias (se não considerarmos as partículas ·virtuais') haja sentido em se atribuir um cardinal a essas totalidades, por exemplo, dizendo que há três prótons no núcleo de um átomo de Lítio-7, ou que um elétron foi emitido por um certo átomo durame o processo de ionização. Se não podemos associar a tais predicados um critério de identidade ou um processo de contagem. como qualificá-los como sortais? Se fossemos ficar restritos à caracterização dada, isso com efeito não seria ~ossível, mas devemos lembrar que não há exatamente algo que se possa chamar de uma definição de predicado sortal . Os critérios de Dmnmetl auxiliam a distingui-los grosso modo, mas não estabelecem uma fronteira bem determinada, como vimos. Assim. propomos flexibilizar a 'definição' da predicação sortal, permitindo incluir nessa categoria predicados como os acima; afinal, não são eles aplicáveis a sorts de entidades de algum tipo? Porém, para tanto precisamos dar alguma alternativa ao segundo critério de Dummett (mantendo o primeiro), e então propomos o seguinte critério para predicados sortais quânticos: (i i') Os predicados sonajs quânticos têm associado um critério de car-


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dinalidade. ou seja, algum princípio que permita determinar a quantos objetos ele se aplica em cada caso particular (deixaremos o caso das partículas virtuais para uma análise f utura).

Assim. aos predicados P, I 1 e r acima associamos os cardinais (os números naturais são os cardi nais finitos) 3, I e I respectivamente. Note no e ntanto que não há distinção entre os elétrons que satisfazem / + e r. assim como não há qualquer distinção entre os átomos an tes do processo de ionização e depois de haver re-absorvido o e létron. Esse predicados diferem dos predicados sortais comuns vistos acima, como ·x é Governador de um Estado brasileiro'. Neste caso. o procedimento semântico usual associa ao predicado um determinado conjunto. mas se um elemento deste conjunto é substi tuído por um outro (por exemplo. se houver uma troca de govemo), a extensão do predicado muda por força do Axioma da Ex.tensionalidade da teoria de conjuntos (as coleções de que se fala nos precessos semânticos us uais são conjuntos que satisfazem os a,Uomas de uma certa teoria de conjuntos. fato este muitas vezes negligenciado). Com elétrons. no entanto, isso não acontece. É um dos princípios mais básicos da física quântica o chamado Postulado da Indistinguibilidade. que diz informalmente que a ·permutação' de partículas de mesma espécie não al.tera os resultados obtidos de qualquer medida que se realize sobre o sistem a <Ultes e depois da permuta. Estes cardinais, saliente-se, não podem ser obtidos por qualquer processo de contagem (associação de um ordinal). Assim, se quisermos caracterizar uma lógica (sintatica e semanticamente) que encerre esses predicados, teremos que, primeiro. concordar que será necessário envolver a sua contJaparte semântica (como fez Stevenson) e, segundo. essa semântica não poderá ser erigida em uma teoria de conjuntos como as usuais. Como então proceder? Uma alternativa é usar na metamatemálica a teoria de quase-conjuntos, de que falaremos brevemente abaixo.

6. Uma Lógica da Predicação Sortal Quântica Antes de fa lar dos quase-conjuntos, apresentaremos as idéias gerais de uma lógica de segunda o rdem (a qual chamaremos de ~2) que descreve


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Décio Kmuse

os predicados acima delineados (um sistema mais detalliado, de ordem w, _é apresentado em Krause 2002). Chamamos de tipos aos objetos seguintes: e 1 e e 2 são tipos, bem como as expressões da forma (r 1 , . . . , T11 ), desde que r; e fe 1 , e2 }. Os objetos de tipo e 1 são ditos m-átomos, e os de tipo e2 são os M-átomos (estes obedecerão à lógica clássica, enquanto que, para os m-átomos, o conceito de identidade não se aplicará). A linguagem L desta lógica contém os símbolos Lógicos usuais, bem como sinais de pontuação também usuais e o símbolo de igualdade ·='. As variáveis são encerradas em uma x~. o o., e as constantes em uma coleção (eventualmente vacoleção zia) Cf. q ,..., onde r é um tipo. Estas categorias de objeto definem os termos da linguagem, que serão indistintamente escritos T{ •.. .. As fórmulas atômicas são expressões cta rorma r <r,, ....r•><rT', ... , r;") ou da forma Tr = Tr , desde que T :f. e 1, enquanto que as demais fórmulas são obtidas de forma habitual. A restrição imposta na fórmula rr = yr (que pode ser descrita rigorosamente) indica que em L não se pode falar da identidade ou da diversidade dos m-átomos (objetos denotados pelos termos de tipo e 1). Os axiomas desta lógica podem ser dados sem dificuldade (trata-se de uma 'Lógica de Schrodinger' de segunda ordem - ver da Costa e Krause 1994, 1997 para casos mais gerais). Antes de dizermos o que seriam os predicados sortais quânlicos. vejamos o aparato matemático para a sua semântica.

xr.

rr.

7. A metamatemática

A teoria de quase-conjuntos permite lidar com coleções de objetos indiscerníveis. A teoria que chamaremos Q é baseada em axiomas do tipo ZFU (Zermelo-Fraenkel com Urelemen te, ou átomos), mas admite duas espécies de átomos ao invés de um só, os m-átomos, que intuitivamente desempenhariam o papel das partículas elementares, e os M -átomos, que teriam todas as propriedades dos Urelemente de ZFU (esta terminologia coincide com a da seção anterior, mas a distinção é clara). Para os m-átomos, expressões da forma x = y simplesmente não são bem formadas, da mesma forma que -,(x = y). Em outros termos, a iden-


Lógica Sortal e Física Quâlllica

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tida~e carece de sentido para tais entidades, como queria Schrodinger (repare o leitor que se Schrodinger estiver certo, o que é muito provável, os objetos quânlicos derrogam fortemente a conhecida idéia de Quine de que não há entidade sem identidade). Os quase-conjuntos são entidades admitidas pelos axiomas da teoria que não são nem m-átomos e nem M-átomos. Há no entanto um conceito primitivo de indistinguibilidade, escrito x y, mais fraco que a identidade, e implicado por ela, e que é postulada ter as propriedades de uma relação de equivalência. Uma identidade extensional é definida para todas as entidades que não sejam m-átomos, a qual tem as propriedades da identidade usual. Deste modo, pode-se erigir uma 'cópia' de ZFU em n, e em tal cópia todos os conceitos usuais como o de cardinal podem ser erigidos como se faz habitualmente. No entanto, ordinais (logo, 'processos de contagem') só podem ser associados a quase-conjuntos que não contenham m-átomos indistinguíveis. Para os demais quase-conjuntos, aplica-se um conceito primitivo de quase-cardinal, que coincide com o de cardinal usual quando não há m-átomos envolvidos (da mesma forma que a identidade extensional e a indistinguibilidade coincidem nesta mesma situação), e que permite exprimir que um dado quase-conjunto tem uma certa quantidade de elementos ainda que não possam ser contados ou ordenados. Uma distinção fundamental entre os quase-conjuntos e os conjuntos fuzzy (que usualmente vêm à mente nesses casos) é a seguinte, aqui citada para se acentuar a diferença. Na teoria n, a relação de pertinência E é entendida como de hábito (como em ZFU), contrariamente à teoria Juzzy. Um conjunto fuzzy, grosso modo, pode ser contrastado com um conjunto usual da forma seguinte. Dado um conjunto X, por exemplo em ZFU e um objeto x, tem-se que x E X ou x rt X por força da lógica clássica. Podemos fazer corresponder à situação x E X o valor verdade 1, e O à situação x rt X (podemos escrever x E 1 X ex E0 X respectivamente para representar cada caso); esses são os únicos valores possíveis. Se X é um conjunto fuzzy, por outro lado, há todo um espectro de valores verdade possíveis entre O e 1, que correspondem aos diferentes 'graus de pertinência' admissíveis; assim, x E 0·7 X diz intuitivamente que x 'está mais dentro' de X do que estaria se tivessemos x E 0 •3 X. Este caráter fuzzy, no entanto, trata os objetos x ainda como indivíduos, havendo

=


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/Jécio Krau.fe

unicamente um ·desconhecimento epistemológico· de sua posição com respeito a X. A mecânica quânúca, por outro lado. está interessada em uma indiscernibilidade mztológica das entidades básicas com as quais trabalha, e é isso que os quase-conjuntos permitem captar formalmente (French e Krause 2002). Assim, pode-se dizer intuitivamente que. dados um quase-conjunto X e um objeto x, tem-se que x E X ou x rt X, como usual. Porém. dito informalmente, devido à indiscernibilidade dos m-átomos. não se pode saber quando um m-átomo pertence a X. pois isso exigiria que eJe fosse iden ti ficado com um de seus elementos. coisa que é impossível , pois a identidade carece de sentido para essas entidades. Assim, o máximo que se pode afirmar é que há um y em X que é indistinguível de x, e face a um teorema que vamos mencionar abaixo. isso vai fazer com que tudo se passe como se x estivesse de fato em X. Este ponto, saliente-se, é o que realmente importa, sendo consoante com a física, uma vez que não há qualquer semido em se afirmar que este ou aquele particul ar próton pertence ao núcleo do átomo de lítio, ainda que seja certo que, sendo x um próton e X o tal núcleo, tenha-se q ue ou x está no núcleo ou não. O que interessa é que haja prótons no núcleo. mas não que este ou aquele próton particular esteja em tal núcleo: aliás. mesmo as palavras ·este' e ·aquele' carecem por completo de sentido neste domínio, e a linguagem da teoria de quase-conjuntos expressa perfeitamente bem este fato. Como d iz ToraJdo d i Francía, a única "propriedade segura" que há na física é o número, referindo-se ao modo pelo qual colocamos entre pm·ênteses a natureza das entidades e prestamos atenção unicamente às quantidades em fónnulas como C2H4 (Toraldo di F rancia 1986. p. 122). Ponto central da teoria Q é que se postula um axioma ·[raco· de extensio nalidade, que diz q ue quase-conjuntos que contenham a ·mesma quantidade' (dada pelo conceito de ·quase-cardinal') de m-átomos indistinguíveis são por sua vez indistinguíveis. Isso permite provar teoremas como o seguinte, que expressa na ling uagem da teoria a não observabilidade de permutações, típica da mecânica quântica: se de um quaseconjunto x eli minarmos um elemento (por meio de operações adequadas) e introduzirmos um que lhe seja indistinguível, o quuse-conjunto resultante é indistinguível do original. Em outras palavrus. nada muda


Lógica Sortal e Ffsica Qttâmicu

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quando se efetua uma permutação de entidades indistinguíveis. como na físíca quântica. quando se ioniza um átomo pela emissão de um de seus eletrons e depois se 'captura' novamente um eléu·on tomando o átomo novamente neutro. Qual a diferença entre os átomos antes de depois do ocorrido? Bem, dirá a física: para todos os efeitos. nenhuma. Porém, se tratarmos tal coleção de elétrons como um conjunto X e se falarmos em termos da ' troca' pela eliminação de um elemento x e da 'captura' pela re-introdução de um elemento y, o que temos é o conjunto (X - (x)) u {yl, que será idêntico a X se e somente de x = y por força do Axioma da Extensionalidade, ou seja, no caso, se e somente se o e létron expeüdo for o mesmo que o capturado. O fato é que isso absolutamente não tem sentido em física. atestando que certos fatos 'conjuntistas' e semânticos usuais realmente carecem de significado neste domínio. Com o axioma ·fraco' da extensionalidade, a te01·ia de quase-conjuntos permite contornar este tipo de objeção. mas ela é muito extensa para ser aqui apresentada. No entanto, o que foi dito acima já é suficiente para os nossos propósitos.

8. Caracterizando os Predicados Sortais Quânticos Mediante a definição de conceitos semânticos aprop1iados (adaptandose o que é apresentado em da Costa e Krause 1994; 1997; Krause 2002), podemos associar quase-conjuntos adequados aos termos não lógicos da linguagem .[ erigindo uma semântica ao estilo de Henkin que tenha por base um quase-conjunto D = m u M, onde m é um quase-conjunto não vazio de m-átomos indistinguíveis e M é um quase-conjunto não vazio que é uma cópia (na teoria .Q) de um conjunto de ZFU. Então, procedemos do seguinte modo: (1) às constantes de tipo e 1 , associamos elementos de m . (2) às constantes de tipo e 2 • associamos e lementos de M (isso faz com que essas constantes funcionem como na semântica usual tarskiana). (3) às constantes c<ea> associamos sub-quase-conjuntos de m (o conceito de sub-quase-conjunto é semelhante ao de sub-conjunto). (4) às constantes c<cz> associamos sub-quase-conjuntos de M.


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Décio Krause

(5) para as demais constantes da forma c<r1.....r,>, associamos quaseconjontos em D" como na semântica usual. Como nos trabalhos citados acima, pode-se provar que para esta semântica (adequedamente construída com base nesta motivação) pode-se demonstrar um teorema de completude generalizada, mas isso não será exibido aqui. Ao invés disso, vamos retornar aos nossos predicados sortais quânLicos. O que resulta é que estes predicados podem ser representados pelas constantes de tipo (e1) (se forem de tipo (e1, ... , e 1), podem ser ditos serem relações sortais quânticas). A eles, pela semântica acima, são associados quase-conjuntos de m-átomos indisting uíveis. Face ao axioma da extensíonalidade fraca mencionado anteriormente, qualquer quase-conjunto de m-átomos indistinguíveis que tenha a mesma quasecardinalidade pode ser ig ualmente ser considerado uma extensão possível do predicado. Deste modo, al.cançamos uma descrição formal. de um fato que ocorre na física quântica, a saber, que um determinado predicado pode não ter urna extensão bem definida, o que contraria a semântica usual de índole tarskiana (DaUa Chiara e Toraldo di Francia 1993). A estes predicados, nenhum processo de contagem pode ser associado, e não há um critério de identidade bem definido para os objetos aos quais eles se aplicam. Mesmo assim, como vimos, há sentido em se afirmar que eles merecem um lugar no panteão dos predicados sortais. Trata-se, sem dúvida, de uma nova categoria de entidades Lingüísticas, para as quais vários conceitos semânticos clássicos devem ser rediscutidos.

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INTUIÇÃO E LóGICA NA CONTROVÉRSIA ENTRE PoiNcARÉ E RussELL JAQUELINE ENOUL.MANN

Universidade Federal de Santa Maria (mestranda)

O advento da chamada "crise nos fundamentos da matemática", renova a antiga discussão sobre o infinito. Com a introdução da teoria dos conjuntos de Cantor, faz-se necessária uma nova ampliação da matemática que, agora, não pode mais se abster de falar sobre o infinito. Mas como falar de conjuntos infinitos sem se deparar com antinomias? Russell e Poincaré fazem parte deste cenário de discussão. Uma das questões entre as quais discordam é quanto ao papel da lógica e da intuição em matemática. Poincaré coloca-se como um dos críticos mais veementes do projeto logicista de Frege-Russell. Russell , por sua vez, ao seguir a proposta de Frege de libertar a matemática de todo e qualquer elemento psicologista recusa, deliberadamente, o envolvimento da faculdade intuitiva na matemática proposta por Poincaré. Nossa exposição tratará da importância concedida à intuição, por parte de Poincaré, e da crítica de Russell a tal posição. Em decorrência destes pontos de vista, analisaremos o papel que ambos concedem à lógica. Excluindo a geometria e dirigindo-nos à fundamentação da aritmética há, inicialmente, segundo Poincaré, duas características a serem salientadas: seus juízos são sintéticos a priori e sua justificação se dá a partir da intuição. Mas o que é, para Poincaré, um juízo sintético a priori e qual é sua concepção de intuição? Acreditamos que à concepção de Poincaré pode ser au·ibuída a distinção kantiana enLre juízos sintéticos e analíticos, ao menos no que diz respeito à seguinte caracterização: juízos analíticos são apenas expositivos e, portanto, opõe-se a juízos sintéticos que são explicativos ou Cupani, A. O. & Mortari, C. A. (orgs.) 2002. Unguagem e Filosofia. Anais do Segundo Simpósio Internacional Principia. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 6. Florianópolis: NEL, pp. 43-50.


Jaqueline Engelmarot

ampliativos. Seguindo este viés, Poincaré afinna ser a matemática uma ciência essencialmente criativa pelo fato de que procede sinteticamente. Ora, no domínio do analítico deve-se incluir as formas de inferência consideradas pela lógica. A demonstração puramente analítica permite apenas alcançar uma conclusão que reflete o que já estava contido nas premissas. Um bom exemplo para ilustrar o procedimento analitico, do modo como o entende Poincaré, é o raciocínio lógico conhecido como Modus Ponens. A matemática, afirma Poincaré, não pode ser reduzida a tão pouco. A justificação de uma demonstração matemática não consiste apenas na análise de passos inferenciais. O papel da lógica restringe-se a decompor uma seqüência de proposições de modo dedutivo. Desta forma. o procedimento analítico não nos permite alcançar a demonstração como um todo; e la não pode ser por ele juslificada. Não significa, contudo, que a lógica deva ser descartada. Ocorre apenas que ela é incapaz de contribuir para a geração de novos conhecimentos. conforme Poincaré. Em outras palavras. a lógica é estériL Poincaré afirma que a lógica não nos permite criar o novo nas c iências. Tal afirmação nos faz lembrar a acusação de Descartes de que a conclusão de um silogismo não trás nenhuma verdade nova em relação as suas premissas e a crítica de Kant à lógica, como sendo uma ciência que trata da forma e não do conteúdo dos juízos. 1 Já o raciocínio empregado pelos matemáticos caminha sempre construindo combinações, de mais simples a mais complexas. Contudo, a construção é necessária, mas não suficiente. Ela necessita de outro elemento para criar e desenvolver a ciência, a saber, a indução. Após explicitada a crítica que Poincaré reserva à lógica, deter-nosemos no sentido que o termo " intuição" recebe através de sua obra. Em primeiro lugar, cabe ressaltar que, para Poincaré, a única faculdade que capacita-nos a criar o novo nas ciências é a intuição. Assim sendo, Poincaré oferece-nos o exemplo de quatro axiomas que são produtos desta faculdade. São eles: (1!2) Dcux quantüiés égales à une [foisicrne som égales entre elles. (2Q) Si urn r.héorcme est vrai du nombre 1 et si l'on démontrc qu" il est vrai de 11 + I, pourvu qu"illê soit de 11, i1 scra vrai de tous lês nombres enliers.


lmuição e Lôgia 1na Controvérsia emre Poincaré e Russeli

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(3º) Si sur une droit te point C est entre A et 8 et te point Dentre A etC, te point D sera entre A et B. (4º) PM un point on ne peuL mener qu'une paraJete à une droite. (Poincaré 1932, pp. 20-1).

Na concepção de Poincaré, o primeiro axioma, ao mesmo tempo em que é uma verdade intuitiva, é também uma regra da lógica formal. Portanto, inclusive as regras da lógica formal- se não todas, ao menos algumas - estão fundadas na intuição. Este pode ser considerado o nível de intuição mais básico, uma vez que se trata daquele que apela aos sentidos. Como podemos perceber, o segundo axioma é o próprio fundamento da indução matemática.2 Este, como todos os juízos relevantes da aritmética, é sintético a priori. No caso do terceiro, trata-se do axioma que faz apelo à imaginação. O quarto axioma, conforme Poincaré, não passa de uma definição disfarçada. Queremos salientar, a partir da análise dos axiomas acima que, para Poincaré, a intuição opera tanto no nível dos conceitos e das proposições. como também no dominio dos raciocínios. Este é o caso do princípio de indução matemática ou, como diz Poincaré, do raciocínio por recorrência. O procedimento analítico utilizado para verifica? proposições simples, tais como 2 + 2 = 4, se dá através de passos meramente lógicos. No caso de demonstrações mais complicadas, é ao principio de indução que devemos recorrer. A caracterização essencial da ciência matemática, segundo Poincaré, está no fato de que seu procedimento consiste em passar de enunciados particulares a enunciados gerais. A indução matemática é o procedimento que permite que esta passagem se tome possível. O procedimento contrário a este é o da lógica que principia por leis gerais e conclui casos particulares. RusseU, em uma resenha da obra A Ciência e a Hipótese de Poinca.ré,4 não concorda que a indução seja um princípio matemático que permite passar do particular· ao geral. Segundo Russell: ( ... ) és simplememe un medío de pasar de una proposición general a otra. Nuestras premjsas son: primcra, que determinada propiedad pertenece a O; podemos admitir que esta premisa es particular; segunda, que todo número finito 11 cs tal que, se n Licnc la propiedad citada, rambién Ja


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Jnqueline Engelmann

tiene n + 1; esta premisa es general. La conclusión cs que todo número finito tiene la cir:ada propiedad; pero esta cooclusión tiene exacr:amente el mismo grado de generalidad que nuestra segunda premjsa. El aparente paso de lo particular a lo general lo sugiere el olvido de nuestra segunda premisa" (Russelll910, p. 101).

Não obstante, o que importa destacar é que, conforme Russell, a indução matemática é simplesmente o que utiUzamos para definir os números naturais. Eles são definidos a partir da indução matemática pelo fato de que, se uma dada propriedade pe11ence ao número O e também ao sucessor imediato de qualquer número que tenha a propriedade em questão, pertencerá a todos os números naturais. Tal definição é válida somente no caso de números finitos, conforme Russell (falar em número natural é o mesmo que falar em número finito). Destarte, para Russell, não é o caso que a indução seja a responsável pela fertilidade da matemática, uma vez que do infinito ela não pode tratar. Retomando à questão da intuição em Poincaré, a peculiaridade de tal noção está na postulação da dita " intuição do número puro" . Tal intuição oferece-nos, por um lado, a estrutura de uma seqüência formal e, por outro, a evidência da indução enquanto um princípio próprio da matemática, que permite verificar a validade ou invalidade dos raciocinios.5 Da prioridade dada por Poincaré à intuição, podemos apontar para uma primeira crítica de Russell. Em primeiro lugar, o projeto logicista de Frege e RusseU é regido por uma concepção da lógica enquanto ciência da máxima universalidade, ou seja, a linguagem lógica deve poder ser aplicada a todo discurso racional. Poincaré, por sua vez, compara a lógica a um jogo de xadrez, onde as peças são manipuladas sem que se compreenda o verdadeiro significado de tal ato. Porém, Frege já havia feito referência a tal questão afirmando que o sistema de sinais da lógica não é algo destituído de significado. Afirma Frege: " ... é possível a um matemático proceder a longos cálculos sem entender por seus sinais nada sensivelmente perceptível, intuivel. Nem por isso estes sinais serão desprovidos de sentido; distinguir-se-á ainda entre eles e seu conteúdo, embora este conteúdo talvez apenas possa ser apreendido por meio dos sinais. Sabe-se que para o mesmo conteúdo outros sinais poderiam ter


lnwição e Lógica na Controvérsia emre Poincaré e Ru.uell

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sido_estipulados. É suficiente saber como deve ser manipulado logicamente o conteúdo que se faz sensível nos sinais... " (Frege 1974, p. 222, §16). A exigência fundamental é a de que tais significados sejam precisos. Sob este prisma, a intuição é vista enquanto característica de um psicologismo que deve ser completamente excluído da matemática.6 Considerando este aspecto, Goldfarb 7 acaba por afirmar que, de fato, não é possível retirar por completo o rótulo de psicologismo que as teses de Poincaré receberam, mesmo que possamos outorgar a ele vários méritos em relação à fundamentação da matemática. Para Goldfarb, uma vez que a intuição, como a entende Poincaré, é a responsável pelo fornecimento das verdades matemáticas que não necessitam argumentação em seu favor (pelo fato de serem auto-evidentes), ela pode ser considerada "convicção imediata" e, desta forma, não tem a possibilidade de fugir da acusação de cair em um psicologismo. Como bem lembra Goldfarb, há uma ruptura a ser salientada entre dois momentos da demonstração, conforme Poincaré: o da descoberta (ou invenção) e o da justificação. Esta posição é já defendida por Hadamard em sua obra Psicología de la Invención en e/ Campo Matemático. Hadamard esclarece que o procedimento necessário à aquisição do conhecimento em matemática, segundo Poincaré, passa por estes dois processos - descoberta e justificação. Hadamard enfatiza que as regras a seguir, no momento de eleger o caminho para alcançar uma dada solução, passam por um senso estético peculiar a cada indivíduo, conforme Poincaré, ou ainda, não há matemática sem uma certa "sensibilidade emocional". O "sentido de beleza" intervém, necessariamente, na descoberta. O que parece difícil é conceber a possibilidade de que haja um estreito vínculo entre lógica e intuição. Hadamard afirma que a intuição, quando tomada como uma espécie de casualidade, acaba por opor-se ao procedimento lógico_. Já no caso da matemática, faz-se indispensável tanto a lógica quanto a intuição. A primeira enquanto método de análise e a segunda enquanto fomecedora de unidade à investigação. Poincaré concorda com as inovações contemporâneas no campo da lógica, a saber, com o desenvolvimento do que se entende por lógica proposicional, lógica de classes e lógica de relações. É sob este aspecto


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Jaqueline Engelmann

que se pode ter ce11eza, conforme Poincaré, que a matemática é criativa em função da intuição, isto porque todas as " percepções" quanto à necessidade de introdução de novos modos de tratamento não são mais do que um produto da intuição. Ela é o elemento ubíquo da fundamentação epistemológica da matemática de Poincaré. Decididamente, Frege e RusseU não podem concordar com este tipo de explicação. A linguagem universal, proposta pelo sistema formal do logicismo, considera irrelevante todo e qualquer procedimento decisório individual. O projeto logicista coloca como exigências principais (a) a necessidade da precisão, no tocante às demonstrações, (b) a veracidade da proposição que diz: "a aritmética é um ramo da lógica pura". Além disto, a conceitografia, proposta por Frege , pretendia assegurar uma linguagem utilizada por todas as ciências. Neste sentido, Goldfarb acredita que a concepção logicista, como uma estrutura universal de todo discurso racional, acaba por tomar a posição de Poincaré ingênua. 8 Bibliografia Bryushinkin, V. "Kant, Frege and the Problem o f Psychologism." Kant-Studien 90, l999,pp.59-74. Frege, G. Estudios sobre Semántica. Trad. Ulises Moulincs. Argentina: Hyspamerica, s/d. - . Os Fundamemos da Aritmética. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril S. A., 1 ed., 1974. Goldfarb, W. "Poincaré Against lhe Logicist." In: Willian Aspray and Philip Kitchcr (eds.), History and Philosopizy o.{Modem matlzematics. Minncapolis: University of Minnesota Press, 1988. Hadamard, J. Psicología de la Jnvención en e/ Campo Matemático. Trad. L. A Santaló Sors. Buenos Aires: Espasa-Calpc Argentina, 1947. Oliveira, M. B. "Logic and Cognitivc Sciencc: Frege's Anti-Psychologism." Manuscrito. Campinas, XVII(2), ourubro 1994, pp. 65-96. Palácio, A. A. "La Definición de Número en Gottlob Frege.'· Critica- Revista Hisponoamericano de Filosofia XXIV, 72, dezembro 1992, pp. 73-101. Poincaré, J. H. A Ciência e a Hipótese. Trad. Maria Au xiliadora Kneipp. Brasília: Editora Universidade de BrasQia, J985. - . "A Propos de la Logistique." Revue de Métaphysique et de Mora/e 14, 1906,pp.866-8.

ª


lntuiçcioe /,â~iNJIW Contml'érsíaemn• Poínf'aré e Ru.fse/1

-19

- . Demieres Pensées. Paris: r-lammarion. 191 3. - . La Valc:ur de la Science. Paris: Flammarion, 1932. - . "Lcs MaLhémaLiques et la Logiquc:• Rf'l'lle de Métaphysique et de Mora/e 13, 1905, pp. 815-35. - . ''Lcs :vtathématiques cLia Logiquc: ' Rel'ue de Mé taphysique et de Mora/e 14, 1906. pp. 294-3 17. Russcll, B. lntroduçlio à Filo.wjia Matemática. Trad. Giasone Rcbuá. Rio de J:mciro: Zahar Ediwres, 4ª cd., I 98 I. - . "La Ciência y la HipóLcsis." In: t:nwyos Filosóficos. Trad. Juan Ramón Capclla. :vtadrid: Alianza Editorial. 1910. - . "Malhcmmical Logic as Based on lhe Thcory o f Types:· American Journal f~( Mathematics 30, 1908. pp. 59-I 02. - . Tlw Principies f!( Matlzenwtics. 2'! cd. London: By Bradford & Dickcns, 1937. Shapi ro, S. '11zinking abmlf Matlzemath-s. Oxford: UniversiLy Prcss, 2000. Silva, J. J . "A Filosofia da Matemática de Poincaré." In: F. Évora (ed.), Século XIX: O Nascimento da Ciência Contemporânea. Campinas: UN fCAMP, Ccmro de L<igic~ EpisLcmologia c História d a Ciência (CLE). 1992. - . Sobre o Predicatil•ismo em 1/ermwm Weyl. Campinas: UNTCA.1\1P, CLE, 1989. - . Poincaré mz Mathematical lntuition. A Plzenomenologia Appmaclz to

Poinnm!'s Plzilosoplzy ofAritlzmetics. Plzilosophy o( Sóence 1(2): 87-99, 1996.

Notas É desta forma que KanL ~.:ara~.:lcriza a lógica geral. em oposi~ão à lógica LransccndcnLal. Porém, nossa exposição não tem por i muito tratar de tal disLin~ão. 2 A fonnula<_;ão do princípio de indução é a scguinLc: " qu<tlqucr propriedade que pertença a O (zero). c Lambém ao s ucessor de todo número que tenha essa propriedade. pertence a Lodos Ol> nú meros nmurais" ou. quando formalizado: 1

AO 1\ V.~(A~

~

Ar+ I)

~

V.1A ~).

3

Porque falamos em vezificar e não em demono;rrar? Pelo fato de que. para Poincaré, proposições particulares siin verificáveis, ou seja, nclao; pode-se subsLituir os termos del1nidos pelas suas clcliniçõcs (é() que ra:~. Lcibniz quando diz demonstrar a soma 2 + 2 4). Em tais proposições. bas1.:1 a aplicação das le is da 16gica. segundo Poincaré. " Resenha esta publicada pela primcim vt:'l em Mind em julho de 1905.

=


50

Jaqueline Engelmmm

A intuição é, além disto, a responsável pelo raciocínio por analogi~ caractcn":-;tico da matemática, conforme Poincaré. Segundo Da Silva, o raciocínio por analogia é, talvez, um dos métodos mais fecundos para o descobrimento em matemática, wna vez que Poincm·é o utiliza para definir a matemática como uma arte de chamar diferentes coisas pelo mesmo nome. (Da Silva 1996, p. 88) 6 Frege não deixa de atribuir um certo mérito à filosofia kantiana (ao menos no que concerne à definição de juízos analíti.cos e sintéticos), mas, mesmo assim, dirige uma severa crítica à teoria das representações de .Kant. O termo "representação", para Frege, tem sempre uma conotação subjetiva. Portanto, o número não pode ser entendido como representação, pois, caso fosse, cada número teria um significado distinto, dependendo do sujeito que o definisse. 7 Goldfarb L988. 8 A presente comunicação faz pane de minha dissertação de mestrado. Quero aqui registrar o agradecimento ao meu orientador pro f. Abel Lassalle Casanave e à CAPES, que tem tomado minha pesquisa possível. 5

jqsauer@hotmail.com


lssUES IN REASONING WITH 'GENERALLY' AND 'RARELY' PAULO

A. S.

YEI.OSO

Federal Unil'ersity (~f Rio de Janeiro (UFRJ)

1. Introduction (n this paper we discuss, trying to explain and clarify, some fundamental issues in the precise treatment of assertions involving 'generally' and ·rarely'. We shall focus mainly on the intended meanings of such assertions. By analyzing some basic imuitions and their underlying presuppositions, we are led to distinguishing various versions according to their behavior, which can be explained by means of fammes of sets. Such famiües, in turn. provide bases for precise qualitative reasoning about assertions involving these vague notions. Asse1tions and arguments involving vague notions, such as ' rarely ', generally', ·most', ·many', etc.. occur often, not only in ordinary Janguage, but also in some branches of science. For instance, one often encounters assertions such as "Bodies generally expand when heated", "Most birds Oy" and "Metais rarely are üquid under ordinary conditions". Vague terms such as 'likely' and 'prone' are often used as are more elaborate expressions involving ' propensity', e.g. "A patient whose genetic background indicates a certain propensity is prone to some ailments''. We wish to reason about such assertions in a precise manner. For this purpose, one needs a clear unders tanding of 'generally· and ·rarely', which appear to be quite vague. We will examine some intuitions behind ·generally' and ·rarely·. whicb will indicate that we actually have various distinct versions of these vague notions and the n suggest how one can use these ideas as bases for logical systems. Cupani, A. O. & Mortari, C. A. (orgs.) 2002. Linguagem e Fílosofis. Anais do Segundo

Simpósio ln!ernacional Principta. Coleção Rumos da Epistemologia. volume 6. Florianópolis:

NEL. pp. 51 - 72.


52

Paulo A. S. Velnso

I~eas conceming these notions have appeared in the literature. Some Lraditional square-·of-opposition relations among 'few' , ' many ', and 'most' have been analyzed [ 15) anda quantifier for 'mos L' in the sense of majority as been suggested [16,181. A logic with various generalized quantifiers, for notions such as 'many', 'few·, 'most', etc., bas been suggested as appropriate to treat quantified sentences in natural language [2]. These works are also related to lhe tradition of analysis and formalization oflanguage (10,20,7,14].

2. Some accounts for 'generally' and 'rarely' Various possible imerpretations seem to be associated with Lhe somewhat vague notions of 'generally' and ·rarely'. We shall consider some reasonable ones and examine some intuitions underlying them. Consider assertions of the form "objects generally have a g iven property" or "objects rarely h ave a given property". How is one to understand Lbese assertions? What would be lhe possible grounds for accepting tbem? We shall now examine some answers to these questions stemming from possible accounts for 'generally' and 'rarely'. Considering a g iven property cp, the intended meanings of "objects generally have property cp" and of "objects rarely have property cp" can be given either directly, in terms of the set of those objects having cp, or in terms o f the set o f exceptions , i.e. those objects faHing to have cp.

2.1. Numerical accounts for 'generally' Some accounts for 'generaUy' try to explain it in terms of re lative frequency or size. Por instance, consider the assertion "Brazilians generally like soccer". A relative-frequency account for it may be "The Brazilians that like soccer form a 'likely' portion··. with more than. say. 75% of the population. A size-based accoum for it might be "The Brazilians that Iike soccer forma 'sizable ' set", in lhe sense that their number is above. say, 80 million. (Brnzil has about 170 million inhabitants.) These two accounts of 'generally ' may be termed "metric", as lry to reduce it to a measurable aspect, so to speak. They seek to explicate


J.uues in Reasoning willt 'General/y' and 'Rarely ·

53

''people generally have a property cp" as " the people having cp form a ' likely' (or 'sizable' ) set". i.e. a set having "high" relative frequency (or cardinalily), where ·high ' is understood as above a gíven threshold. These metric acco unts, however. difTer in one important aspect, as can be seen by considering the relation of having the same size. On the one hand, the size accounts - cardinality above a given threshold - clearly failto disting uish sets with the same cardinality: they are ali eit.her above or below the threshold. We may say that we bave a nonlocal notion. In conu·ast, sets with lhe same size may very well have distinct probabilities (for instance, consider a parlition of the natural numbers into even and odd naturals). 1 Thus, in a probabiüstic account of ·generally', the family of "li.kely'' sets, is not necessarily invariant under having the samc size. h may be said to con-espond to a local notion.

2.2. ReJaxed accounts for ' rarely' and 'generally' The preceding accounts h inge o n assigning a threshold. which may seem somewhat arbitrat-y. Even though they may suffice for some cases, such approaches do not appear to be appropriate for others, where they may faíl to c larify the underlying imuitions. We shall now examine some more relaxed accounts. For instance. consider the assertion "Natural numbers rarely divide sixty". One may interpret, and expJain, it by regarding it as asserting that " the divisors of sixty forro a ·smalr set", where ·smalr is uoderstood as finite. Similarly, one would understand the assertion "Real numbers rarely are rational" as "the rational reais form a 'small' set", w ith ·smalJ ' now taken as (al most) denumerable. This account of ·rarely' is still quantitative and resorts to a threshold. but it is more relaxed. It tries to explicate '·objects rarely have property cp" as "the objects having cp form a ·small' set" . under a given sense of small ' (capturing some idea of "having ' very few ' elemems"). The intended meaning of "objects generally have property cp'' can also be given by means of the set of exceptions, i.e. those objects fail ing to have property cp. One may undcrsrand "Eagles generally fly" as "The


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Paulo A. S. Ve/oso

non-flying eagles fom1 a 'small' set" , which suggests paraphrasing it as "Eagles rarely fail to Hy" or "Eagles rarely are non-ftying (birds)''. To illustrate some features of this relaxed account in contrast to lhe metric accounts, consider Lhe universe of natural numbea-s and imagine that one accepts lhe assertions: "Natural numbers rarely are below fifteen" and "Natural numbers rarely divide twelve". In this case, one would probably accept also the assertíons: "Naturais rarely are below fifteen and even" and "Naturais rarely are below 11fteen or divide rwelve". The acceptance of lhe first rwo assertions, as well as inferring the lhird one from them, might be explained by a metric account as above. This, however, does not seem to be the case with the fourth assertion. The more relaxed account can explain this sítuatíon, as we shall have occasion to see in seclion 4. 2.3. Qualitative accounts for 'generally' and 'rarely' The accounts of ·generally' and ·rarely' mentioned so far may be termed "quantitative" . Even lhough they ma.y suffice for various cases, such accounts do not seem to cover some examples, where these notions appear to present a qualitative character. As an example, consider the asser1ion "Real numbers generally are rational". How is one to understand this assertion? What would be the possible grounds for accepting it? The ralionals do not seem to forma "li.kely", "sizable" or "large" set of reais in a quantítative sense: there are too few of them. 2 Yet, there seems to he a sense in whjch one may accept t11at "Real numbers generally are rationaJ". Indeed, one may say that ''the rationals are ' almost everywhere' within the reals", since near any real one finds a rational. In tlüs sense, the rationals may be said to be ··ubiquitous" within the reals [ 11 ,5]. More precisely, in any open neighborhood of a real one tlnds a rational, thus the rational reais fonn adense set o f reals. This example illustrates a local qualitative notion of ·generaJiy' . One explicates "objects generally have property I{J" by saying iliat "the set of objects having property lfJ is adense set" in a given topology.3 We can perhaps distinguish the earlier quantitative accounts from the more tlexible qualirarivc accounts in terms of the properties stressed.


úsues in Reasoning with 'General/y ' and 'Rarely'

55

They are of a topological nature in the latter, rather than metrical as in the former. We can also see that the earlier quantitative versions can be subsumed under the more flexible qualitative notions. We thus have various distinct notions of 'generally' and 'rarely'. We would like to give them a unified treatment. As more neutra! names encompassing these notíons, we shall prefer to use 'irnportant' in lieu of 'sizable', ' likely' or 'Jru·ge' (corresponding to 'generally'), and, accordingly 'negligible' for 'non-sizable' , '" unlikely' or 'small' (corresponding to 'rarely'). The previous tenns are somewhat vague, the more so wíth the new ones. Nevertheless, they present some advantages. First, lhe reliance on a - somewhat ru·bitrary - threshold is less stringent. Also, they have a wider range o f applications, stemming from the liberal interpretation of ' impot1atlt' as carrying considerable weight or importance. Notice that these notions of 'important' and 'negligible' are relative to the sítuation or person, as suggested by the examples. For instance, when saying "Unimportant meetings are those attended only by junior staff", one seems to be considering sets including only junior staff members as 'unimportant'. We may sumrnarize these various accounts of 'generally' and 'rarely' in the following table, where we use Inv for invariance under having the same size. 4 Account frequency size relaxed quaütative qualitative

Reading likely sizable small u biq u itous important

Example Bra:zilians and soccer (2.1) Brazilians and soccer (2.1) Natural numbers (2.2) Rationals in reals (2.3) Meetings (2.3)

In v N y

y N N

3. Postulates for 'generally' and 'rarely' Various possible interpretations can be associated to the somewhat vague notions of 'generally' and ' rarely' . We would like to give a unified treatment for (some of) them. We might say that we really have a family of notions and we attempt to describe some of their common


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Paulo A. S. Ví!ln.w

properties. Towards tlús goal. we shall try to explain the~e notions by relying on a relation comparing subsets of a given univer~e. A first candidate for such a comparison might be thc relatíon .::: of "having about the same síze". lt ís tempting to consider thw we have an equivalencc relatíon. Jndced, reflcxivity and symmctry seem reasonabJe. But, what about transitivity?5 Actually, a notion such as "having about lhe same size·· is not such a good starting poinl. This isso because one is naturally led to think Lhat sets with the same size ~hould have about the same size. ln other words, thís is a non-local notion, whereas some of our notions are. in contras!, local ones. In view of Lhe preceding considerations. we !->hall use "almost a.-; important as·· for our comparison between subsets of a uni verse V. which we shall denote by ::::. We shall try to expl icate ou r not ions o f· i mportant' and ·negligible' by relying on some rea.'>onable propertie!-t of tbis relation :::: between subscts of a given universe. Also, instead of assuming at the outset that we have an equivalence relation. we shall put forward some more ba.o;ic - and hopefully more palatable - postulates. (This enterprise is somewhm reminiscem of that of •·reverse mathematics", wilh an important difference. 6 ) In the sequei we shall be res01ting Lo two kinds of a.rguments, namely intuitive arguments - based mainly on common sense and ordinary understanding - 10 try lo justify Lhe acceptance of lhe proposed postulales. as well as (simple) mathematical proofs. to derive some properties - that seem to be intuitively expected - from our postulates.

3.1. 4 Negligible', 4 important' and •aJmost as important as' We now bave three vague nolionl>. namely the propertie~ ·negligiblt' and ·important'. as well as the binary relation ·atmost as imponant a~·. We shall attempt to explain them by means of some properlies o f these notions, based mainly on common sen!ote and ordinary understanding. A dictionary explanation for ·negligible' is: ··something that is negligible isso small or unimportantthat is not worth considering or worrying about" [8]. This already suggesls a connec1ion between ·negligible· and ·important'.


J,, ,\ 1/C,\

in Rt•a.wmin.l! 11.:ilh 'Gnwmllr ·mui ·Rarl!!y ·

57

Also. one usually understands ·negligible' as "Ih to be neglected or discarded" [25]. So, i1 appears reasonahle 10 say: "almost as important ~ets are those with negligihle dHrerence". 7 The dilrerence, being the part whcrc they differ. is the so called symmetric difference, namely X EB Y := (X- Y) u (Y- X). Along similu.r !ines, one may aJso say "two sets are almost as important when the region where they agree is important". The region where sets X and Y coincide consists of the elements in both and those in neither. namely X® Y := (X n Y) u (X - n y -).

x- n y-

y

X Figure I: Symmetric ditl'erence and coincidence region In thé ~equel. we wiU examine properties coo necting the vague notions ·negligible', ·important ' and ·atmost as imporlant as'. Given a universc V. we consider lhe families N, o[ negligible s ubsets. and W, of importam :.ubse1s. of universe V. We shall postulate some reasonable propéttie::. con1lecting thesc:: fam il ies and lhe relation :::: of ·atmost as imponant a~;. The relative character of ·negligible' and 'important' is embodied in the~e families and in properúes of thé binary re lation :::: of ·atmost as impot1ant as·. which may vary according to the situation. They. howcver. can be expected lo share some general properties, if they are to be appropriate fo r capturing reasonable no ti ons o f ·generally· (and ·rardy'), corresponding to ·sizable'. ' likely' or ' large' (and ·non-sizabte·. ·unlikely' or ·small'). We shall divide our postulates into 1wo groups, namely hasic postu-


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Paulo A. S. Vcloso

lates and specific postulates, dependjng on whether lhe propetties they express may be expected to be fundamental to ou r notions or shared only by some special versions of them.

3.2. Basic postulates We shall first consider our basic posrulates. expressing properties that may be expected to be fundamental to our vague notions. We have already suggested that it appears reasonable to say that two sets are almost as important when their difference is negUgible or the common region is important. We are thus led to formulare our first basic postulate, explicating 'almost as important as' in terms of the farnilies N and W o f negligible and important subsets. respectively. [EB:::::: ®]For subsets X and Y of Lhe universe V, lhe foUowing are equivalent: • their symmetric difrerence is neglig ible (X EB Y E N ), • X is almost as important as Y (X :::::: Y), • their coincidence region is impo11ant (X ® Y e W).

X

X- Y •

.. ... .. .. ....... .. .. . . . . . ... . .. . ... . . . . . . .. . •

o

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•••

•••••

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• • • • • o o. o • •••••• • o • •• • o ••• • o ••• o o. o o • ••• o •• o • •• o. o •• • • o ••••• o o o o o o • o . o o •••••• o •• o o ••••• o •••• o o • ••• • o •• •• • o •• ••

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:::::::::::::::: X íl y ::::::::::::::::

....................... ... ........ .. ........ .................................................................. ........ .. .. .......... .................................................................. ........................................ .... •

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..

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o

o

•••

o

o

Y- X

I y

Figure 2: Sets with about the same imponance8 We can now see some immediate - and intuitively reasonable conseq uences of this basic postula te fEB ~ ®] . First, when two sets are almost as impon ant soare their complements (relative to the universe V).


lssue.t in Reasoning with 'Generally · and 'Rarely'

59

(~-)For

subsets X and Y of the uni verse V, Xis almost as impot1ant as -Y (X :::::: Y) iff their complements are so (X- :::::: y - )_9

Second, the important and negligible subsets can be characterized as those almost as important as, respectiveJy, lhe universe and the empty set. (W & N) For each subset X of the universe V, we have: 10

• set X is imponant (X E W) Jiff X is almost as impm1ant as the universe (X :::::: V); • set X is negligible (X E N) iff Xis almost as important as the empty set (X:::::: 0). Third, a set is negligible exactly when its complemenl (relalive to the universe V) is important. (N-

= W) A subset N of the universe

V is negligible (N

E

N) ifl' its

E W). 11

complement is important (N-

. . ... . . . . . .. ..... . . . ... . . .. . . ......... . ... . .... . . . . . . . . .... •

o

o

• o o ••••••••••• o •••••••••••• •• o •••••••• ••••••• o ••••• o ••

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.. . .... .. . . . . . . . .. . . . . . .. . . .. ................ .... .... ................................... ................... ... .. .... .. .. .. ......................... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... . . . ..... ........ . . . . .. .. .. .. . . .. .. .....-· ......... .... . .... . .......................... .... .. . . .. ... ................... . . . . . .. .. .... ..... .. . .... .. . . . . . . . . .. . . .... . . . ........... .. . ..... . . . . .. . . .. . ... . . ... . . . .. ................... ........................................ •

.

o

••••••••••

o

o

o

•••

•••••••

Figure 3: Subset with negligible complement The second basic postulate concerns our notion of 'almost as importantas'. With a reasonable notion of 'almost as important as', one would probably expect a set to be (exactly) as important as itself. This is the content o f our nexl postulate. [ =] Each subset X o f the uni verse V is almost as important as itself:

X::::::X. Our intuitive ideas about the notions of 'negligible' and 'important' suggest that the empty set is (most) negligible and, dually, the universe is (most) impmtant. These are consequences of our basic postulates.


60

Paulo A. S. Velo.w

(E) The empty sel is negügible (0 E N) and the universe is imponant . (V E W). 12

As a futther consequence we have existence of negligible and important subsets. The third basic postulate concerns the non-triviality of our notions: the existence of non-negl igible sets . [N] There exist non-negligible subsets: N

* yJ(V).

Ao immediate - and intuitively reasonable - consequence of our two basic postulates is, as expected, lhe existence of non-imporlant sets (which is, in fact, equivalent to poslUlate lN]). 13 (1-\1) There exist non-importanl subsets: '1.V *~?(V).

Summarizing. we have the following three basic postulates: EB~®

XffiYEN~X::::Y

~X® }' E

=

X::::X

N

N*-~J(V)

difference, coincidence and

~

'li/ almost as important is reflexive lhere are non-negligible se1s

These three basic postu lates have the following reasonably acceplable consequences: ~-

W&N

N-

= '1.V E '1.V

x r ~

Ç:)

x- y~

XENt;;:>X~0

& X E '1V t;;:> X ~ \1 N E N ~ N- E W

0EN&\IE'lV

w

* ~( \1)

~ invariant under complement characterize negligible and imponant negligible as complement of impottant 0 is negligible and \1 is importanl lhere are non-importanl sets

Thus. these three basic postulates. expressing reasonable assumpLions about our three vague nolions, lead to the conclusion that lhe fam ilies N. of negligible subsets, and 'lV, of imporlant subsets, of universe V are dual (X E N ifr x- E W), as well as nonempty and proper (0 -:F N :t ~;J(\1) and 0 :t "W :t 9(V)).


lsmes in Reasnning wÍih 'Generolly · mui 'l?arely ·

61

3.3. Specific postulates We shall now consider our speci lk postulaLes, expressing properties that may be expecLed to be shared only by some notions corresponding to generally' and 'ra.rely ' . By duality, each property about a family has its dual version concerning Lhe other family. One would probably accept that a subset of a negligible set is (even more) negligibJe, which is me content of our first specific postulare, about the behavior of Lhe family N of negligible sets under inclusion. (ç] Each subset X of a negligible set N E N is negligible: X ç N E

N =>X

E

N.

One would probably expecL that Lhe addiLion of a negligible set should have negUgible impact, leaving a seL about as important as before. This inLuitively acceptable assertion foUows from postulates [ffi ~ ®] and (Ç]. 14

............... . . . . ..... . . ...... ......... . ......... •••••••• • • • • • • • •

o

•••• o •• • .. • o •••

..

o

o

•• • o

:::::::::::::::: x::::::::::::::::.................. ............. . .. ................... . -...... ..................-..... .. .. .. .

•• • ••• o ••• • o ••••••• o ................. . o

.............. o •• o •• o •••••••••••••• • • • • • • o ......... o

N

I

o

Figure 4: Union wi:th a negligible sel ( +) For each subset X ç V, lhe union X u N o f X with a negligible set N E N is almost as impot1ant as X (i.e. X u N ~ X).

Now, in view of our ideas about ·negligible' and 'almosl as important', it seems reasonable to accepl that a set about as importam as a negligible set is negligible, as well. This gives our next specific posLUlate, concerning the behavior of Lhe family N o[ negUgible sets under ·atmost as important as'. [~] Each subset X ç V almost as importanl as a negligible set N negligible: X~ N E N =>X E N.

E

N is


62

Pt11tlo A. S. Velo.w

As a consequence, we have the c losure of lhe family N of negligible sets i.mder union. 15 (U) U subsels N' and N" of lhe uni verse are negligible (N' E N and N" E N ), then so is their union N' u N" negligible (N' U N" E N). We now come to our final postulaLe, which is probably the least intuilively acceptable one (and with more profound impact). The underlying idea is that the unive rse isso important (i.e . carTies so much weight) that any attempt to cover it by finitely ma ny subsets must employ an important subset (one carrying considerable weight, or equivalently. almost as important as lhe entire universe). 16

Figure 5: Finite cover of lhe uni verse [V] Any finite covcr of lhe universc V must have an important subsel: V= X 1 u u X, ~ x,. E W , for some k. An equivalent formulation of this postulate is as follows. 17 [0) Any finite family with empty intersection must have a negligible member: X 1 n n X,= 0 ~ x,. E N , for some k. As a conseque nce of these postulates. we have that a subset or its complement must be negligible. ( - ) lf a subset X 莽 V is not neglig ible (X x路 rs negligible (X- E N). 18

~ N),

lhen its complement


lssue.~

in Rensoning wirh 'Genera/ly · nnd 'Rnrely ·

63

Summarizing, we have proposed the following three specific postulates:

ç

XÇNEN~XEN

~

x~NEN~XEN

V

V= X1 U ... U X 11 ~

neglig ible under s ubsets negligible under about as important finite covers of lhe univcrse

3k: Xk E '1-V These postulates have lhe following interesting consequences

+

NEN~XuN~X

U

N',N" E N ~ N' U N" E N Xf/.N~X - EN

~

invariant under union with negligible negtigible sets closed under union a set or ils complement is negügible

Thus, these lhree basic postulates, expressing reasonable assumptions So, lhe acceptance of some simple (and a.rguably reasonable) specific postulares about ou.r thrcc vague notions can be seen to lead to hierarchíes of the dual - proper and nonempty - families of negtigible and of fmportant s ubsets of u niverse V . lndeed, when Lhe three basic postulates are satisficd, the family N of negligible subsets of the universe can be seen to be: • downward closcd , if it satisfics the specific postulatc (Ç); • an ideal, if it satisfies the two specific postulares [ç] and [ ~J; • a prime ideal, i f it satisfies the specific pos tulares fç), [ ~] and [0].

In lhese three cases, the dual family W of important subsets will be upward closed (when [ç) holds), a fil ter (when [ç) and [~] hold) and an ultrafilter (when [Ç), [~] and [0] hold). Conversely, each downward closed fam ily, ideal or prime ideal on a uni verse gives rise to a family of subsets satisfying these postulates. 19

4. Reasoning witb ' generally' The preceding ideas can be employed 10 provide bases for precise reasoning wilh assertions involving (some versions of) lhe vague notions


Paulo A. S. Velo.m

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generally' and ' rarely'. In lhe seque i, we shall first illustrate how these ideas, giving some precise meanings to (versions of) of ·generally' . also serve to reason and then indicale how one can sei up logical syslems on 1hese bases. The intended meanings of 'generally· and · rarely'. at least in some ca-;es. can be given hy means of fami lies of 'important' and ·neglígible· sets. Considering a g iven properly cp. one can understand ''ohjects generaUy have property tp" as ''lhe objects having tp form an importanl set'', in the sense of belonging to a g iven family of imporlant subsets of lhe uni verse of cliscourse. The preceding section shows thaL the families or importam subsets corresponding to (some) nolions of ·generally' can be charac terized by poslulales. Now, these postulates provide bases for analyzing, and reasoning about, situations involving assertions with ·generally ' .

4. 1. Families for 'generally' We shall now illus u·ate how lhe postulates characterizing (some versions oi) ·generally' can be used in analyzing. and reasoning aboUI. situations involving assertions with ·generally'. We shall first examine a simplc cxample. Considcr thc univcrse of Brazilians and imag ine that one accepts the two assertions: l. ''Brazilians generally have lhe i r beards shaved'':

2. ''Brazilians generally shave thei r legs". In this case. one woutd probably accep1 also the assertion 3. "Brazilians generally have the ir beards shaved or sport a maustache". This. however. does not seem to be the case with 4. "Brazilians generally have thei r hcards shaved wul shave their legs''. An explanation ror not accepting assertion 4 is as rollows. The "OI'azillans that have their beards shaved" are generally males. whereas


/ssues in Rea.wming witlz 'Generally' and 'Rarely'

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the "Brazilians lhat shave their legs" are generaUy females. So, the " Brázilians that have their beards shaved anel shave their legs" form a ralher smaJI fraction of lhe population. The reason for accepting lhe assertion 3 should be clear (see aJso below). For convenience, we will employ 'severa.!' for the sense of 'generaJiy' in lhis example. Then, the explanaLion can be seen to hinge on Lhe fo Uowing ideas: • jf 8 is a subset of M and 8 has severa! elemenLs, then M also has severa! elements; • even though bolh 8 and L have several elements, Lheir inLersection B n L may fai lto have severa! elements.

So, the situation in this example can be explained by considering the farnily of important seis (corresponding 'generally') to be upward closed, but not necessarily a filler. We shall now examine another example, similar lo that of natural numbers in 2.2. Consider tbe universe of American males and imagine that one accepts the follow ing lhree assertions: 1. "American males generally like beer"; 2. "American males generally like sports"; 3. "American males generally are Democrats or Republicans" .

In this case, one would probably accepl also the two assertions: 4. "American males generally like alcoholic beverages". 5. "American males generally like beer anel sports". Acceptance of asse1tion 3 should be clear and an explanation for accepting assertion 5 can be given by means o f lhe exceptions (see below). On the other hand, even though one accepts the assertion 3, neitber one of the two assertions "American males generally are Democrats" and "American males generally ru·e Republicans" seems Lo be equally acceptable. For convenience, let us use ' mos!' for the sense of ·generally' in this example. Then, the situation can be explained as fo llows:


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Paulo A. S. Ve/o.m

• since B is a subset of A and 8 has most elements, A will have most elements as well; • since both ·B and S have most elements, their complements Band S - are small and so will be their union n- U S - small, thus the intersection will have most elements: • the union D u R may have most elements, without either D or R having most elements. Thus, we can account for the situation in this example by considering the family of important sets (corresponding 'generally') to be a fi lter, but not a prime one. The detection of the appropriate notion of 'generally', and of the nature of the corresponding family of important sets, will hinge on nonlogical information depend on lhe situation. To illustrate tllis issue. imagine that a socialite eager to attend interesting parties receives pieces of advice as follows: 1. "Important parties are those attended by the celebrities"; 2. '!mportant par ties are those attended by Madonna". The former advisor considers a set of g uests as importanl when it includes the celebrities, whereas the latter advisor understands as important sets of guests those where Madonna is. In both interpretations, lhe family of importam sets is a fi lter, which an ultrafilter in lhe Madonna interpretation. but not necessarily so in the celebrities interpretatíon.

4.2. Towards logics for 'generally' We shall now briefly indicate how onc can set up logical systems for expressing and reasoning about assert ions involving (some versions of) 'generaUy' on basis of their characteristic postulares. The goal is having logics for some vague notions, much as we have " logics embodying mathematical concepts" [3, p. 3]. Our logics for 'generally' add ro classical first-order logic a generalized quanti fi er V wi th intended interpretation "forming an important set of objects of the uni verse of discourse".


ls.m es in Rea.wning with 'Generalfy ·OIUi •Rarely ·

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~he syntax of our logics is obtained by extending the usual first-order symax by rhe ncw quantifier. We exrend the usual first-order syntax by adding the new quantifier V together with a new (variable-binding) fonnation rule giving generalized f01·mulas , o f the form Vvcp. 20 The scmantics for o ur logics is obtained by extending the usual firstorder definition of satisfactio n to the new quantifier. For this purpose, we resort to complex structures, a complex structure 9J(K being the expansion of a first-order structure 9JI by a family 1( (of important) subsets of its univcrse. We then extend rhe usual Tarskian dcfin irion of satisfaction to generaJized formulas, soas to capture the above interpretation: a generalized fonnu la Vvtp is satisfied iff the extension of IP belongs to the given complex 'K.2 1 We can set up deductive systems for our logics by adding sets of schemata. coding characteristic properties of complexes (upward closed famil ies, fi lters, or u1Lrafil ters) 22 to a calculus for classical first-order logic. These systems prov ide sound and complete deductive calculi for reasoning about assertions involving ' generally': a sentence Tis derivable from a set r iff T holds in ali complex models of r (in each case).23 Our logics for 'generally ' are (proper) conservative extensions of classical first-order logic, with which they share various metamathematical properties. such as compactness and Lowenheim-Skolem properties .24

S. Conclusion We have examined. trying to explain and clarify. some fundamental issues in the prec ise treatment of asser1ions involving ' generally' and ·rarely '. We have focused mainly on the intended meanings of such assertions by analy:úng some basic intuitions. Assertions and arguments involving vague qualitative notions. such as ·rarely'. 'generally' , ·most'. ·many'. etc., occur often both in o rdinary lang uage and in some branches of science. This provides one o( the motivations for undertaking such analyses. We have examined some meanings for ·generally' and ·rarely' . The analysis o f some basic intuitions and the ir underlying presuppositions


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Paulo A S. Veloso

has _led to distinguishlng various versions according to their behavior. These various versions - corresponding to notions such as 'several' (or 'many') and 'most' - can be rendered precise by resorting to families of subsets. The properties of these fam ilies can be used for reasoning about assertions with (some versions of) 'generally' and 'rarely '. By introducing geoeralized quantifiers over such families, one can obtain logical systems, which provide rigorous bases for qualitative reasoning about vague notions of 'generally'. These systems are conservative extensions of classical first-order logic, with which they share various properties. These systems, which are undergoing further investigation [24], appear to have some interesting connections with fuzzy logic [26] as used in expert systems f21], natural language [2,14] and empirical reasoning. Such connections suggest the possibility of other applications [6,22].25 References [1] Barwisc, J. (ed.), Handbook o.f Mathematical Logic, North-Holland, Amsterdam, 1977. [2] Barwise, J. and Cooper, R., "Generalized quantifiers and naturallanguage", Linguistics and Plzilosophy, vol. 4 (1981), pp. 159 -219. [3] Barwise, J. and Feferman, S. Model-Theoretic Logics. Springer-Verlag, New York, 1985. [4) Bell, J. L. and Slomson, A. B., Modefs and Ultraproducts: an intmduction, North-Holland, Amsterdam, 1971 (2nd rcv. pr.). [5] Carnielli, W. and Grácío, M. C. G., "Modulated logics and uncertain rcasoning", in Proc. Kurt Godel Colloquium, Barcelona, 2000. [6) CanlieJli, W. A. and Veloso, P. A. S., "tno-afilter logic and generic reasoning", in Gottlob, G., l..eitsch, A. and Mundici, D. (cds.) Computational Logic and ProofTheory (5th Kurt Gõdel Colloquíum: KGC'97), SpringerVcrlag, Berlin, 1997, pp. 34-53. [7] Church, A. lntroduction to Matlzematical Logic: vol. I. Princeton Univ. Press, Princeton, NJ, 1956. [8) Collins Cobuild, Co/lins Cobuild English Language Dictionary, CoUins, Loodon, 1987. [9) Edwards, P. (ed.), The Encydopedia o.f Philosophy, CoJlicr Macmillan, London, 1967 (rcpr. Macmillan, New York, 1972).


lssues in Rea.wning witlr 'Generally' and 'Rarely'

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[lO] Frege, G. Begr~ffsschrift, eine der arithmetischen nachgebildete Fonnel;,prac/ze des reinen Denkens. Louis Nebert, Halle, 1879 {Engl. translation in van Heijenoort, J. (ed.) From Frege to Godel: a source hook in matlzematicallogic, Harvard Univ. Press, Cambridge, MA., 1967, pp. 1-82}. [11] Grรกcio, M. C. G ., Modulated Logics and Reasoning under Uncerlainty, D. Se. dissenation (in Porruguesc), UNTcAMP, Campinas, 1999. [12] Kelley, J. L., General Topology, D. van Nosrrand, New York, 1955. [13] Lindstrom, P., "On extensions of c1ementary 1ogic", Theoria, vol. 35 (1966), pp. 1- 11. [14] Montaguc, R., Formal Philosophy: selected papers, Yale Univ. Press, Ncw Haven, 1974. [ 15J Peterson, P. L., "On lhe logic o f 'few', 'many', and 'most'", Notre Da me J. Formal Logic, vol. 20 ( 1979), pp. 155-79. [16] Rescher, N ., "Plurality quantification'', J. Symb. Logic, vol. 27 (1962), pp. 373-4. [17] Sainsbury. R. M., Parado.xes, Open Court, Cambridge Univ. Prcss, Cambridge, 1989 (repr.). [ 18] S lanlcy, J., ''A note on 'most"', Analysis, vol. 48 (1988), pp. 134-135. [19] Solomon, R., "Ordered groups: a case study in reverse malhematics", Buli. of Symbolic Logic, vol. 5 ( 1999), pp. 45-58. [20] Tarski, A., "Der Wahrhcitsbcgri tf in den fom1alisierten Sprachen", Studia Philosoplzica vol. l (1936), pp. 261-405 {Engl. translation in Tarski, A. Logic, Semantics and Metamathematics: papers from 1923 to 1938 by A~fred Tarski, Clarendon, Oxford, 1956, pp. 152-278}. [2 1] Turner, W., Logics for Artificiallntelligence, Ellis Horwood, C hichestcr, 1984. [22] Veloso. P. A. S .. "On ultrafilter logic as a logic for 'almost ali' and 'generic' rcasoning", Res. Rept. ES-488/98, COPPE-UFRJ, Rio de Janeiro, 1998. [23] VeioS<), P. A. S. , ''On 'almost ali' and some presuppositions", in Pe reira, L. C.P. D., and Wriglcy. M. B. (cds.) Logic, Language and Knowledge: essays in lumour f~( Oswaldo Clzateaubriand Filho, Manuscrito XXII ( 1999), pp. 469-505. [24] Vcloso, P. A. S. and Carnielli, W. A., "Logics for qualitative reasoning", in prcparation. [25] Wcbstcr, N., Wehsler's Sevenllz New Collegiate Diclionary, Merriam Co., Springfield, MA .. 1970. [26J Zadeh, L. A. Fuzzy logic and approximatc rcasoning. Syntlzese, vol. 30 ( 1975). pp.407-28.


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Paulo A. S. Veloso

Notes 1

Indced. any infinite universe V can oe partitioned as the union of two sets X and Y wilh the same cardinality as V; so V, X and Y cannot have ali Lhe same probability, cven though they have the same size. For a finitc univcrse, it suffices to considera non-unifonn distribulion. 2 lt is Lhe assertio n ·'Real numbers gcnerally are irrdlional" in lhe sense ·'Real numbers rarely are rational" - lhat appcars lO be more reasonablc, as explaincd above (in 2.2). 3 In a given topology, adense subsct of lhe uni verse is onc having lhe uni.verse as its closure (or equivalemly, one imcrsecting every uon-empcy open sel) [12]. 4 Furthcr examples illustrating lhesc poinL<; are as follows l23]. Firsl, considcr two seu; wilh lhe same sizc: one consisting of a horse and an ox, and anolher one consisting of a horse and a dog. T hcse scls may be just as important lo a conservationisl. But, lhe fonner may be more importam to a farmer, whereas the laLlcr mighl be prefcrred by an English gentleman, kccn 011 fox hunti11g. ';\Iow, consider lwo sets wilh dislinct sizes: onc consisling of lhirty birds, and another onc consisling of a couplc of clephanLc;. Thc Zoo director is like ly lo consider lhem equally important. But, an ornilhologist might rank lhe former as more imponant, whereas a truck drivcr in charge o f transponing lhcm would probably give more aL[CntÍOI1 to Lhe latter. So, a smaller set may be more importam lhan a largcr ser, or justas important. 5 Concerning transitivity: are we preparcd to accept that lhe extremes Xo and Xn of a long chain Xo ""X 1 :::: ••• :::. X11 are still seLe; wilh aboullhe san1c size? Even though adjacent sels may differ by a very srnall amounL, extremes may differ substantiaUy. Transitivity of vague relatio11s is con11ected lo lhe so-callcd sorites paradoxes [17, 9]: my age a second ago anda now are praclically lhe same, but I am definite ly quite older than when I was bom. 6 "The fundamental quesLion in rcversc malhematics ir, Lo determine which sct existence ax iorns are rcquired to prove particular lhcorcms of malhematics·• [ 19, p. 45). Hcrc, inStC<Id of locating familiar axioms, we will be suggesting some new postulares, whcnce thc necd for jusLifyi11g their acceptancc on imuitive grounds. 7 Equivalcntly, wc may say: two seL'i are ·almost as imponant· whcn thc part in cilhcr one but 1101 in both of lhem is 'ncgligible'. K In this and the next figures, we c.lepict imporwnt !>ets as large regions and ncgligiblc sets as small reg ions. '~ Conscquence(::::-) fo llows from l6:::: ®j. sincc x-E9y- = X E9 Y (as x - - y - = Y-X).


l.vsue.f in Reasoning with 'General/y' and •Rarely'

71

°Consequcnce ('W&N) follows from [e:::::®], since XEB0 =X and X®V =X.

1

11

Conscquence (N- = 'W) foll ows from conscquence ('W & N). [=J in vicw of consequence ('W & N). 13 In view of consequence (N~ '1-V), consequ'ence ('W) is cquívalent to posrulate [N). 14 Conscqucncc ( +) follows from [e::::: ® ] aud (ç), since (X U N) EB X N- X çN. 15 One may or may not find this propcrty íntwtively reasooablc, but it is ao inescapablc conclusion, once one has acccptcd lhe preceding postulatcs (consequencc ( +) gives X u Y ::::: X, whencc [:::::] yields X u Y E N). At1olher consequencc is lhat our comparison ::::: turns out to be transitive. Wc will not ruo imo sorit.es-like problems becausc wc are giving precise malhematical characterizations for our vague nolions. 16 Over an infinite universe, one may regard the finite subsets as not carrying considcrable weight. Another cxamplc where this postulatc holds is provided by considcring as carrying considl.!rablc weight only subscts with elcphants. 17 Postulares [V] and [0] are equivalcnt in view of consequence (N~ 'W). 18 Nolice that consequence ( - ) requires only the simpler instance of postulare [ V] conccming covers by rwo subscts (or, equivalently, if X 1 rt N and X2 rt N then XI () :F 0). 19 We can construct models of ou r postulares from famili es as follows. Given a fanúly 0 :F N c v( V), we can use lhe equivalences in postulare [EB ::::: ®] to introduce re lation ::::: and lhose in conscquence (N'W ) LO introduce family 'W. This gives a model of our rhrce basic postulates. We then see that, whenevcr N is a downward closed family, thjs construction givcs a model of ow· specific posLU!ate (Ç], which will satisfy [.:::::] if N is an ideal, and also [0] in case N is a prime ideal. 20 With this new quantifier we can express asse rtioos, such as "BiJds generally fly'' and "Metais gcnerally are solid", and propertics likc "pcoplc are gcncrally taller lhan x''. 21 More precisely, givcn a complcx strucrure 9JIX = (':DI,'}(), for a formula Vyr/1(-!_,y), wedefineiDIX F Vyi/J(,!,y)l!!J ifftheset{b EM: ~(K F IÚ(:!. y)(Q.b]J belongs to the complex 1<. So, the proposilional conncclivcs ao; wcll as the classical quantifiers V and 3 will keep t.hcir famil iar interprctatíons: for a purely first-order formula B(~) (without V), ~(K F B(~)ill!] iff \JJI1= B(~)[m]. 22 Thesc schemata code the characteristic properties of the comp.lexes as follows. Thc univcrs~ is - and the empty ser is not - in lhe complex as well as closure under supcrsets, for upwa rd closed families (corresponding to 'severa!'). To t11ese, one adds closurc under imersections for filters (corresponding 12 Consequence (E) follows from

=

=

=

x2

=


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Paulo A S. Veloso

to 路most'), and being prime in the case of ultrafilters. For classical formulas (wilhout V), our V-axioms add no extra deduclive power. u The apparent confiict wilh Lindstr玫m's results [13. 1] is cxplained becausc we are usiog a non-standard notion o f model (dueto the complexes). This featurc may confcr to our logics for 'gcnerally' some independent model-thcorclic intcrest. 25 Acknowledgemellls. Helpful discussions with Walter A. Camielli are graLCfully acknowledged. Research repo11ed herein bas reccivcd partia! financiai suppon from the Brazilian National Rcscarch Council (CNPq grant 301163/910). 23

veloso@cos.ufrj.br


Seção 2 Filosofia da Linguagem



FUNÇÕES SEMÂNTICAS E COMPLEXIDADE DA PROPOSIÇÃO CELSO R. BRAIDA Universidade Federal de Santa Catarina

O que eu vou apresentar aqui está inserido em um trabalho mais amplo cujo problema principal é o de estabelecer uma estratégia de conceitualização para uma teoria semântica geral. Teoria esta que deve ser capaz de explanar dois tipos de propriedades e relações. Por um lado, a natureza da propriedade da significatividade das expressões e as relações que se estabelecem entre as expressões significativas de uma linguagem. Por outro lado, explanar as relações entre as expressões Lingüísticas e os objetos dos quais se diz algo por meio dessa linguagem. Estas duas tarefas têm sido cumpridas e disso resultaram duas séries de conceitos. Uma série contém conceitos tais como os de sinonímia, implicação, intensão, regência, anaJiticidade, definibilidade, função semântica, etc. A outra série contém os conceitos de designação, denotação, extensão, valor semântico, etc. Denomino os conceitos da primeira série, inferenciais, e os da segunda, referenciais. Desde as primeiras tentativas de Frege, há uma disputa acirrada quanto a alocação de alguns conceitos nessas duas séries. Entre estes conceitos disputados estão alguns dos mais sublimes da tradição filosófica, a saber, os conceitos de verdade, proposição, consequência lógica, quantificação e validade. Seriam estes conceitos inferenciais ou referenciais? O meu objetivo é, e m primeiro lugar, defender uma estratégia de conceitualização em que estes dois tipos de conceitos semânticos, referenciai s e infercnciais, sejam unificados e definidos simultaneameme. Em outras palavras, eu quero uma teoria semântica não-esquizofrênica, uma teoria em que, usando os termos da solução de Quine, a teoria do significado não seja separada da teoria da referência. Isto porque eu Cupani, A. O. & Mortari, C. A. (orgs.) 2002. Unguagem e Filosofia. Anais do Segundo

Simpósio Internacional Principia. Coleção Rumos da Epistemologia. volume 6. Rorianópolís:

NEL. pp. 75-97.


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Celso R. Braida

penso que esta separação proposta por Quine está na raiz das suas teses da inescrutabilidade da referência e da relatividade ontológica, as quais, conjugadas, implicam a perda .da objetividade, isto é, implicam a perda do chão sustentador do mundo objetivo. E, por outro, porque eu penso que a sua saída - holista e inferencialista - conduz à derrocada da comunicabilidade e da mútua compreensibilidade, isto é, implica a perda do chão sustentador do mundo intersubjetivo. Não vou argumentar aqui em prol desses dois pensamentos. O meu objetivo, em segundo lugar, com esta estratégia de conceitua.lização, além disso, é separar a definição dos conceiros semânticos da definição de conceitos ontológicos e epistemológicos. Isto porque eu penso que a significatividade e a dizibilidade, encapsuladas em um sistema de expressão ou linguagem, não implicam nenhuma tese ou saber em ontologia e em epistemologia. Embora, trivialmente, os utentes que a utilizam sempre tenham crenças e saberes nesses domínios. A realização desses objetivos, a meu ver, propiciaria uma armação conceitual capaz de elucidar a significatividade das diferentes expressões em uso de uma dada linguagem, seja ela natural ou não. Em termos práticos e, sobretudo, tendo em vista a posição privilegiada e os usos desse tipo de ato e expressão, a teoria deverá ser capaz de explanar o que é expresso no proferimento de uma sentença assertórica num dado contexto e numa dada situação. Isto porque, justamente, nesse tipo de expressão estão codificadas c articuladas as principais propriedades semânticas, referenciais e inferenciais. O ponto que eu vou defender agora se refere unicamente à explanação do conteúdo semântico sentencia!, isto é, à explanação daquilo que é expresso pelo pro ferimento de uma sentença assertórica. A minha opinião é que o conteúdo expresso, ou asserido, é uma estrutura complexa de diferentes funções semânticas que, por sua vez, tem uma função semântica distinta daquelas realizadas pelas expressões que a compõe. Eu acredito que Be1trand Russell defendeu j á esta tese no iníc io do século passado. Todavia, eu a quero defende r de uma forma que ela reste inteiramente semântica, isto é, de uma fo rma que ela cumpra os desideratos acima aludidos. Não é preciso dizer que eu penso que a forma pela qual Russell a defendeu não os cumpre!


Ftmçrjes Semânticas e Complexidade da Pmposiçlio

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§ 1. A tese de que o conteúdo expresso na asserção de uma sentença é um complexo estruturado pode ser rastreada até Platão. No Sofista, l a proposição é posta como primária e explica-se a signHicação das palavras em função do papel exe rcido na proposição. As diferentes palavras componentes não significam do mesmo modo. A distinção entre "nome" e "verbo" justamente explícita esses modos de significação. O nome é ' de' alguma coisa (tinos), o verbo ou predicado é 'acerca de' (peri) alguma coisa. As palavras não apenas ' nomeiam' , mas também servem para ·enunciar' (262d). No discur so mínimo, o mais simples, constituído apenas de um nome e um verbo, ocorre "uma indicação relativa a coisas que são., ou se tomaram ou foram, ou serão; não se limitando a nomeat; mas de determinar (perainei), entrelaçando verbos e nomes" (262d). Este cercar a coisa indicada por meio do nome é o que permite a qualificação da proposição como verdadeira ou falsa, pois é só por essa relação complexa que se pode indicar algo sobre a realidade, na medida em que a determinação predicada cabe o u não à coisa nomeada (263b). Desse modo, verdade ou fals idade não mais se aplicam às partes da sentença, mas apenas à concatenação como um todo, o que elimina a questão da justeza dos nomes tomados isoladamente. A correção depende agora da função que a palavra exerce na concatenação. nomear ou enunciar. Ora, isto vem complementar a crítica que Platão fez às teorias da ling uagem no Crátilo, onde e le havia mostrado que tanto os naturalistas como os convencionalistas não tinham razão. O motivo dessa recusa, olhando-se a partir do ponto de vista apresentado no Sofista, é óbvio: tanto uns quanto os outros trabalhavam com a tese de que todas as expressões significavam de um único modo e apenas se disputava qual era o adequado, se por natureza ou por convenção. Ora, são justamente estas duas teses, a saber, a da diversidade dos modos de significar e a da proposição como um complexo composto pela articulação de diferentes funções semânticas, que são prejudicadas pela teorização proposta por F. Frege em 1879 e depois: embora ele tenha defendido algo como um princípio de composicionalidade semântica para as expressões compostas, o qual parece implicar a tese da complexidade. Todavia, duas teses fregeanas se opõem tanto à diversi-


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Celso R. Braida

dade dos modos de significar quanto à complexidade da proposição. A primeira é a tese de que todas as expressões significativas têm o mesmo tipo de relação semântica, isto é, que todas as expressões lingüísticas, não importando qual seja o seu tipo, têm sentido (Sin n) e sigrtificado (Bedeutung), portanto, que todas as expressões lingüísticas significam do mesm o modo. A segunda é a tese de que as sentenças são nomes complexos, isto é, que as expressões que podem servir para se fazer asserções, que podem ser verdadeiras ou falsas e manter relações de implicação lógica entre si, podem ser tratadas como nomes. A conclusão é que todos os tipos de expressões significativas funcionam , semanticamente, de maneira idêntica. A di ferenciação da contribuição sem ântica de uma expressão se daria apenas por meio da diferenciação do tipo de objeto sigrtificado e por meio da diferenciação do modo de acesso a esse objeto. O que significa dizer q ue a Semântica é dependente da Ontologia e da Epistemologia. Russell , ao contrário, não apenas propos que há m uitos modos de significar, como também defendeu que as sentenças não são nomes. Eu penso que estas duas alegações estão empacotadas na tese de que as "pmposições são essencialmente complexas" .2 A tese da complexidade essencial da proposição, enquanto tese acerca da constituição do conteúdo prop osicional, defendida por B . Russell, não é senão a retomada da tese platônica nos termos da lógica moderna. Esta tese se desdobra noutra. segundo a qual há dife rentes relações ou modos de significação, mesmo no caso das proposições mais simples ou elementares. Com efeito, Russell defendeu que uma sentença i nteira, um nome e um predicado significan1 de modos distintos. Tomando como exemplo a sentença "Sócrates é mortal" , ele nos diz q ue: (... ) a palavra 'Sócrates' . diz-se, significa um ceno homem: a palavra 'mona!' significa uma certa qualidade, c a semença 'Sócrates é mortal' significa um ccno fato. Mas, estes três tipos de significado são inteiramente distimos.. . É muito importante não supor que exista apenas uma coisa que seja significada por ' significado', e que, portanto, exista apenas um tipo de relação do súnbolo com o que é simbolizado. 3

O que me interessa nessa passagem é a últim a frase: "não supor.. . que exista apenas um tipo de relação do símbolo com o q ue é simboliza-


Funções Semânticas e Complexidade da Proposiçiio

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do". Esta relação é o que se classifica comumente como sendo semlintica. O problema que eu quero tratar é o de como explanar esta relação com um aparato conceitual minimamente bem definido. A justificação oferecida por Russell para esta multiplicidade de modos de significação se baseia na distinção entre o papel semântico dos nomes e o dos predicados, 4 a qual, em última instância, funda-se na distinção entre conhecimento por descrição e conhecimento por contato direto. Nessa mesma linha, Russell alega que nomear é diferente de asserir, 5 de onde se segue que o uso de uma sentença para nomear um fato seja distinto do seu uso para asseri-lo. Porém, é a teoria dos tipos lógicos que Russell acentua como a justificação principal: não há (apenas) uma relação de significação enrrc as palavras c o que elas representam, mas existem tantas relações de significação, cada uma

de um tipo lógico diferente, quantos são os tipos lógicos entre os objetos para os quais existem paJavras. 6

Como se pode ver, a admissão de múltiplos modos de significação é uma conseqüência da admissão de que a significatividade envolve a relação da linguagem com algo distinto dela mesma e de que esta relação é articulada de diferentes modos. Portanto, é uma tese essencialmente semântica. Porém, note-se bem, para Russell, o que distingue as diferentes contribuições semânticas das expressões é tanto o modo de remissão àquilo sobre o que se discorre quanto o tipo de objeto significado. Por consegui nte, a justificação da distinção entre diferentes modos de significação parece ser ramo epistemológica quanro ontológica, como em Frege. Nesse ponto eu quero me distanciar de Russell, pois eu penso ser possível recuperar o cerne de suas teses em termos inteiramente semânticodescritivos. Esta via, contudo, foi sugerida pelo próprio RusseU quando, ao distinguir a função de nomeação da função de descrição, ele recorreu a uma outra estratégia que utiliza a distinção das propriedades da expressão em um contexto discursivo, pela qual um nome é distinguido de uma descrição, por entreter diferentes conexões referenciais e inferenciais, no seguinte sentido:


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A primeira coisa a ser percebida sobre uma descrição defi nida é que ela Qão é um nome. ... Um nome é um símbolo simples (i.e., um símbolo que não tem nenhuma parte que seja símbolo).. . Este tipo de frase, "O autor de Waverley", não é um nome porque ele é um símbolo complexo. Ela contém panes que são símbolos. Ela contém quatro palavras, e os significados dessas quatro palavras já estão fixados e eles fixam o significado de " O autor de Waverley" no único semido que esta frase tem um significado. Nesse sentido, o seu significado está já determinado, isto é, não há nada de arbitrário ou convencional sobre o significado desta frase inteira quando o significado de "o", ''autor", "de'' e "Waverley" já tiverem s ido fixados. A esse respeito el.a difere ele "Scott" porque quando você tivesse fixado o sig nificado de todas as outras palavras na linguagem, você não teria feito nada quanto à fixação do significado do nome "Scon". Isto quer dizer que se você entende a linguage m portuguesa, você entenderia o significado da frase "o autor de Waverley" mesmo se você nunca a tivesse ouvido antes, e nquanto que você não entenderia o significado de "Scon" se você nunca tivesse ouvido esta palavra antes, porque saber o sig1úficado de wn nome é saber a quem e le é atribuido. 7

Interessa-me nesta passagem unicamente o fato de Russell fazer a distinção entre nomear e descrever por meio de uma distinção quanto ao modo de funcionamento da expressão a partir de duas formas de remissão. Por um lado, temos uma expressão significativa que independe da significatividade das demais expressões da linguagem a que ela pertence e, por outro, uma expressão significativa que depende inteiramente da significatividade das expressões da linguagem para rer o seu significado determinado. Em termos mais técnicos, te mos expressões que significam em função de uma correlação de remissão a um referente e outras expressões que signi ficam em função de uma articulação de relações de remissão anafórico-inferencial entre expressões significativas de uma linguagem. Denominemos de ' referencial' o modo de remissão entre um nome e aquilo a que este nome é atribuído, e de ' inferencial ' o modo de remissão entre uma expressão complexa e as expressões que a compõem ou que ela exige ou exclui. Desse modo, fica claro que um nome e uma descrição, mesmo que sejam referencial mente equivalentes jamais serão equivalentes inferencialmente. A não ser que se estipule uma regra ou postulado semântico ad hoc.


FunçtJes Semânticas e Complexidade da Proposição

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Ora, se aplicannos este tipo de análise às sentenças, fica claro porque RusseU recusa a sua identificação com os nomes. Pois, de maneira mais evidente ainda que nas descrições, nas sentenças a significatividade das expressões componentes é um ingrediente essencial para a detenninação do significado da inteira expressão. Por conseguinte, a função semântica da inteira sentença, em seu uso assertórico, não pode ser identificada com a função semântica dos nomes, nem sequer com a de outras expressões subsentenciais. Agora, se adotarmos a hipótese de que o conteúdo semântico, com o qual uma dada expressão contribui para o significado de um dado fragmento discursivo, seja determinado unicamente porestes dois tipos de remissão nós disporíamos de uma fonna de analisar e diferenciar os diversos modos de significar. Isto nos proporcionaria um dispositivo teórico capaz de propiciar uma caracterização dos conceitos semânticos que dispensaria o uso de noções epistemológicas e ontológicas. §2. Defendo, portanto, uma explanação semântica da tese da complexidade do conteúdo semântico sentencia! em que a diferenciação da contribuição semântica das diferentes expressões não é feita por meio de noções ontológicas ou epistemológicas. Admitindo-se a hipótese russelliana de que "significar'' tem vários sentidos e de que a inteira sentença significa de um modo diferente do modo como as suas partes significam, resta por explicar corno é que significam as sentenças. Defendo, tendo em vista posições contrárias estabelecidas, que o modo como uma sentença significa não pode ser assimi lado à função semântica de um nome, descrição ou predicável, com base no argumento que de que as propriedades referenciais e inferenciais de uma sentença sempre são distintas das de qualquer expressão subsentencial. Além disso, embora tanto uma descrição quanto uma sentença expressem conteúdos complexos, a complexidade do conteúdo semântico expresso por uma sentença é diferente da complexidade do conteúdo semântico expresso por uma descrição. Além de ser uma concatenação de funções semânticas, a sentença realiza uma função de articulação de, no mínimo, duas funções diferentes que produzem um complexo de natureza diferente. Pois, num caso, a concatenação de nomes e descrições produz novos nomes e descrições,


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enquanto que no outro a ru1iculação de nomes e descrições q ue está por detr.ás de uma asserção e predicação produz uma expressão de outro tipo do daquelas nela articuladas. Não é apenas, então, que uma expressão utilizada para se fazer uma asserção não possa ser identificada com wn nome (ou com uma descdção, predicado, determinador, quantificador, etc.), o que equivaleria à tese da diversidade dos modos de significar. A complexidade essencial da proposição significa que a função semântica da proposição exige para ser realizada a articulação de f unções semânticas diferentes de uma maneira apropriada. Esta era, precisamente, a tese de Platão ao dizer que o " Jogos minimo" era uma união de urna expressão nomeadora e de uma expressão delimitadora. A diferença entre a função semântica sentencia! em relação as suas partes componentes se torna clara quando se aplica a análise das relações de remissão referencial e inferenciaJ. Claramente, uma sentença mantém relações inferenciais com outras sentenças que nenhuma expressão subsentencial pode manLer. Um nome, uma descrição, um predicável, um detenninador ou um quantificador, etc., não podem estar em relação de contradição ou de consequência com uma sentença e, nem mesmo, com outra expressão do mesmo tipo que o seu. Por conseguinte, mesmo que se aceite a tese de que as sentenças designem valores de verdade, fatos ou proposições, ainda assim, do ponto de vista de uma teoria semântico-descritiva. que explana a significatividade como incluíndo tanto os nexos referenciais quanto os inferenciais, a função semântica das sentenças não poderia, de modo algum, ser identificada com a função exercida pelas expressões que a compõem. Considere-se, p.ex., a tese de que as sentenças têm referentes, do mesmo modo que as expressões subsentenciais. Tese esta que é simplesmente a explanação da assimilação da inteira sentença à categoria dos termos designadores. Há duas versões clássicas dessa tese. A primeira remonta a Frege, para quem as sentenças deveriam ser tratadas como nomes complexos, isto é, como expressões com sentido (Sinn) e significado (Bedeutung): Toda sentença assertórica, no que diz respeito ao significado das palavras deve ser considerada como um nome próprio, e seu significado, se tiver um, é ou o verdadeiro ou o falso. 8


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Para Frege, com efeito, as partes subsentenciais realizariam a função de referir por meio da codificação de um sentido. Dessa maneira, as sentenças expressariam um pensamento e refeririam a um objeto. A diferença semântica em relação às expressões subsentenciais seria apenas quanto ao tipo de objeto referido; o verdadeiro ou o falso no caso das sentenças, um obj eto ou conceito no caso das expressões subsentenciais. Na versão de A. Church, esta tese recebe a seguinte fonnu lação onde lransparece o problema das propried ades inferenciais: Para fornecer urna explanação do significado das sentenças, nós adoraremos uma teoria de Frege segundo a qual sentenças são nomes de um cerro tipo. Isto parece não natural à primeira vista porque o uso mais frequente das sentenças (e na realidade aquele pelo qual nós acabamos de as identificar ou descrever) não é simplesmente nomear alguma coisa, mas fazer uma asserção. Todavia, é possível considerar as sentenças como nomes distinguindo entre o uso assertórico de uma sentença, por um lado, c o uso não-assertórico, por outro, como um nome e um constituinte de uma sentença mais longa (tal como são usados outros nomes). Mesmo quando uma sentença é simplesmeme asserida, nós devemos considerá-la ainda como um nome, embora usada de um modo impossível para outros nomes.9 A segunda versão clássica da tese de que as sentenças têm referentes é exemplificada por Tarski e Carnap, e consiste em tratar as sentenças como designadores, porém, não como nomes, mas sim como descrições ou funções sentenciais. O valor semântico continua sendo um objeto, apenas muda o modo como a sentença remete-se a ele, tendo como modelo não mais a relação de referência, mas sim a relação de satisfação. Esse procedimento é derivado da semântica de Tarski, para quem as sentenças são assimiladas à categoria dos predicados complexos. Tanto predicados como sentenças estabelecem condições que os objetos e sequências de objetos satisfazem ou não. 10 Estas doutrinas estão alicerçadas na intuição de que, na base da significatívidade, estaria uma relação de referência ou designação entre uma unidade sintática e uma extensão. Por conseguinte, de alg um modo, todas as expressões sig nificativas deveriam poder ser anal isadas em termos dessa relação primitiva. As diferentes funções semânticas que uma


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expressão pode exercer em um discurso signficativo, a saber, nomeação, deserição, indicação, predicação, asserção, articulação, determinação, etc., têm que, nesse modelo, ou poderem ser reduzidas a essa função primitiva ou, então, mostrarem-se dependentes de expressões que exercem esta função primitiva. Sobretudo, a função semântica das sentença..<;, isto é, das expressões que podem ser utilizadas para a..<;serir. Contra esta assimilação da função semântica das sentenças à função de itens subsentenciais, pode-se levantar as seguintes objeções. Em primeiro lugar, esta assi milação pressupõe que a relação entre uma expressão designadora e o objeto que ela designa, ou a relação entre uma expressão predicativa e aquilo a que ela se aplica, seja previamente inteligível antes que se considere o uso de tais expressões como parte de uma expressão utj[jzada para fazer uma asserção ou dizer alguma coisa, o que significaria a redução das propriedades inferenciais às propriedades referenciais. Em segundo, esta assimilação pressupõe que a relação de referência, seja ela pensada como designação seja como satisfação, pode ser estendida univocamente e sem problemas para a categoria das sentenças, portanto, que a sentença é tão somente uma expressão composta pela reiteração de uma mesma função semântica, o que implica não se distinguir semanticamente a função dos termos componentes. Ora, a distinção entre a posição designativa e a posição predicativa mostra que a função das expressões ocupando tais posições é distinta, o que implica em distinguí-las da função da própria sentença, pois esta se realiza pela articulação daquelas e mais alguma coisa: não é simplesmente a reiteração daquelas. A conclusão a que quero chegar é que a sentença, não obstante poder ocupar o lugar que um nome, uma descrição ou um predicado ocupam, significa de maneira diferente, pois a recíproca não se dá. Uma evidência para isto é o fato de que uma sentença não tem o seu conteúdo semântico determinado apenas pela contribuição que sua ocorrência faz para os contextos sentenciais em que e la ocorre como parte componente, de tal modo que as expressões subsentenciais não podem substituir uma sentença. A admissão de que as sentenças são termos designadores, ou seja, que tal tipo de expressão de algum modo refere a ou designa algo. não implica que e las sejam equivalentes semanticamente às expressões


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subsentenc.iais. Com isso estou a recusar que a diferença entre nomes e sentenças possa ser restrita apenas ao uso e não a forma de sua contribuição à estrutura semântica. Em última instância, o conteúdo semântico sentencial é uma resultante das remissões codificadas nas suas expressões componentes, as quais agenciam a situação e o contexto. 11 Ora, é justamente pelo fato de que os nexos inferenciais (entailment) fazerem parte da sign1ficatividade que uma sentença não pode ser assimilada ao modo de significação das partes subsentenciais. Pois, mesmo que ela seja tomada como um termo designativo, a sentença contribui para os contextos em que ocorre de maneira diferente do modo como o faz um nome, uma descrição ou um dêitico. O proferimento de uma sentença acarreta o agenciamento de fa~ores inferenciais diferentes daqueles acarretados pelo proferimento de um nome ou predicado. A tese da complexidade essencial da proposição adquire agora um sentido inteiramente semântico. Dizer que o conteúdo semântico de uma sentença é um complexo estruturado é dizer que os diferentes componentes sentenc.iais contribuem para a constituição do seu significado de modo diferenciado, não sendo eles redutíveis a uma única função semântica. Portanto, a noção de modos de significação permite a diferenciação semântica dos tipos de contribuição que uma expressão fornece ao complexo articulado de que ela faz parte e, também, permite questionar a generalização seja da relação nome-nomeado para todos os tipos de expressões seja das relações descrição-descrito e função proposicionalsequência de objetos. §3. A noção de modos de significação ou de função semântica tem que ser diferenciada da noção de valor semântico ou de significado. Uma expressão exerce um modo de significação que, dada a situação de proferimento e o contexto discursivo, tem um ou outro significado. A tese a ser explorada é que "sentenças distintas podem expressar uma mesma proposição" e que "uma mesma sentença pode expressar diferentes proposições". Isto porque duas expressões designalivas podem designar o mesmo objeto sem terem a mesma função semântica, isto é, a função semântica pode ser distinta para duas expressões que têm o mesmo valor


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semântico e, vice-versa, uma expressão, exercendo a mesma função semântica, pode ter diferentes valores semânticos. Esta distinção pode ser explicada e compatibilizada com a distinção entre relação referencial e inferencial: não obstante duas expressões serem co-referenciais elas podem não ser co-inferenciais. Além disso, visto que o modo de detectar diferenças inferenciais de duas expressões co-referenciais é pela falha da permutabilidade, e que a posição ocupada, no contexto da sentença, por uma expressão qualquer modifica essas remissões inferenciais, toma-se claro que a relação entre função e valor semânticos não é direta, mas condicionada pela forma de articulação sentencia] ou estrutura semântica Com a noção de conteúdo semântico sentencia!, ou proposição, pretendo indicar aquilo que é expresso ou dito com o uso assertórico de uma sentença. Por meio desta noção os remetimentos ao contexto e à situação, codificados nas expressões componentes e no modo de articulação da sentença, são explicitados e determinados em termos de relações inferenciais (entailment) e relações referenciais (1-ejerence). Dada a asserção de uma sentença, a exposição de seu conteúdo semântico faz a reposição dos vínculos de remissão codificados nas expressões componentes e na forma de articulá-los, de tal modo que fica determinado o que foi dito ou expresso naquele proferimento. O conteúdo semântico, portanto, é o resultado da articulação (i) das propriedades inferenciais de certas prutes e da estrutura da sentença e (ü) das relações referenciais de outras de suas partes constitutivas e coisas ou aspectos do domínio de referência, e (iii) da forma de articulação desses dois aspectos na sentença.12 Tratar os aspectos referenciais e inferenciais como ingredientes complementares da sigrúficatividade significa que ter conteúdo, ou ser uma sentença significativa. é agora pensado como incluindo simultaneamente propriedades inferenciais que a conectam com outras sentenças, como pressuposições e conseqüências de sua asserção, e propriedades referenciais, que a conectam ou com o mundo ou com alguma outra sentença, pressuposta ou conseqüente, explicitamente referencial. A estratégia de tratar estes dois aspectos como constituintes co-originários da significatividade tem, como motivação teórica principal, a lenrativa de urúficar a tese de que não há sentença significativa isolada e a


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tese de que a linguagem pressupõe algo como objeto de remissão. Desse modo, pretende-se resolver um conflito que está por detrás dos principais momentos da discussão semântica desde os trabalhos de Frege: ou a dimensão intensional-inferencial é reduzida e resolvida como um mero reflexo da dimensão referencial-extensional, ou vice-versa. Ambas as partes do conflito compartilham a mesma tese, a saber, a de que é possível esgotar a signlficatividade em termos de uma única dimensão, e disputam qual delas, a referenciaL ou a inferencial, é a primitiva. Todavia, justamente, esta pressuposição comum é que é questionada pela sugestão de Russell. Em suma, de acordo com a teoria da descrição semântica aqui sugerida o conteúdo semântico de uma sentença resulta da articulação das contribuições das suas expressões componentes, as quais codificam nexos semânticos referenciais e inferenciais. Embora o conteúdo da inteira sentença seja composto a partir da significação de cada expressão componente, a função semântica exercida por uma expressão-prute é modificada pelo modo de articulação detetminado pela função semântica das outras expressões-parte que perfazem a inteira sentença. A partir dessa caracterização do conteúdo semântico se pode delinear a formulação de um critério de equivalência semântica em termos dos nexos referenciais e inferenciais: duas expressões são equivalentes quanto ao conteúdo semântico se da aplicação do apru·ato de descrição semântica resultar uma estrutura idêntica de funções e valores, isto é, se a elas for atribuído o mesmo plexo de remissões inferenciais-referenciais ao contexto discursivo e à situação de proferimento. §4. No entanto, resta ainda por explicar a origem da estruturação do conteúdo semântico. Adoto a posição segundo a qual a estruturação do conteúdo proposicional acompanha a estruturação sentencia!, isto é, a estrutura do conteúdo expresso reflete o modo de articulação das diferentes funções semânticas codificadas pelas palavras que compõem a sentença. Desse modo presumo estar retomando a intuição que levou Frege a dizer que o pensamento, o conteúdo expresso por uma sentença, não determina o que é sujeito e o que é predicado e que a linguagem possui meios de fazer vru·iru· a parte do pensamento que será posta como


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sujeito. 13 A estruturação do conteúdo expresso, em última análise, é um produto da sua dicção em uma linguagem; enfim, é a linguagem que impõe uma estruturação ao que é expresso. A noção de conteúdo semântico, d elineada a partir das sugestões de Russell, com efeito, continua sendo conceituada como constituída de indivíduos, relações e propriedades. A introdução na descrição de indicações da sentença que o expressa não muda este fato. Ela é o resultado da exigência referencialista de que todos os termos tenham de alguma forma um tipo de referente. Ora, seguindo as indicações fornecidas na seção precedente, o que importa na especificação do conteúdo semântico é a determinação dos nexos referenciais e inferenciais. Por isso, eu penso que ao indicarmos tais nexos estamos especificando a proposição expressa, e não é preciso acrescentar mais nada. No modelo russelliano a proposição é uma entidade correlata à sentença que a expressa e estruturalmente assemelhada. Na proposta dos defensores da noção de proposição estruturada, os neo-russellianos, a proposição espelha a sentença que a expressa em algum nível de composição semântica. 14 O fato é que, apenas em relação aos termos designadores diretos, a teoria da proposição estruturada abdica da mediação fe ita por uma intensão ou um sentido. Isto, porém, cria uma anomalia na descrição semântica, pois, implica que ce1tas expressões, propriamente falando, sejam consideradas diferentes das outras sem que isso apareça no patamar descritivo ou q ue elas, em certos casos, tenham modificado os seus modos de signi ficar, tal como em Frege. Pelo contrário, se substituímos este vocabulário (expressão, intensão, extensão) por outro, em termos de expressão, conteúdo, função e valor, esta anomalia desaparece. Tanto os designadores diretos como os indiretos, assim como as demais expressões, serão descritos em termos de conteúdo semântico cujos ingredientes são a sua função e o seu valor semânticos no contexto-situação. A minha proposta, portanto, é que restem apenas as expressões lingüísticas significativas e os aspectos e objetos que compõem a situação objetiva. A proposição, o conteúdo expresso , não se constitui como um terceiro elemento, mas, antes, é o modo pelo qual uma determinada sentença é capaz de ser informativa em relação à situação. lsto é,


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a proposição é o entrelaçamento de fatores referenciais e infe renciais codificados nas expressões componentes pelo agenciamento de modos de significação. O fato de que certas expressões sejam referenciais não as destitui de conteúdo inferencial, e o fato de que uma expressão seja inteiramente inferencial não a destitui de signlficativ idade nem a dcsconecta da referencialidade, pois, se ela de algum modo não contribui para a determinação da referencialidade seja do contexto em que ela ocorre seja de uma expressão pruticular concomitante, emão, ela seria dispensável como não-significativa. A motivação principal da semântica das proposições estruturadas é, sem dúvida, a tese de que cettas expressões têm como ingrediente um componente indexicador. defendida por Russell, Kripke e Putnam, 15 não passível de explanação anafórico-inferencial. Uma decorrência natural dessa tese é a idé ia de que nomes próprios e comuns incluem um componente ou marcador semântico da ordem da dê ixis e que, portanto, a significarividade de tais expressões seria dependente da situação de proferimento, isto é, do modo de introdução da expressão na cadeia discursiva, de uma tal maneira que o conteúdo expresso pelas sentenças em que eles ocorrem incluiria aspectos ou elementos da situação. Isto no sentido de que as ocorrências poste riores teriam seu conteúdo semântico determinado pela retomada da pri meira ocorrência. e esta contribuiria para o contexto discursivo com a remissão a um objeto ou aspecto da situação apenas como um mru·cador de um ponto de referência que seria preenchido pelas retomadas anafóricas. §5. Este ponto se desenvolve na tese de que as condições de verdade não se confundem com a proposição expressa. 16 A explanação desta tese supõe que se compreenda três alegações: que a proposição expressa por uma semença não se define em tennos das c ircunsLâncias nas quais a sentença é verdadeira; que teorias do significado não podem adequadamente ser identificadas com reorias das condições de verdade; e que compreender uma sentença não pode ser analisada adequadamente como sendo conhecer as condições nas quais a sentença é verdadeira. 17 Dito de ouLro modo. o isomorfismo sintático entre duas expressões senrenciais não é garantia de um isomorfismo semântico ou de equivalência


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de conteúdo semântico, IR pois também cabe dizer de umá sentença que ela _veicula o seu conteúdo sob um modo de apresentação lingüfstico que pode diferir do modo como outra sentença o faz. As condições de verdade de, p.ex., "Cícero era calvo", se explanam pela determinação de um indivíduo i. em um instante t, fazer parte da extensão de um predicado C. Pode-~e perfeitamente apreender esta condição, portanto, compreender a sentença, que teria a seguinte fonn a, (a/[Calvície]), sem que isso implique a apreensão da proposição expressa.19 Ou seja. do fato de alguém saber o que é para Cícero ter sido calvo não se segue que ele sempre seja capaz de identificar de quem se está a falar e. por conseguinte. em condições de determinar o valor de verdade do que foi expresso. Um mesmo conteúdo semântico, uma proposição expressa, pode ser veiculado por diferentes sentenças. Além disso, se pode mesmo assim dizer que estas sentenças têm diferentes significações, pois, elas expressam o conteúdo de modos diferentes. O que as torna diferentes é o modo lingüístico de apresentação do conteúdo semântico. Considere-se as sentenças "Cícero era calvo" e "Túlio era calvo". Ambas expressam a mesma proposição, (aj[Calvície]), mas o fazem por meios de expressão lingüísticos diferentes, embora as funções semânticas e a estrutura sintátka nelas agenciadas sejam idênticas. Uma sentença como "Ele é calvo" rambém poderia ser utilizada para codi ficar a mesma proposição, não obstante a diferença de função semântica do termo designador. Estas diferenças nas sentenças implicam condições de verdade distint?S. não obstante isso. se trata da mesma proposição, pois. "Ele é calvo'' pode ser usada também para predicar a propriedade da calvície daquele que é chamado "Túüo" e ·'Cícero". A teoria da proposição estruturada se conforma a esta descrição e está ancorada na tese fundamental de que sentenças expressam proposições e que proposições são entidades complexas em que se apresentam as propriedades e relações semânticas básicas. O ponto mais relevante nessa proposta é a formulação mais refinada da noção de valor semântico sentencial que permite distinguir o valor semântico de sentenças com a mesma extensão e com as mesmas condições de verdade (em termos de mundos possíveis). IS[O é feito na definição mesma de proposição, a


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qual inclui uma referência à estrutura sintática da sentença utilizada para expressá-la. 20 Mas, se isso é feito, então, as sentenças acima, apesar de codificarem o mesmo valor semântico, não expressariam a mesma proposição ou conteúdo semântico. Apesar de concordar com a intuição básica da teoria da proposição estruturada, discordo em um ponto crucial. O ponto que defendo é que o caráter de estrutura do expresso é uma conseqüência do fato de que aquilo que é expresso seja um plexo de relações entre um objeto complexo, a sentença, e um outro objeto complexo, a situação objetiva, relativamente a um utente. Não consiste, portanto, em que o que é expresso "mimetize a estrutura sentencia!". 21 Pois, tal metáfora sugere que o expresso subsiste para além da sentença que o expressa e aquém da situação que ele significa. Ao insistir em que o expresso incorpora tanto elementos lingüísticos como elementos da situação, eu quero justamente enfatizar que o expresso se constitui nessa relação de remissão entre duas entidades complexas. Portanto, a descrição da significatividade de uma expressão tem que apresentar estes vínculos; mas. isto de modo algum implica introduzir uma terceira entidade extra. Ora, a distinção entre componentes referenciais e componentes infe renciais já antecipa o caráter não-rnimético e a não-duplicação. As relações inferenciais são determinadas pela linguagem tendo em vista que as expressões formam um sistema e exercem diferentes funções sintáticas e papéis semânticos quando concomitantes: por sua vez, as relações referenciais se determinam a partir da situação. Todavia, a referencialidade, mesmo ali onde ela é direta, faz-se pelo agenciamento daquelas funções sintáticas e papéis semânticos disponíveis na linguagem. Disso resulta que, ao explamumos os fatores lingüísticos-inferenciais-anafóricos-descritivos e os fatores situacionais-referenciais-extensionais de uma expressão, já esgotamos o seu conteúdo semântico, qual seja esse conteúdo, no caso das sentenças. a proposição expressa. A proposição se esgota nos fatores inferenciais e referenciais. nem mais, mas também não menos que estes fatores. Poderia parecer que eu, assim, estou jogando água no moinho do nominalismo e do idealismo lingüístico, mas não. O que eu estou fazendo é garantir a autonomia da teoria semântica e. mais ainda, da dizibilidade. no


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sentido que as libero da tarefa de também nos dar uma ontologia e uma epjstemologia. §6. A hipostasia da proposição. enquanto um complexo entre a sentença e a circunstância de avaliação, é o que dá sentido à tese segundo a qual o objeto mesmo faz patte do que é expresso. Uma vez que esta hipostasia é evitada não mais faz sentido descrever a semântica sentencia! nesses termos. Em vez d isso, é preferível descrever o conteúdo em termos de funções referenciais e inferenciais. Embora ainda se correlacione conteúdo semântico e existência, a descrição semântica de sentenças com termos referenciais diretos se torna inofensiva: o conteúdo de uma sentença singular asserida depende dos vínculos indexicais com a situação, 22 de tal modo que a existência do objeto referido está implicada no que é expresso, no sentido de que se o objeto não existir, o conteúdo expresso se toma incompleto. O que impotta, portanto, é a atribuição da função referencial à expressão designadora, e não dizer que o objeto mesmo fazer patte do que é expresso. A distinção entre fatores referenciais e fatores inferenciais, por conseguinte, permite recuperar as distinções que a teoria das proposições estruturadas quer salvar sem se comprometer com as conseqüências indesejadas. Em vez de conceituar a referência d ireta em termos de inclusão do objeto no conteúdo proposicional penso ser mais correto pensá-la como uma relação de remissão ao não-lingüístico, pois é suficiente conceituar a função semântica dessas expressões como sendo refe rencial pura e simplesmente, no sentido de que a inexistência do objeto impede que elas realizem a sua função no interior da sentença. Dito de modo mais preciso, do ponto de vista da descrição semântica, a contribuição semântica das expressões referenciais é dependente da existência de um objeto. Caso o o~jeto não exista, a senrença fica prejudicada no que se refere ao seu conteúdo semântico. Po11anto, à introdução da noção de remjssão direta a objetos é tão somente para dar conta de alguns tjpos de expressão cujo papel semântico é fazer ancorar a cadeia discursiva em pontos de referência da situação, isto é, cujo papel é remeter o discurso ao não-lingüístico através de uma relação não-mediada por outras expressões lingüísticas. Para usar uma


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perigosa, tais relações constituem o "Você está aqui" dos mapas, o qual não tem sentido nem como inf01mação ou indicação dentro do mapa nem fora dele, mas vale apenas como nexo entre o mapa e a situação para um observador. Uma cadeia discursiva não é um mapa da situação, sem dúvida; não obstante isso, o uso de uma expressão indexadora amarra toda a seqüência discursiva a um ponto na situação fazendo que tanto a seqüência quanto a situação se abra uma para a outra. Assim como o "Você está aqui" não tem conteúdo, além da conexão entre o mapa e a situação, o componente referencial também não tem outro conteúdo senão vincular um ponto da cadeia discursiva a um ponto na situação. Uma vez conceituado assim o conteúdo semântico, a questão acerca do estatuto ontológico da proposição se torna premente. Qual é o estatuto dessa "entidade" que se supõe constituir o conteúdo semântico expresso pelo proferimento de sentenças? A ·alternativa aqui adotada é clara: a significatividade é uma propriedade relaciona! complexa, pois, as expressões a possuem na medida em que façam parte de um sistema de sinais e sejam usadas em uma situação-contexto. As propriedades semânticas são relacionais. Pode-se então dizer que a proposição é uma relação entre uma seqüência de sinais, a sentença, um detetminado contexto de uso, e uma situação. Enquanto tal, a proposição não é um terceiro elemento para além da linguagem e aquém da situação. Este modo de conceber a proposição constitui uma explicação do peculiar estatuto ontológico das proposições: elas não são lingüísticas, mas dependem da linguagem para existir, e não apenas para serem expressas. Esta é uma conseqüência natural da abordagem aqui adotada que toma a proposição como aquilo que é expresso, ou seja, o conteúdo semântico codificado por uma sentença, como sendo constituído tanto pelos nexos referenciais como pelos inferenciais. Nessa proposta o expresso por uma sentença é descrito como uma relação complexa entre as prutes sentenciais e aquilo de que se fala (postas em relação p~los utentes da língua). Esta relação é um complexo nãohomogêneo, visto ruticular itens de diferentes categorias ontológicas e de ser o resultado da junção de nexos referenciais e nexos inferenciais. Ao conceituar a significatividade como relação complexa evita-se a en-


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ti fi cação do que é expresso como algo para além das expressões e aquém da réalidade (Lekton dos estóicos. Satz-an-sich de Bolzano, Gedanke de Frege, Objektive de Meinong, Sacheverha/t de Husserl, Proposition de RusseU, etc.). Esta hipostasiação era feita para garantir a objetividade, a independência em relação ao falante e em relação a linguagem. Todavia. esta independência apenas tem sentido na descrição semântica e a1i a entificação é tão somente um recurso dispensável e perfeitamente substituível pela conceitualização em termos de uma relação complexa constituída de nexos referenciais e inferenciais. O resultado da descrição semântica constitui um objeto complexo abstrato em que os diversos elementos estão por funções e valores semânticos. §7. Iniciei esta exposição com uma retomada da teoria russelliana da proposição com o objetivo de alcançar uma explanação semântica do conteúdo proposiciona1. Defendi que a significatividade engloba tanto as remissões referenciais quanto às remissões inferenciais que uma expressão pode adquirir em um contexto discursivo em uma situação de proferimento, e que se faz necessário distinguir os diversos modos de significação e tipos de expressões. Desse modo alcancei a noção de conteúdo semântico como um complexo estruturado. Complexo este não mais definido como uma articulação de diferentes tipos de entidades referidos pelas expressões componentes, mas, antes, como uma articulação de diferentes funções semânticas. Para resumü em um mote, ao invés de dizer que "a competência lingüística representa nossa habilidade em conectar palavras a sentidos e, assim, a objetos",23 eu penso poder concluir que, antes, a linguagem surge da habilidade de se conectar objetos a objetos e, assim codifi car c expressar. isto é, instituir a significatividade, a qual não é senão o modo de conexão de objetos. Portanto, a distinção requerida não é entre sentença (linguagem) e proposição (sentido) ou fato complexo, como entidades independentes e conectadas por algum tipo de ato. A distinção é entre uma sentença e o que ela expressa,24 isto é, entre a sentença e o seu conteúdo-valor semântico em uma s ituação-contexto. Na si tuação de fala significativa, o que encontramos são três Lipos de entidades: os falantes, o enlomo circundante, e a linguagem. Os objetos


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intermediários, a saber, fatos, estados de coisas, pensamentos, sentidos, conceitos, etc., são agora pensados como recursos teóricos introduzidos pelo analista no momento de explanação da significatividade e, assim, dependentes do discurso semântico que é feito na terceira pessoa. Na teoria aqui defendida, eles deixam de ser entidades e se tornam simulacros teóricos da complexa relação que é a significatividade: a descrição semântica é a exposição da relação complexa cujos elementos são um entorno e uma linguagem, e cuja origem é a ação dos utentes. 25 Notas 1

Platon. (Euvres completes, ed. L. Méridier, Paris: Les Belles Leltrcs, l950. Russell, B. Logic and knowledge, London: Routledge, 1989, p. 76. 3 Idem, pp. 186, 335-6. '' ... the word 'Socrates', you will say, means a certain man; the word 'mortal' means a certain quality; and the sentence 'Socrates is mortal' means a certain fact. But these three sorts of meaning are entirely distinct. . . lt is very important not to suppose that there is just one thing which is meant by 'meaning', and that therefore there is just one sort of relation of the symbol to what is symbolized". 4 Idem, p. 205. 5 Idem, p. 336. 6 Idem, pp. 332-3, 334. "There is not one relation of meaning bctwccn words and what they stand for, but as many relations of meaning, each of a different logical type, as there are logical types among the objects for which there are words". 7 Idem, "The philosophy o f logical atomism", p. 244. 8 Kleine Sclzriften; hersg. I. AngeleiJi; 2. Aufl., Hildesheim: G. Ohns, 1990, Über Sinn und Bedeutung", p. 149: "Jeder Behauptungssatz, in dem es auf die Bedeutung der Worter ankommt, isL also als Eigennarne aufzufassen, und zwar ist seine Bedeutung, falls sic vorhanden ist, entweder das Wahre oder das Falsche." 9 lntroduction to matlzematicallogic, pp. 23-4: "In order to give an account o f the meaning of senrences, we shall adopt a theory due to Frege according to which sentences are names of a certain k:ind. This seems unnatural at first sight. because the mosr conspicuous use of sentences (and indeed the one by which we havejust identified or described them) is not barely to name something but to make an assertion. Nevertheless it is possible to regard sentences as names by distinguishing between the asscrtive use of a senrence on the one hand, 2


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and its non-assenive use, on lhe other hand, as a oame and a constituem of a longer sentencc (jus tas olher names are uscd). Even when a sentencc is simply assertcd, we shall hold lhat it is still a na me, though used in a way not possible for other names." 10 Evans, G. Collected Papers, Oxford: Clarendon, 1985, pp. 80-7, e Brownsrein, "Denoling, corresponding and facts'', Theoria 42 (1976), pp. 12fr-31, sugerem a existência de duas estratégias semânticas para explicar as sentenças como tendo referência: uma fregeana, que assimila as sentenças aos nomes ou designadores; outra tarskiana, que assimila as sentenças aos predicados ou funções. 11 Nos termos de uma teoria semântica formal esta tese é inte rpretada como indicando que '"both emailment and reference have essemial roles to play in the determination ofmeaning in general" (Ch. Castonguay, Meaning and existence in Malhematics, Wien: Springer, 1970, p. 57.) Para Castonguay esta hipótese visava à unificação da teoria dos modelos c da teoria da prova numa teoria semântica capaz de dar conta daquilo que ambas fazem em separado. Esta hipótese também pode ser lida como uma recusa do reducio nismo, seja ao referencial-extcnsional seja ao inferencial-intensional 12 O conteúdo semântico é uma resultante de três fatores: a siluação, o léxico e a estrutura sintática: "lhat to understand a logicallang uage is not, and cannot be, merely to master its syntactical and deductive behavior. One needs to know also how that Janguage and its logic hang together with rcality. In other words, one has to know its model theory" (J. Hintikka, 'Three dogmas of Quine's empiricism", Revtte intemationale de plzilosophie 4 (1997), p. 464). '1'o speak and undcrstand a language, one must know the meanings of its words, and also the semanlic cffects of combini.ng thosc words in given syntaclic configu ratioos. Our knowlcdge of meaning lhus has two components, lhe lcxical and lhe strucrural" (J. Higginbotham, "Elucidations of meaning", Unguistic and plzilosoplzy 12 ( 1989), p. 465). IJ Op. Cit., "13egriffund Gegenstand", KS, p. 173: ''Durch de n Gedanken selbst ist noch nicht bestimmt, was ais Subjekl aufzufassen ist. ( ... ) Man darf aber nie vcrgessen, dass vcrschiedeoe Slitze densclben Gedaoken ausdrücken kõnnen. (... ) Die Sprache hat Minei, bald diescn, bald jenen Teil des Gcdankens ais S ubjckl crscheinen zu lasseo". 14 King, "Structured propositions and semcnce structure", Joumal o.f philosophical logic 25 (1996), p. 495; Soames, " Direct refercncc, propositional altitudes, and semanlic comem", Philosophical topies XV( I), 1987, p. 111; "Substitutivi ty'', in Thomson, J. F. (ed.), On being and saying: essays fo r R. Cartwriglzt, Cambridge: MlT Press, 198 7, p. 75.


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15 No artigo ''The meaning of 'mcaning'", em Mind, Language, and Reality, Cambridge: Cambridge UP, 1975, Putnam argumenta em favor da tese de que expressões classicamente explanadas em termos descritivos teriam componentes indexicadorcs: "Our theory can be summarized as saying that words like 'water' have an unnoticed indexical componcm" (p. 234). (pp. 243, 244, 245) A admissão de um componenle indexicador implicaria admitir a contribuição do entorno, da situação, na constituição da significação (p. 271 ). 16 Recanati, F. Di reei reference: from lwzguage to tlwught, Oxford: B1ackwe!l, 1997, pp. 26-S. 17 Soames, S. Understanding truth, Oxford: Oxford UP, 1999, p. 107. 18 Almog, J. 'The subject-predicate class 1-IT", Nous 25 1991, p. 592. 19 Recanati, Op. Cit., pp. 27, 36. 2 King, J. "Strucrured propositions and sentence structure" (1996). 21 King, Idem, pp. 495, 497, 499; "Struct-urcd propositions and complex predicares", Nous 29(4), (1995), p. 527. 22 O uso da expressão "contexto" para designar as circunstâncias não-lin&>iiísticas da linguagem está generalizado, apesar de esta expressão ser ambígua. Não seguiremos esse hábito, e utilizaremos a expressão ''situação" para designar tais circunstância<; e reservaremos a expressão "contexto" apcna<; para designar as circunstâncias lingüísticas de uma asserção. 23 Yourgrau, P. ''frege on truth and reference", Notre Dame Joumal r~{ Formal Logic 28(1), 1987, p. 208. 24 Boghossian, "Analyticity", in Ha1e, B. & Wright, C. (ed.), A companion lo the Phílosophy of Language, Oxford: Blackwell, 1997, p. 351. 25 Este texto é uma apresentação resumida do argumento defendido nos capítulos II e VI de minha tese de doutorado, A cmnplexidlll.ie do nexo semântico, desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUC-RJ e financiada pelo convênio PICD-CAPES/UFSC, sob orientação do professor Oswaldo Chateaubriand, defendida em Agosto de 2001.

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braida @cfh.ufsc.br


ExPRESSÃO FENOMENOLÓGICA E ONTOLOGIA

· MARcos JosÉ MüLLER Universidade Federal de Santa Catarina

I. Conduzir a experiência pura e, por assim dizer, ainda muda à

expressão pura de seu sentido Depois de tantos anos de literatura crítica, ninguém mais s~speita da originalidade da obra filosófica de Merleau-Ponty. E, talvez, pareça sem sentido eu propor aqui novamente essa questão. Todavia, se eu o faço, não é por que eu tenha dúvida sobre a singularidade da Pbénoménologie de la perception ( 1945). E, sim, porque me interessa saber qual a diferença que essa obra singular estabelece no contexto da fenomenologia. Ora, conforme uma interpretação que não é apenas minha (Waldenfels 1988: 331), o § 16 das Meditações Cartesianas de Husserl (1930) fornece bom parâmetro para se avaliar essa possível distinção da obra de Merleau-Ponty. Afinal de contas, no Prefácio à Phénoménologie de la perception (1945, x), o próprio Merleau-Ponty se refere a esse parágrafo, reconhecendo nele a formulação profunda do projeto de redução, ao qual também a Phénoménologie de la perception deveria se vincular. A frase citada por Merleau-Ponty é a seguinte: (o) ponto de partida [da fenomenologia] é a experiência pura e, por assim dize1; ainda muda, que se trata de le1•ar à expressão pura de seu próprio sentido (Husserl 1936: §16). Ao comentar essa frase, Merleau-Ponty prescreve para a fenomenologia uma tarefa que não é, necessariamente, aquela visada por Husserl. Afinal de contas, para Merleau-Ponry, o sentido que o fenomenó logo deveria exprimir não é o sentido insistentemente sugerido por Husserl, a saber, a evidência do eu cartesiano por detrás de todos os nossos vividos intencionais. Ou seja, ao falar de um sentido da experiência, ao Cupani, A. O. & Mortarl, C. A. (orgs.) 2002. Linguagem e Filosofia. Anais do Segundo Simpósio lntemaciona/ Principia. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 6. Florianópolis: NEL, pp. 98- 106.


Expressiio Fenomeno/6gica e OntoloRia

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qual se deveria exprimir, Merleau-Ponty não tem em vista aquele "pensamento" da·experiência, aquela consciência inextensa a representar o universo das extensões. Mais do que isso, Merleau-Ponty acredita que sequer Husserl tivesse em vista esse tipo de essência. A essência de que fala Husserl, a consciência que Husserl quer exprimir, o meditado cartesiano que Husserl procura retomar não é - para Merleau-Ponty aquilo que está explicitado na Segunda Meditação Metafísica de Descartes (1641). Ao contrário, trata-se daquilo que aparece na Sexta Meditação Metafísica, especificamente naquela passagem em que Descartes confessa aprender com a do1; com a forme, sede, etc., que ele próprio não está alojado em seu corpo, como um piloto em seu navio, mas que, além disso, lhe está conjugado muito estreitamente e de tal modo confundido e misturado, que compõe com ele um tíllico todo. (Descartes 1641, VI-24).

Ora, independentemente de Merleau-Ponty provar que Husserl realmente pensasse assim, o simples fato de ele interpretar aquela frase nesses termos já é razão suficiente para que eu possa inferir o caráter distinto do programa fenomenol.ógico de Merleau-Ponty. Mas. isso não é o fim do meu problema e, sim, o seu começo. Pois, eu ainda preciso saber o que é que Merleau-Ponty tinha em mente quando se referia àquela "experiência pura e, por assim dizer, ainda muda" de que falava Husserl. Quando Merleau-Ponty mencionava a tarefa de "conduzir tal experiência à expressão pura de seu próprio projeto", sobre o que precisamente ele estava a falar? Essas são as questões que, inicialmente, motivaram minha incursão pela teoria da expressão merleau-pontyana. Mais precisamente, essas são as questões de fundo que me fizeram reconhecer uma ontologia escrita nos termos de uma teoria da expressão.Porém, em que senlido, precisamente, a interpretação merleau-pontyana dos conceitos de "experiência pura" e "expressão" sugerem uma ontologia?

2. Retorno à experiência pura No que diz respeito ao conceito de experiência pura, não acredito que Merleau-Ponty o empregasse para referir o inefável. Ainda que seja


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ev idente que Merleau~Ponty estivesse fugindo do conceito cartesiano de sensibilidade - uma vez que. para Descartes, sentir é tão somente um modo de pensar - ; isso não me autoriza a concluir que Merleau~ Ponty tivesse assumido o ponto de vista do bergsonismo (e que não é o mesmo de Bergson), passando a defender uma espécie de coincidência imediata de minha existência com a própria coisa. 1 Se esse fosse o caso, Merleau-Ponty teria de aceitar a sugestão que Bréhier lhe fez, após ter ouvido a sinopse da Phénoménologie de la perception, qual seja tal sugestão, abandonar a filosofia em proveito de uma vida animalesca e silenciosa. ainda que sequer isso fosse garantia de coincidência com as próprias coisas. 2 Merleau-Ponty, e ntretanto, jamais poderia ter pensado algo desse ti ~ po, pois, antes mesmo que Lacan tivesse dito que mesmo o inconsciente está condicionado pela linguagem, 3 .a Phénoménologie de la perception já havia compreendido o caráter, por assim dizer, linguageiro da filosofia. Por isso. ao se propor retornar à experiência pura, Merleau~Ponty não tinha em vista abandonar a linguagem. Ao contrário, para MerleauPonty, tal retorno deveria ser operado no interior da própria linguagem. Dizendo por outras palavras, uma vez que a filosofia já nasce na cultura - c não pode deixar de falar-, é na própria linguagem que o fi lósofo deve retomar o que vivemos de mane ira primitiva. Ora. mas em que sentido a linguagem pode restituir nossa experiência primordial das coisas? Em que termos ela pode se ocupar da experiência pura sem aniquilá-la? Conforme penso, responder a essas questões é, ao mesmo tempo, delimitar um primeiro traço disti ntivo do programa fenomenológico de Merleau-Ponty. Na Phénoménologie de la perceplion, a linguagem não é o contrário da percepção. Nossa existência humana ou linguageira não está apartada daquela existência muda, que são nossas experiências volitiva, afetiva, sensível e motora. Aliás, porque é indissociável de um gesto corporal que a faz existir, nossa existência linguageira é ela própria uma experiência, que cada qual realiza em seu próprio corpo e à medida que ·'modifica" em si o que [estemunha no corpo de outrem. Eis por que não nos deveria surpreender o fato de Merleau-Ponty tratar da fala justamente na parte em que a Phénoménologie de la perception disserta sobre o corpo. Eis por que, no capítulo


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IOl

O c:orpo como expressão e fala, Merleau-Ponly descreve a linguagem como experiência verbal, estabelecendo, dessa forma, o "ponto de contato" entre nossa humanidade (ou simbolismo) e nossa vida perceptiva. E é nesse sentido, precisamente, que Merleau-Ponty interpreta o conceito husserliano de "experiência pura e, por assim dizer, muda": se não há contradição em se "falar" de uma "experiência pura e, por assim dizer, muda", é porque a fala é ela mesma uma experiência e, por conseguinte, a fala compat1ilha com a experiência pura um parentesco "essencial' ou "vivido", como prefere Merleau-Ponty. Mas qual haveria de ser esse parentesco? O que estabeleceria essa "equivalência" entre o falar, o sentir, o desejar, o mover-se e o agir? Em havendo sido preterido o recurso a uma substância separada, na qual essas dimensões vividas estariam como que representadas, o que, em cada qual, as vincularia entre si?

3. Expressividade lingüistica e expressividade em geral Dar conta dessas perguntas é, ao mesmo tempo, esclarecer o segundo conceito veiculado por aquela frase do §16, a saber, o conceito de expressão. Pois, se pudermos dizer como a fala exprime outra experiência, poderemos também dizer o vínculo entre elas duas. De onde se segue que, a linguagem, novamente aqui, comparece não apenas como um meio, mas como o próprio objeto da investigação fenomenológica de Merleau-Ponty. Mas de que maneira, então, a fala exprime? Ao descrever o modo como nossos signos induzem uma significação para além deles próprios, Merleau-Ponty descobriu mais do que a indissociabilidade entre as significações e a fala. Merleau-Ponty descobriu que a ínerência da significação à fala estava diretamente vinculada à maneira como os signos haveriam de se relacionar entre si. Ou, então, Merleau-Ponty descobriu que uma fala não induz seu sentido no exterior, senão à medida que seus signo·S tiverem estabelecido entre si uma relação que a fenomenologia husserliana já havia chamado de fundação (Husserl 1901: 431). Trata-se de um vínculo de implicação que as partes espontaneamente estabelecem, e por cujo meio se apresentam invescidas de uma finalidade interna. A significação seria o nome por cujo


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meio Merleau-Ponty designaria a essa finalidade interna ou totalidade. E a expressão seria o nome da relação que viabilizou aquela totalidade: fundação das partes envolvidas. Ora, refletindo no que havia descoberto, Merleau-Ponr-y apercebeuse de que a fundação entre gestos verbais é apenas uma dentre as múltiplas ocorrências dessa relação no domínio amplo de nossa existência. Respaldado pelos expe~·imentos da Gestaltheorie e da moderna neurofisiologia, Merleau-Ponty compreendeu que, também no âmbito de nossa experiência sensível e motora, dentre outras, aquela relação de fundação podia ser vedficada. Razão pela qual passou a empregar o termo expressão para designar não apenas a emergência de uma significação lingüística, mas a emergência de toda e qualquer totalidade no âmbito de nossas experiências: fenômeno. Nesse sentido, a expressão não se confundiria com aquele traballio derivado, que realizamos quando falamos de forma prosaica, simplesmente repetindo um emprego de signos já estabelecido. A expressão propriamente dita , diz-nos Merleau-Ponty em 1952, tal como a obtém a linguagem, retoma e amplifica wna outra expressão que se lW>stra na "arqueologia" do mundo percebido (Mearleu-Ponty 1952- 60: 123-3). Precisamente, no âmbito de nossa ,e xperiência perceptiva, a noção de expressão designaria o milagre que as coisas mundanas revelam para nós por nosso corpo, isto é, a manifestação de um interior no exterior, a manifestação de um excesso para além do que está dado no espaço; e antes mesmo que nossos comportamentos simbólicos a essa manifestação pudessem representar (Merleau-Ponty 1945: 369). No âmbito de nossas experiências simbólicas, por sua vez, a noção de expressão designaria a operação primeira, por cujo meio nosso corpo instaura os signos em signos, infunde-lhes o expresso pela simples eloqüência de seu arranjo e de sua configuração, implanta um sentido no que dele carecia e, longe de se esgotar no instante em que acontece, inaugura uma ordem,fimda uma instituição ou uma seqüência ... (Merleau-Ponty 1950a: I IO-li). Empregada em um sentido genérico, enfim, a noção de expressão designaria a potência irracional que cria significações e que as comunica, e da qual a fala é apenas um caso particular (MerJeauPonty l945: 221).


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Eis aqui um segundo Lraço distintivo da fenomenologia merleaupon-tyana. Em certo sentido. Merleau-Ponty toma a sério àquele uso da linguagem em que se diz, metaforicamente, que a fisionomia de um rosto, o esquecimento ou perda de uin objeto, ou o horizonte avermelhado no entardecer de um dia, exprimem mais do que se pode encontrar em cada uma dessas ocorrências empfricas. Pois, para Merleau-Ponty, não se trata ali de uma metáfora. A expressão é a produção de um excesso que se deixa reconhecer nas partes de nossa experiência. embora a nenhuma delas ela possa ser reduzida. A expressão é a operação ontológica primitiva, a maneira originária, por cujo meio, a experiência dá a conhecer fenômenos. E enconlramos aqui o sentido peculiar, nos termos do qual MerleauPonty interpretou a última parte do dito de Husserl, mais precisamente, aquele em que Husse.rl se propõe conduzir à expressão pura a nossa experiência muda. Trazer à expressão - na interpretação de MerleauPonty - é mais do que expor algo, é realizar o próprio l!xpresso. Enquanto que, para Husserl, exprimir de forma pura é tão somente apresentar o modo ideal por cujo meio algo possa ser compreendido corno totalidade ou fenômeno, para Merleau-Ponty, exprimir de forma pura é desencadear a manifestação da própria coisa, é engendrar o fenômeno ele próprio. O que me permite concluir que a temática da expressão, em MerleauPonty, tem um sentido eminentemente ontológico; e é por isso que a Phénoménologie de la perception é antes de tudo - e segundo o próprio Merleau-Ponty- um tratado de ontologia (Merleau-Ponly 1960c: 230). A fenomenologia merleau-pontyana se separa da fenomenologia 'de Husserl e passa a ter identidade própria.

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- . (J960c) Le visible etl'irwisible. Paris: Gallimard, 1964. Wafdenfcls, Bernhard. ( 1998) "Lc paradoxe de l'cxprcssion chez MerleauPonty", In: Merleau-Ponty, Maurice. Notes de cours sur l'origine de la géométrie de Husserl. Suivi de Recherches sur la phénoménologie de Merleau-Pomy. Paris: PUF, 1998, p. 331.

Notas 1

Ao menos no primeiro capítulo Matéria e Memória, Bcrgson não deixa dúvida ao leitor. Ao descrever a experiência como universo de imagens, ele tem primeiramente em vista o conteúdo de nossa experiência. Ou, ele tem primeiramente em vista a coisa que se oferece como prévia, primordial, anterior a toda percerção. A coisa - que eu alinjo e m meu campo de imagens- é como uma paisagem, na qual ingresso com o olhar. Ela já está lá, sem que eu precise construi-la. Isso não quer dizer que ela seja uma coisa-em-si, distinta de tudo o que aparece. O fato de Bergson propô-la sem referência a um sujeito (que a constituiria) visa apenas mosrrar que é a partir dela mesma que nós a apreendemos. Nossa percepção faz-se a partir da coisa ou, então, a percepção em estado nascente está do lado da coisa. Mas, ao mesmo tempo, a coisa é relativa à nossa percepção; acrescema Bcrgson. Ela não existiria se nela nós não pudéssemos nos colocar. Há aqui um paradoxo, que ilustra a tensão que habita nosso universo de imagens, c na forma do qual e le se apresenta: a coisa é anterior à percepção, mas não existe senão para a percepção. Há uma relação recíproca que, entretanto, Bergson não soube precisar. (Vide Bergson 1897: primeiro capítulo). 2 Em 23 de novembro de 1946, no debate que sucedeu à exposição que .\1erleau-Ponty fez para a Sociedade Francesa de Filosofia, BréhierBréhier procura inferir da proposta merlcau-pontyana de "retomada de nosso contato com o mundo da percepção" uma conseqüência desabonadora. Segundo Bréhier, para não ser contraditória, a doutrina de Merleau-Ponty deveria permanecer nãofommlada, apenas vivida como um retorno ao imediato. Todavia, continua ele, em que medida uma doutrina somenre vivida é ainda uma filosofia? (MerleauPonty 1946: 71 ). Ao que Merlcau-Ponty responde dizendo: "(s)eguramcncc uma vida não é urna filosofia. Acreditava ler indicado de passagem a idéia de que a descrição não é um retorno ao imediato; não se volta a e le. Trata-se simplesmente de saber se nos propomos compreendê-lo. Parece-me que buscar a expressão do imediato não é trair a razão, é, ao contrário, trabalhar para o seu engrandccimemo. (. .. ) É começar a luta entre a expressão e o expresso, é aceitar a condição de uma reflexão iniciante. O que nos encoraja é que não


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Marcos José Müller

há vida pura e absolutamente inexpressa no homem, é que o irrenetido só começa a existir para nós através da reflexão. Entrar nessas contradições(... ), parece-rue, isto faz prutc do inventário crítico de nossa vida, que é a filosofia." (Merleau-Ponly 1946: 71-2). Em 23 de maio de 1946, em uma e ntrevista concedida a Maurice FleurcntFieurent, Mauricc (c publicada em Carrefour, 92, p. 6), Merleau-Ponty resume sua proposta de trabalho (apresentada na Phénoménologie de la perception) dizendo: "(a) filosofia tem por tarefa fazer-nos reencontrar esta ligação com o mundo que precede o pensamento propriamente diro" (Mcrleau-Ponly 1935-51: 66). 3 "A linguagem é condição do inconsciente( ... ) O inconsciente é a implicação lógica da linguagem: com efeito, não há inconsciente sem linguagem" (Lacan 1970: 14). rnjmullcr@clh.ufsc.br


IDENTIDADE EM SOFIA

lNflS

CoNTEXTos MonAIS ALBORNOZ STETN

Universidade Federal de Goiás

1. Introdução. Seguindo a argumenração de Quine conlra a viabilidade da lógica modal. procurarei mostrar as tentativas, em primeiro lugar, de Rudolf Carnap e, em segundo lugar, de Ruth Barcan Marcus e Dagfinn F~IJesdaJ de superar as dificuldades apontadas por Quine para a construção de um cálculo de predicados com operadores modais. Willard van O. Quine defende a concepção de que os ·sentidos' de um termo, de uma sentença ou de um predicado não são algo 'objetivo' e aposta em que a análise de uma linguagem de forma meramente extensional possa resolver problemas de comunicação e permitir aos interlocutores ou cientistas um acordo sobre os objetos tratados. Assim, pode-se dizer que Quine segue o ideal positivista de desenvolver uma linguagem objetiva que favoreça a comunicação e impulsione a c iência. Para uma linguagem ser puramente extensional, deve caracterizar-se por permüir 'substituições salva veritate', ou seja, a ela deve poder ser aplicado o "princípio de permutabilidade salva veritate". O ideal quiniano é uma linguagem livre de contextos nos quais não é alcançável um acordo sobre a quais objetos se está fazendo referência, livre de contextos nos quais as expressões evocam objetos cuja identidade é indeterminável, para os quais não há critério de identidade. Uma linguagem livre de tais contextos permitiria uma maior clareza sobre o que se está falando , sobre quais os compromissos ontológicos que se assumem. Em tal linguagem, a referência a objetos, apesar de inescrutável de um ponto de vista exterior à própria Linguagem, permitiria decidir sobre a permutabilidade de expressões lingüísticas salva veritate. Cupani, A. O. & Mortari, C. A. (orgs.) 2002. Linguagem e Filosofia. Anais do Segundo

Simpósio InternaCional PrinCipia. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 6. Florianópolis: NEL, pp. 107- 21 .


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Sofia Inês Albomo~ Stei11

Defender a tese da extensionalidade significa condenar como obscurã uma boa parte da linguagem ordinári a, toda aquela parte que lrata de intensões. Para justificar a defesa de tal tese, Quine procura mostrar que é factível 'eliminar' idiomas intensionais sem causar prejuízo à atividade cicnúfica, que é a atividade que tem em vista ao procurar 'libertar' a linguagem de suas 'obscuridades'. Para tanto, distingue entre contextos lingüísticos puramente referenciais e comextos aos quais falta transparência referencial, aos quais ele chama de opacos. Entre os contextos, ou sentenças, não-transparentes encontramos as citações, as 'construções de crenças' (belief constructions) e os contextos modais. A argumentação de Quine para mostrar a falta de clareza de idiomas intensionais percorre duas vias. Por um lado, Quine parte ao ataque dos crirérios de identidade para objetos intensionais e conclui ser impraticável a identificação desses objetos, e, portanto, inadmissível a utilização deles em uma linguagem que pretende ser clara e isenta de paradoxos. Para demonstrar esse fato, o autor se utiliza da análise da quantificação em contextos opacos. Por outro lado, Quine insisre na defesa da tese da extensionalidade por considerar mais claros crirérios empíricos de identificação de objetos, que localizam esses espaço-temporalmente, do que outros tipos de critérios, como o da descrição de propriedades essenciais ou acidemais, cuja aceitação é exigida de quem, segundo Quine, defende a viabilidade, por exemplo, da lógica moda!. Para Hintikka, a crítica de Quine à crença na capacidade de identificação de intensões pressupõe um preconceito há muito arraigado entre os filósofos analíticos, o preconceito de que não é factível 'sair da linguagem' para tratar dela. Em oposição a essa visão chamada por ele de ' universalisra', Hintikka afirma ser possível dar passos para 'fora' do discurso. Hintikka defende que se pode construir 'modelos semânticos realistas' que explicam as relações ontológicas entre a Linguagem e seus objetos, sejam esses espaço-temporais ou não. Esse otimismo com relação à possibilidade de determinação da referência de objetos e dos critérios de verdade de sentenças, incluindo as que contêm operadores modais, rambém é compartilhado por Ruth Barcan Marcus e Dagfinn P!11llesdal.


Identidade em Cmuextos Modais

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2. Contextos referenciaJmente opacos Para analisar a questão da admissão ou exclusão das modalidades (necessidade, possibilidade e ouu·as), Quine afirma, já em seu artigo de 1943 "Notes on existence and necessity", ser essencial esclarecer primeiramente noções lógicas e semânticas, tais como a de identidade e quantificação e as de designação e sigtúficado. Segundo Quine, um dos princípios fundamentais da identidade é o de "permutabilidade salva veritate". Porém. existem exemplos de sentenças significativas nas quais os nomes considerados idênticos não podem ser substituídos sem que se altere o valor de verdade da sentença. Nesses casos, segundo o autor, o que ocorre é que o nome não é usado de forma ·puramente designativa', isto é, não é usado apenas para 'designar' um objeto, mas também é dada impottância à forma do nome em questão. Um exemplo comum de uso não-designativo de um nome é o de nomes entre aspas. Nesses casos, o nome entre aspas designa o próprio nome e não um objeto. Da mesma maneira, em enunciados que contêm atitudes proposicionais, os nomes que estão no contexto da atitude proposicional não estão sendo usados de forma 'puramente designativa'. No enunciado, dado como exemplo por Quine no artigo citado acima, Filipe acredita que Tegucigalpa fica na Nicarágua, se 'Tegucigalpa· fo r substituído por 'Capital de Honduras' , sendo que a identidade Tegucigalpa =Capital de Honduras é verdadeira. o enunciado inicialmente verdadeiro transforma-se em um enunciado falso. Esse erro na substituição de um nome por um outro que designa o mesmo objeto mostra que o nome no contexto da atitude proposicional não é usado de forma ' puramente designativa'. É importante enfatizar a relação de dependência que existe entre ocorTências ' puramente designativas' de nomes e os quantificadores, por exemplo, o existencial. Assim como não é factível substituir um nome por outro sem alterar o valor de verdade da sentença se esse nome não estiver em uma posição puramente designativa, não é factivel operar a


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'generalização existençial' sobre sentenças nas quais os nomes não estão em posição puramente designativa. Segundo Quine, nenhuma variável entre aspas pode ser corretamente ligada por um quantificador, seja existencial ou universal. Também em contextos modais precedidos pelas expressões ·necessariamente' ou 'possivelmente', a quantificação leva a erros de substituição. O que demonstra, segundo o autor, que nomes nesses contextos não estão em posições puramente designativas.

3. Camap versus Quine Em Meaning and Necessity, de 1947, Rudolf Carnap explica que Quine, assim como Frege, percebe que, nos contextos não-extensionais, os nomes não referem de forma ordinária. Porém Quine, diferente de Frege, não afinna que o nome passa a referir uma entidade diversa da ordiilária, e, sim, afirma que, em contextos não-extensionais, o nome não refere, ou meUwr, não designa nenhuma entidade. Apesar de Quine evitar o uso da quant.ificação em contextos nos quais ocorrem falhas na aplicação do "princípio de permutabiljdade salva veritate", evitando assim a chamada por Carnap ..antinomia da relação nominal", a teoria de Quine, segundo Carnap, restringe de forma indesejável o uso de variáveis quantificadas em contextos intensionais, como os que estão presentes em sistemas de lógica moda!. Carnap discorda de Quine em relação à impossibilidade de quantificação em contextos modais, isto é, em relação à impossibi lidade de ligar por um quantificador uma variável inserida em tal contexto. Segundo Camap, se se considerar que uma expressão tem tanto uma extensão quanto uma intensão, então não se torna necessário restringir o uso da quantificação em contextos intensionais, paniculam1ente, em contextos modais. Porém, é importante fri sar que, apesar de Carnap discordar de Quine em relação à possibilidade do uso da quantificação em tais contextos, Camap insiste em que é essencial para o desenvolvimento da lógica moda! responder às objeções elaboradas por Quine. Em cartas de outubro de 1945 e janeiro de 1946. Quine admite. por sua ve7 . c:u~ Carnap, em seu manuscrito intitulado Extension wul In-


Idem idade em Contextos Modais

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tension, que seria publicado sob o título de Meaning and Necessity em l947, desenvolveu um meio convincente de conciliar a lógica modal com a quantificação. Mesmo assim, Quine vê nessa conciliação algumas sérias desvantagens. Segundo a interpretação de Quine, as variáveis em uma linguagem moda! só têm in tensões como valores, e, portanto, os valores 'extensionais' de variáveis desaparecem nesses contextos. Contra essa interpretação, Carnap argumenta, em Meaning and Necessity, que é errôneo afirmar que, devido aos valores das variáveis em contextos modais designarem intensões, as extensões desaparecem do universo da linguagem. Segundo a visão de Carnap, não é possível uma expressão, seja ela um nome ou um predicado, possuir apenas uma extensão e não, uma intensão ou vice-versa. Carnap defende que, na transição de uma linguagem extensional para uma linguagem moda!, entidades extensionais tais como indivíduos e classes não 'desaparecem' simplesmente. 1 Tanto em uma linguagem extensional quanto em uma intensional, todo designador (símbolo individual, predicado ou sentença) tem intensão e extensão. Ao falarmos, em uma linguagem moda!, acerca da intensão de um designador, este mantém a sua ~xtensão. No artigo "Reference and Modality", publicado na coletânea From a Logical Point of View, em 1953, que contém partes do artigo "Notes on existence and necessity" (1943) e partes do artigo "The problem of interpreting moda! logic" ( 1947), Quine reafirma a pertinência de sua análise dos contextos modais (especialmente os regidos pelos operadores de necessidade e possibilidade estritos, como na lógica modal de Lewis) como sendo 'contextos referencialmente opacos' . Segundo Quine, a idéia geral das modalidades é baseada: . .. na suposta noção de 'analiticidade' como segue: um enunciado da forma "Necessariamente... '' é verdadeiro se e somente se o enunciado componente governado por 'necessariamente· é analítico, e um enunciado da forma ''Possivelmente... " é falso se e somente se a negação do enunciado componente que 'possivelmente' governa é analitico. 2

Segundo a análise de Quine. o esclarecimento da noção de 'necessariamente' pela noção de ·analiticidade' não elimina o problema da


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opacidade referencial dos contextos modais. pois mesmo se uma oração iniciada por ' necessariamente' fosse traduzida para a forma" ·p' é anaütica", os nomes integrantes da oração continuariam presentes em um contexto referencial mente opaco, no caso, por estarem entre aspas. Quine alcança a conclusão de que a opacidade referencial dos contextos modais resulta de que as características de ser necessariamente ou possivelmente de certa forma não são afim1adas de um objeto, porém, da maneira pela qual um objeto é referido. 3 Essa interpretação da opacidade em contexros modais leva Quine a afirmar que a quantificação nesses contextos só seria lícita se as variáveis quantificadas fossem variáveis de objetos intensionais, isto é, variáveis que representassem os sentidos dos nomes (objetos intensionais em Frege) ou conceitos individuais (obje!Os intensíonais em Carnap e Church). Todavia, a ontologia de objetos intensionais traz consigo uma grande desvantagem, pois o princípio de individuação de objetos intensionais se assenta nas noções de sinonímia e analitiddade, ambas consideradas por Quíne pouco claras e mal definidas.

4. Três graus de envolvimento modal Em "Three Grades of Moda! Involvemem", de 1953, Quine inicia afirmando que todos os operadores modais, tais como ·possibilidade', 'impossibilidade', 'não-necessidade', podem ser definidos com o uso do operador de necessidade. Esse fato remete à conclusão de que tudo o que for afirmado fi losoficamente acerca desse operador trará consequências também para os outros. Nesse artigo, Quine distingue entre três tipos de usos possíveis da idéia de necessidade na lógica: (a) Pode-se interpretá-la como 'predicado semântico', que pode ser atribuído a nomes de enunciados e representado pelo símbolo ' Nec': (b) Pode-se pensá-la como 'operador de enunciados ', que é anexado a enunciados formando enunciados modais e que pode ser representado pelo símbolo 'nec'; (c) Por fim, pode-se anexar o operador de necessidade a sentenças abertas, que contêm variáveis e. portanto, precisam de um quantificador universal ou existencial para terem sentido.


Idem idade em Comextos Modais

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Quine chama a esses três tipos de aplicações da idéia de necessidade de ''três graus de aceitação da idéia de necessidade em um sistema lógico ou semântico", sendo que (a) seria o mais fraco e (c) o mais forte. Assim como em artigos anteriores, em "Three Grades of Modallnvolvement", Quine define um enunciado como 'puramente referencial' se os nomes nele puderem ser permutados por nomes que referem o mesmo objeto sem alteração do valor de verdade do enunciado. Por sua vez, um enunciado ou contexto é 'referencialmente opaco' se transforma a ocorrência de um nome. que em outro contexto era referencial, em uma ocorrência não-referencial. A necessidade interpretada como predicado semântico (grau mais fraco de aceitação da necessidade) pode ser inserida em contextos regidos pelo princípio da ex.tensionalidade, pois esse predicado é atribuído a uma sentença entre aspas, citada, que pode ser parafraseada. Se adotamos, seguindo um exemplo dado por Quine. as letras 'n', <g' e 'f' respectivamente para '9', '> ' e '5' e o símbolo de concatenação de Tarski para unir símbolos, podemos u·aduzir Nec(9 > 5) por Nec(n- g-f). Essa paráfrase mostra que, nos diz Quine, o predicado semântico de necessidade está anexado a um nome de um enunciado e não a um enunciado composto. A paráfrase, pmta.nto, esclarece o papel do enunciado semântico de necessidade. Já os contextos criados pelo operador de enunciados ' nec' não podem ser parafraseados de forma a seguirem a princípio de extensionalidade. Adeptos da lógica moda!, segundo Quine, podem não achar importante a preservação do princípio de extensionalidade em todos os contextos, já que, na linguagem ordinária, há diversos contextos que não seguem esse princípio; porém, alerta Quine, a suspensão da vigência do princípio de extensiona.lidade leva a que seja preciso revisar a lógica dos termos singulares. A lógica moda!, segundo a análise de Quine no mesmo artigo citado acima. fortaleceu-se a partir de uma confusão feita por Whitehead e Russell no Principia Mathematica entre a implicação material e a relação de


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implicação lógica. Para sanar essa confusão, Lewis fez a distinção entre o símbolo da implicação material ·~'e o símbolo da implicação estrita ·~'. Para definir a implicação estrita, Lewis utjlizou-se do operador de necessidade ' nec': p ~q

=nec(p

~

q).

Quine argumenta que, ao elaborar essa definição, Lewis transformou o predicado 'é válido' , que era anexado a um nome de um enunciado. que expressava um atributo desse enunciado, em um operador de enunciados. Com essa análise, Quine pretende mostrar que a lógica modal desenvolveu-se a partir de equívocos de interpretação da implicação Lógica e de como representá-la. Q1line considera imponante a conversão ou interpretação do operador 'nec' como predicado ' Nec' principalmente devido a cinco razões: 1. com essa conversão, acaba a nossa inclinação em condenar o sinal de implicação ·~·, isto é, e m considerá-lo ambíguo; 2. é no nível semântico e de teoria da prova que faz mais sentido falar da validade lógica, e a va.l.idade lógica, por sua vez, é a melhor explicação da necessidade como predicado semântico; 3. ao usar 'Nec' (predicado semântico) anexado a uma citação fica evidente que o contexto é referencial mente opaco; 4. ao adotar 'nec · (operador de enunciados) pode-se ficar rentado a quantificar sobre esse operador, o que levaria a problemas de substiruição das variáveis ligadas; 5. pode-se aplicar ' nec ' sobre ' nec' (fazê-los interagir), enquanto não é factível aplicar 'Nec' sobre 'Nec', pois 'Nec' se aplica sobre nomes e "Nec(9 > 5)" é um enunciado.4 No entanto, frisa Quine, apesar dos benefícios que a conversão de ·nec' em ' Nec' possa trazer, a interpretação da necessidade como predicado semântico não permite a construção da lógica modal como ela se apresenta ordinariamente. A necessidade como predicado semântico permite apenas construir uma lógica modal 'escassa', sem as complexidades da lógica modal ordinária, sem todos os 'princípios de interação de operadores moda.is' que integram essa última. Apesar de Quine oferecer uma interpretação aceitável da idéia de necessidade que possibilita seu uso em contextos extensionais, isso não possibilita a quantificação sobre comextos modais. Quando se aplica a


Identidade em Contextos Modais

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quantificação sobre enunciados modais, tais como " nec(x > 5)", não é possível mais ver a ocorrência 'x' como referencialmente opaca, isto é, como se referindo à fonna de denominação de objetos, enfim, a nomes. O '9', que no exemplo "nec(9 > 5)" se encontrava no lugar do 'x', podia ser visto como refencialmente opaco, enquanto uma variável quantificada tem, em geral, que apontar ou designar um objeto para poder ser substituída pelo nome ou no mes desse objeto. Entretanto, 'x', nesse contexto, além de não apontar para um objeto, não nos informa qual nome devemos escolher para substitui-la. Isso mostra que, apesar de a manutenção do valor de verdade de enunciados modais depender 'da maneira pela qual um objeto é referido', ou seja, da referência a nomes, a simples quantificação sobre variáveis em contextos modais não mostra como essa escolha entre nomes deve ser feita. Segundo Quine, pode-se concluir três observações importantes da análise da aplicação da quantificação sobre enunciados modais: 1. a quantificação em contextos modais não é totalmente absurda se são feitos ajustes nas definições contextuais dos termos singulares envolvidos; 2. ao aplicar a quantificação em contextos modais, a identidade entre objetos só pode ser afirmada se fo r vista como necessária; 3. para a quantificação nos comextos modais fazer sentido, é preciso que se defenda, ao mesmo tempo, o essencialismo aristotélico, isto é, que uma coisa tenha alguns atributos essenciais e outros acidentais.

S. Marcus versus Quine Em " Modalities and intensionallanguages" (1961), R. B. Marcus parte do princípio de que, apesar da lógica modal não ser isenta de problemas. vale a pena defendê-la, pois através dela é possível analisar aspectos importantes da linguagem ordinária, tais como o discurso sobre a causalidade, sobre as obrigações, os. enunciados de crenças etc. Segundo Marcus, o único princípio extensional presente no ' túvel dos indivíduos', no qual ocorrem relações de identidade, seria o princípio da indiscernibilidade entre idênticos, que seria equivale nte ao princípio da identidade. Marcus aceita, com ce11as reservas, que a re lação de identidade '1' seja equivalente à relação de indiscernibilidade entre


Sofia Inês Albomoz Stei11

ll6

indivíduos · Ind'. A relação de identidade seria equivalente, portanto, ao princípio extensional:

x Ind y

= df

(lj))(ifJX eq i{Jy).

Apesar dessa equivalência com um princípio extensional, cujo valor de verdade depende da observação, a relação de identidade é sempre tautológica ou analiticamente verdadeira, isto é, necessária. Afirmar uma identidade verdadeira é sempre afirmar uma identidade necessariamente verdadeira, cuja verdade não pode ser colocada em dúvida pela observação. Pode-se, por engano, afirmar uma relação de identidade que é falsa, o que equivale, segundo Marcus, a não afirmar uma identidade em absoluto, porém, se afirmamos uma identidade verdadeira, afirmamos uma identidade que é sempre, em qualquer contexto, verdadeira, cujo valor de verdade não se altera com nenhuma observação empírica de propriedades dos objetos. Dessa forma, mesmo se se quantifica em contextos modais, qualquer problema com relação à pe1mutação de nomes é evitado, pois só é pennitida a permutação de nomes que mantêm uma relação de identidade necessariamente verdadeira. Já para Quine, em "Reply to professor Marcus" ( 1962), Marcus confunde o uso substitucional com o uso objetual das variáveis, pois quer que a quantificação substitucional exerça o mesmo papel exercido pela quantificação objetual, ou seja, o papel de propiciar a referência a objetos. Marcus precisa inu·oduzir a noção de nome próprio (com o sentido de ·designador rígido· kripkiano) para que seja possível designar inequivocamente um objeto e para poder substituir variáveis em contextos modais por nomes, o que é pressuposto acontecer na quantificação substitucional. Porém, se a referência a objetos for feita por variáveis, e não por nomes, como acontece na quamiticação objcrual, elimina-se o problema de Ler que pressupor a existênci a de nomes próprios. Se, diz Quine, observamos as variáveis como designando objetos e não nomes, então não precisamos mais nem discutir o que seria um nome próprio nem, tampouco, afirmar que a ide ntidade é necessária. Variáveis estariam por objetos, e nomes apenas expressariam maneiras de como aprendemos ou estipulamos contingentemente falar desses objetos referidos pelas variáveis.


Identidade em Contextos Modais

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Enfim, ao afirmar que a identidade é necessária, Marcus pressupõe que-se saiba exatamente quando dois nomes designam o mesmo objeto. Para tanto, é preciso que os nomes façam uma referência direta e inequívoca a objetos. Essa exatidão na determinação da referência de nomes é posta em dúvida por Quine. Segundo ele, além de ser contingente o fato de dois nomes serem usados para designarem um mesmo objeto, não temos como ter certeza se dois nomes designam de fato um mesmo objeto. 6. Ff111esdal versus Quine F0Uesdal, em '"Quine on Modalily", de 1969, parte da interrogação sobre a possibilidade da quantificação em contextos modais. Questiona se a crítica de que sobre contextos opacos não é possível quantificar porque não se pode determinar acerca de que objetos se está falando nesses contextos é decisiva. F011esdal lembra que tanto as soluções de Church quanto de Carnap para a quantificação em contextos modais acabam dando razão à crítica de Quine, pois aceitam que só é possível quantificar em contextos referencialmente transparentes. Diferem de Quine ao admitir imensões como objetos do donúnio das variáveis quantificadas. Entretanto, dessa forma, caem novamente no criticismo quiniano, que afirma serem insuficientes os critérios de identidade para intensões. Segundo F0llesdal, além de Church e Carnap, outro importante defensor da lógica modal que procurou responder às críticas de Quine à lógica modal foi Hintikka. Porém, assim como C hurch e Carnap, Hintikka. ao levar em conta as restrições à essa lógica apresentadas por Quine, não conseguiu elaborar uma scmâmica para ela que definisse com clareza acerca de qua.is objetos se está falando, enfim, não conseguiu mostrar que é possível quantificar em contextos modais, pois não conseguiu mostrar quais são os objetos referidos pelas variáveis nesses contextos. Assim como Marcus. Ffijllesdal argumenta que as críticas de Quine têm que estar erradas, isto é, em contextos modais tem que ser possível fazer referência a objetos extensionais e não meramente a intensões.


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pois, se forem corretas, toda tentativa de explicar a fotma de enunciados de causa, contrafactuais, de crença, de dever etc. deve ser abandonada. Seguindo os pa<;sos de At1hur Smullyan e Marcus, entre outros, F9lllesdal afirma ser possível defender a lógica moda! dos ataques de Quinc fazendo a diferenciação entre nomes próprios e descrições defmidas. Ao fazer isso, fica claro, segundo ele, a indi spensabilidade do essencialismo para a lógica modal. Para ele, essencialismo significa uma "combinação de transparência referencial e opacidade extensional". Isso é o mesmo que: "seja o que for que seja verdadeiro de um objeto, é verdadeiro dele independente do modo como se faz referência ao objeto (transparência referencial), e, entre os predicados verdadeiros de um objeto, alguns são necessariamente verdadeiros dele, outros só acidentalmente (opacidade extensional)". 5 Ao distinguir nomes próprios de descrições e definir descrições contextualmente, passa a ser factível, segundo F11Sllesdal, referir objetos com nomes próprios em contextos modais de forma transparente, sem que seja preciso saber quais os predicados que se aplicam a esses objetos. De fato, para que sejam admissíveis substituições salva veritate em contextos modais, tem que haver um modo de referir inequivocamente objetos nesses contextos e isso só pode ser feito com o que F~lles ­ dal chama de nomes genuínos. Descrições não podem ser consideradas nomes genuínos, pois sua referência não é univoca, não independe do contexto, depende das propriedades conhecidas do objeto. O operador modal de necessidade, se anteposto a variáveis, exige que essas sejam substituídas por nomes genuínos, que não referem conforme o contexto. Só isso permite a quantificação em -contextos modais. Porém, F11Sllesdal, no artigo de l986 "Essencialism and Reference", alerta para a confusão feita por alguns autores (incluindo Quine) entre a exigência de que variáveis em contextos modais sejam substituídas por nomes genuínos e exigir que saibamos quais as propriedades essenciais dos objetos referidos por esses nomes para podermos identificá-los. Isto é, F11Sllesdal alerta para a confusão entre exigir uma posição essencialista dos defensores da lógica modal para que os operadores modais tenham sentido e exigir uma posição essencial ista para que se saiba a que objetos os nomes referem. Ele sustenta que é o primeiro essencialismo que é


Identidade em ColllexJos Modais

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condição da defesa da lóg.ica modal e não o segundo. Um defensor da 1ógica modal precisa sustentar que os objetos tenham propriedades essenciais e acidentais, porém não precisa sustentar que são as primeiras que identificam os objetos.

7. Conclusão Além do artigo "Intensions Revisited", de 1977, que foi o primeiro sobre lógica modal depois de 1962, e de alguns poucos artigos como "The Elusiveness of Reference", de 1983 e "Promoting Extensionality", de 1994, nos quais trata dos problemas da permutação de nomes em contextos modais, Quine ainda escreveu muito sucintamente sobre o tema no livro The Pursuit ofTruth, de 1990. Quine parece ter se desinteressado pela discussão em torno dos problemas gerados pela lógica moda!. Para ele, a lógica modal é dispensável e as expressões modais são usadas na linguagem ordinária com um sentido bem diverso daquele dado a elas pelos essencial istas. Diz Quine: Nós modiflcamos uma sentença com o advérbio 'necessariamente' quando é uma sentença presumida aceitável para nosso interlocutor e afirmada somcmc como um passo em direção a considerações abertas ao debate. Ou nós escrevemos 'necessarian1ente' para identificar alguma coisa que se segue de generalidades já expostas, como em adição a novas conjeturas ou hipóteses. 6

Apesar dos defensores da lógica modal verem um sentido objetivo na noção de necessidade, defenderem que os objetos têm essencialmente algumas propriedades, Quine comesta que seja esse o sentido dado cotidianamente ao termo. Assim, além de questionar a doutrina do essencialismo, Quine questiona a aplicabilidade da lógica modal à interpretação da linguagem natural. Diz ele: No seu uso cotidiano como eu o descrevo, 'necessariamente' é uma observação de segunda ordem que rem como objetivo que a sentença seja julgada verdadeira por todos os envolvidos, pelo menos no que concerne ao argumento. Um papel de segunda ordem semelhante é desenhado então para ' possivelmente' . Já que ele simplesmente siglúfica 'não necessatian1ente não', 'possivelmente' marca a sentença como uma que


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as crenças ou pressuposições ativas das panes envolvidas não excluem éomo falsa. Graça-; à nossa enonnc ignorância, o reino da possibilidade assim concebido é muito mais vasto do que o da necessidade. É o domínio de todos os nossos planos e conjeturas, todas as nossas esperanças e temorcs. 7

Portanto, mesmo que. aceito o essencialismo, apesar das dificuldades em identificar quais as propriedades que devem ser chamadas essenciais, aceita a existência, mesmo que problemática, de nomes genuínos, resta ainda a questão central sobre a real aplicabi lidade da lógica modal para além dos cáJculos Jógicos, com domínios pré-fixados. Isto é, o argumento usado tanto por Marcus quanto por F!21Uesdal de que as modalidades são usadas cotidianamente e por isso não podem ser simplesmente ignoradas é posto em xeque pela anáüse quiniana, que conclui que o uso de ' necessariamente' e ·possivelmente' não compromete os falantes da ünguagem natural com nenhum tipo de essencialismo.

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Notas 1 Meaning

and Necessily, p. 200. ''Refcrence and Modality", p. 143. 3 Idem, p. 148. 4 Quine esclarece que se se insistir em aplicar 'Nec' sobre 'Nec', o que antes era tratado como enunciado passa a ser tratado como nome. s "Quinc on Modality", p. 184. 6 Pursuit ofTruth, p. 73. 7 Idem, p. 74. . 2

sia-;tein @uol.com.br



Seção 3 Filosofia do Conhecimento



AcERCA DA NATUREZA DO EXPERIMENTO CIENTiFico ALBERTO CuPANJ

Universidade Federal de Santa Calarina

De acordo com Lacey (1999), o experimento é a mais clara evidência de que a ciência moderna está orientada pelo valor social conferido ao controle da Natureza, dominante na sociedade moderna. Embora os projetos e resultados particulares da pesquisa nem sempre estejam explicitamente ordenados a pennitir um tal controle, na interpretação de Lacey existe uma "afinidade eletiva" entre a ciência que aborda o mundo mediante uma estratégia "materialista" (isto é, que considera essenciais os aspectos quantificáveis da realidade), e a possibilidade de submeter os objetos e eventos, incluídos os humanos, a controle A veri ficação da tese de Lacey (objetivo que não me proponho aqui) implica, entre outras tarefas, uma análise da índole do experimento científico. Para essa análise tratarei de contribuir neste trabalho. Partindo do que podemos denominar visão tradicional do experimento, mencionarei a seguir as p1incipais modificações introduzidas nessa visão pela pesquisa sociológica e a reflexão filosófica das últimas décadas. Irei referir-me depois a alguns aspectos problemáticos da situação experimental para concluir sugerindo que a nova visão do expe rimento não desautoriza a concepção tradicional.

1. Uma visão tradicional Conforme Mario Bunge, o experimento é "aquela classe de experiência científica em que se provoca deliberadamenre alguma mudança e se observa e interpreta seu resultado com alguma final idade cogniliva". O experimento "ao enriquecer o conjunto de fatos que ocorrem naturalmente, é capaz de revelar profundos e inesperados aspectos das coisas" (Bunge 1969: 819 e 853). Cupani, A. O. & Mortari, C. A. (orgs.) 2002. Unguagem e Filosofia. Anais do Segundo Simpósio Internacional Principia. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 6. Florianópolis: NEL, pp. 12&-45.


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No experimento o pesquisador modifica certos aspectos do sistema estudado (variáveis independentes) e aprecia a correspondente mudança nos valores de outros aspectos (variáveis dependentes), tendo como referência um sistema de controle que pode ser o mesmo sistema estudado, quando não submetido à expe rimentação. De qualquer modo, o experimento c ientífico, à diferença do experimento do artesão ou do técnico, se define pela sua intenção cognitiva, mediada pelo controle, referente tanto às condições de produção como às de observação do sistema estudado. Este último controle é parúcularmcme necessário se o processo de observação perturba o objeto, porém em geral sempre faz falta, porque o que observamos são fenômenos, não faLos completamenrc objetivos e independentes dos nossos modos de observação... (id., p. 830)

O controle que caracteriza todo experimento pode ser passivo (quando nos limitamos a registrar ou merur estímulos) ou ativo (quando variamos a sua intensidade), direto ou indireto. A classe de controle depende da exatidão que se pretende bem como da natureza das variáveis selecionadas. 1 Em todo caso, o contro le é sempre parcial - lembra Bunge -,embora em certos casos seja "quase total" (quando inclui a produção dos objetos ou eventos, como pru1ículas aceleradas ou grupos sociais), e a situação experimental é sempre uma simplificação do real. Ao serem mais simples, os fatos experimentais são mais tratáveis que os naturais. Jumo com a seleção e a simplificação, a situação experimental implica o isolamento do conjunto form ado pelo objeto, o pesqujsador e os meios de estudo, com relação a fatores extrínsecos que possam interferir. O isolamento consiste na neutralização, ou pelo menos o monitoramento, das interferências, devendo existir também meios de detectar distúrbios ou "contaminações" dos resultados devidos aos próprios procedimentos experimentais (Bunge 1983: 106). Um experimento tem como resultado, tipicamente, estabelecer uma correlação enu·e fatores variáveis. Uma vez encontrada, a correlação deve ser contudo investigada, mediante novos experimentos ou contribuições teóricas, para determinar se é real ou fortuita. De todo modo lembra Bunge - um bom experime ntador nunca confia cegamente nos


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resultados experimentais. Sua consciência crítica deve ser particularmente alerta no caso dos experimentos cruciais, ou seja aqueles de que se espera que permitam decidir inequivocamente entre duas hipóteses rivais. Apesar de sua óbvia importância na ciênc.ia empírica, Bunge salienta que o experimento não é a "base" nem a "instância reitora" da c.iência, porque "todo experimento é uma busca de resposta a uma pergunta originada num corpo de idéias". O experimento é um meio, não um fim da ciência (1969: 853). Se a importância do experimento não deve ser exagerada, ela não pode ser tampouco subestimada. Em particul ar. Bunge acha infundada a suposição de que haja disciplinas científicas que não possam proceder experimentalmente. Citando exemplos de astronomia, geologia, paleontologia, arqueologia e sociologia experimentais, reafinna sua confiança no experimento como instmmento de progresso em qualquer campo cientifico (1983: 11 1). 2. Modificando a noção do experimento Na concepção tradicional, o experimento é entendido como um recurso particularmente eficaz para comprovar a validade de determinadas idéias, especificamente hipóteses rel2tivas a correlações enLre variáveis.2 Estas correlações são supostamente manifestações de regularidades empíricas ou de leis propriamente ditas, vigentes no mundo material. Dessa maneira, o experimento é, por assim dizer, uma situação particular em que verificamos eventos reais de caráter geral. Tais eventos ocorrem, também supostamente, com independência do nosso interesse em conhecê-los e da experimentação mediante a qual desvendamos sua maneira de operar. Dessa concepção do experimento diferem as análises feitas nas últimas décadas do século XX por filósofos e sociólogos da ciência, conforme as quais o experimento deve ser visto antes de mais nada como uma produção artificial de eventos a partir dos quais se obtém, por extrapolação, resultados que aspiram a ser reconhecidos como universalmente váljdos. O caráter artificia1 do objero experimental de estudo havia sido


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apontado inicialmente por Bachelard ( 1934) ao se referir à "fenomenotécnica", isto é, à produção de fenômenos inéditos, própria da ciência experimental (a água "quimicamente pura", v.g., não existe espontaneamente na Natureza). Ao reconhecimento da artificialidade dos fatos experimentais, a sociologia do conhecimento surgida na década de 1970 acrescentou o interesse pelas relações sociais pressupostas pela atividade experimental. Sob o olhar sociológico, a ciência experimental pareceu tornar-se "humana, demasiado humana", à medida em que diversos esrudos (tanto relativos a práticas científicas contemporâneas quanto a episódios históricos) registravam o caráter precário e ambíguo dos elementos com que os cientistas trabalham e as "negociações" mediante as quais lhes atribuem um significado que, aos poucos. passa a ser visto como "objetivo" e "universal". Advertiram-se também aspectos problemáticos em duas caraterísticas do experimento até então consideradas como pacíficas: a sua reproduzibiüdade e a aplicação dos seus resultados fora do âmbito experimental. No campo filosófico, o papel do experimento foi também repensado por relação a questões tais como a do "realismo científico" (ou seja, a discussão sobre a existência das entidades teóricas), a da relação entre observação e teoria, e a do vínculo entre conhecimento e poder. A combinação da pesquisa historico-sociológica e a reflexão filosófica tem conduzido a frisar (ou modificar a percepção de) certos aspectos do experimento científico. Sem pretensão de ser exaustivo, menciono os seguintes: 1. Os experimentos não servem tão somente para o teste de hipóteses e teorias. Eles permitem a observação ativa do objeto ou evento estudado, a construção de modelos, a imitação de fenômenos naturais, e o desenho de instrumentos para prolongar os nossos sentidos (Gooding et alii 1993: XV), chegando até p.roduzir o que não existe na Natureza. Por outra parte, são cada vez mais numerosos os experimentos virtuais realizados mediante o computador, em que é possível extrair conclusões sobre o comportamento de objetos em circunstâncias que não podem dar-se naturalmente (p. ex., a ausência de magnetismo) (Galison 1987: 265). 2. Os expe1·imentos não "c01rem" necessariamente em paralelo ao


Acerca da Natureza do Experimento Ciem(fico

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raciocínio teórico, ou puramente subordinados a este último. Os experimentos podem mudar o rumo de uma pesquisa, ao oferecer resistências, condições ou possibilidades não antecipadas. Existe, em todo caso, uma cultura experimental e uma cultura teórica, não independentes, porém nem sempre coincidentes.3 3. Os expe1imentos não têm um final exatamente previsível, um ponto terminal inerente. A experimentação é geralmente um longo e acidentado processo, em que a obtenção de um dado resultado envolve a decisão, por parte dos pesquisadores, de considerar que o que foi conseguido até o momento COlTesponde ao procurado. 4 4. As conclusões experimentais não deco1Tem de um simples raciocínio dedutivo, nem têm o caráter de uma demonstração. Os experimentos, mesmo os aparentemente simples, são situações complexas, em que o alcance de determinado resultado (v.g., a comprovação de uma dada hipótese) depende de materiais que opõem resistências, apareU10s que devem ser confiáveis e estar devidamente calibrados, pressuposições que podem ser revisadas, habilidades manuais e intelectuais a serem possuídas pelos pesquisadores, a recíproca compreensão destes últimos, e indefinidos acidentes de percurso. 5. O resultado esperado (p.ex., detectar a presença de uma substância. ou a ação de um influência física), costuma ser descrito como a identificação de um "sinal" contra o "pano de fundo" (background) do funcionamento do(s) aparelhos(s) e da situação experimental toda, descartando as interferências ("ruídos"). Pelas razões antes mencionadas, essa identificação é geralmente dificil e freqüememente controversa. Nem sempre é fáci l para os cientistas concordar sobre os resultados ou sobre o procedimento empregado. 6. As dificuldades que acabo de referir são destacadas pela literatura sociológica, para a qual a imagem u·adicional do experimento deve mais aos livros de Metodologia do que a História e à Sociologia da Ciência. Para o enfoque sociológico,5 um experi mento está marcado pelas •·negociações" dos agentes quanto ao "significado" dos dados, a confiabilidade dos aparelhos, etc., negociações essas que por sua vez respondem aos interesses (intelectuais e sociais) dos agentes. O papel da retórica e o exercício do poder são igualmente relevantes nesta perspectiva


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de análise do experimento. As teorias são, sob o olhar dos sociólogos, guias incompletos da ação, que devido à complexidade da experimentação inclui , além de escolhas e decisões, a perseguição de "objetos" temporários.6 comparações, " intuições", etc. 7. Tudo isso é simplificado e tornado "lógico" nas narrativas que racionalizam a posteriori um experimento.7 Uma vez conseguido o acordo sobre o s ignificado de wn experimento, a padronização cada vez maior dos elementos utilizados, a aquisição e disseminação das habilidades requeridas, e o "encapsulamento" (blackboxing) dos instrumentos e práticas (vale dizer, sua utilização sem questionar sua origem ou funcionamento), oculta - segundo os sociólogos- os aspectos problemáticos que todo experimento sempre encerra (e que vêm à tona em momentos de crise, revisão ou novos resultados). 8 8. O " local' dos experimentos é algo complexo. Não consiste apenas no lugar físico em que são realizadas as atividades que o caracterizam, mas numa série de espaços (físico, social, de manipulações, mental, computacional, lilerário ... ) que se cruzam e nos quais diferentes habilidades são exercidas (Gooding, in Pickering 1992: 75). 9. As aplicações tecnol6gicas dos resultados experimentais fora do espaço experimental não são mecân icas. Elas supõem sempre certa modificação ou adaptação das circunstâncias para que aquele resultado se verifique (Latour 1983).9 Por sua vez, a artificialidade dos fenômenos de laboratório sugere dúvidas sobre a universalidade au·ibuída aos resultados teóricos do experimento (v.g., o estabelecimento de uma lei) (Cartwright 1999). 10 10. A realização de um experimento não supõe apenas a obediência a regras metodológicas e a aquisição de certas habilidades, senão que também insere a atividade experimental no mundo sócio-cultural dos agentes que nela .intervêm. O contexto social influencia assim a interpretação dos resultados. Essa dimensão do experimento torna-se "invisível" uma vez que o consenso sobre os resultados e sobre o procedimento correto foi alcançado. Tudo parece dever-se então aos recursos técnicos e teóricos (N.ickles, in Gooding et aJii 1993: 302).


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3. Alguns aspectos problemáticos O "fechamento", condição do experimento A noção tradicional do experimento inclui , como vimos, o isolamento do conjunto formado pelo objeto. o pesquisador e os meios de estudo, com relação às influências externas. Trata-se do requisito de "fechamento" (closedness) abordado de forma patticularmente esclarecedora nos trabalhos do filósofo Hans Radder (1988 e 1993). Seguindo parcialmente idéias de V. Wright (ExplanaJion and Understanding), Radder caracteriza o experimento pela sucessão de estados de sistemas fechados, entendendo por "sistema fec hado" aquele cujos estados (ou aspectos dos mesmos) não têm, em momento algum, condição antecedente suficiente que seja exterior ao sistema. Corrigindo a v. Wright, Radder f risa que a intervenção humana é necessária, não apenas para iniciar um processo experimental, mas para manter o curso dos eventos até a finalidade pretendida, sendo assim o processo todo, e não apenas o seu início, algo artificial. Nesse proccdimcmo, o isolamento nunca pode ser total, e responde sempre à sua descrição teórica e à questão norteadora. Trata-se portanto de um isolamento relativo e aproxinuzdo, cuja noção não é óbvia. Radder propõe o seguinte critério geral de fechamento: O sistema experimental S está fechado durante o intervalo [t, t'], se e somente se as seguintes duas condições foram satisfeitas: (1) as situações experimcnLais 'relevantes' dentro de S que ocorreram de fato, não têm condições suficientes fora de S; (2) foram satisfeitas as condições fora de S que são necessárias para que ocorram as situações experimentais dentro de S que tomam possível -de modo reproduzível -uma resposra à questão teorética colocada ( 1988, p. 69).

Mediante o fechamento, o experimento aponta, por assim dizer, para a sua reproduzibilidade, condic ionada pela descrição teórica, a qual estabelece o que deve ser reproduzido. Radder enfatiza a distinção entre a reprodução efetiva de um experimento e a sua reproduzibilidade. Esm úJtima dá ao experimemo seu sig nificado não meramente local, mas


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universal (relativamente a wn domínio teoricamente definido). Um experimento reproduzível u·anscende o seu próprio contexto, em direção a novas possibilidades de reprodução que, se realizadas, aumentam a plausibHidade da sua universalidade (Radder 1993: 333). Cabe contudo perguntar-se se os experi mentos são repetíveis, pois como o próprio amor reconhece, "decidir se um experimento foi reproduzido ou é reproduzfvel pode colocar um delicado problema prático"(l988: 62).

A reproduzibilidade dos experimentos Segundo o sociólogo Harry Collins, em seu conhecido livro Changing Order (1985), a reproduzibílidade dos experimentos é menos óbvia do que se pensa, constituindo antes um axioma do que uma questão de prática, porque a repetição de um experimento via de regra não é fácil. Mais ainda: os experimentos dificilmente funcionam a primeira vez e, na verdade, difici lmente funcionam em geral, vale di zer que sempre exige m esforço, paciência e criatividade (id., p. 41). Collins dedica seu Livro a ilustrar as dificuldades implicadas pela idéia e a prática de experimentos replicáveis. Já no plano conceptual o valor confirmatório de um experimento reproduzfvel é proporcional a certa diferença, de tempo e de condições de realização. entre o primeiro caso e os segui ntes. Por outro lado, a repetição de um experimento nunca consiste na aplicação de uma sorte de receita. Mesmo nos casos mais fam il iares, ex ige a posse de habi lidades que não decorrem apenas da formação geral do cientista, e que amiúde requerem a transmissão pessoal do know how entre os cientistas. Ora, uma vez que o resultado foi alcançado, dá-se um processo de "cristali zação'' do experimento, que oculta as resistências e dificuldades vencidas ao longo das tentativas (muitas delas, mal sucedidas) para fazer com que o experimento funcionasse, dando-lhe a aparência de um processo guiado por um algoritmo (id., p. 76). Não obstante a sua importância, as dificuldades anteriormente citadas são para Collins menores que o que denomina ''regresso do experimentador". Trata-se do problema suscitado pela correção de um experimento, problema presente já na ciência "normal", porém que se acentua na "extraordinária". 11 Com efeito, o funcionamento "correto", tanto do aparelho quanto do expcrimentador é definido pela participação nos


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resultados considerados corretos. pois indicadores teóricos a priori não são eficazes, conforme Collins. No entanto, ocorre que os resultados são considerados "corretos" na medida em que resultam de procedimentos (e agentes) considerados corretos. Esse paradoxo deve ser rompido em algum momento se a replicabi tidade há de ser considerada como obtida. E a ruptura termina ocorrendo, não em virtude de regras, nem pelo reconhecimento da "natureza das coisas", mas por negociações entre os cientistas sobre o valor do que estiveram realizando, negociações essas em que fatores circunstanciais (como o prestigio de um pesquisador) podem ter um papel decisivo. As observações de Collins têm, segundo o aucor, a finalidade de mostrar, a propósito da atividade experimental, que as conclusões científicas não derivam da metodologia nem -muito menos- da Natureza, senão que a ciência (como a linguagem e a percepção que nela usamos) é soc ial "de cabo a rabo". São os experimentos um recurso próprio da ciência empírica?

Uma análoga reivindicação enconu·amos em Leviathan and lhe Air Pump. Hobbes, Boyle and the Experimental Life (1985). o conhecido livro dos sociólogos Steven Shapin e Simon Schaffer. Para os autores, longe de ser wn procedimcnro exigido pela atitude científica moderna, o método experimental teria surgido na Inglaterra como resultado do desejo de certos cientistas, principalmente Boyle, de contribuir para o restabelecimento da ordem social, depois da Guena Civil , mediante um tipo de conhecimento que conduzisse ao consenso das crenças. Lembrando que a prática experimental era na época objeto de crítica e até de desdém, Shapin e Schaffer indagam a razão de que essa prática terminasse por impor-se. Para eles, o procedimento inventado por Boyle reduzia a discussão das questões científicas ao fornecer "fatos" (matters offact) que pareciam estar fora de dúvida. Eliminavam-se as questões " metafísicas" substituindo-as por aquelas que, em razão de conduzir à geração de fatos, tonavam-se decidíveis. Típica, nesse sentido, teria sido n Lransformação da noção de ''vácuo", que passou, de designar o espaço literalmente vazio, a se referir a um espaço sem ar, o espaço criado pela bomba utilizada por Boyle. A consagração do procedimento experimental ocorreu, conforme


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Shapin e Schaffer, mediante a combinação de três tecnologias. Uma delas era a material, implicada pela construção e operação dos aparelhos (no caso analisado, a bomba de ar). Ela teve por função disciplinar os sentidos humanos, submetendo a percepção, o pensamento e a ação a determinados modos de funcionamento. Por outra parte, para serem eficazes os experi mentos deviam gerar crenças compartilhadas, de onde a sua realização em laboratórios, ou na Sociedade Real rece ntemente criada, ante um público numeroso, embora selecionado. 12 A maneira mais eficaz de reforçar a credibilidade da nova mcrodologia consistiu na divulgação por Boyle dac; experiências realizadas tão minuciosa e graficamente que o leitor se tornasse uma "testemunha virtual" das mesmas. Esta tecnologia literária, que incluía desenhos realistas, apelava para uma linguagem direta e informava sobre en-os e falhas cometidos, teria sido decisiva para "constituir" os fatos experimentais e a confiança nos mesmos (id., p. 60). Surgiu assim uma comunidade moral de experimentadores, possibilitada por uma tecnologia social consistente no cultivo da maneira "adequada" de proceder para se alcançar o conhecimento. Ela incluía convenções tais como o caráter público dos experimentos e seus resultados, a distinção entre hipóteses, fatos e questões metafísicas, e sobre tudo, o caráter indiscutível dos fatos. (.id., p. 165). Estes últimos, vistos doravante como algo "dado", em vez de produzido, eram aquilo sobre o que se podia estar certo, base de consenso e promessa de que a comunidade científica fosse o modelo da sociedade, reduzindo o 1isco de subversão. Como já foi adiantado, o método experimental suscitou críticas, entre as quais a de Hobbes, analisada por Shapin e Schaffer. Interessado também na ordem social, Hobbes opunha-se ao proceder de Boyle por diversas razões: questionava o uso da bomba (cujos defeilos apontava e cujos resultados interpretava diferentemente), as noções fundamentais (como "vácuo"), a distinção entre fatos e hipóteses metafísicas, etc. Para Hobbes o maior defeilo do procedimento experimental era que não representava verdadeira "filosofia natural'' (ciência, na época). Esta última exigia, para ele, demonstrar efeitos a partir de causa e vice-versa. Além de não constituir um autêntico saber, a prática experimental pres5upunha para Hobbes uma comunidade sectária, apesar das suas


Acerca da

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pretensões de ser um corpo de investigadores tolerantes e críticos entre si. Partidário de uma organização politica em que o Estado regulasse a vida social, Hobbes teria desconfiado da comunidade dos experimentadores, cuja independência do poder civil a transformava numa possível nova clerezia. Em última instância, as discrepâncias entre Boyle e Hobbes teriam sido de natureza sócio-política, e o triunfo do método experimental teria representado, para Shapin e Shaffer, o triunfo de uma determinada estratégia política que contribuiu para a ligação, hoje tradicional e para muitos óbvia, entre a ciência e a sociedade liberal (id., cap. VIII).

São objetivos os resultados experimentais? Em seu muito citado livro Laboratory Life (1979), o sociólogo Bruno Latour e o epistemólogo Steven Woolgar questionaram o caráter objetivo dos conhecimentos estabelecidos experimentalmente. A grande divulgação deste livro me exime de uma apresentação mais detalhada. Baste lembrar que seus autores procederam a uma sorte de estudo etnográfico dessa "estranha tribo" que são os cientistas em seu meio, o laboratório, interpretando todas as atividades ali desenvolvidas a partir da noção de "inscrição". Como resultado, o laboratório todo acabou sendo visualizado como um "sistema de inscrições" possibilitado por diversos "mecanismos de inscrição", e a "vida de laboratório" mostrouse como abrangendo as atividades de simbolizar, codificar e arquivar, bem como as habilidades de ler, escrever, discutir e persuadir, todas elas endereçadas à produção de artigos em que se sustenta a existência de fatos novos. Confo1me a análise de Latour e Woolgar, os fenômenos naturais supostamente "descobe1tos" pelos cientistas são na verdade construfdos por eles, como resultado da manipulação das "inscrições". Quando os enunciados gerados a partir destas últimas podem ser aceitos sem "modalização" alguma (isto é, quando se passa de, por exemplo, "supõe-se que a substância x tem a propriedade y" para "x tem a propriedade y"), entende-se que o enunciado refere-se a um "fato". A rigor- argumentam os autores - é a persuasão negociada sobre a validade dos enunciados que cria a impressão de haver " objetos", que parecem ser a razão


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dos enunciados. Cabe ainda observar que a interpretação das inscrições aceita como consensual é sempre uma entre ouu·as possíveis (op. cit., p. 241). Apesar de que Latour e Woolgar afirmam não pretender negar a existência dos fatos científi cos mas apenas corrigir ("desconstruír") uma visão e rrada da ciência. a sua tese, se aceita, eqüivale a negar a noção tradicional de que os fatos transcendem a subjetividade pessoal e social.

O experimento como exercício de poder Embora o experimento moderno tenha sido visto, desde F. Bacon, como uma situação em que impomos nosso poder sobre a Natureza, esse caráter é frisado pelo filósofo americano Joseph Rouse em seus livros Knowledge and Power (1987) e Engaging Science (1996). Devido a que se trata de um autor menos conhecido, permito-me uma exposição algo mais detalhada das suas idéia..'i. Rouse destaca o caráter prático da ciência contra uma suposta sobrevaloração da teoria na filosofia da ciência tradicional. É no laboratório (e não no observatório) onde percebemos a natureza da ciência moderna como forma de manipular informativamente a realidade. Apoiando-se em idéias de Kuhn, Hacking e Heidegger, Rouse assinala que os experimentos criam "fenômenos" (no sentido de regularidades manifestas) que são discerníveis e repetíveis em circunstâncias apropriadas, mediante determinadas tecnologias. A experimentação (vale dizer, a tecnologia que a possibilita) permite-nos introduzir uma ordem manifesta cada vez maior no mundo. Tudo isso aconteceria numa atividade dirigida pelo "ver em tomo" descrito por Heidegger em Sein wtd Zeit. Conforme Rouse, o laboratório não deve ser pensado como lugar de teste de teorias (como se estas últimas fossem algo universal, já pronto, e o teste, uma situação particular), mas como um local de fabricação de "micromundos fenoménicos", sistemas de objetos e eventos construídos sob condições conhecidas e isolados de outras influências, de modo a serem manipulados e a que seja possível seguir o seu curso. Os experimentos obedece m segundo Rouse a urna lógica situacional, e o laboratório não se reduz a um lugar físico, senão que inclui o contexto de equipamento!: e a rede de relações humanas que torna possível sua atividade


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específica. É mister reparar em que existem "alinhamentos epistêmicos", seqüências organizadas de elementos (incluindo sujeitos), adaptados, estendidos, deslocados, etc., para conseguir determinado efeito informativo (1996: 185). Esses alinhamentos são análogos, segundo Rouse . aos aJinhamentos sociais que permitem o exercíc io do poder. Este último não deve ser concebido como algo possuído por indivíduos ou grupos, mas como aJgo que circula ou vincula os agentes e as suas atividades, tal como foi proposto por Michel Foucault. As táticas de controle e manipulação dos fenômenos de laboratório são assi m parte de uma rede de relações de poder da sociedade moderna. A ciência atua sobre (e reforça) as formas de poder vigentes que nos modelam como sujeitos e como agentes. Rouse crê detectar uma analogia entre os procedimentos de laboratório e as técnicas de poder soci al descritas por Foucault (disciplina do corpo, conhecimento minucioso dos sujeitos, etc.). Em ambos os casos, observam-se procedimentos tais como o "fechamento" espacial, a classificação e a padronização ou "normalização'' (as ferramentas e os procedimentos padronizados tornam-se mais produtivos, tal como os seres humanos padronizados). E assim como as técnicas disciplinares sociais, também as técnicas de laboratório obrigam as coisas a "falar". Existiria uma analogia entre a confissão dos seres humanos explorada por Foucault, e a "confissão" d os objetos submetidos a controle experimental. Em ambos os casos, o que é "revelado" corresponde a uma pauta de questões e um modo de interpretar que condiciona a confissão. E também em ambos os casos, é a técnica de interrogação que estabelece o que é "verdadeiro" (1987: 225). Mas a relação entre os c ientistas e seus objetos de experimentação representa uma relação de poder não só pelo que acontece dentro do laboratório. A aplicação das descobertas experimentais em situações extra-laboratoriais exige modificações das condições materiais e sociais, porque de outro modo aquelas descobertas não funcionariam (Latour). O laboratório tem pmtanto um poder disciplinador que transcende os seus limites, modificando o mundo. Essa modificação é hoje enorme, pois inclui, não apenas a difu são de descobertas como a eletricidade, o raio laser ou as substâncias sintéticas, mas também a adaptação dos


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comportamentos humanos às novas realidades e a utilização de técnicas de laboratório (medir, classificar, registrar... ) de acordo com padrões científicos nas mais diversas atividades. (1987, p. 119). Por conseguinte, seria um erro, para Rouse, acreditar que o poder resultante do conhecimento provém apenas das suas aplicações tecnológicas. A própria aquisição do conhecimento, e não a sua mera extensão, responde a uma combinação de saber e poder. Trata-se, na sua interpretação, de uma estratégia de natureza politica. Utilizando um conceito amplo de " politica" que abrange "todas as formas de limitação e governo do campo de possível ação" (id., p. 227), o autor sustenta que a ciência expetimental tem um caráter i11erenremente politico, porque influencia as condições de possível ação dos seres humanos, inclusive a ação política no sentido restrito do termo (id ., p. 185)

4. Algumas conclusões As observações sobre a prática experimental antes apresentadas não são necessariamente incompatíveis com a concepção tradicional lembrada ao início deste trabalho. Certos traços do experimento destacados pelos filósofos e sociólogos aqui considerados, como o caráter exploratório de muitos experimentos, não era desconhecido pela literatura clássica (v. Hempel 1966: 34). e o próprio Bunge o menciona, junto com o uso experimental da simulação mediante computadores (1969: 835). Outros traços, principalmente a artificialidade da situação experimental, a índole cootroversa de muitos (senão todos) os resultados, e a presença de fatores sociais, podem quiçá ser vistos como traços admitidos. porém minimizados quanto à sua relevância epistemológica, por par1idários da concepção tradicional. 13 O ponto de vista sociológico, em particular, não pretende - ao menos, explicitamente- negar a validade do experimento como recurso de conhecimento. senão mais bem mostrar que a visão tradicional responde a uma concepção demasiado realista, individualista e contemplativa da cognição. Certamente, algumas caraterísLicas da experimentação apontadas pelos estudos antes mencionados podem ter conseqüências sobre a apreciação da confiabi)jdade do conhecimento científico. Tal é o caso das


Acerca da Nature::.a do Experimemo C i em(fico

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observações sobre o caráter não puramente dedutivo das conclusões extraídas dos experimentos e sobre as inevitáveis decisões relativas ao momento da sua fi nalização. Outras observações, como as relativas a que os experimentos têm uma "vida própria" (Hacking) e que o espaço experimental não se restringe ao lugar físico das experiências científicas, modificam a nossa idéia da ciência real, em grande medida transformada no que começa a ser denominado "tecnociência", vale dizer, o desenvolvimento científico arrastado pelo desenvolvimento tecnológico. E é provável que a (maior) consciência da artificial idade da siruação experimental alimente as dúvidas relativas à nossa maneira de entender a legalidade do universo, tal como sugerido por Cartwrig ht (1999). Não me parece todavia que nenhuma dessas conseqüências anulem a idéia tradicional de que o experimento é um procedimento caraterístico da ciência moderna, e privilegiado dentro dela, na exploração do universo. Já as teses sociológicas mencionadas em particular têm sido objeto de críticas de filósofos e historiadores da ciência. A maleabilidade e a ambigüidade das situações experimentais não seria tão grande quanto se pretende, na opi nião dos críticos. É o caso do historiador Peter Galison (1987), quem defende que os cientistas chegam, mediante os procedimentos experimentais, a conclusões que são justificadamente consideradas como confiáveis e portanto, Vtllidas para a comunidade científica. Isso se deve, para ele, a que c1·enças teoréticas e experimentais prévias res u·ingem as alternativas do que o experimentador pode julgar razoável. Em particular, a identificação do "sinal'' (isto é, do resultado genuíno) obedece a determinadas esu·atégias e técnicas, 14 sendo amiúde grupal, como nos experimentos da física de partículas, em que os participantes de um experimento podem ser muito numerosos. formando uma equipe. A arbitrariedade na planificação e realização das experiências, bem como nas decisões e interpre tações por el as implicadas, está restrita por fatores tais como a consistência das teoria<> (e a sua estrutura Logicomatemática), as h abilidades e as técnicas requeridas (id .. pp. 11-12). Na visão de Galison, os experime ntos são "persuasivos" embora não sejam dedutivos, devido princ ipalmente a dois recursos: tonar respectivamente mais diretos e mais estáveis os resultados (vale dizer, fazer com que o "sinal" seja mais imediatamente perceptível), e variar as condições de


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produção do si nal (id., p. 260). Em quanto à tese de Collins sobre o "regresso do experimentador" (isto é, o círculo vicioso entre correção do experimento e correção dos resultados) é rebatida por AJan Franklin (1998), especialista em filosofia do experimento, quem oferece uma descrição alternativa do episódio relativo à pretensa descobelta das ondas gravitacionais, analisado por Colüns, em que aquele círculo vicioso não opera. Segundo Franklin, Collins confunde a dificuldade de pôr em funcionamento um experimento, com o problema de demonstrar que o mesmo funciona adequadamente, e afim1a que crité1ios epistemológicos de correção foram bem aplicados no episódio em pauta. De maneira análoga, a tese de Shapin e SchafTer sobre o estabelec imento da prática experimental é rejeitada pela epistemóloga Cassandra Pinnick (1998). Esta autora questiona praticamente na íntegra o relato da aquisição de credibilidade do procedimento experimental proposto por Shapin e Schaffer, negando em particular o sentido da alegada polêmica entre Hobbes e Boyle. Apoiada em citações de Hobbes, Pinnick rebate a afim1ação de que este último negasse o valor dos experimentos, e considera fora de contexto a inte rpretação, feita pelos sociólogos, de objeções de Hobbes a Boyle (íd .. p . 234). Ao atenuar o contraste entre estes dois autores, Pinnick contribui a reforçar a idéia tradicional de que a experimentação, c a confiança nos seus resultados. impôs-se como o caminho da nova ciência (e não como uma opção circunstancialmente conveniente). Já a tese de que a objetividade dos resultados experimentais seja uma "produção" do discurso científico (Latour e Woolgar 1979) é vista como forçada pelo fi lósofo Ian Hacking (1988). Reconhecendo a importância de Laboratmy L~fe para a melhor compreensão da índole dos experimentos, Hacking recomenda em particular prestar atenção à observação de que um fato experimental em rigor nunca "é", mas "chega a ser" (becomes), graças precisamente ao experimento, e concorda em que "viltUalmente nenhum dos fenômenos mediante os que elaboramos, aniculamos e testamos teorias existe. em estado puro, na Natureza, antes de que os criemos" (id.. p. 285). Por outras palavras. eles são artHiciais. Não obstante, H acking acredita que Latour e Woolgar jogam com um duplo


Acerca da NawreZ/1 do Experimento Ciem(fico

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sentido da palavra "artificial": "feiLo pelo homem" e "não genuíno". Ao insistir (com uma ênfase excessiva nos aspectos lingüísticos da ciência) na forma como os objetos experimentais resultam da ação humana, os autores sugerem que as atividades de experimentação não correspondem a nada "real" (em sentido intuitivo do te1mo). Hack.ing mostra como um mérito do livro evidenciar que o resultado experimental achado é assimilado a entidades que supostamente existe m na Natureza, sem que isso seja sempre óbvio, porém rejeita a interpretação irrealista que a descrição dos sociólogos sugere. Na sua própria interpre tação alternativa (realista), Hacking defende que uma descrição como a fornec ida por Laboratory Life ajuda a entender a seleção de terminada conclusão como l?arle do conhecimento admitido, mais do que a explicar a "consrmção" de um faro cicnrffico (id., p. 293). Em todo caso, Hack.ing é notoriamente um dos epistemólogos que têm abordado de maneira mais original a questão da existência das entidades teóricas, principalmente em Representing and lntervening (1983). Como é sabido, nesta obra Hacking propôs uma defesa da existência daquelas entidades com base, precisamente, nos procedimentos experimentai<;· se o pesquisador pode atingir um certo efeito man ipulando entidades postuladas pela sua teoria, então essas entidades existem ("if you C(tn spray them, then they are realt"). 15 É também caraterística de Hacking a denominação de "fenômenos" para as regularidades produzidas experimentalme nte. Essas regularidades são obra humana, porém não as entidades teóricas a que elas remetem. 16 O ponto de vista de Hacking ajuda, creio, a apreciar em seu justo valor a relação entre o produzido e o captado no processo cognitivo científico. Finalmente, a tese da conexão inerente entre conhecimento científico e poder, tal como defendida por Rouse, é plausível no que diz respeito a compreender que o saber próprio da ciência moderna surge de um saber fazer, e que este último implica um poder, isto é uma capacidade de controlar (até certo ponto) a real idade, capacidade essa evidente na situação experimental. Para tanto, a ênfase de Rouse no " ver em torno" heideggeriano, como mais importante do que a consciência de elementos teóricos na prática científica, parece acertada. Não obstante, a palavra poder tem também o significado de domínio, e o autor passa


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subtilmente de um significado para o outro, o que não é aceitável sem discussão. A transição entre os significados é apoiada na suposta analogia entre o comportamento dos cientistas em relação aos seus objetos de estudo e o vínculo, segundo Poucault, e ntre autoridades e subordinados; no entamo, essa analogia tampouco é fácil de aceitar. E embora seja verdade que conceber o poder como algo " possuído" por indivíduos e grupos pode ser uma forma de "reificar" uma noção, a idéia de que o poder "circula" entre os agentes corre o risco de constituir uma alternativa puramente verbal. Por fim, a noção de política proposta por Rouse parece ampla demais e pouco convincente para sustentar a tese de que existe uma relação intrínseca entre a ciência e a poHtica (em sentido habitual da palavra). Em todo caso, o conceito de prática pressuposto por Rouse como base de todas suas outras alegações parece não estar suficientemente desenvolvido como para fazer justiça aos aspectos cognitivos da praxis, conforme um crítico (Luntley 1997).

* Em resumo, apesar da sua riqueza, não creio que a discussão da narureza c importância do experimento científico dos últimos tempos conduza por enquanto a uma modificação radical da noção tradicional do mesmo, em particular a noção de que nosso conhecimento incrementase em função da nossa capacidade de manipular a realidade. De qualquer modo, a minuciosa exploração do procedimento experimental que devemos à bibliografia aqui mencionada destaca a meu ver duao; coisas. A primeira, que os pontos de vista epistemológico e sociológico no estudo da ciência não são fáceis de conciliar. E a segunda, que, conforme um bom apreciador de ambas as perspectivas, afinal das contas "a boa ciência nunca é fáci l" (ver Ziman 1994). 17 Referências

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Acerca da Nawre:;a do Experimemo Ciemíjico

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Notas As que têm flutuações que variam dentro de limites estreitos (como a~ d istâncias e as durações) podem ser controladas precisamcmc, ao passo que as que 1


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sofrem amplas flutuações estatísticas (como a fertilidade do solo, ou a inteligência) requerem controle estaústico (id., 837) 2 Um experimento pode seiVir também para estabelecer falos, respondendo ao esquema: "Que acontece a X se Y é feito a X?". Por ex., ..Que acontece a uma rã após a destruição unilateral do seu labirinto, ou a uma comunidade privada da sua liderança?" (Dunge 1983: 102). Neste último caso, a variável (ou variáveis) dependentes são procuradas pelo experimento. 3 ( ... )podemos considerar a mais ampla disciplina da física como abrangendo uma cultura dos experimentadores e uma dos teóricos, cada uma com seus próprios padrões de demonstração, comprometimentos com métodos e objetivos pragmáticos. A distinção entre as duas culturas existiu pela maior parte do século vinte, porém a escala c a complexidade da física de alla energia aumentou a separação (Galison 1987: 255). 4 O livro de Galison (1987) é precisamente uma minuciosa análise das aventuras que conduzem a concluir um experimento, e de como nenhuma conclusão é, a rigor, inevitável. 5 Fundamento as afinnações desta passagem principalmente nas obras Science as Practice and Culture (1992) de Andrew Pickering (ed.), e The Uses of EJ.perimew ( 1993, orig. 1989), de D. Gooding e r alii. 6 O estatuto ontológico dos "objetos" manipulados nos experimentos (p. ex., parúculas subatômicas), no sentido de serem entidades reais ou conceituais, si nais ou ruídos, etc., define-se ao longo do caminho experimental (Gooding in Pickering I992: 71). 7 Para os sociólogos, o resultado dessas narrativas é o que permite aos filósofos imaginar que os experimentos testam idéias, como se isso fosse fácil ou evidente. 8 A Natureza e o consenso dos cientistas não representam, portanto, parâmetros por relação aos quais se pudessem resolver os problemas da experimentação (Fujimora, in Pickering 1992: 168). 9 Por isso. o sucesso ou o fracasso na aplicação não coufirma nem refuta os resultados experimentais. obsetva um filósofo (Hacking, in Pickering 1992: 59). 10 Para Cartwright, a maior parte do que ocorre na Natureza é por acaso, e "o comportamento regulamentado resulta de boa engenharia" (op. cit., p. 1). 11 Collins analisa aqui os casos da detecção das "ondas g ravitacionais" e das experiências ditas paranonnais (op. cit, cap. TV e V). 12 Devia tratar-se de pessoas "de engenho" c respeitadas, as quais regularmente assinavam o protocolo em que constavam os resultados, de modo a garantir a sua honestidade (op. cit., p. 57).


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Como o faz Bunge, entte outras críticas, ao exanúnar a Sociologia da Ciência (Bunge 1998). 14 "Pelo menos ttês estratégias estão disponíveis aos experimentalistas quando tratam de isolar o sinal com relação ao ruído: eles podem construir o aparelho para bloquear o pano de fundo, ou eles podem medir, ou calcular os panos de fundo a serem subtraídos das observações" (Galison 1987: 2). 15 Cabe mencionar que R. Giere (1988) critica as pretensões do construtivismo sociológico apelando para o mesmo argumento, que alega haver formu lado em paralelo a Hacking (op. cit., p. 288). 16 O efeito foto-elétrico é criado pelo laboratório, porém não os eléttons (Hacking in Pickering 1992: 37). 17 O cap. 3 desta obra, de onde recolhi esse comentário, é um bom exemplo de reconhecimento das dificuldades implicadas pelo experimento científico que não impede manter uma razoável confiança nos seus resultados. cupani @cfh.ufsc.br


o PROBLEMA DO ERRO NO SURGIMENTO DA FILosoFIA MoDERNA:

ENTRE O ''ABUSO DAS PALAVRAS" E O "VÉu DAS Ú>ÉIAS" DANILO MARCONDES Pont~fícia

Universidade Católica, Rio de Janeiro

Erro r always consists in believing some proposition which is false.

G.E.MooRE l. Introdução

O problema epistêm.ico e metodológico do erro e de como evitá-lo foi sempre uma das maiores preocupações dos filósofos desde a Antigüidade, em grande parte devido à caracterização da filosofia como busca do conhecimento e da verdade. No üúcio do período moderno esse problema tornou-se especialmente importante tendo em vista a crise das teorias científicas antigas e medievais nos séculos XVI e XVJI, o que levou a uma mudança profunda na visão de mundo da época, bem como nas concepções de método e de conhecimento científico, a assim c hamada ''Revolução Científica Modema". 1 Em conseqüência, a necessidade de evitar os erros e crenças falsas da tradição consistiu em um dos principais desafios que filósofos e cientistas deste período tiveram que enfrentar, em um episódio importante da disputa entre realismo e ceticismo. O Discurso do Método (1637) de Descartes pode ser visto como um exemplo disso. Pretendo discutir aqui brevemente alguns aspectos centrais da doutrina filosófica de que a linguagem é uma das principais fontes desses erros e crenças falsas, praticamente um lugar comum enu·e os mais diversos pensadores do período moderno. Essa concepção se encontra explícita, embora com variações, desde em Francisco Sanchez, em meados do Cupani, A O. & Mortari, C. A. (orgs.) 2002. Linguagem e Filosofia. Anais do Segundo Simpósio Internacional Principia. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 6. Florianópolis: NEL, pp. 146-62.


O Problenw do Erro 110 Sur&imento da Filosofia Modema

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séc. XVI até George Berkeley no início do séc. XVIll; incluindo alguns dos mais importantes nomes desse período como Bacon, Hobbes, Descartes, os mestres de Port Royal e Locke, para mencionar apenas alguns dos mais significativos. Isso pode ser dito especificamente acerca dos filósofos preocupados com o conhecimento do mundo natural e com o desenvolvimento das novas teorias no campo das ciências naturais e não tanto sobre os humanistas do Renascimento como Lorenzo Valla, Juan Luis Vives, Erasmo de Rotterdam ou Michel de Montaigne, uma vez que esses valorizavam mais a retórica, a eloqüência e a filologia e portanto adotavam uma visão radicalmente diferente da linguagem e do significado por não estarem voltados primordialmente para a problemática epistemológica (Wawso, 1987). Não pretendo me concentrar em nenhum autor ou obra em particular, mas sim destacar algumas das características mais básicas dessa doutrina sobre a linguagem como fonte de erro, analisando os aspectos centrais das diferentes versões em que é formu lada. Uma distinção geral pode ser feita entre: (i) a doutrina do "abuso das palavras", segundo a qual características tais como variação lingüística, vaguidade semântica e convencional idade do significado, tornam a 1inguagem um instrumento ineficiente e pouco confiável para a aquisição do conhecimento e para sua expressão; (ii) o ataque cético às teorias científicas tradicionais com base no argumento de que essas temias oferecem apenas definições nominais, i.é. definições que dependem do significado das palavras e não definições essenciais, revelando conhecimento da realidade, (iii) a rejeição do discurso da tradição com base na concepção de que a linguagem é veículo de falsas crenças do passado. O problema da falta de confiabilidade da linguagem teve em geral como solução a assim chamada "via das idéias". Essa solução se encontra em racionalistas como Descartes e a escola de Port Royal, que atribuíram pouca ou nenhuma importância à linguagem no processo de conhecimento, enfatizando ao contrário a análise da mente e do funcionamento do intelecto e de seu produto, as idéias. É encontrada também em empiristas como Locke que viram na experiência sensível a origem das idéias, negando a existência de idéias inatas, mas rejeitando igualmente a linguagem da tradição e considerando a linguagem vulgar


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pouco confiável (Greenlee, 1977). Contudo, a adoção da "via das idéias" como um remédio para o abuso das palavras, consistindo no exame da relação entre a representação lingüística e a mental, como veremos adiante, deverá por sua vez enfrentar o desafio de explicar a confiabilidaàe da própria representação mental, o a'>Sim chamado problema do "véu das idéias" e sua principal conseqüência, o solipsismo. Esse é um dos dilemas centrais do pensamento epistemológico moderno. sendo que a filosofia da linguagem de tradição analítica irá tentar superá-lo. 2

2. O "Abuso das Palavras" Adoto aqui a expressão "abuso das palavras" encontrada em Hobbes (Leviathan, I, IV, 3-4) e Locke (Essay, UJ , x), utilizando-a, contudo, em um sentido ma is amplo para discutir a concepção de linguagem como fonte de erro e de crenças falsas.3 A esse propósito pode-se distinguir três argumentos diferentes, porém relacionados, acerca do "abuso das palavras":

(1) O argumento da convencionalidade do significado das palavras. Se a relação entre as palavras e as coisas a que se referem é meramente convencional, isto é, não há uma natureza comum entre palavras e coisas, em conseqüência as palavras não têm, nem podem ter, valor cognitivo. Além disso, a variação lingüística que é conseqüência da convencionalidade dá ao significado um caráter vago e impreciso. (2) Em segundo lugar, temos o argumento da imperfeição natural da linguagem. Trata-se na verdade de uma dupla imperfeição. A linguagem consistindo de sons, de palavras faladas, pertence ao mundo físico; e enquanto conjunto de signos convencionais penence ao mundo sóciocultural, e devido a ambos esses motivos, é inadequada à expressão de idéias, que possuem natureza abstrata. Este é um argumento freqüente entre os filósofos que vêem na relação entre palavras e idéias o modo pelo qual o significado se constitui . É também uma das razões principais pelas quais a linguagem concreta é considerada inadequada ao conhecimento científico que exigiria um grau de precisão e estabilidade de que a linguagem comum seria incapaz.


O Problema do Erro no Surgimento da Filosqfia Modema

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(3) O terceiro argumento, que segue uma linha diferente, consiste na afirmação da corrupção da linguagem. Esse argumento pressupõe uma linguagem "ideal" ou "perfeita" com a qual se contrasta a linguagem comum. Essa linguagem que serve de modelo ou ideal de perfeição poderia ser a língua adâmica original, mencionada no livro do Gênesis; ou ainda a matemática considerada como "linguagem da natureza" por Galileu e os físicos do início da Modernidade, de inspiração pitagórica e neoplatônica; ou ainda uma concepção dos signos tais como criados por Deus, como em Berkeley (New Themy of Vision, 147). Uma vez que a linguagem comum ou vulgar é imperfeita, pelos motivos que vimos acima em (1) e (2), é necessário então formular uma linguagem artificial para a ciência, livre desses defeitos e imperfeições, um projeto ambicionado por muitos filósofos, pensadores e cientistas desse período, de Bacon a Leibniz, e retomado pelo Positivismo Lógico no séc. XX (Camap, 1932). A concepção de que a linguagem é uma fonte de erro, sendo a diversidade do significado lingüístico prova disso é herdada da tradição e remonta ao Crátilo de Platão e ao Tratado da interpretação de Aristóteles.4 De fato, a filosofia moderna não parece acrescentar muito a esses argumentos, que são essencialmente os mesmos da Antigüidade, reproduzidos em um novo contexto, o da crise da ciência tradicional e, portanto, das formas tradicionais de representação da realidade. Segundo essa concepção, a linguagem é fonte de erro porque nosso entendimento do significado das palavras não é confiável. Isto é, não podemos depender do significado lingüísrico para o conhecimento da-; coisas a que as palavras se referem, uma vez que não há uma relação natural entre palavras e coisas, dado o caráter convencional do significado. A variação lingüística consiste na melhor prova disso. Esse argumento aparece repetido à exaustão em uma grande variedade de pensadores desde a Antigüidade e parece caracterizar uma espécie de impasse intransponível. A multiplicidade e variedade do significado das palavras aponta para a sua imperfeição na representação da realidade, já que permite falar dela de diferentes maneiras, sem que se tenha critérios últimos de certeza e


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adequação. A tese realista de que uma vez que a realidade é única e determinada, deve haver apenas uma expressão verdadeira dessa realidade, em um sentido completo e determinado, pressupõe uma univoddade do

significado impossível de se obter. Uma dificuldade adicional, apontada pelos filóso fos do período modemo, consiste em nossa fam iliaridade com a ling uagem e no fato de que esta inevitavelmente tem um papel na experiência concreta (Descartes, Princípios da Filosofia, I, 47). Isso explica a tendência a considerannos o significado lingüístico como portador de algum tipo de "conhecimento" das coisas, tomando-nos prisioneiros dessa ilusão. Diz Locke (Essay, III, ili, 7) "Aprendemos muitas palavras antes mesmo de conhecermos as idéias correspondentes (for which they stand)". Confunde-se assim o entendimento do significado lingüístico que rodo falante possui, simplesmente por ser um falante de uma determinada língua, com o conhecimento das coisas a que as palavras se referem em virtude de seu significado. Porém, como a referência é convencional, nenhum conhecimento é efetivamente obtido por este processo. Mente/Intelecto (idéias, conceitos)

Signilicado

Conhecimento

/ Coisas (realidade)

Palavras (linguagem) Referênc ia

(Figura 1)5 De acordo com a visão modema da "via do cno", ilustrada pela figura 1 acima, o uso e o hábito nos fazem adotar o entendimento do significado lingüístico como se fosse um conhecimento da realidade, sendo


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essa uma das causas mais freq üentes de erros de origem lingüística. A referência convencional é conf undida com o conhecimento verdadeiro. Projetamos nosso entendimento familiar do signlficado das palavras na realidade, mas não há nenhuma idéia, conceito ou entidade mental correspondente, uma vez que esse entendimento não resulta de um conhecimento adequado (relação representada pela linha pontilhada), isto é, de conceitos elaborados pela mente a partir da realidade. Segundo Locke, "as palavras falham quando usadas sem qualquer idéia" (Essay, Ill, X, 26). O segundo modo de conceber a linguagem como fonte de erro consiste na rejeição do discurso da tradição. A linguagem é considerada nesse caso como portadora dos preconceitos e falsas crenças da tradição, não apenas no nível do significado das palavras ou signos, como acima, mas mais especificamente no que diz respeito aos textos, obras científicas e tratados filosóficos que expressam e veiculam as teorias da tradição, o que Bacon denominou de "ídolos do teatro". Bacon relaciona como fomes de erro a maior parte dos filósofos da Antigüidade ao discutir os ídolos do teatro que não são inatos, mas sim "instilados e cultivados pelas ficções das teorias" (Novum Organum, I, 60). Examina em seguida em detalhe os erros derivados dessas teorias falhas, concluindo que o conhecimento só pode progredir através da obser vação e do experimento e não pela leitura de textos antigos, nem pela aceitação das teorias do passado. A linguagem que usamos está portanto impregnada de conceitos cujo significado é derivado dessas teorias errôneas do passado, como o exemplo da palavra "úmido" (moist) revela. Essa palavra pode ser e ntendida como "aquilo que é indeterminável", "aquilo que facil memc se une e agrupa", "aquilo que flui com faciljdade", etc., mostrando como isso leva à confu são. Enquanto conceito científico o significado dessa palavra deveria ser estabelecido por verificação (op. cit., loc. cit. ). Por esse motivo, é necessário usar de cautela e manter uma atitude de suspeita em relação às obras do passado, pois mesmo que contenham algumas verdades importantes essas freqüentemente vêm misturadas a teorias falsas e explicações errônea.<; e não é tarefa fácil separar o que é válido do que não é. Descartes adota como a primeira regra de seu


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método não aceitar nada que possa ser posto em dúvida (Discurso, 11) e rejeita explicitamente as obras dos escolásticos medievais que lera no Colégio de La Fléche, defendendo a necessidade de uma experiência direta das coisas como a únka forma de o indivíduo aprendê-las por si mesmo (Discurso, I; Princípios, Prefácio). Descar1es contrasta os livros que lera na biblioteca com o '·grande livro da natureza", que esse sim deveria ser lido por aqueles que buscam o conhecimento (Discurso, I). A terceira e mais específica forma de abuso levando à rejeição da linguagem como irrelevanre filosoficamente de um ponto de vista epistêmico, consiste em manter que as definições encontradas em teorias científicas não rcvelarn conhecimento da rea.lidade enquanro tal, mas são apenas definições nominais, que não nos levam a apreender a real essência das coisas. Segundo Locke (Essay, ID, iv, 13), "nossas espécies distintas nada mais são do que idé ias complexas distintas, com nomes distintos anexados a ela". Definições são apenas nomes, listas de nomes, os quais para serem emendidos dependem de outros nomes, de forma circular. Uma vez que o significado das palavras não é confiável, essas definições não têm valor cognitivo. Alguns filósofos desse período como Locke, admitirão que definições (essências) nominais são o máximo que podemos conseguir, a ciência ela própria consistindo apenas em conhecimento de fenômenos empíricos e não na apreensão de essências reais. Esta é uma das principais razões, embora não a única, para a rejeição do discurso da tradição, com sua pretensão a conhecimento e a ce11eza, uma pretensão que por não ser justificada deixa a tradição vulnerável ao questionamento e ao ataque cético. Porém, para os céticos moderados como Locke. as várias formas de abuso possuem "remédio".

3. O Remédio: o argumento do conhecimento do criador e a linguagem A maior parte dos filósofos deste período que tentou encontrar um remédio para os erros e para o abuso da linguagem defendeu a "via das idéias" como principal alternativa, sendo Locke (Essay, Til, ix) talvez o mell1or exemplo disso. 6 De acordo com essa concepção, é necessário


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retraçar o processo de constituição do signi fi cado por meio de sua associação com idéias de modo a considerar a relação entre idéias e coisas como a relação cognitiva básica da qual o significado depende. 7 Os dois primeiros dos cinco remédios contra o abuso das palavras preconizados por Locke (op. ci t. , loc. cit.) claramente ilustram essa concepção: (I) "Não usar nenhuma palavra sem uma idéia anexada a ela"; (2) "Ter idéias distintas e determinadas anexadas às palavras, especialmente no caso dos modos mistos". Segundo Locke, as idéias de modo misto são idéias complexas formadas por meio de operações da mente com base em idéias simples, as únicas diretamente ligadas aos sentidos. ..Justiça" e "obrigação", por exemplo, são idéias de modos mistos e como tais não correspondem a nada na realidade, mas têm sua existência, pode-se dizer, apenas na mente (Locke, Essay, n, xii).8 E, ainda segundo Locke, "Dessa forma podemos ver a razão pela qual as Linguas mudam constantemente, surgindo novos termos, os antigos sendo abandonados. Porque as mudanças nos costumes e nas opiniões trazem consigo novas combinações de idéias[ .. . ] novos nomes para evitar longas descrições são anexados a elas" (op. cit, Il, xii, 7). Encontramos em um grande número de fi lósofos do período moderno a adoção do assim chamado argumento ou princípio do "conheci mento do criador" (maker 's knowledge), afirmando que só conhecemos aquilo que criamos; o criar, produzir ou fazer consistindo no critério básico de conhecimentoY A linguagem como criação humana deveria, portanto, de acordo com esse argumento, consistir em algo que conhecemos e enquanto tal deveria também consistir em uma ferramenta confiável e instrumento efi caz para o conhecimento. Porém, a linguagem entendida mais especificamente como palavras ou signos lingilísticos dotados de significado, é considerada como uma criação humana na medida em que é um produto da cultura: isto é. consiste em uma criação coletiva, evolu indo ao longo do tempo e portanto sofrendo alterações, o que a tom a pouco confiável devido às mudanças culturais. As idéias, ao contrário, são resultados ele processos mentais de criação individual, sendo ass im algo a que o indivíduo tem um acesso direto e privilegiado. Enquanto críticos da tradição, os filósofos modernos tenderam por isso a considerar os signos lingüísticos como fonte de


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Danito Marcondes

enos e crenças falsas, vistos com suspeita, embora não fosse possível evitar usar esses signos com o significado que a força do hábito, do uso e do costume atribuiu a eles. Isso mostra que deve ser fe ita uma distinção entre dois sentidos diferentes em que a linguagem é ctiada pelos seres humanos. Um sentido negativo, enconu·ado p. ex. em Bacon, quando este se refere à Linguagem como produzindo os ídolos do mercado, os idolafori. ''As palavras são formadas pela vontade da maioria e dessa má e inepta formação das palavras resulta uma extraordinária obstrução da mente" (Novum Orgcmum, I, 43). O significado como parte da cullura e resultado de um processo histórico e social não é confiável de um ponto de vista cognitivo, o que o toma filosoficamente irrelevante, de acordo com essa visão. O significado das paJavras é impreciso, instável e por esse motivo defeituoso. Bacon dá como exemplo a palavra "úmido", que pode ser entendida de diferentes maneiras (op. cit. I, 60), conforme vimos acima. Além disso, devido à força do hábito, os falantes acabam por dar mais atenção às palavras do que às idéias, um argumento também adotado posteriormente por Descartes. O uso produz o abuso. Há também, contudo, um sentido positivo. Com base no princípio do conhecimento do criador, o significado pode ser considerado como constituído de um modo "fi losófico", isto é, crítico, controlado ou refletido, por meio de uma cuidadosa consideração da conexão entre palavras e idéias. Essa é a posição de Locke quando propõe como remédio para o abuso, além dos citados acima, o seguinte: "aplicar palavras a idéias do modo pelo qual o uso comum as anexou", "declarar o significado pelo qual as usamos". e " usar as mesmas pal avras de modo constante com o mesmo sentido". Mas, mesmo assim, podemos nos perguntar em que senúdo conhecemos melhor o que criamos individualmente do que o que criamos coletivamente, corno parte da cultura? Com efeito, o terceiro re médio proposto por Locke leva em conta o "uso comum", isto é, reconhece a origem cultural do significado e indica a importância de usar as palavras de acordo com essa origem, se quisermos nos fazer compreender. As teorias científicas do passado fo ram afin al elas também criações da tradição. É apenas na medida em que deixaram de ser testadas e veri-


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O Pro/Jlenw do Erro no Suf'8imento da Filosqfia Modema

ficadas, discutidas e examinadas, sendo aceitas apenas por força de um princípio de autoridade, que puderam ser rejeitadas por não satisfazerem o critério de validade do princípio do conhecimento do criador. Segundo esse princípio, devemos criar nossos próprios significados, relacionando idéias com palavras de modo a tornar as palavras filosoficamente relevantes. Menre/I ntelec[O (idéias, conceicos)

Significado

Conhecimento

/ Palavras (linguagem)

Coisas (realidade)

Referência

(Figura 2)

A relação válida (figura 2) e ntre palavras, mente c realidade consiste em mostrar que o conhecimento, adquirido através da percepção sensível e da abstração, bem como através dos poderes do intelecto, torna cognitivo o conteúdo semântico das palavras, possibilitando assim por sua vez a referência às coisas. 10 É em grande parte devido à adoção por li lósofos desse período do princípio do conhecimento do criador que a "via das idéias" parece ser o remédio mais adequado para o abuso das palavras. Idéi as são criações da mente do indivíduo em sua relação cognitiva com a realidade, tanto na visão empirista quanto na racionalista. Se prestarmos atenção às idéias como atribui ndo conteúdo às palavras, como estabelecendo o seu significado, então a variação lingüística c a imprecisão podem ser superados. Encontramos um "remédio" capaz de corrigir o "abuso".


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Os remédios propostos por Locke pressupõem basicamente que para se evitar o erro deve-se empregar as palavras cuidadosamente, relacionando-as sempre a idéias, utilizando-as com clareza e de forma consistente, de acordo com as práticas e convenções usuais. Não se trata portanto apenas de adotar o princípio da produção individual ou subjetiva do significado, o que iria contra a natureza reconhecidamente convencional da linguagem, ma<> sim de um uso crítico no sentido de renetido e consciente, em que a conexão entre idéias, coisas e palavras em seu uso comwn é claramente estabelecida. E isso é algo que cabe essencialmente ao indivíduo fazer e que só ele pode fazê- lo. Não há assim um conflito entre o aspecto reflexivo do uso individual e o caráter convencional. coletivo e cultural, do significado. A semântica é entendida desse modo como uma análise de processos mentais. Mas todo "remédio" tem seus "efeitos colaterais".

4. Os "efeitos colaterais" do remédio: o "véu das idéias" Os escolásticos medievais tinham uma boa explicação para a relação entre conceitos enquanto entidades mentais -as species ou notitice- e a realidade, com base na noção aristotélica de substância e na distinção entre matéria e forma. 11 Os objetos reais tornavam-se presentes à menteformaliter, isto é, de acordo com sua forma abstrata. Os filósofos modemos, ao rejeitarem essas noções escolásticas, viram-se obrigados a encontrar outro tipo de explicação para a relação entre entidades mentais e a realidade externa. Explicação essa que por sua vez tende a ser quase sempre ambivalente. As idéias são signos das coisas no mundo em um sentido funcional na medida em que as indicam ou ficam no lugar delas (.~tandfor) nas palavras de Locke, por exemplo (Essay, IV, xxi, 4). Por outro lado, enquanto signos, devem também inevitavelmente ser entendidos como representação do real, ou seja, como imagens das coisas ou como tendo uma relação de seme lhança com elas. 12 Enquanto signos, entendidos em um sentido funcional, não necessitam ter nada em comum com a realidade, não é necessário que signo e objeto tenham uma natureza comum. Contudo, enquanto representações ou imagens é preciso que tenhan1 algum tipo d,e semelhança com o real para lerem


O Probleuuz do Erro 110 Surgimento da Filosofia Modema

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valor cognitivo. Mas não há uma explicação satisfatória de como essa representação é possível, uma vez que tampouco parece haver algo em comum entre os signos mentais e a realidade. Po11anto, nessa tradição, a defesa de uma epistemologia realista torna-se cada vez mais difícil e as idéias passam a ser vistas como um véu entre a mente, ou o suj eilo do conhecimento, e a realidade, ou o mundo exterior. 13 Idéias, enquanto objetos do conhedmento, não são exatamente o mesmo que a realidade, o que se encontra por detrás do véu e que se torna inatingível, uma conclusão que Kant tomará explícita cem anos mais tarde. 14 Desse modo, consideradas de um ponto de vista cognitivo, as idéias acabam não tendo grande vantagem sobre as palavras, enquanto instrumentos do conhecimento da realidade tal como ela é. Pelo menos algumas das causas dos erros na Linguagem, que examinamos acima, se aplicam igualmente às idéias em sua relação com a realidade. Idéias podem ser confusas e obscuras, distinguí-las das claras e distintas é um dos objetivos de Descartes nas Meditações. Idéias podem não ter relação com a realidade e portanto falhar em seu papel referencial, de modo semelhante às palavras que não possuem referência. As idéias empíricas, que se originam da experiência sensível, são consideradas variáveis e imprecisas, defeitos equivalentes aos que afetam o significado das palavras. Locke foi o primeiro defensor da "via das idéias" como o remédio mais eficaz para o abuso das palavras; por outro lado, foi também um dos poucos filósofos desse período a considerar importante salvar a linguagem do abuso a que estava submetida dada a sua importância como veículo de comunicação - "a great conduit" em suas palavras (Essay, IITI, xi, 5). O remédio de Locke difere da solução da maior parte dos fil ósofos desse período, na medida em que procurava encontrar um modo de corrigir os defeitos da Linguagem, de superar suas imperfeições, considerando não só que isso poderia ser feito, mas também que era importante fazê-lo. 15 Os racionalistas, por exemplo, tendiam a desconsiderar a linguagem, entendida enquanto palavras ou signos lingüísticos, por ser irrelevante filosoficamente, concentrando-se na "via das idéias" como o caminho do conhecimento. A pouca importância que atribuíram à


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comunicação, concentrando-se no processo cognitivo, fez com que arelação entre a mente e o real fosse considerada a única relação relevante de um ponto de vista epistêrnico. Porém, os filósofos desse período se e ncontraram diante de um dilema: tiveram de enfrentar as conseqüências da escolha entre o abuso das palavras e o véu das idéias, cada um impondo sérios limites ao conhecimento e assim fortalecendo os argumentos céticos contra a concepção realista de conhecimento. Esse dilema foi conseqüência em grande parte da adoção por esses filósofos da concepção originária da filosofia grega antiga de que a linguagem deveria ser considerada do ponto de vista de sua contribuição ao conhecimento. 16 A defesa do realismo deverá esperar até o final do séc. XIX com sua concepção lógica de linguage m formal para evitar tanto o problema do abuso das palavras, quanto o solipsismo do véu das idéias (Hylton, 1990). Uma das principais mudanças ocorridas aí na consideração da linguagem parece ter sido o abandono do signo e a adoção da proposição enquanto entidade lógica como unidade básica de significação, por exemplo em pensadores como Frege, Russell e Moore (Giock, 1997). Deixo aqui apenas indicados alguns aspectos de como a filosofia analftica pretendeu resolver o proble ma da linguagem como fonte de erro, considerando que essa fo i uma de suas motivações iniciais na ruptura com a filosofia moderna, em especial com o mentalismo, por exemplo no caso de alguns dos primeiros trabalhos de Russell e Moore ao tina! do séc. XIX (Souza Filho, 1989). Dois pontos examinados acima merecem destaque: a questão da convencionalidade do signo e a consideração do discurso da tradição. Para a concepção analftica de linguagem, a relação signo-coisa deixa de ser a relação semântica primordial, que passa então a ser a relação entre a proposicão, considerada como um complexo, e outro complexo na realidade. São assrm as estruturas desses compl.exos, lógico, no caso da proposição, e ontológico, no caso do real, que se relacionam e essa relação não é convencionaL A unidade semântica básica passa a ser então a proposição. Trata-se de uma solução que, de certa forma, remonta ao Sofisra de Platão. Talvez se a semântica tradicional tivesse sido influenciada mais pelo Sofista do que pelo Crátilo, ao contrário do


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que aconteceu, a história da filosofia da linguagem teria sido diferente. O discurso da Lradição permanece visto como fonte de erro, por exemplo na crítica do Positivis mo Lógico à metafísica clássica e às suas pressuposições, bem como na proposta de desenvolvimento de instrumentos de análise da linguagem para distinguir o discurso válido e confiável do inválido e não-confiável. Russell na Teoria das Dcscr.içõcs Definidas e na Filosofia do Atomismo Lógico será um dos principais defensores da análise lógica da linguagem como o caminho para se superar os erros e confusões que uma consideração equivocada da linguagem levou a tradição filosófica a cometer. Eliminada a via das idéias, permanece o conLraste entre a linguagem comum e a linguagem filosófica, resultado da análise lógica, bem como a pretensã_o da filosofia analítica em seus primórdios e do Postivismo Lógico de reconstrução da linguagem para a formulação de uma linguagem ideal para o conhecimento científico. Contudo, mesmo essa concepção ainda permanece no âmbito da visão que considera a relação entre Linguagem e conhecimento como primordial para a jnvestigação filosófica. Será necessário um passo adicjonal na filosofia da linguagem com a pragmática, a concepção da linguagem como uso e a ênfa<;e no discurso para que se separe mrus rarucalmente o significado do conhecimento, dissociando-o do problema do erro e atribuindo ao estudo filosófico da semântica um lugar próprio. Referências Bibliográficas Aristotle ( 1963) Categories and De lnterpretatione, trans. by J. L. Ackrill, Clarcndon AristotJe Series, Oxford, Clarendon Prcss. Bacon, Prancis (1 952) Novwn Orgw1w11 [1620), Great Books of the Westem World, Chicago, Encyclopaedia BriLannica, vol.30. Berkeley, George (1965) Berkeley's Philosophica/ Writings, London, Collicr. Carnap, R. ( 1932) ''Die physikalische Sprache ais UniversaJsprache der Wissenschaft", Erkemlfnis 2: 432-65. Descanes, Rcné ( 1992), Discours ele la Métlzode [1637], Paris, V rio. - . ( 1975) Meditaçües Metafísicas [1641], Os Pensadores, S.Paulo, Abril. Eco, Umberto ( 1995) Tlze searchfor the perfectlwzguage. Oxford, BlackweU.


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Notas 1

Richard Rorty (1979), por exemplo, mostra a importância da busca pelo "incorrigível", seja o cogito cartesiano, ou as sensações no ca<>o dos empiristas. Para uma análise desse contexto ver também Sorell (1993). 2 Ver a esse respeito L Hacking (1978). 3 Para uma análise dessa noção em Locke, ver Harris e Taylor ( 1989), cap. 9, "Locke on lhe imperfection of words", e Taylor (1993), cap. 2, "On how we ought to undcrstand". 4 Aristotlc (De Interpretatione 16a3) adota o mesmo argumento encontrado no Crátilo de Platão segundo o qual a variação lingüística toma as palavras pouco confiáveis, indicando assim que as afecções da alma, uma vez que são as mesmas para todos os indivíduos, podem dar comeúdo semântico aos signos lingüísticos (escritos c falados). Essa proposta não é comudo desenvolvida nessa passagem e embora Aristóteles remeta a seu Tratado da Alma, não há nenhuma discussão dessa questão nesse tratado. 5 A concepção segundo a qual relações semânticas são triangulares, relacionando palavras c coisas através de entidades mentais remonta a Aristóteles (De /nterpretatione, I, I , 16a3). Ver também a esse respeito Ogden c Richards ( 1972), cap. 1. 6 Para uma discussão dessa questão em Locke e em seus predecessores ver Yolton (1956). 7 A contribuição de Locke à semântica é analisada por Kretzmann ( 1968). 8 Ver a esse respeito Harris e Taylor ( 1989), cap. 9, p. 111. '} Sobre esse argumento nesse contexto ver Percz Ramos ( 1988) e Souza Filho (1999). 1 Comparar com a figura (I) acima. 11 Ver a esse respeito Pasnau (1997).

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Donilo Marcondes

~obre alguns dos principais problemas relacionados às teorias tradicionais da representação ver Watson (1995). Segundo Wat<;on as idéias devem ser reprcsenracionais pam ter valor cognitivo. Para sua discussão de Locke ver cap.4. 13 Para uma discussão da concepção de idéias como véus ver Rorty ( 1979), cap.II, parte 3. Yolton (1996) faz objeções à interpreração de Rony de Descartes e Locke a esse respeito. 14 Ver a esse respeito a discussão kantiana do idealismo transcendentaJ na Analítica da Crítica da Razão Pura. 15 Se&'1lndo Locke, ''Há uma relação tão próxima entre idéias e palavras [... ] que é impossível tàlar de modo claro e distinto de nosso conhecimento, que consiste todo ele em proposições, sem considerar primeiro a natureza, o uso e a significação da linguagcm"(Essay, li, xxxiii,l9). 16 Por exemplo no Crátilo de Platão, ao qual já nos referimos acima. 12

danilo@fil.puc-rio.br


EM DEFESA DA PERCEPÇÃO DE OBJETOS REAIS EROS MOREIRA DE CARVALHO

Universidnde Federal de Minas Gerais

Ao longo dos dois últimos milênios, muitos filósofos arTolaram as mais diferentes razões e argumentos para suspeitarmos da percepção como fonte de crenças verdadeiras da realidade. Não é a minha intenção fazer aqui um resumo de todas esses argumentos, mas tão somente explorar apenas um deles. Vou explorar o argumento que tenta mostrar que nenhuma das nossas crenças baseadas na percepção diz algo de verdadeiro sobre a realidade simplesmente porque elas não dizem respeito à realidade. Este argumento baseia-se numa teoria causal da percepção. Muitos filósofos argumentam que o fato de haver uma·distância causal entre a atuação de um objeto sobre os nossos sentidos e a percepção que temos e o fato de que uma "mesma" percepção possa ser produzida por causas diversas implicam que o objeto da percepção não pode ser o objeto que atua sobre os nossos sentidos, mas sim algo cuja natureza está intimamente relacionada à natureza dos processos fisiológicos do cérebro. Do que decorre haver uma cisão radical entre os objetos percebidos e os objetos do mundo. Se isto for verdade, então, de fato, temos como conseqüência a incapacidade da percepção em nos dar acesso ao real. As nossas crença<> formadas com base na percepção versam sobre o mundo percebido e não sobre o mundo real, e, por esta razão, ela não é uma fonte de conhecimento da realidade (ou, pelo menos, uma fonte de conhecimento direto da realidade). Conclusão: não há nada que dizemos com base na percepção que seja uma verdade sobre a realidade. Eu vou, no entanto, argumentar que esta cisão não pode ser coerentemente extraída a partir destes fatos e que só podemos dizer que temos conhecimento destes fatos se a percepção puder lidar diretamente com objetos reais. Vejamos, então, como os filósofos da teoria causal tentam Cupani, A. O. & Mortari, C. A. (orgs.) 2002. Linguagem e Filosofia. Anais do Segundo

Simpósio Internacional Principia. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 6. Florianópolis: NEL, pp. 163-80.


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Eros Moreira de Carvalho

separar o mundo real do mundo percebido e como eu penso que eles se equivocam nesta empresa. Uma teoria causal da percepção é uma teoria que visa explicar os fenômenos perceptivos por meio de processos físicos e causais. A idéia de que uma explicação da percepção tem de envolver processos físicos e causais advém da simples constatação do quanto a OCOITência dos fenômenos perceptivos dependem causalmente da ocorrência de certos processos físicos e fisiológicos. Eu não podelia, por exemplo, ver o meu computador se ele não estive refletindo luzes e se estas luzes não alcançassem a minha retina. E mais: depois que estas luzes atuam sobre a minha retina, vários processos fisiológicos em meu cérebro têm de oconer para que eu possa ver o comptuador. Se, por exemplo, um gênio maligno extirpasse o meu cóttex visual, eu nada mais enxergaria, ainda que minha retina estivesse em perfeito estado e que luzes estivessem chegando até ela. Deste modo, podemos, com completa segurança, dizer que os fenômenos perceptivos não podem ocotTer sem que ocorra também uma grande gama de processos físicos e fisiológicos. Dito isto, parece mais do que razoável pensar que qualquer teoria da percepção tem de lidar com estes fatos, tem de levá-los em consideração. Dada esta dependência dos fenômenos perceptivos à ocorrência de certos processos físicos e fisiológicos, alguns filósofos e mesmo cientistas avançam a idéia de que uma explicação dos fenômenos perceptivos se dará, no futuro, em Lermos puramente físicos e fisiológicos. O que isto quer dizer? No modelo de explicação dedutivo-nomológico formulado por Hempel, quer dizer o seguinte: que chegará o dia em que teremos certas leis gerais da física e da fisiologia e postulados de identidade correlacionando fenômenos perceptivos com processos fisiológicos, de tal modo que, dado um fenômeno perceptivo qualquer, poderemos deduzir a sua ocorrência a partir destas leis mais a descrição de um certo estado inicia] da nossa fisiologia. Isto é, dada uma determinada configuração do cérebro de um indivíduo A num determinado momento, poderemos, por estas leis gerias, deduzir as confi gurações subseqüentes do cérebro de A e, com os postulados de identidade, deduzir os fenômenos perceptivos que estarão ocorrendo para o indivíduo A. É importante observar duas coisas: primeiro, que esta teoria redutiva


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da percepção não é exatamente a teoria causal da percepção que iremos discutir, embora, veremos mais adiante, estes filósofos se inspirem nesta teoria redutiva para defender a teoria causal. Segundo, que a ciência não nos fornece ainda nenhuma teoria deste tipo sobre a percepção. O que encontramos atualmente, seja na neurociência, s~ja na psicologia da percepção, é a constatação de que este ou aquele aspecto da percepção depende causalmente deste ou daquele processo neural. Sabemos, por exemplo, que uma área bem especifica do cérebro, chamada pelos cientistas de V 4 , localizada no córtex visual secundário, é imprescindível para a percepção da cor fSacks, 1995: pp. 44]. Se, por algum motivo, as células da minha V 4 forem danificadas, não perco a percepção das formas, nem do contraste e da intensidade da luz, mas perco a percepção das cores. Numa situação desta, eu veria o mundo em preto e branco. Contudo, e este é o ponto, não sem tem ainda idéia de como se faria correlações de identidade entre o que percebemos e os processos fisiológicos do nosso cérebro, nem mesmo para o caso das cores. Isto significa que por mais que se descubram mecanismos no cérebro imprescindíveis para este ou aquele aspecto da percepção, tais descobettas estão Longe de significar uma redução dos fenômenos perceptivos aos processos fisiológicos. Há ainda a dificuldade de saber o que, do lado dos fenômenos perceptivos, vai ser correlacionando com os processos fisiológicos. O fato é que podemos descrever a nossa experiência perceptiva de diferentes maneiras. Às vezes, ao descrever o que percebemos, falamos de aparências, outras de parecenças e outras ainda de objetos. Cada uma dessas descrições envolve um tipo de entidade diferente. Quando falamos de aparências, quantificamos sobre qualidades; quando falamos de parecenças, quantificamos sobre relações de semelhança e quando, por fim, falamos de objetos, quantificamos sobre objetos. Temos então a questão de saber qual destes tipos de entidade será correlacionado com processos fisi ológicos ou se serão todos eles. Isto, é claro, na suposição de que é mesmo possível haver alguma correlação de identidade entre algum destes tipos de entidade e processos fisiológicos. A este respeito, a ciência ainda nada nos diz. No presente estágio do nosso conhecimento, podemos dizer que nem mesmo sabemos se esta teoria reducionista da percepção é possível ou impossível.


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qs filósofos, no entanto, avançam muitas idéias sobre a natureza da percepção. Tendo em mente todos esses fatos que atTolamos sobre a dependência dos fenômenos perceptivos à ocotTência de certos processos físicos e fisiológicos, alguns filósofos desenvolveram o que veio a ser chamado de 'teoria causal da percepção'. Vejamos como esta teoria se desenvolve. Em primeiro lugar, estes filósofos notam, como já o fizemos, que muitos processos causais - isto é, eventos causando outros, ou objetos atuando sobre outros - têm de ocorrer para termos uma percepção qualquer. Assim, é certo que, ao ter a percepção do meu computador, raios luminosos vindo do meu computador atuaram sobre a minha retina. Ou seja, de alguma maneira, o meu computador atuou causalmente sobre o meu aparato perceptivo. Até aí, tudo bem. Mas, em seguida, diante de todo este processo físico que há entre a percepção que eu tenho e o objeto que desencadeia este processo, estes filósofos introduzem, no plano cognitivo, um intermédio entre o ser que percebe e a realidade. Estes fi lósofos afirmam que aquilo que o sujeito percebe não é o objeto que causa a percepção. O raciocínio destes fi lósofos é o seguinte. Imagine uma série de eventos. O evento A causa B, que causa C, que causa D, que causa P. O evento A é objeto atuando sobre os meus sentidos. P é a percepção que eu tenho. Como não há nenhuma relação causal direta entre os eventos A e P, estes filósofos concluem que o objeto da minha percepção, o objeto que eu percebo, não pode ser o objeto que atua sobre os meus sentidos em A. A idéia por trás deste raciocínio é que o objeto da minha percepção não pode ser algo que esteja causalmente distante da percepção que tenho. O objeto da minha percepção tem de ser algo diverso, algo que se interpõe entre nós e a realidade, em analogia a todo o processo causal, a todo o meio físico, que há entre os eventos A e P. Muitos filósofos chamaram esta entidade intermediária cnu·e nós e a realidade de 'dados dos sentidos'. Para estes filósofos, estes dados dos sentidos são as entidades que aparecem para nós na percepção. Mas nós já vimos que, na percepção, lidamos com diferentes tipos de entidades, como qualidades, objetos e mesmo relações de semelhança. A qual destas entidades cOt-responderiam os tais dados dos sentidos? Às qualidades. Para estes filósofos, os objetos e as relações de semelhança com as quais lidamos na percepção são construída<; a partir


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das qualidades. Chegamos até estas entidades por meio das qualidades. Assim, temos agora, de acordo com a teoria destes filósofos, que estas qualidades aparecem para nós como o resultado da atuação dos objetos reais sobre os nossos sentidos e do que daí decorre no nosso cérebro, e que elas não têm qualquer relação de identidade com estes objetos ou com as propriedades destes objetos. Começamos, então, a ver, na teoria da percepção destes filósofos, como o mundo percebido vai sendo separado do mundo real. O mundo percebido é constituído apenac; por dados dos sentidos. Na percepção, não lidamos com nenhum objeto reaL O mundo real, por sua vez, fica perdido para a percepção, relacionando-se com ela apenas causalmente. Para chegar ao ceticismo com respeito à percepção por meio desta teoria causal da percepção, precisamos dar apenas mais um passo. Quando notamos que as qualidades e, por conseguinte, os objetos dos quais temos consciência na percepção não são os objetos reais e nem as qualidades reais que estes objetos possuem, começamos a questionar de que modo poderíamos obter conhecimento destes objetos reais por meio dos dados dos sentidos que percebemos. E a resposta assustadora parece ser que não podemos. Inicialmente poderíamos até pensar, como fez Locke, haver alguma relação de semelhança entre os dados dos sentidos que percebemos e os objetos cuja atuação sobre o nosso aparato cognitivo nos fez ter estes dados dos sentidos. Assim, algo muito parecido com o meu computador estaria atuando sobre o meu aparato perceptivo fazendo-me ter a percepção que tenho. Contudo, se olharmos bem para este modelo causal do funcionamento da percepção, nós veremos que não temos qualquer razão para pensar que este seja o caso, nem como nos certificarmos que seja este o caso. Se a única relação que temos com os objetos reais é a causal, então não há porque pensar que a atuação deste objeto sobre o nosso aparato perceptivo produzirá em nós a percepção de algo semelhante a ele. Não há nada na relação causal apenas que nos faça pensar que o efeito tem de ser semelhante à sua causa. Por outro lado, mesmo que houvesse essa semelhançapara não entrar na dificuldade de saber que tipo de semelhança é estanão teríamos como nos certificar da sua existência. Como poderíamos saber que o objeto real é semelhante à percepção que ele deu origem, ao


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atuar sobre o nosso aparato cognitivo, se não temos nenhum outro acesso a este objeto a não ser pelos dados dos sentidos que ele provoca em nós? Como podemos saber se a causa é semelhante ao efeito se só temos acesso ao efeito? Não há como. Se não temos como comparar um e outro, nós não temos como saber se são semelhantes ou não. Posta nestes termos, a teoria causal da percepção nos impossibilita de dizermos, com certeza, o que quer que seja sobre a realidade. Como não podemos saber se há alguma semelhança entre o mundo percebido e o mundo real, não podemos eliminar a possibilidade de que aquilo que causa as nossas percepções, o mundo real, não tenha qualquer semelhança com o que percebemos. Estamos fadados, então, a este completo ceticismo? Eu penso que não. Creio haver boas razões para pensarmos que esta teoria causal da percepção não pode ser coerentemente extraída dos fatos que arrolamos a respeito da dependência da percepção à ocorrência de processos físicos. Creio que a teoria causal da percepção põe em cheque os próprios fatos que lhe dão sustentação, e que, por esta razão, há bons motivos para pensar que esta teoria está etTada. Retomemos a série de eventos em que A causa B, que causa C, que causa D, que causa P. Vimos que a razão para certos filósofos afirmarem que o objeto da percepção em P não ser o objeto que atua sobre os nossos sentidos em A é a distância causal que há entre os eventos A e P. Isto significa que uma das p,remissas do argumento destes filósofos é a afirmação da ocorrência da série de eventos de A até P, e que estes eventos estão causalmente relacionados. Mas como, devemos nos perguntar, sabemos que esta premissa é verdadeira? A resposta mais natural seria dizer: ora, simplesmente constatamos pela percepção que este é o caso. Nós simplesmente percebemos os objetos interagindo causalmente conosco, atuando sobre os nossos sentidos. Se eu foco uma lanterna nos olhos de um indivíuo, eu percebo que estou lançando raios luminosos nas retinas deste indivíduo, posso até ver um feixe de raio luminoso, caso o ambiente estivesse escuro, atingindo as suas retinas. Se alguém esbaiTa em mim, percebo a atuação desta pessoa sobre o meu corpo, sobre o meu Lato. Vimos também que parte desta série de eventos que culmina com a percepção diz respeito a eventos que acontecem


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nq cérebro. E sabemos que estes eventos ocorrem e que eles estão relacionados causalmente da mesma maneira em que sabemos que certos objetos atuam sobre os nossos sentidos. Cientistas treinados observaram minuciosamente a fisiologia do nosso cérebro c notaram como as suas células estão relacionadas casualmente, como a atuação de um objeto sobre a retina faz desencadear todo um processo causal no interior do cérebro. Deste modo, devemos dizer que sabemos que a série de eventos de A até P ocorre por meio da própria percepção. Melhor, não sabemos apenas que a série de eventos de A até P ocorre pela percepção, mas também que os eventos da série estão relacionados causalmente. Sem saber ambas as coisas, os filósofos da teoria causal não poderiam falar em "distância causal" e ntre A e P para justificar a afirmação de que o objeto da percepção não pode ser o objeto que, em A, atua sobre os nossos sentidos. Não poderiam sequer falar que toda a série de A até D é causalmente responsável pela ocon·ência do evento P, isto é, da percepção que temos. Por fim, sem saber que a série de eventos de A até P ocorre, e que estes eventos estão relacionados causalmente, não poderiam chegar à conclusão de que a aparição dos dados dos sentidos é causada pela atuação dos objetos reais sobre os nossos sentidos. O problema que temos agora é que tudo isso que falamos que os tais filósofos da teoria causal têm de saber, para sustentar a sua teoria causal, é posto em dúvida pela própria teoria que professam. Daí a sua incoerência. Se a teoria causal da percepção estiver correta, então ela põe em dúvida os próprios fatos que são aduzidos para a sua sustentação. Mas se estes fatos são postos em dúvida, então também não temos mais razões para sustentar tal teoria. Ela simplesmente perde a sua razão de ser. Podemos ainda dizer, contra a teoria causal da percepção, mais duas coisas: primeiro, que a afirmação de que o objeto da percepção não é o objeto que atua sobre os nossos sentidos não se seque do fato de haver uma distância causal entre os eventos A e P e. segundo, que dada a ocorrência dos eventos de A até P, não há qualquer contradição em pensar que o objeto da percepção, o objeto que eu percebo em P, pode ser exatamente o mesmo objeto que, em A, atu a sobre os meus sentidos, e que esta possibilidade, ao contrário da primeira, harmoniza-se perfeitamente com o fato de sabermos que a série de eventos entre A e P ocorre e


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que estes eventos estão relacionados causalmente. Vejamos, então, uma coisa de cada vez. Os filósofos da teoria causal afirmam que a partir do fato de os eventos A e P estarem distantes causalmente se segue que o objeto que atua sobre os sentidos em A não pode ser o objeto da percepção. Isto nos leva, então, a pensar, por contraposição, que, se não houvesse essa distância causal entre um evento e outro, então o objeto da percepção seria o objeto que causa a percepção. Mas será que faria alguma diferença? Será que faz alguma diferença o fato de haver ou não uma distância causal entre o evento de um objeto atuando sobre os nossos sentidos e o evento de termos uma percepção para pensarmos que o objeto da percepção é ou não o objeto que atuou sobre os nossos sentidos? Será que uma e outra coisa estão mesmo relacionadas desta maneira? Eu suspeito que não. Imaginemos que os processos fisiológicos do nosso cérebro fossem dispensáveis para a percepção, que bastasse os objetos atuarem sobre os nossos sentidos para termos as percepções que temos. Nesta situação hipotética, o evento A estaria causando o evento P diretamente, sem intermediários. Agora, eu pergunto, numa situação como esta, parece haver mais razão para pensar que o objeto da percepção é o objeto que atua sobre os nossos sentidos do que para pensar que não se tratam do mesmo objeto? Noutras palavras, o simples fato, por exemplo, do objeto x estar atuando sobre os meus sentidos e isto por si só, nesta situação hipotética, causar a minha percepção implica que a minha percepção tem de ser de x? Até aonde posso ver, a situação apenas não sugere ou não nos dá razões para dizer que a minha percepção tem de ser de x. Pode ser de uma outra coisa qualquer. Imaginemos algo um pouco diferente. Imaginemos que os cientistas descobriram o último evento da série que culmina com a percepção. O último evento consiste numa descarga elétrica emitida por um certo neurônio, e o que isto desencadeia daí para frente no cérebro não é mais causalmente relevante para a ocorrência da percepção. Temos então o evento D, o último evento causalmente relevante para a produção da percepção. Eu pergunto, novamente, há algum motivo para pensarmos que o objeto que está lá emitindo uma descarga elétrica no evento D tem de ser o objeto da minha percepção, haja vista a proximidade causal entre os eventos D e P? Agora a resposta


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óbvia é que não. Aliás, se fosse assim, seria de se esperar que as nossas percepções fossem o tempo todo de coisas que acontecem ou que há no cérebro. Mas este, nem de longe, é o caso. Assim , podemos dizer que a proximidade causal não é relevante para determinarmos qual é o objeto da percepção. Por contraposição, a distância causal também não é. Haver ou não uma distância causal entre os eventos A e P é irrelevante para se o objeto da percepção é ou não o objeto que, em A , atua sobre os sentidos. Talvez haja mais uma razão, associada à que discutimos acima, para o filósofo da teoria causal ter feito o deslocamento do objeto da percepção, ter dito que ele não é o objeto que atua sobre os sentidos, mas sim algo diferente deie, os dados dos sentidos. Seu raciocínio poderia ser o seguinte: "de fato, a percepção não pode ter por objeto algo tão distante dela, como o objeto que atua sobre os sentidos. Deve ser algo mais próximo. O que há de mais próximo na série causal que culmina com a percepção são os eventos fisiológicos. Então devemos acomodar os dados dos sentidos em algum lugar do cérebro. A natureza destes dados dos sentidos deve estar intimamente relacionada com os eventos fisiológicos do cérebro, haja vista que estes são imprescindíveis para a ocotTência da percepção. Claro que não temos de esperar que haja dados dos sentidos ou qualidades espalhadas pelo cérebro, nem que os dados dos sentidos que nos aparecem têm de ser os neurônios ou os processos cerebrais. A única coisa que temos de dizer, ao relacionar tão intimamente a natureza dos dados dos sentidos com os eventos fisio lógicos do cérebro, é que a explicação de por que os dados dos sentidos são como são e a explicação de por que eles aparecem quando aparecem se dará em termos da fisiologia do cérebro. Agora, como isto será feito é algo que me escapa, e que só a ciência poderá nos di7.er", conclui o filósofo da teoria causal. Assim, a razão extra para o filósofo da teoria causal pensar que o objeto da percepção tem de ser algo mais próximo da percepção é a sua adesão àque la teoria redutiva da percepção, da qual falamos no início do texto. Mas é fácil ver que esta razão extra também não é suficicnre c é até mesmo irrelevante para estabelecer a idéia de que o objeto da percepção não pode ser o objeto que atua sobre os sentidos. A idéia do filósofo


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da teoria causal é que acomodando os dados dos sentidos no cérebro, sua teoria fi c rui a mais em acordo com a científica teoria reducionista da percepção. Mas o fato é que não fica nem mais nem menos em acordo. Já falrunos que, até o momento, não há idéia de como coiTelacionru· a experiência perceptiva com processos fisiológicos, independentemente de quais entidades da experiência perceptiva nós estamos privilegiando, se as qualidades, as parecenças ou os objetos. E a dificu ldade não está apenas em como correlacionar os objetos da percepção, quaisquer que sejrun eles, com processos fisiológicos, mas também, e principalmente, em como con·elacionar o próprio ato perceptivo. O ato perceptivo envolve a idéia de um sujeito com a capacidade de se referir, envolve a idéia de intencionalidacle. Quando digo que estou vendo x, estou dizendo, entre outras coisas, que eu estou consciente de x, que a minha atenção está dirigida a x. E o fato é que nós não temos idéia, até o momento, de como essa capacidade que temos de se referir poderá ser correlacionada ou reduzida aos processos físicos e ou fisiológicos. Dizer, então, que os objetos da percepção são os dados dos sentidos e que a sua natureza está intimamente relacionada com os processos cerebrais em nada facilita ou ajuda a teoria reducionista da percepção em resolver o seu problema de como explicar a experiência perceptiva como um todo nos termos da física e da fisiologia. Primeiro, porque não é nem mais nem menos certo que as qualidades são mais ou menos redutíveis aos processos fisiológicos que a-; parecenças ou os objetos que atuam sobre os sentidos, se é que algumas destas entidades são mesmo susceptíveis a esta redução. Segundo, porque qualquer que seja a entidade que escolhermos como sendo o objeto da percepção, não teremos em nada diminuído a dificuldade de como explicar, em tennos fisiológicos, o componente intencional da percepção. Resta também notar que nada há de contrário a esta científica teoria reducionista da percepção dizer que, embora possamos encontrar uma base fisiológica para a inte ncionalidade, o objelO da percepção poderá continuar sendo, em muitas ocasiões, o objeto real e exterior que atua sobre os nossos sentidos. Ou seja, nós podemos encontrar os processos fisiológicos responsáveis pela nossa capacidade de referir. mas aquilo a que nos referimos, seja na percepção, seja em pensamento, pode muito bem ser algo externo ao nosso cérebro. E é


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até mais sensato que seja este o caso. Se pensarmos, ao contrário, que todos as emidades que são dadas na percepção são, de alguma maneira, redutíveis a processos fisiológicos, então o que diremos dos processos fisiológicos e dos neurônios que podemos perceber? Diremos que eles são redutíveis a eles mesmos? Isto não faz sentido. Reduzir uma ontologia à outra só faz sentido na suposição de que esta última tenha mais realidade que a primeira. Assim, quando alguém diz que os objetos da percepção têm de ser reduzidos aos objetos da física e ou da llsiologia, está supondo haver mais realidade nestes últimos do que nos primeiros. Mas, se encontramos estes últimos entre os primeiros, e, de fato, os encontramos quando percebemos objetos da fisiologia, então este objeto percebido é tão real quanto os o~jetos da fisiologia. Vemos deste modo, que nem a distância causal entre os eventos A e P, nem a adesão à teoria reducionista da percepção são razões suficientes para estabelecer que os objetos da percepção são os dados dos sentidos, entidades cuja natureza está intimamente relacionada aos processos fisiológicos do cérebro. A distância causal enu·e A e P não é empecilho para que o objeto da percepção possa ser, como muito freqüentemente é, o objeto exterior que atua sobre os sentidos. Quem não percebe isto está. certamente, deixando-se enganar pela idéia de que tudo o que temos a dizer para explicar a percepção é enunciar a série de eventos causalmente relacionados que culmina com a ocorrência da própria percepção. Mas esta é apenas parte da explicação. A outra pane da explkação está na capacidade que nós temos de lidar, na percepção, com objetos que estão distantes causalmente da ocorrência da percepção. Atribuir este poder ~t percepção é, além disso, a única maneira que temos de dar sentido a todo esse conhecimenlo que temos do quanto a percepção é dependente da ocorrência de certos eventos físicos e fisiológicos, ao conhecimento que temos da série de eventos que culmina com a ocorrência da própria percepção. Nós sabemos que há objetos atuando sobre os nossos sentidos, que coisas acontecem no nosso cérebro porque a percepção tem a capacidade de se referir, de lidar com objetos que estão causalmente distantes da sua ocorrência. Claro que a série de eventos de A até Pé causalmente responsável também por aquilo a que vamos nos referir na percepção.


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por aquilo que nos é dado na percepção. A percepção não é Livre como o pensamento, que lida com aquilo que lhe aprouver. Alterando-se a série de eventos, alteramos aquilo que nos é dado na percepção. Se não é uma árvore que atua sobre os meus sentidos, mas sim um pássaro, então o que se apresenta para mim na percepção não é uma árvore, mas sim um pássaro. Os eventos fís icos causalmente responsáveis pela percepção estão intimamente relacionados com esta capacidade da percepção em lidar com objetos que atuam sobre os sentidos. No entanto, e este é o ponto, estes eventos físicos não implicam que a percepção não tem a capacidade de lidar com o que está causalmente distante da sua ocorrência. Assim, podemos concluir que, a partir do fato empírico de que a ocorrência da percepção depende da ocorrência de certos eventos físicos e fisiológicos, não podemos extrair a teoria causal da percepção defendida por alguns filósofos e muito menos o ceticismo que daí decorre. A partir deste fato, não há razão para pensar que há uma cisão entre o mundo percebido e o mundo real. Conrudo, alguns filósofos afirmam que não precisam do fato de haver uma distância causal entre o objeto que atua sobre os sentidos e a ocorrência da percepção para chegar à teoria causal da percepção, para concluir que lidamos na percepção apenas com os tais dados dos sentidos. Estes filósofos argumentam da seguinte maneira. Imaginemos duas séries diferentes de eventos. A primeira série é: A que causa 8 , que causa C, que causa D , que causa P. A segunda série é: X que causa 8, que causa C, que causa D, que causa P. As séries diferem apenas pelo primeiro evento, o evento que diz respeito àquilo que atua sobre os sentidos. Depois daí, tudo continua igual, inclusive a percepção que temos. Os eventos de B a C dizem respeito a coisas q ue ocorrem no cérebro. Se, de fato é possível haver, prossegue o filósofo da teoria causal, essas duas séries de eventos, então teremos provado que o primeiro evento de ambas as séries é irrelevante para a determinação da percepção que temos em P, que os únicos eventos relevantes para determinar a percepção que temos, o que nos é dado na percepção, são os eventos de 8 a D. Como estes eventos dizem respeito a processos que ocorrem no cérebro, podemos dizer com confiança que a percepção, inclusive o seu objeto, têm a ver com coisas que acontecem apenas no cérebro. O que


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nós percebemos, concluem estes filósofos, são os dados dos sentidos, entidades cuja natureza está intimamente relacionada aos processos fisiológicos do cérebro. Cientistas dizem que a possibilidade de haver estas duas séries de eventos é bem real. É perfeitamente possível, em teoria, extrair o sistema nervoso central de um indivíduo, colocá-lo numa cuba que lhe supra com os nutrientes necessários e que estimule, por meio de um super computador, os terminais nervosos deste sistema de forma que ele tenha as mesmas percepções que teria se ele estivesse ligado ao seu corpo. O fato, dizem os cientistas, é que nós podemos, por meios diversos, produzir os mesmos estímulos nos terminais nervosos, provocando, então, as mesmas reações no cérebro a partir de causas diferentes. Conquanto seja possível este cenário, é ele prova contundente de que, em qualquer ocasião, o que nós percebemos tem de ser os tais dados dos sentidos? Não me parece que seja este o caso. Vejamos o argumento com maiores detalhes. Suponhamos que o evento P, em ambas as séries, seja a percepção de uma árvore. Na primeira série, temos uma árvore real atuando sobre os nossos sentidos, na segunda, estímulos elétricos coordenados por um computador. Temos de tomar o cuidado para não tomarmos esta percepção da árvore como tendo a mesma natureza, isto é, que o conteúdo desta percepção tenha a mesma na tu reza em ambas as séries. Que o conteúdo destas percepções seja o mesmo e te11ha a mesma natureza em ambas as percepções é o que o argumento tenta provar. Não podemos, portanto, tomar como premissa a própri a conclusão. Ambas as percepções são a mesma apenas no sentido de que elas aparecem para nós como sendo a mesma. Não há diferença qualitativa entre uma e ouu·a percepção da árvore. O argumento visa, então, estabelecer que a única explicação que temos para este fato, para o fato de a percepção da árvore parecer ser a mesma em ambos os casos, é que i) o conteúdo de ambas as percepções tem a mesma natureza e que i i) a natureza deste conteúdo é tal que ele não diz respeito ao que atua sobre os sentidos, mas à algo que está intimamente relacionado ~l natureza dos processos fisiológicos do cérebro. Se o que percebemos, argumentam os filósofos da teoria causal, fosse o objeto que atua sobre os sentidos, então, no segundo caso. não perceberíamos uma árvore, mas sim, um computador. Como não percebemos o


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computador, mas sim uma árvore, então, neste caso, o que percebemos não se trata do objeto que atua sobre os sentidos. Esta árvore percebida é uma árvore il.usória, uma árvore cuja natureza está intimamente relacionada à natureza dos processos fisiológicos do cérebro. Ora, é de se esperar, então, que a outra árvore percebida, ainda que tendo por causa uma árvore real , tenha a mesma natureza daquela árvore anterior, do contrário, como poderíamos explicar o fato de uma ser indistinguível da outra? Ou, então, por que esperaríamos que, num caso, aquilo que percebemos tem uma natureza intimamente relacionada à natureza dos processos fisiológicos e, no outro caso, diz respeito ao próprio objeto que atua sobre os sen tidos? O mais natural é pensar que, em qualquer situação, a percepção lida apenas com um tipo de entidade. Por mais forte que este argumento pareça ser, ele não é conclusivo. Além disso. há razões para pensar que a sua conclusão não pode ser coerentemente extraída das suas premissas. Vejamos uma coisa de cada vez. Nada há de absurdo em pensar que, no caso em que a percepção da árvore é causada pela atuação da árvore sobre os nossos sentidos, a árvore percebida é exatamente a árvore que atua sobre os nossos sentidos. O fato de termos de reconhecer que, na outra situação, a árvore percebida não é uma árvore real e que, talvez, esta árvore percebida tenha uma natureza intimamente re lacionada à natureza dos processos fisiológicos não implica que o conteúdo de rodas as nossas percepções tenha este mesmo tipo de natureza. Nem o fato de não pode1mos distinguir uma percepção da outra implica tal coisa. Este fato é de ordem epi stêmica, diz respeito à nossa capacidade ou não de reconhecer uma dife rença entre duas entidades, enquanto o fato de se ambas percepções são diferentes ou não é um faLo ontológico, diz respeito à natureza desLas percepções. Tentar extrair este último fato do primeiro não é legítimo. Com efeito, nada há de absurdo em pensar que estas duas percepções tenham naturezas di versas, embora e las aparentem ser idênticas. A hipótese, portanto, de que possamos ser cérebros numa cuba não implica que nenhuma de nossas percepções possa ser uma percepção do objeto que atua sobre os sentidos. Implica apenas que, enquanto somos cérebros numa cuba, não estamos percebendo os objetos que atuam sobre os nossos sentidos e que, nesta situação, o que percebemos tal vez


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tenha uma natureza intimamente relacionada à natureza dos processos fisiológicos. Mas isto não implica que, enquanto não somos cérebro numa cuba, não podemos perceber os objetos que atuam sobre os nossos sentidos. Os eventos A e X podem ser, afinal, relevantes para a determinação do que percebemos; no primeiro caso, o evento A pode contribuir para determinar que aquilo que percebemos é o objeto que está atuando sobre os sentidos, no segundo, para determinar que aquilo que percebemos tem uma natureza intimamente relacionada à natureza dos processos fisiológicos. Causas diversas podem fazer com que a narureza das percepções também seja diversa. O filósofo da teoria causal irá me dizer que, por enquanto, eu apenas disse o que pode ser o caso e que o que eu digo que pode ser o ca<~o não tem mais direito de ser o caso do que aquilo que ele diz ser o caso. Ele está cetto. Além d isso, ele poderá me dizer que forneceu razões para pensarmos que o que ele diz que pode ser o caso é o caso, enquanto que eu não dei nenhuma. Ele poderá argumentar, por exemplo, que a sua explicação da percepção é muito mais econômica na sua ontologia, ao pressupor que todas as percepções têm a mesma natureza. A minha explicação não. Na minha explicação, temos dois tipos de percepções, as percepções que têm por conteúdo os próprios objetos que lhe deram origem, ao atuar sobre os nossos sentidos, e percepções cujo conteúdo está intimamente relacionado à natureza dos processos fisiológicos. Sendo assim, dirá o fi lósofo da teoria causal, a sua explicação é preferível a minha. Eu penso, no entanto, haver fot1es razões para pensarmos que há os dois tipos de percepções ou, pelo menos, que há percepções de objetos que atuam sobre os nossos sentidos. Penso, aliás, que não há como dar sentido à hipótese de que somos cérebros numa cuba sem pressupor que algumas de nossas percepções podem ser percepções de objetos que atuam sobre os sentidos. Imaginemos por um instante o contrário, que percebemos apenas os tai s dados dos sentidos. Perguntemo-nos agora se, nesta situação, podemos pensar q ue somos cérebros numa cuba. Não vejo como poderíamos. O que tem de ser o caso para que possamos ser cérebros numa cuba? Em primeiro lugar, temos de ter um cérebro, uma cuba e um computador que enviará sinais elétricos aos terminais nervo-


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sos do cérebro encubado. Assim, o cérebro, a cuba e o computador têm de ser objetos reais para que possamos ser cérebros numa cuba. Tem de ser verdade, além disso, muitas das coisas que dizemos sobre estes objetos; por exemplo, que não podemos ter as percepções que temos sem a ocorrência de certos fenômenos fi siológicos, que os cérebros são constituídos por neurônios, que os neurônios são sensíveis a estímulos elétricos, que computadores funcionam a base de eletricidade etc. Tudo isso tem de ser verdade para que possamos ser cérebros numa cuba. Todavia, quando falamos de cérebros, cubas e computadores, estamos falando de objetos que percebemos. Além disso, muito do que sabemos destes objetos viemos a sabê-lo por meio da percepção. Sabemos, por exemplo, quais são os terminais nervosos do cérebro pela visão. O mesmo podemos dizer dos contornos do computador e da cuba. Sereürássemos da concepção que temos destes objetos tudo o que sabemos a respeito deles por meio da percepção, quase nada restaria. Não teríamos nem mesmo objetos com contornos delimitados. Não poderíamos mais, com uma concepção tão austera destes objetos, falar de um objeto, o cérebro, sendo acoplado com um outro, a cuba, para então entrar em relações causais com um terceiro, o comptuador. Só podemos falar e pensar tais coisas estando de posse de uma concepção mais completa e determinada destes objetos. Temos de poder pensar ao menos em seus contornos para podermos pensar num objeto sendo acoplado com um outro. Todavia, só podemos adicionar à concepção que temos destes objetos as propriedades de forma e contorno se não subtJ·airmos desta concepção o que viemos a saber destes objetos por meio da percepção. O fato é que apenas pela percepção podemos saber se tais objetos têm essas propriedades. Se subtraíssemos da concepção destes objetos tudo o que viemos a saber deles por meio da percepção, então jamais poderíamos vir a ter a concepção deles necessária para pensarmos na situação em que somos cérebros numa cuba. Assim, só podemos ser cérebros numa cuba se cubas, cérebros e computadores são reais tais como os percebemos, tendo, ao menos, as dimensões e os contornos e as propriedades que os percebemos ter. Contudo, se as nossas percepções são percepções de objetos cuja natureza está intimamente relacionada à narureza de processos fisiológicos, então rudo isto que dizemos a respeito


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dos cérebros, cubas e computadores com base na percepção não pode ser uma verdade sobre a realidade. Nesta situação, os cérebros, as cubas e os computadores percebidos são, na verdade, processos fisiológicos. Mas se é assim, então o pensamento de que podemos ser cérebros numa cuba não diz respeito a uma situação em que podemos, de fato, ser cérebros numa cuba, mas sim a uma situação que diz respeito a uma cet1a configuração fisiológica do nosso cérebro. Assim, só podemos pensar coerentemente que podemos ser cérebros numa cuba se não é verdade que todas as nossas percepções são necessariamente percepções de objetos cuja natureza está intimamente relacionada à natureza dos processos fisiológicos. Para podermos ser cérebros nwna cuba, o que percebemos e pensamos ser cubas, cérebros e computadores tem de poder ser real tal como o percebemos e pensamos ser, o que só é possível se não há essa ligação intrínseca entre o conteúdo do que percebemos e a natureza dos processos fisiológicos. O filósofo da teoria causal não pode, deste modo, usar o cenário do cérebro numa cuba para chegar à sua conclusão de que não percebemos, em nenhuma situação, objetos reais. Ele até pode manter-se preso a esta conclusão, mas não pode mais valer-se das premissas que ele supunha sustentá-la. A sua teoria sobre a percepção perde, assim, a razão de ser. Por outro lado, se consideramos que é mesmo possível setmos cérebros numa cuba, o que é verdade, se há cérebros, cubas e computadores e se tais objetos são como nós dizemos que eles são pela percepção e pela ciência, então não é verdade que todas as nossas percepções são necessariamente percepções de objetos cuja natureza está intimamente relacionada à natureza dos processos fisiológicos do cérebro. Algumas de nossas percepções de cérebros, cubas e computadores, enquanto não somos cérebros numa cuba, podem ser percepções de cérebros, cubas e computadores reais. É preciso deixar claro agora a relação que estas reflexões têm com o problema cético da realidade exterior. Nós chegamos à conclusão de que não temos como sustentar a tese de que nenhuma de nossas percepções são percepções de objetos reais a partir do fato de haver uma distância causal entre a atuação de um objeto sobre os nossos sentidos e a percepção que temos e do fato de que uma "mesma" percepção possa ser


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produzida por causas diversas. Concluímos também que se é verdade que tais fatos são fatos do mundo, então algumas de nossas percepções podem ser percepções de objetos reais. O problema é que isto não é suficiente para afasrar as preocupações céticas. Garantimos apenas, com as nossas reflexões, que podemos ter percepções de objetos reais e qoe certamente as temos se os fatos referidos acima são fatos da realidade. Mas o cético está completamente legitimado em argumentar que, embora possamos ter percepções verídicas, percepções de objetos reais, não podemos. no entanto, distingui-las das percepções ilusórias, aquelas percepções cuja natureza está intimamente relacionada à natureza dos processos fisiológicos do cérebro. O cético pode dizer: "concedo-lhe que, enquanto não somos cérebros numa cuba, podemos perceber o que está atuando sobre os nossos sentidos e que, enquanto somos cérebro numa cuba, percebemos apenas objetos cuja natureza está intimamente relacionada à natureza dos processos fisiológicos. Como, no emanto, ambas as percepções são indistinguíveis, não podemos saber se somos cérebros numa cuba ou não. por conseguinte, dada uma percepção qualquer, não podemos saber se ela se trata de uma percepção verídica ou de uma percepção ilusória". Eu concordo com o cético. Mostrar que nem todas as nossas percepções são percepções de objetos cuja natureza está intimamente relacionada à natureza dos processos fisiológicos não é suficiente para afastar as preocupações céticas, embora, eu penso, seja um passo necessário.

Bibliografia Locke, J. Ensaio Acerca do Entendimento. São Paulo: Editora Nova Cultura, 1988 (Coleção Os Pensadores). Sacks, O. Um ammpólogo em Marte: ,çete histórias paradoxais. São Paulo: Companhia da-; Letras, 1995.

erosmc@yahoo.com erosmc @terra. com. br


o FALSEACIONISMO METODOLÓGICO E A PRAGMÁTICA LINGÜÍSTICA GELSON LISTON

Unic:amp (doutorando)

Muitas foram as tentativas de solução do problema clássico da indução. Entre ela<; destaca-se a posição de Goodman que introduz um novo problema ou, como ele chama, "o novo enigma da indução" (Goodman 1991) que pretende ser mais preciso do que o velho problema, ou seja, o problema de Hume. Para Goodman, o problema de Hume está centrado na possibilidade de explicar se as regularidades do passado (instâncias particulares observadas em conjunção consrante) podem justificar as inferências relativas ao futuro. A questão principal, no entender de Goodman. é saber que tipo de regularidade serve para fazer 'boas' inferências sobre o comportamento futuro. E mais que isso, devemos explicar por que algumas regularidades servem para fazer ' boas' induções e outras não. Goodman, inicialmente, recorre a Hempel para melhor explicitar a relação de confirmação que pode existir entre as evidências disponíveis e os enunciados universais, da qual se ocupa a lógica indutiva. As dificuldades da confirmação, a saber, em que medida as evidências disponíveis apóiam uma determinada teoria, podem ser meU10r compreendidas a partir do paradoxo da confirmação. ' Com o paradoxo da confirmação, Hempel questiona a relevância de determinadas evidências positivas em relação à teoria que apóiam, tendo em vista o princípio de equivalência lógica. Considerem-se os seguintes enunciados log icamente equivalentes: ( 1) Todos os corvos são pretos. Vx(Cx--+ P.x) Cupani, A. O. & Mortari, C. A. (orgs.) 2002. Linguagem e Filosofia. Anais do Segundo

Simpósio Internacional Principia. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 6. Florianópolis: NEL, pp. 181-90.


L82

Gelson Liston

(2) Todas as coisas não-pretas são não-corvos. Vx(-.Px--+ -.Cx)

Equivalência lógica: Vx(Cx--+ Px)

=Vx(-.Px--+ -.Cx)

Se aceitarmos o princípio de que tudo que confinna uma hipótese também confirma as hipóteses logicamente equivalentes, então podemos concluir que qualquer objeto que não seja preto e não seja corvo, confirma as hipóteses (1) e (2) acima. Assim, por exemplo, a observação de uma cadeira azul confirma a hipótese (2) e, conseqüentemente, a hipótese ( 1), mesmo que a evidência seja totalmente irrelevante para a hipótese (2) em questão. A preocupação de Goodman diz respeito ao tipo de evidência, ou regularidade observada que seja, de fato, relevante para a generalização. Para canto, Goodman faz uma distinção entre afinnações (generalizações) de tipo legal e afi nnações meramente acidentais: Só uma afinnação de tipo legal - não importando a sua verdade ou falsidade ou a sua relevância científica- é apta a receber confirmação a partir de uma instância; afirmações acidentais não o são. Temos então com certeza de buscar um meio de discernir entre afirmações de tipo legal e de tipo acidental. (Goodman 1991, p. 86)

A fim de mostrar a importância de tal distinção, Goodman apresenta o problema com o aux11io das seguintes hipóteses:2 (a) Suponha-se que são verdes todas as esmeraldas examinadas antes de um momento t. Logo, as evidências disponíveis apóiam a hipótese de que 'todas as esmeraldas são verdes'. Vx((Ex A Ox)--+ Vx) :. Vx(E.x--+ Vx)

Para inferir a segunda hipótese (b), Goodman introduz o predicado 'verdul' com a seguinte definição: um objeto é verdul se e somente se tiver sido examinado antes do momento 1 e for verde, ou for examinado depois de te for azul (cf. Goodman 1991 , p. 86). (b) Suponha-se que são verduis todas as esmeraldas examinadas antes de um momento 1. Logo, as evidências disponíveis apóiam a hipótese de que 'todas as esmeraldas são verduis'.


O Falseacionismn Metodológico e a Pragmática Lingüística

Vx((Ex 1\ Ox)

4

Gx) :. Vx(Ex

4

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Gx)

Dadas as hipóteses acima (a) e (b), percebemos que as mesmas evidências (todas as esmeraldas observadas antes de t são verdes) confirmam previsões inconsistentes, ou seja, dadas as evidências de que as esmeraldas observadas antes de t eram verdes e a definição de verdul acima, podemos inferir, por exemplo, que a próxima esmeralda a ser observada (depois de t) será verde e verdul. O problema é que se a esmeralda for verdul ela será azul, e não verde. O resultado paradoxal confinna a necessidade de se ter um critério para determinar a legalidade das generalizações e explicar a relação de confirmação entre evidências e conclusões, evitando "o intolerável resultado de que qualquer coisa confirma qualquer coisa" (Goodman 1991, p. 87). Esta dificuldade parece ser muito mais complexa do que o problema de Hume, ou seja, além de explicar o problema das inferências indutivas, é necessário também definir quais os predicados que servem para fazer 'boas' induções, uma vez que a teoria da confinnação não consegue excluir as evidências irrelevantes, pois a fonna lógica das inferências é a mesma: Não temos até aqui qualquer resposta ou chave promissora para uma resposta à questão sobre o que distingue hipóteses de tipo legal ou confirmáveis de hipóteses acidentais ou não-confirmáveis; c aquilo que pode ter parecido inicialmente uma dificuldade técnica menor ganhou a estatura de um obstáculo maior ao desenvolvimento de uma teoria da confirmação satisfatória. Este é o problema a que chamo o novo enigma da indução. (Goodman 1991, p. 91)

Goodrnan, a fim de resolver o problema da confirmação, busca um critério que possa identificar as hipóteses de tipo legal com as hipóteses projetáveis e as hipóteses acidentais com as hipóteses não-projetáveis. Tal distinção, nos diz Goodman, não pode ser puramente sintática, o que pode ser evidenciado pelos exemplos acima (a) e (b), onde (a) é uma hipótese projetável (de tipo legal), enquanto que (b) é não-projetável (acidental). A questão, então, é saber que tipo de projeções podem ser consideradas validamente feitas.


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Gelson Liston

A primeira medida de Goodman é definir o tipo de hipóteses que constituí uma projeção.3 Tal hipótese, quando feita, deve possuir alguns casos indeterminados, alguns casos positivos e nenhum caso negalivo (cf. Goodman 1991 , p. 99). Dada a definição de hipóteses projetáveis, devemos, num momento seguinte, definir as hipóteses que possam ser assumidas como Legitimamente projetáveis (legais). Sabemos, pela definição acima, que uma hipótese legitimamente projetável não pode ser violada ou esgotada no momento de projeção. A questão, então, é obter um critério que seja suficientemente capaz de excluir as hipóteses projetáveis acidentalmente, ou seja, aquelas que não são nem violadas nem esgotadas, mas que, no entanto, não são de tipo Legal. Um exemplo de tal hipótese, dado por Goodman, é a de que todas as esmeraldas são verduis (hipótese (b) acima). Goodman, na tentativa de resolver o problema da projetabílidade legal, analisa as duas projeções (a) e (b) em conOito e busca um cri tério que permita decidir qual entre os dois predicados verde e verdul constitui uma projeção de tipo legal. A tese de Goodman é a de que o problema da projetabilidade pode ser resolvido ao consultarmos o registro de projeções passadas dos predicados em questão, ou seja, utilizarmos o conhecimento relevante que dispomos. Assim, a preferência pelo predicado verde tem como critério as s uas atuações passadas: Entre "verde" e "verdul", é claro que causa maior impressão o currículo de "verde", um veterano de projeções anteriores c muilo mais numerosas. Podemos dizer que o predicado "verde" está muito melhor entrincheirado do que o predicado •·vcrdul''. (Goodman 1991, p. 102) O entrincheiramento (ent renchment) de um predicado projetáveltorna-se o fator de maior importância no que d iz respeito à projeção de hipóteses à partir da uniformidade de experiências passadas. Entre hipóteses projetáveis em contUto opta-se peJa que tiver um predicado melhor entrincheirado, desde que possamos saber qual dos predicados é, de fato, melhor entrincheirado ou consolidado. O entrincheiramento, segundo Goodman, deriva do uso da linguagem e só será efica7., como critério de decisão, se a di ferença entre os predicados for evidente:


O Falseacionismo Metodológico e a Pragmática Ungiifstica

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Duas hipóteses não têm o mesmo entrincheiramento se uma rem um amecedcme melhor e ntrincheirado do que a outra e um conseqüente não menos entrincheirado do que ela, ou se tem um conseqüente melhor entrincheirado e um antecedente não menos enuincheirado. (Goodman 199 1, p. 106)

A introdução de predicados novos não caracteriza um problema de projeção na medida em que o e ntrincheiramento destes predicados pode ser adquirido através dos predicados coextensivos bem entrincheirados. Deste modo, um novo predicado herda entrincheiramento. A contribuição de Goodman ao problema da indução é, sem dúvida, de grande importância, embora o problema lógico da indução continue sem resposta. O que Goodman faz é substituir o problema da validação lógica, que é o que mais nos interessa ao tratrumos da metodologia ciemífica, pelo problema da confirmação indutiva. A argumentação de Goodman te m como objetivo discutir a problemática da indução dando atenção aos aspectos pragmáticos da linguagem. A nova abordagem oferecida por Goodman procun validar o uso indutivo a partir de usos e práticas lingüísticas mostrando que é possível distinguir induções válidas de induções inválidas a parti r da noção de projetabilidade de tipo legal e de projetabilidade de tipo acidental. No entanto, não podemos negligenciar o fato de que Goodman utiliza o termo validade em um sentido completamente distinto daquele que estamos usando quando nos re ferimos à validade lógica, tendo como referência a lógica dedutiva clássica, na qual é logicamente impossível que as premissas de um argumento sejam verdadeins e a conclusão falsa. O que Goodman faz é propor um critério que possa defin ir os tipos de projeções tidas como válidas e associa a essas projeções a noção de validade indutiva. Enfim, não concordamos com a idéia de que o problema lógico da indução possa ser dissolvido au·avés da reformulação goodmaniana feita a partir de investigações da prática lingüística. O problema é reformulado como um problema prag mático, o que não significa ser uma solução ao problema de Hume. O ru·gumento de Goodman perde sua força se interpretarmos o mé[Qdo científico sem proccdimenros indutivos, onde as hipóteses não são


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Gel.mn Lisron

vistas como generalizações, mas como tentativas ousadas para a solução de algum problema cienti ficamente relevante. Assim , o enunciado 'todas as esmeraldas são verduis' passa a ser desquaUficado não pelo fato de o predicado verdul não possuir entrincheiramento, mas por não constituir uma hipótese tentativa, o u seja, o enunciado não está situado em algum problema existente, tornando-se totalmente vago. É neste sentido que queremos expressar, ainda que brevemente, a importância do falseacionismo metodológico de Karl Popper, que se apresenta como dispositivo de avali ação e seleção de teorias livremente propostas para a solução de problemas. Tais teorias são construções hipotéticas vinculadas a estes problemas científicos. De acordo com este método, as evidências empíricas disponíveis não servem para apoiar teorias, mas para testá-las e, se possível, para falseá-las. O falseacionismo metodológico de Popper enfrenta o desafio de Hume, mantendo a racionalidade nos procedimentos científicos. Por ser um método crítico, sustentado pela lógica dedutiva, o falseacionismo parece ser um critério eficaz que garante o controle empírico das teorias científicas. pemlitindo uma escolha racional entre teorias concorrentes. O processo de substituição de teorias, seg undo a metodologia falseacionista, se dá mediante críticas cientificamente frutíferas, a saber, críticas que nos conduzem a teorias cada vez melhores. Neste caso, se o resultado de um teste é negativo, ou seja, se uma observação contradiz a conseqüência prevista pela teoria testada, o que nos permite inferir o seu falseamento, esta será abandonada porque dispomos de outra teoria que resistiu aos testes, superando sua concorrente. Rejeitar uma teoria, ou um sistema teórico. implica a aceitação de outra 4 e tal substituição pode ser feita mesmo na ausência de uma inconsistência entre observação e teoria. O que nos parece é que Goodman defende a possibilidade de distinguirmos bons argumentos indutivos de maus argumentos indutivos tendo como base a pragmática da ling uagem. Se nossa interpretação estiver correta, então a contribuição de Goodman não dissolve o problema da indução tal como o compreendemos, ou seja, o problema de oferecer urna justificação lógica para as inferê ncias indutivas. O que Goodman propõe, é um critério de escolha entre hipóteses enquanto generaliza-


O Fa/seacionismo Metodol6gico e a Pragmâtica Lingüística

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ções indutivas e uma definição mais precisa de instâncias positivas, ou instâ11cias de confirmação. Além de Goodman, Quine também se voltou ao problema da indução tomando como base de investigação a pragmática lingüística. Para Quine, a epistemo logia, compreendida como um capítulo da psicologia e da l.ingüística,5 deve ocupar-se do contexto de descoberta, ou seja, a fonna pela qual elaboramos nossas teorias. A epistemologia naturalizada não se preocupa mais com a justificação do conhecimemo, apenas o descreve como um fenômeno natural. 6 Tal epistemologia preocupa-se com a re lação entre os estímulos, ou informações recebidas (input) por um sujeito humano e as descrições do mundo que este sujeito fornece (output) (cf. Quine l985a, p. 164). Para analisar esta relação é preciso fazer uma investigação pragmát.ica em uma determinada comunidade ling üística, observando se a mesma estimulação provoca, em diferentes indivíduos, a mesma descrição. A partir da investigação pragmática, em uma comunidade lingüística, Quine vê a possibil idade de defin ir sentenças observacionais. É deste modo que Quine chega à seguinte definição: "( . .. ) as sentenças observacionais são aquelas a respe ito das quais todos os membros da comunidade estarão de acordo, quando submetidos à mesma esti mulação" (Quine l985a, p. 167). A importância de defin ir sentença-; observacionais é dada devido à função destas na relação e ntre evidência<> e teorias, a saber, constituir o "tribunal intersubjetivo das hipóteses científicas". Ao descrever o conhecimento humano, Quine defende a lese de que o ser humano dispõe do emprego de um padrão inato de similaridades e que aprendemos a partir deste padrão de reconhecimento. Com relação à indução, Quine concorda com Hume, ou seja, embora a indução não seja cientificamente justificável , nós fazemos previsões baseados em tal padrão inato de similaridade. A questão, no entanto, é saber como podemos obter bons resultados em tais previsões (cf. Quine 1985b, pp. 1923). Do ponto de vista quineano, a própria evolução natural é responsável pelo reconhecimenlo das regularidades mais significativa: "CriaLUras inveteradamente erradas nas suas induções têm uma tendência patética, porém louvável, de morrer antes de reproduzir a sua espécie" (Qui.ne 1985b, p. 192).


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Gel.wn Liston

A noção de similaridade é de fundamental importância no processo de generalização indutiva, tanto na prática diária como nas predições científicas. A capacidade de reconhecer similaridades acompanha (e, de ce11a forma, é responsável) a evolução natural de tal modo que os padrões de similaridade são revisados naturalmente, de acordo com os resulrados obtidos. Eis o que nos diz Quine: .. Em matéria de indução, nada tem tanto sucesso quanto o sucesso" (Quine 1985b, p. 194). As generalizações são feitas a partir de práticas bem sucedidas. A posição naturalista de Quine não pretende justificar os procedimentos indutivos. mas apenas estudá-los como um fenômeno natural. Uma posição bastante distinta é a abordagem de Popper ao propor uma solução metodológica do problema da indução, cujo objetivo é mostrar que a ciência, em seus procedimentos, dispõe de um método totalmente dedutivo e que, portamo, a tentativa de justificar, ou explicar pragmaticamente a indução é totalmente irrelevante. Popper não pretende refu tar o problema da indução, e sim oferecer um método não-indutivo que possibilite a reconstrução racional da ciência. O método de conjecturas e refutações pennite a testabilidade e o controle e mpírico das teorias científicas. garantindo a objetividade e a racionalidade da metodologia científica, pois é criticando as teorias que aprendemos com a experiência. A estratégia de Popper, ao enfrentar o problema lógico da indução não é atacá-lo, mas demonstrar que o modelo dedutivista é suficiente para explicar o desenvolvimento científico e que o falseac ionismo é válido, pois a falsidade de uma teoria é uma dedução válida feita a partir de evidências empíricas aceitas.

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O Falseacionismo Metodolâgico e a Pragmática Lingüística

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Notas I

2

Ver: "Studies In The Logic of Coll firmalion ", In : Hcmrc l 1965, rr. 3- 2(). Ver: Cioodman 1991, p. !{ó.


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3

A definição de hipótese projetável tem por fundamento a seguinte terminologia: Casos positivos: instâncias determinadas como verdadeirao;; Casos negativos: instâncias determinadas como falsas; Casos indeterminados: instâncias não-verificadas. Assim uma hipótese pode ser apoiada (casos positivos), violada (casos negativos) e esgmada (não existem casos indetermioados) (cf. Goodman I99 1, p. 99). 4 O falseacionismo sofisticado de Karl Popper pode, neste caso, ser relacionado, salvo as diferenças, com a rejeição de paradigmas em Thomas Kuhn, segundo o qual: "uma teoria científica, após ter atingido o status de paradigma, somente é considerada inválida quando existe uma alternativa disponível para substituí-la. (. .. ) Decidir rejeitar um paradigma é sempre decidir simultaneamente aceitar outro e o jufzo que condu?. a essa decisão envolve a comparação de ambos os paradigmas com a natureza, bem como sua comparação mútua" (Kuhn 1996, p. 108). 5 Ver: Quine l985a, p. 168. 6 Para Quinc, o conhecimento é um fato c a função da epistemologia é descrevê-lo (explicação de tal fenômeno), sem determinar critérios ou normas. gelsonliston @yahoo.com


DAvmsoN, RoRTY E A QUESTÃo DA VERDADE

Gím ANNE HoRBATIUK SEDOR Universidade de São Paulo (doutoranda)

Embora Davidson tenha declarado em lnquiries into Truth and lnteJ]Jretation (1990, p. xviii) que o seu argumento contra o empirismo não faz dele um pragmatista, Rorty insiste em descrevê-lo como tal. Em "Pragmatism, Davidson and Truth" (1994, pp. 126-50), podemos observar seu empenho em aproximar Davidson de James e Dewey e de sua própria forma de pragmatismo. Segundo Rorty, ao sustentar que a verdade não deve ser identificada com algwna coisa, que as sentenças não são tomadas verdadeiras por sua relação com algo fora da linguagem, seja pelos falantes ou pelo mundo, e que qualquer teoria que queira traçar uma relação entre partes da linguagem e partes da não-linguagem está na via errada, Davidson estaria em acordo com James. James, diz Rorty, criticava as teorias da verdade u-adiciooais, afirmando que nenhuma delas dava conta de explicar o andamento particular de tal relação; esta seria, então, uma questão sem solução. A verdade para ele seria um expediente em nosso modo de pensar, não mais que isso; a palavra verdade seria apenas um termo de louvor, de endosso, não um termo que se refere a um um estado de coisas que explique, por exemplo, o sucesso daqueles que sustentam crenças verdadeiras. As teorias tradicionais teriam falhado em descrever a relação de correspondência porque, simplesmente, não haveria nada para ser descrito. Vista desse modo, a verdade não seria uma noção explicativa. Rorty propõe que o termo pragmatismo seja empregado num sentido em que consista apenas na dissolução do problema tradicional da verdade; a dissolução teria início na asserção de que o predicado "verdadeiro" não tem uso explicativo, apresentando somente os seguintes usos: o uso Cupani, A. O. & Mortari, C. A. (orgs.) 2002. Linguagem e Filosofia. Anais do Segundo

Simpósio Internacional Principia. Coleç.ão Rumos da Epistemologia, volume 6. Florianópolis: NEL, pp. 191-201 .


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endossador, o uso acautelado (quando fazemos observações do tipo Esta crença é bem justificada, mas ralvez. não seja verdadeira, que serve para sugerir que uma determinada crença pode não ser uma boa regra de ação) e o uso descitacional (quando dizemos coisas metalingüfsticas como sé verdadeiro se p). Segundo ele, a posição de Davidson sobre a verdade contempla esses três usos e não atribui poder explicativo ao termo verdadeiro (1994, p. 128). De acordo com Rorty, a forma de pragmatismo à qual Davidson e James podem ser vinculados possui quatro teses centrais, que são: (J) "Verdadeiro"' não tem nenJmm uso explicativo.

(2) Nós entendemos tudo que há para saber sobre a relação entre as crenças e o mundo quando entendemos suas relações causais para com este; nosso conhecimento de como aplicar termos tais como ''acerca de" e "verdadeiro" é irradiado a partir da avaliação " naturalista" de comportamentos lingüísticos. (3) Não há nenhuma relação para a qual possamos atribuir a proposição "estar tornando verdadeiro", que se sustenha entre as crenças e o mundo. (4) Não há nenhum sentido no debate entre realismo c anti-real ismo, pois tais debates pressupõem a idéia vazia e ilusória de crenças ''sendo tornadas verdadeiras" (Rorty 1994, p. 128).

Essa definição de pragmatismo não traz uma teoria da verdade, somente apresenta as razões pelas quais, sobre esta questão, teríamos melhores resultados com o procedimento terapêutico do que com a construção de sistemas, afi rma Rorty. Davidson e James te riam ainda em comum, segundo Rorry, o argumento de que a razão pela qual os filósofos têm buscado explicar em que a verdade consiste (qual seu conteúdo ou significado) é o fato de eles estarem atados a o que Davidson chamou o dogma do dualismo esquema/conteúdo. Esse dogma estabeleceria a existência de dois reinos ontológicos distintos, o da crença e o da nãocrença. o que levaria à concepção da verdade como uma relação entre crença e não-crença. Ao adotar as tese~ l e 4, acima citadas, Davidson e James estariam extinguindo a maiioria dos dualismos tradicionais que Dewey julgava passíveis de extinção e calando o cético (Rorty 1994, pp. 128- 9).


Davidson, Rorl)' e a Questão da Verdade

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Diante da leitura de Davidson oferecida por Rorty nos perguntamos se Davidson concorda com e la, se ele assume tais teses e em que grau sua posição aproxima-se do pragmatismo defiacionista rortiano quanto à verdade. Devemos nos p,e rguntar também se Davidson deixa de ocupar-se com o cético, como quer Rorty, pois em "Uma Teoria Coerencial da Verdade e do Conhecimento" (1986, In: LePore) ainda o temos argumemando para respondê-lo. Enfun, poderíamos nos perguntar se Davidson é tão rottiano como Rorty o descreve e se Rorty é tão davidsoniano quanto pensa ser. Como vemos, cada uma dessas perguntas renderia pontos de discussão suficientes para compormos diversos artigos; desse modo, optamos por selecionar uma das questões, tomando para análise a primeira tese atribuída a Davidson por Rorty, a de que o termo "verdadeiro" não tem nenhum uso explicativo. À primeira vista, Davidson não parece estar de acordo com ela, dado que desde "The Stmcture and Content of Truth'' (1990) confere à verdade um papel cenu·al no entendimento do signjficado e da crença, por julgá-la m uito mais clara e fácil de compreender (de apanhar) que estes outros dois tennos. Mesmo afinnando, como Rony, que a verdade não é meta da investigação científica e que é tolice despender esforços para tentar definí-la ( 1996), e tendo lançado críticas diversas às teorias clássicas e deflacionistas da verdade, Davidson quer resgatar a noção de verdade, investigar seu conteúdo ( 1990). Rorty argumenta que Davidson, juntando sua ''filosofia da linguagem", ou seja, sua visão da linguagem tomada ao lingüista de campo (a posição do interprete radical), à uma teoria causal da referência, que poderia ser a kripkeana (pois declara que: "a comunicação começa onde as causas convergem: sua elocução significa o que a minha significa se a crença em sua verdade é sistematicamente causada pelos mesmos eventos e objetos" - Davidson, In: LePore 1986, p. 356), muda o jargão empregado para falar da questão da verdade. Sustentando a tese naturalista (partilhada com Kripke) de que o estudo empírico das relações causais entre organismos ,e seus ambientes é tudo o que podemos conhecer sobre a relação entre crenças e a real idade (do qual o resultado é o manual de tradução), Davidson expõe a inviabilidade de se tentar manter a noção de verdade como correspondência, retirando essa posi-


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ção da impossibilidade de encontrar algo como a correspondência a que se referir nos resultados do üngüis ta de campo (Rorty 1994, p. 135), (se não encontramos nada é porque não há nada a buscar aí). Por essa via, segundo Rorty, Davidson e o pragmatista estão dizendo que a correspondência não pode ser um termo explicativo e se a verdade deve ser pensada como correspondência, o predicado verdadeiro não pode ser um termo expücativo (Rorty 1994, p. 135). Rorty declara em " Pragmatism , David<;on and Truth": "Se a verdade e la mesma tiver de ser uma explicação de algo, o que for explicado precisa dizer respeito a algo que possa ser causado pela verdade, mas não causado pelo conteúdo de crenças verdadeiras" (1994, p. 141). A idéia de que o predicado verdadeiro possui um poder explicativo provém, segundo Rorty, de um equívoco provocado por seu uso em frases do tipo: Joiio encontrou seu livro porque sua crença de que ele estava em cima da mesa era verdadeira, em que Q predicado verdadeira não explica coisa alguma, pois a explicação do sucesso de João é dada pelos detalhes do que era verdadeiro, não pela verdade ela mesma. A contribuição de Davidson para com o pragmatismo seria, de acordo com Rorty, ter indicado a exis tência do uso descitacional do termo verdadeiro, consagrado na Convenção T de Tarski, que se junta aos usos s ugeridos por James (Rorty 1994, p. 136). Rorty descreve a si mesmo como adepto de um minimalismo, sustentando que o descitacionalis mo leve de Tarski diz tudo o que há para dizer sobre a verdade (Rorty 1995, p. 282). Nega a d istinção e ntre justificação e verdade, argumentando que para os pragmatistas se alguma coisa não faz diferença para a prática, ela não deveria faze r di ferença para a fi losofia, e ele não vê diferença entre avaliação de verdade e avaliação de justificação (que consistiria em encontrar c avaliar razões pró e contra). Nega também que verdade seja o objetivo da investigação, pois para e le verdade só é vis ta como objetivo se for pe nsada como um objelivo fixo, ligando-se o progresso em direção à verdade à image m meta física de aproximar-se do mundo tal qual ele é, à idé ia da verdade considerada como uma desejável relação não-causal entre linguagem e não-linguagem, e sendo assim, os pragmatistas não teri am razão para pensar que mesmo uma quantidade infinita de justificação nos romaria


David.wn. Rorty e a Questão da Verdade

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mais próximos de tal relação, embora buscar justificação seja motivo para investigar (Rorty 1995, p. 297). A investigação, segundo os pragmatistas, e aqui Rorty cita Dewey e Davidson, tem muitos objetivos diferentes, sem pressupostos metafísicos, como: "obter o que queremos, a melhora do estado do ser humano, convencer tantas audiências quanto possível, solucionar tantos problemas quanto possível, etc." (Rorty 1995, pp. 297-8). Davidson, desde "The Structure and Content o f Truth" ( 1990), vem argumentando que aqu ilo que Tarski oferece sobre a verdade não esgota esta noção. Para ele, o principal problema sobre a verdade é o de como relacioná-la com desejos humanos, crenças, intenções e o uso da linguagem, coisa que Tarski não faz (Davidson 1990. p. 280). Afirmar isso "é assumir que o conceito de verdade é relacionado de maneiras importantes com as atitudes humanas" (idem, p. 280), o que, segundo Davidson, o aprox ima da posição de Dewey, para quem, depois de trazer a verdade para a terra haveriam coisas filosoficamente imponantes e instrutivas para dizer sobre tais relações (ibidem, p. 281). Os problemas levantados por Davidson quanto a teoria de Tarski são que: Tarski mostra corno definir o predicado de verdade para cada urna de um número de linguagens bem formadas, mas sua definição não nos diz o que esses predicados tem em comum, não oferece uma definição geral de verdade, (Davidson chega a dizer que há um sentido em que ele não define o conceito de verdade nem mesmo para uma linguagem particular- 1990, p. 294); e que, dado o aspecto enumerativo de sua definição, empregando uma lista finita e exaustiva de casos no processo de definir satisfação (em cujos termos a verdade é definida), ele falha em fornecer pistas sobre o próx.imo caso (Davidson 1990, pp. 285-7). Isso mosrraria que definições como a de Tarski, ou teorias construídas na mesma linha, não podem capturar o conceito de verdade, seu significado (idem. pp. 288. 294). Davidson julga necessário ir a lém da teorização oferecida por Tarski, em "Slructure and Content o f Truth" afi rma: O conceito de Vl.!rdade tem conexões essenci ais com os conceitos de crença e significado, mas essas conexões permanecem imocadas pelo trabalho de Tarski. ( ... ) O que Tarski tem feito por nós é mostrar em


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detalhe como descrever o tipo de padrão que a verdade deve fazer, seja em linguagem ou em pensamento. O que nós necessitamos fazer agora é dizer como identificar a presença de um tal padrão ou estrutura no comportamento das pessoas (Davidson, 1990, p. 295). Eu proponho uma abordagem que difere do resto, uma que faz o conceito de verdade uma parte essencial do esquema que nós todos empregamos para compreender, criticar, explicar, e predizer pensamento c ação (Davidson 1990, p. 282). Para Davidson a verdade é um dos conceitos mais básicos e claros que temos, por isso é tolice tentar reduzi-la a noções mais fundamentais ou deixá-la de lado, perdendo a possibilidade de, através dela, lançar luz sobre conceitos rriais obscuros e que relacionam-se com ela na prática, tais como crença e significado. O que ele pretende fazer é entender o significado de uma sentença a panir de suas condições de verdade, sugere a situação de interpretação das sentenças de um falante por um intérprete como sendo um bom cantinho para perceber como verdade e significado se relacionam. Em seu artigo de 1990, acima citado, descreve como o fará, utilizando-se da Convenção-T unida à sua teoria da interpretação, que inspira-se na teoria da tradução de Quine (1990, p. 320- 6), (sua teoria do signi ficado está também em Jnquiries imo 11·uth and lnte1pretation). Quine toma a observação do compot1amento verbal de falantes em relação com o ambiente como base para sua abordagem do significado. Pm·a ele, os atos observáveis mais importantes são atos de assentimento e discordância, como causados por eventos no âmbito do falante; observando tais atos, é possível inferir que um falante é levado por certos tipos de eventos a sustentar uma sentença como verdadeira. Aqui surge o problema que pode ser assim descrito: um falante sustenta uma sentença como verdadeira como resultado do que a sentença sign ifica e do que ele crê ser o caso: o que é observado por um intérprete é, portanto, o resultado de duas aútudes inobserváveis, crença e significado, e é preciso encontrm· um meio de extrair e distinguir os papéis desses fatores da evidência. A solução, então, é apontar um meio para manter um dos fatores estável em certas situações enquanto determina-se a outra. Quine resolve a questão afirmando que a interpretação correta de um falan te


David.wm. Rorty c n Questão da \'erdade

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por o uu·o não pode inteligivelmente admitir tipos e graus de d iferença em relação à crenças entre intérprete e interpretado, assim, um intérprete está justificado em fazer certas suposições sobre as crenças de um falante antes de começar a interpretá-lo. Trata-se do princípio de caridade, que servirá como limite para interpretação (Davidson 1990, pp. 318-9). O imérprete, projeta sua lógica sobre a linguagem do falante juntamente com suas crenças. A interpretação desenvolve-se então. para Quine, com o intérprete observando que sentenças são sustentadas como verdadeiras e que eventos e objetos no mundo o levam a sustentá-las como verdadeiras. O intérprete, no tando que o agente regularmente aceita ou rejeita, por exemplo, a sentença está chovendo quando está ou quando não está chovendo, tentará construir uma teoria da verdade que diz que o proferimento pelo falante da sentença está chovendo é verdadeiro se e somente se a chuva pode ser observada pelo falante concomitantemente ao proferimento da sentença. Davidson desenvolve um método semelhante ao de Quine, mas com certas diferenças. Davidson s ugere que a interpretação depende nas mais simples e básicas situações dos objetos externos e eventos salientes para ambos falante e intérprete, ele opta por uma teoria distai da referência, que baseia verdade na crença. Para ele. " um intérprete resolvido a descobrir os significados das declarações de um falante nota mais do que o que causa o assentimento e a discordância. e le nota quanto bem equipado e colocado o falante está para o bservar aspectos de seu ambiente, e adequadamente dá mai s peso para algumas respostas verbais do que para outras" (Davidson 1990. p. 321). Isso lhe dá rudimentos para a explicar casos de exceção. como quando, por exemplo o falante chama um coelho de gato porque ele está errado sobre o animal e não sobre a palavra. A boa interpretação depende também da observação da interanímação das sentenças. a extensão e m que um falante conside ra a verdade de uma sentença como dando suporte à verdade de outras. Davidson sublinha que se queremos identificar e interpretar o papel de conceitos teóricos ou expressões lingüísticas, nós devemos saber corno elas se relacionam com outros conceitos e palavras: tais relações são em geral holisticas e probabilísticas. Precisamos detectar o grau em que um fa-


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Jante sustenta uma sentença como verdadeira, o simples assentimento e discordância estão nos extremos de uma escala, precisamos ser capazes de localizar atitudes intermediárias. Porém, graus de crença não podem ser diretamente diagnosticados por um intérprete, porque grau de crença é uma construção baseada em atitudes mais elementares. Para isso, segundo Davidson, é preciso desenvolver urna teoria unificada, que envolva a teoria da interpretação verbal e a teoria da decisão Bayesiana. Tal teoria capacitaria o intérprete a compreender a atitude de um agente que, em dada situação, em relação à duas sentenças, prefere a verdade de uma à verdade da outra (Davidson 1990, pp. 321-2); entender seu comportamento envol veda então um entendimento das crenças e desejos do agente, além do significado de suas palavras. Davidson encerra "The Structure and Content o f Truth" dizendo: A fonte última da objetividade e da comunicação é o triângulo que, por relacionar falante, intérprete, e o mundo, determina os conteúdos de pensamento e fala. ( ...) Nós reconhecemos que verdade deve ser de algum modo relacionada com as atitudes de criaturas racionais, esta relação é agora revelada como surgindo a partir da natureza da compreensão interpessoal. Comunicação Lingüística, o instrumento indispensável da compreensão interpessoal fina, repousa sobre proferimentos mutuamente compreendidos, os conteúdos dos quais são finalmente fixados pelos padrões e causas de sentenças sustentadas verdadeiras. A base conceitual da interpretação é uma teoria da verdade; verdade, deste modo, apoia-se ao final sobre a crença e, mesmo por último, sobre as atitudes emocionais (Davidson 1990, pp. 325-6).

Mais uma vez Davidson ressalta a importância de apanharmos as relações entre verdade, crença e significado. observadas na prática social dos falantes, para componnos uma teoria do significado que nos permita alcançar um entendimento razoável do comportamento lingüístico humano. Davidson estaria construindo uma teoria do significado usando as condições de verdade das sentenças como base, perguntamo-nos então, se tal procedimento dá à verdade um uso explicativo e se ele tem um efeito inflacionário sobre a noção de verdade. Perguntamo-nos ainda se Davidson afasta-se significativamente da posição adotada por Rorty so-


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bre a verdade ao elaborar a teoria descrita acima (lembrando, a posição de Rorty é de que o que pode ser feito sobre a questão da verdade é listar seus usos). Queremos demonstrar que não. Prosseguindo em nossa argumentação, tomamos alguns pontos da reflexão de Michel Wilüarns, em artigo intitulado "Meaning and Deftationary Tmth" (1999), em que ele discute as razões de Davidson para rejeitar as visões deflacionárias de verdade. Williams toma como ponto comum entre as diferentes perspectivas deflacionistas a busca por explicar a função das declarações de verdade com o mínimo de comprometimento metafísico (Williams 1999, p. 548). As teorias tradicionais da verdade, teriam como pressuposto que a verdade é uma propriedade explicativa e que devemos explicar o que torna as sentenças verdadeiras; para as teorias defiacionistas a função das declarações de verdade é somente expressiva, não sendo necessários meios complicados para falar da verdade, pode-se faze-lo utilizando recursos teóricos mínimos. Conforme Williams, Davidson pensa que não pode ser um deflacionisra em relação à verdade porque ele explica significado em termos de condições de verdade; porém. seguindo Field (citado por Williams), só haveria problema nesse sentido se a noção de boa tradução (ou interpretação) tivesse que ser explicada em termos de uma noção de verdade não-descitacional. Davidson também pensa, baseado na declaração de Horwich de que a verdade tem uma certa pureza (Davidson 1996, p. 276), que os deflacionistas mantêm que verdade pode ser entendida completamente em separado, isolada de considerações sobre significado, crença ou outros conceitos; no entanto, os descitacionalistas (ainda segundo Field) teriam que admitir a necessidade de ampliar sua caracterização da verdade, relacionando-a ao signi ficado, diante da objeção de que algumas vezes gostaríamos de saber sobre a verdade de um proferimento que nós não compreendemos (dado que o descitacionalismo puro caracteriza o mecanismo da verdade sintaticamente e no caso desta objeção teríamos implicações semânticas). Admitida a necessidade de um descitacionalismo amptiado, Williams sugere que Davidson não estaria violando os princípios do deftaciorusmo ao elaborar sua reoria do significado relacionando cre nça, significado e verdade. Também não esraria ferindo tais princípios porque sua teoria do significado não em-


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prega uma noção de verdade que extrapola a noção descitacional (que rcinftaciona a noção de verdade). WiWams considera central, para entendermos porque Davidson pode ser considerado um deftacionista quanto à verdade, que observemos a distinção entre dois sentidos de teoria do significado presentes em seu trabalho: o sentido amplo, em que teoria do significado é sua avaliação de em que consiste o significado (no caso, sua teoria da interpretação); e o sentido restrito, em que teo1ia do significado é uma teoria axiomática que gera o significado de cada sentença de uma linguagem (Williams 1999, p. 552). De acordo com ele, fazer essa distinção afasta a impressão de que Davidson explica significado em termos de condições de verdade: Certamente, ele (Davidson) usa declarações de verdade em sua teoria do sigtúficado (em sentido restrito). Mas o uso é expressivo: declaração de verdade é usada no curso de especificar significados particulares. Davidson explicaria significado em termos de verdade somente se ele necessitasse apelar para alguma noção de verdade mais robusta que a noção de verdade descitacional em sua teoria da interpretação, o nível em que ele explica o que sigtúficado é. Mas nesse nível, também, declaração de verdade resulta em não mais que a conveniência expressiva que o deflacionismo funcional aceita que isso é (Williams 1999, p. 554).

Para Williams, mesmo o conceito de verdade implicado no princípio de caridade não foge ao conceito descitacionalista, não tem carga explicativa (idem, p. 561). Além disso, segundo Williams, Davidson pensa que está explicando significado por recurso à verdade, mas o que ele faz é iluminar a ambos, significado e verdade, ao apelar para a interpretação, que é uma atividade que pode ser entendida sem recursos teóricos extensos (ibidem, 1999, p. 564). Pelas razões apresentadas, Williams conclui afirmando que Davidson pode se permitir ser um deflacionista. Concordamos com ele, e acrescentamos a observação de que, nos dois sentidos de teoria do significado (ou nos dois níveis) Davidson não faz mais que descrever como os termos verdade e significado se relacionam no uso deles feito na situação de interpretação. Podemos sustentar, a<>sim, que Davidson não se afasta


Davidson. Rorty e a Questão da Verdade

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do defl acionismo com respeito à verdade, não reinflaciona o conceito de verdade, não dá primazia ao significado ou à verdade em sua teoria do significado (não atribuj a um ou a outro um papel crucial nem poder explicativo), e restringi-se a descrever o uso dos termos verdade e significado, a dizer como são utilizados na prática da interpretação; não temos, então. porque não dizer que Davidson está em acordo também com Rorty à respeito da noção de verdade. Julgamos interessante mostrar que suas posições apresentam apenas diferenças suaves, talvez até mesmo devidas à retórica, porque pensamos que Rorty só teria a ganhar em aceitar a teoria descitacionalista ampliada da verdade desenvolvida por Davidson, pois trata-se de uma teoria enriquecida pela abordagem de como a verdade relaciona-se com noções importantes como crença e significado, que seria fonte de melhores argumentos para a defesa de sua forma de pragmatismo no debate com outras posições filosóficas. Referências Bibliográficas Davidson, DooaJd. Uma teoria coereocial da verdade e do conhecimento. Trad. para o ponu&ruês de Lcporc, E. (cd. ). Trutlz and interprewtirm. Perspectives on the philosophy o.f Donald Davidson. Oxford: Blackwcll , 1986, [1990]. - . The structure and contento f truth. Tlze Joumal o.fPhilosophy, Ncw York. 87(6): 279-328, jun. 1990. - . Jnquiries into Truth & lnterpretation. Oxford/New York: Oxford Univ. Press, 1990. - . The folly of Lrying to define truth. The Journal o.f Plzilosophy, Ncw York, 93(6): 263- 78, jun. l996. Rorly, Richard. Pragmatism, Davidson and Truth. Objeclivity, Relativism and Truth . Cambridge: Cambridgc Univ. Prcss, 1994, pp. 126-50. - . ls truth a goal of inquiry'? Davidson vs. Wright. Philosophical Quarterly, Oxford/Cambridge, 45(l80): 28J-300, jul. l995. Williams. Michacl. Meaning and dcfiationary truth. lhe Joumal r~/' Philosophy, 96(11): 545-64, nov. 1999. gigihs@zaz.com.br


SOBREVINIENCIA DE PROPIEDADES E IDENTIFICACIÓN FuNciONAL DE E NTIDADES EN BIOLOGÍA GusTAvo CAPONI CNPq I Universidade Federal de Sama Catarina

1. Presentación

Según Ernst Mayr siempre ha ins istido (por ejemplo: 196 1, p. 1501; 1980, p. 9; 1985, p. 6 1), debemos pensar a las ciencias de La vida como esciudidas en dos dorn.jnios generales de indagación: por un lado, la Bio/ogfa Funcional ocupada e n estudiar experimentalmente las causas prôximas que, actuando a nível del organismo individual, nos explican e l cómo de los fenómenos vitales ; y, por otro lado, la Biologfa Evolutiva, ocupada en reconstruir, por métodos comparativos e inferencias histórica<;, las causas últimas o remotas que, actuando a nível poblacional, nos explicarían el por qué de tales fenómenos. Esa d islinción, esperamos poder mostrar en este trabajo, es clave para una discusión clara y conclusiva de uno de los problemas fundamentales de la Filosoffa de la Biología: aquel que atafíe a la autonomía de la biología en relación a la física. Así, sin proponer una solución para esta cuestión, sostendremos que la misma no puede o, por lo menos, no deberia ser planteada sin especificar a cual de los dos domínios de la biología nos refe rimos. Nuestra idea es que, aún cuando la caracterización f uncional de las estructuras y procesos orgánicos, insistentemente apuntada por Alexander Rosemberg, puede ser considerada como un elemento de la biología funcional que no encuentra una COITespondencia en física o en química; ese procedim iemo discursivo no implica una distinción entre biologfa y física tan radical como la que supone la sobreviniencia. apuntada por Elliot Sober, Cupani, A. O. & Mortari, C. A. (orgs.) 2002. Lmguagem e Filosofia. Anais do Segundo Simpósio Internacional Principia. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 6. Aorianópolis: NEL, pp. 202-12.


Sobrevi11iencia de Propiedtules e ldemificaci6n Funcional de Emidndes en Biologfa203

de las propiedades de los seres vivos a las que alude La biología evolutiva en relacíón a las propiedades físicas. La distinción entre caracterizaciónfuncional de estructuras y procesos y sobreviniencía propiedades que puede parecer innecesaria o bizantina en Filosofia de la Mente es, en nuestra opinión, insoslayable en Filosofía de la Biología.

2. Dos Estrategias Metodológicas Nuestro punto de partida no estará, sin embargo, en los textos dei propio Mayr; sino en el eco de ellos que se insinúa en esas páginas de La Lógica de lo Viviente cn donde François Jacob (1973, p. 14) se refierc a Las dos actitudes metodológicas que dan lugar a esos dos domínios fundamentales de la biología contemporánea a los que acabamos de aludir. La primera sería una actitud integrista o evolucionista que, viendo al organismo como miembro de una población, da lugar a una biologfa interesada en descrlbir y explicar, por el recurso a causas remotas, las relaciones que los seres vivos mantienen entre sí y con su media. La segunda, en cambio, sería esa actitud tomista o reduccionista que, aún considerando al organismo como un todo individualizado, da lugar a una biología de causas inmediatas cuya meta es explicar los fenómenos vitales en términos de la interacción causal de elementos tales como órganos, tejidos, reacciones químicas y estructuras moleculares. Como es obvio, en ellenguaje de Mayr, la primera seria la biología evolutiva y la segunda la biología funcional. Cada una de estas biologías, apunta Jacob ( 1973, p. 16), "aspira a instaurar un orden en el mundo viviente". En el caso de la primera, "se trata dei orden por el que se ligan los seres, se establecen las filiaciones, se disefían las especies"; se trata, en suma, de un orden inter-orgánico. En el caso de La segunda, en cambio, se trata de un orden intra-orgánico que ataiie a las estructuras, funciones y actividades por media de las cuales se integra y se constituye el viviente individual. Puede decirse, entonces, que si una "considera a los seres vivos como elementos de un vasto sistema que engloba toda la tien·a"; la otra "se interesa por el sistema que forma cada ser vivo" (Jacob 1973, p. 16). Por eso, mientras en este último caso, el biólogo analiza, normalmente, "un único ind ividuo,


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un único órgano, una única célula, una única parte de la célula" (Mayr 1998, p. 89); en el caso de la biología evolutiva. o integrista, el organismo debe ser siempre considerado en función de sus relaciones con el medio y con los otros organismos (Jacob 1973, p. 14). Así, mientras en el primer do mini o de investigaciones el biólogo puede continuar, en cierto modo, operando aún con los conceptos y los métodos de la historia natural y con relativa prescindencia del saber físico y químico (Jacob 1973, p. 200); en el segundo caso nos encontramos con un conjunto de investigaciones que, en virtud de sus propias pautas metodológicas y en función de los problemas estudiados, da lugar a un discurso sobre lo viviente que, por su contenido conceptual, tiende a aproximarse progresívamente al de la química y la física. Como podemos ver, la clásica oposición entre provincialismo y autonomía (Rosemberg 1985, p. 18) enlo que atafie a la relación entre biología y física no puede plantearse sino consideramos esta dualidad de las ciencias de la vida. Los problemas a discutir son distintos según consideremos la perspectiva evolutiva o la perspectiva reduccionista del biólogo funcio nal. En efecto, el ideal metodológico del biólogo reduccionista es, en palabras de Jacob ( 1973, p. 15), e! de "aislar los constituyentes de un ser vivo.. encontrando las condiciones que permitan su estudio ''en e) tubo de ens::tyo". De ese modo, "variando estas condiciones, repiüendo los experimentos, precisando cada parâmetro, este biólogo busca dominar el sistema y e limi nar sus va:riables" (Jacob 1973, p. 15). Su pun.to de partida es, sin ninguna duda, la complejidad del viviente individual, pero su meta es precisamente la de descomponer esa complejidad y analizar sus elementos "con el ideal de pureza y cet1eza que representan las experiencias de la física y la química" (Jaco h 1973, p. 15). Siguiendo ese procedimienro analítico, concuerda Mayr (1998, p. 89), es posible realizar en biologia "e! ideal de un experimento puramente físico, o químico". Puede decirse incluso que, en virtud de esa estrateg ia de investigación, "no existe ningún carácter de! organismo que no pueda, a fin de cuentas, ser descrito en términos de moléculas y de sus interacciones" (Jacob 1973, p. 15). Tal es, por lo menos, la promesa cada dia más


Sobreviniencia de Propiedadt!S e /demificaci6u Fu11cional de Emidudes en Biología205

próxima de ser plenamente cumplida de la biología molecular (cfr. Rosemberg 1997b, Collins & Jegalian 2000): dado cualquier fenómeno, estructura o característica orgânica, siempre podemos pensar q ue para el mismo existe una descripción y una explicación de caráctcr fisiológico reducibles ambas a descripciones y explicacioncs físico-químicas. Los éxims de la 1nvestigación bioquímica y b1ofísicajustifican esa aproximación aún cuando, desde cierto punto de vista, podamos consideraria como el prodocto de una si mplificación (Mayr 1998, p. 89, Roger 1983, p. 14 1). Después de todo, y como Borges concluye en Fwzes, cl memorioso, "pensares olvidar diferencias".

3. Sobreviniencla vs Reducción Pero, aún cuando el reducdonismo metodológico pueda parecer legitimado por el modus operandi de la biologfajimcional, no parece ocutTir lo mismo con la biologfa evolutiva. El lenguaje de la fís ica no parece adecuado ni para describir los fenómenos que esta última estudia ni para plantear los problemas que allí se plantean. No se trata, s in embargo, de incurrir en la postulación vilalista de fuerzas o fenómenos ajenos o contraries a las leyes físicas que actuarian en la historia de lo viviente; sino de no pasar por alio el c arácter sobreviniente [con rclación a las propiedades físicas] de los predicados atribuídos a los organtsmos por la biología evolutiva tanto en la formulación como en la solución de sus problemas. En general, puede decirse que un predicado P .wbreviene a un conjunto de predicados ffsicos si se cumplen estas dos condiciones (cfr. Sober l993a, p. 48):

• P esta necesariameme presente o ausente en todos los sistemas que son físicamenle idénlicos entre sí. • P puede estar presente en dos sistemas aún cuando estos no sean fisicamente idénticos. Asf, y como ejemplo fundamental de propiedad so/Jreviniente. podemos citar la aptitud o efi cacia adaptativa que lt: <tlribuimos a ciertas formas orgánicas:


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Las propiedades físicas de un organismo y del ambiente que este habila determinan cuan aplO [fi t] ese organismo es. Pero la aptitud [fitness) que un organismo posee - cuan viable o fértil él es - no determina como sus propiedades físicas deberán ser. Esta relación asimétrica entre las propicdades físicas dcl organismo in su ambiente y la aptitud de esc mismo organismo en ese mismo ambiente implica que la aptitud sobrcviene [supervencs] sobre las propiedades físicas. (Sobcr 1993b, p. 73) O d icbo de otro modo: Si dos organismos son idénticos en sus propiedadcs físicas y viven en ambientes físicamente idénticos, cntonces deberán tener la misma aptiL1Jd. Pero, el hecho de que dos organismos tengan la misma probabilidad de sobrevivir o una misma expectativa de descendencia no implica que ellos y sus respectivos ambientes dcban ser físicamente idénticos. Una cucaracha y una cebra pueden diferir en diferentes aspectos, pero puede ocurrir que ambos tengan una probabilidad de 0.83 de sobrevivir hasta la adultos. (Sober l993b, p. 73) Sober (1993a, p. 48) ilustra esto con una comparación entre cebras que difieren en sus chances de ser capturadas por un león, porque algunas son más rápid as que otras, y cucarachas q ue tienen diferentes chances de ser eliminadas en virtud de su desig ual resistencia ai DDT. En e l primer caso, las bases físicas de la diferencia de aptitud pueden ser encontradas, simplificando un poco, en la arquitectura de las piernas: algunas cebras están mej or construídas para correr que otras. Ya en e l segundo caso, las bases físicas de la diferenc ia de aptitud podrá ser enconrrada, simplificando otra vez un poco, cn la constitución de los aparatos digestivos. Hay, una base fís ica para el hecho de que una cebra sea más apta que otra: y hay también una base física para el hecho de que una cucaracha sea más apta que otra. Sin embargo, "sería extrafio que, en ambos casos, la base fís ica fuese la misma" (Sober 1993a, p. 48). No parece existir una magnitud fís ica particular que, en todos los casos, varíe según lo haga la aptitud. Por eso , aún cua ndo pueda ser med ida con un método uni fo rme, la aptitud o e.ficacia biológica de una forma orgánica, "es cualitativamente diferente para cad a organismo" (Sober 1993a, p. 49).


Sobreviniencia de Propiedades e ldemificaci6n Funcional de Entidades en Biología207

Mientras tanto, predicados físi<:os tales como "entropía" o "temperatura" son consideradas como poseyendo "el mismo significado para todo sistema físico" (Sober 1993a, p. 49). Por eso, aún cuando puedan ex.istir sendas expticaciones donde se muestre como cier1as propiedades físicas inciden en las diferencias de aptitud ex.istentes entre las cucarachas, y como otras lo hacen en relación a las existentes entre las cebras; nadie podría dar nunca una definición física de lo que la aptitud es. Siendo que la razón de ello, como afirma Sober ( 1993a, p. 50), "es simplememe que la aptitud no es una propiedad física". Notemos además que, de hecho, e! universo de las posibles bases físicas de la aptirud es tan indefinido y heterogéneo como indefinido y heterogéneo es el unÍverso de las bases físicas de los posibles problemas adaptativos [o presiones selectivas] que las diferentes poblaciones de organismos deben resolver o enfrentar. La estructura del aparato digestivo de una cucaracha puede tomarse en una base física de la aptitud. solo porque existe un problema adaptativo como lo es el planteado por La presencia de DDT en el ambiente; y, dei mismo modo, el color de esa cucaracha podría tornarse en base física de la aptitud si ex.istiese un predador que ubica visualmente a sus presas. Pero nada obsta para que también la arquitectura de las extremidades de esa c ucaracha se torne en una base fís ica de su aptitud si la misma le pe1mite un mejor comportamiento de fuga con relación a ese predador. Es decir: distintas bac;es físicas de la aptitud se corresponden con diferemes bases físicas de las presiones selectivas; y, tal como ocurre con la aptitud, no hay tampoco ninguna propiedad física particular que, en todos los casos, varíe según lo hagan las presiones selectivas. No hay, por tanto, ninguna predicado físico que nos permita dar una definición física de lo que es una presión selectiva o un problema adaptativo; y este hecho puede explicarse diciendo que, pese a sus bac;es físicas, las presiones selectivas [o si se prefiere: los problemas adaptativos] son cnridades espccíficamentc biológicas. Así, y ante la eventual postulación de posibles explicaciones moleculares de los fenómenos evolutivos. debemos apuntar que, para que esto último sea posible, tendría que existir alguna correlación s istemática entre fenómenos identificados en términos darwinistas y fcnómcnos íden-


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tificados en ténninos moleculares. Aún cuando esto fuese tan complejo como el modo en que la fisiología de los organismos individuales está conectada con los fenómenos de la física, esa cotTelación tendría que existir; es decir: tendrían que existir princípios puente entre Las leyes de nível superior y las descripciones de los fenómenos de nível inferior. Sin embargo, y dado que, según vimos, los fenómenos cuyo estudio es específico de la biología evolutiva están definidos en gran parte en términos de predicados sobrevinientes a los predicados estrictamente físicos, categorías tales como problema adaptativo o adaptacíón resultan físicamente abiertas; es decir: no hay, estrictamente hablando, ningún limite físico para lo que pueda considerarse como mimetismo, relación predador-presa, comportamiento gregario, ritual de cortejo, o parasitismo (cfr. Dobzhansky et ai. 1980, p. 491). No puede haber, así, ningún principio puente entre los predicados darwinistas y los predicados físicos; y, por esa razón, tampoco hay traducción sistemática de un discurso al otro ni siquiera en base altipo de princípios puente disyuntivos laxos que cabe esperar en el caso de la traducción dellenguaje de la fisiología y la física. Siendo que lo que es valido en el caso de la relación entre biología evolutiva y física, se traslada también a la relación entre biología evolutiva [de las poblaciones, claro] y fisiología [del organismo individual, por supuesto]. 4. La Plasticidad Ontológica de la Biología Evolutiva Se puede concordar, entonces, con Sergio Martinez (1997a, p. 172) y afirmar que, a diferencia de las teorias fundamcntalcs de la física, la teoría de la evolución "es, desde un punto de vista conceptual, ontológicamente plástica". Es decir: "se trata de una teoria que no se rcfiere en principio a ningún tipo de ente particular caracterizado por una cierta estructura material"; y, esa plasticidad ontológica "está ligada íntimamente con el hecho de que la causalidad involucrada en una explicación evolucionista por selección natural es diferente de la causalidad involucrada en las teorías de la física" (Martinez 1997a, p. 172). Mientras en estas últimas toda acción es local~ la selección natural es presentada por la teoría de la evolución como un. proceso que "no se da por medio dei


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contacto" (Martinez 1997a, p. 172): "la selección no se da en un lugar particular, es algo que tiene lugar en el sistema como un todo" (Martinez 1997a, p. 173); y por eso "no puede caracterizarse por lo que pasa en el nivel de las interacciones mecán icas entre los individuas, y entre los indivíduos y su media ambiente" (Martinez 1997b, p. 224). Es de notar, por otra parte, que "la sobreviniencia de la aptitud y de otras propiedades evolutivas explica por que la biología evolucionista es opuesta ai vital ismo sin por eso ser reduclble a cualquier teoria física" (Saber 1993a, p. 49). El vitaUsmo sostiene, en efecto. que. además de todas las propiedades físicas [incluídas las relacionales) que un organismo puede poseer. ex iste algo más: eso que algunos llaman élan vital. Este elememo. se supone, impregna la materia orgánica y la transforma en una entidad biológica. Así, si ese elemento ex istiese, sería posible que dos sistemas fís icos idénlicos difieran en sus propiedades biológicas. Un sistema podría tener ese élan vital mientras el otro podría no tenerlo. Pera, como la idea de sobreviniencia es coherente con la doetrina fisicalista, fundamental para la biología funcional, de que no hay diferencia sln diferencia física. e! reconocimiento. en el contexto de la biología evolutiva, de propiedades sobrevinientes no implica una rehabilitación del vitalismo (Saber 1993a, p. 49) que, a su vez, nos llevaría a imaginar un conflicto de hecho inexistente entre ambos domínios de la biología. Podría objetarse. sin embargo, que esa plasticidad ontológica que aquí estamos apuntando como una pecuüaridad de la biología evolutiva es, en realidad. una nota común a toda la biología. Es que, siguiendo a Alexander Rosemberg (1 985. p. 42; 1997a. p. 26; 1999, p. 27: 2000, p. 6 .I), podríamos decir que la caracterización funcional de las esUTlcturas orgánicas con relativa autonomía del substrato fís ico de las mismas es algo que se da tanto en el plano de la biología evolutiva como en el plano de la biología funcional. Así, cuando caracterizamos una determinada eslructura anatómica como siendo un estómago. no lo hacemos en virtud de su estructura física, s ino en vittud de su función dentro de ese sistema que es el organismo: y eso es también lo que ocurre cuando analizamos la función de una hormona o de una base del ADN. Se podría pensar, incluso, que c ualquier recurso a anáüsis funciona-


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les hace enLrar en consideración predicados que pueden definirse como sobrevinientes en el lenguaje de Sober. Creemos que eJtisren, con todo, algunas diferencias importantes entre la sobreviniencia a la Sober y la identificación funcional a la Rosemberg. Esta, en todo caso, es una noción más ampUa que aquella; y, por esa razón, no nos permite introducir una clara diferencia entre aquellos casos en que caracterizamos una estructura orgánica como siendo una respuesta a un determinado problema adaptativo y aquellos ou·os casos en donde caracterizamos esa estructura en virtud de su papel causal dentro de detemtinado proceso orgánico. Es cierto, en este sentido, que c uando describimos la pigmentación de determinada especie de mamífero como siendo una protección mimética frente a ciertos predadores lo hacemos con cierta prescindencia de cualquier referencia al substrato molecular de la misma; y es así, incluso, que podemos aproximar ese recurso mimétko con el de una especie de aves que frente a la acción del mismo predador, pero en virtud de bases moleculares diferentes, a desarrollado una coloración semejante. Pero, si aquí el predicado protección mimética es utilizado de una fonna en que parece justificado hablar de una identificación funcional independiente del substrato molecular, es necesario no pasar por alto la diferencia que existe entre este caso y aquel que se presenta cuando, caracterizando dos estructuras anatómicas tan diferentes como pueden serlo la cresta de un Stegosaurus o las plumas de un Archoeopteryx, decimos que ambas tienen un papel causal en la regulación térmica de cada tipo de organismo. Es que, aún cuando en este caso aludimos a una función de regulación térmica que es cumplida, de manera diferente y en organismos diferentes por estructuras que tal vez también presenten estructuras físicas clarameme diferenciables; lo cietto es que la noción de regulación ténnica es, por decirlo de algún modo, físicamente más acatada que la noc ión de protección mimética. Dada una magnitud físicamente definible como lo es la de temperatura corporal se puede caracterizar una estructura anatómica como siendo un regulador térmico en la medida en que se pueda mostrar como es que esa estructura contribuye a que esa magnitud se mantenga denu·o de cierto margen de variación. Es decir: un regulador térmico puede presentar estructuras físicas muy diversas


Sobreviniencia de Propiedtules e ldentificaci6n Funcional de Emidodes en Biologfa21 J

pero el abanico de efectos físicos que, por definición, debe producir es mucho más limitado y unívoco. Mientras tanto, aun cuando al caracterizar un determinada pigmentación como siendo una protección mimética frente a ciertos predadores estemos aludiendo a una gama de efectos también limitados, lo cierto es que esa limitación no se refiere a ninguna magnitud física particular; y esto se explica porque, Jecordando a Sober, podemos dedr que ni predador, ni protección mimética son propiedades físicas. Por lo tanto, tampoco podemos caracterizar a las expresiones eludir o engaiiar ai predador como referidas a una clase de fenómenos físicamente delimitables como, sin embargo, si ocurre con la expresión regulaci6n térmica. Esta noción, retomando la expresión de Sergio Martinez, presenta una plasticidad ontológica mucho menor que la noción de pmtecci6n mimética; y ese diferente grado de plasticidad tal vez sirva para visualizar la diferencia existente entre la relación que guardan la biología funcional y la física y aquella que guardan esta última y la biología evolutiva. S. Conclusión

No pretendemos, sin embargo, haber rcsuelto aquí cl ya secular conflicto e ntre autonomistas y provincialistas; pero creemos no estar diciendo algo irrelevante si insistimos en la idea de que esa relación diferente que ambos domí nios de la biología guardan con la física puede Uevarnos a pensar que los argumentos autonomistas usados en el caso de la biología evolutiva no pueden ser utilizados para el caso de la biologíafuncional. Si esta puede ser caracterizada como una disciplina autónoma en relación a la física habrá de serlo en un sentido di ferente a aquel en el cual podemos decir que la biología evolutiva lo es. Pero, del mismo modo, los argumentos provinciafistas no pueden tampoco aplicarse por igual en ambos domínios: la biología funcional puede seguir siendo pensada como laftsica de/ ser viviente (Merleau-Ponty 1976(1953], p. 215) aún cuando esa caracterización en nada convenga a la biología evolutiva.


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Gu.1·Javn Caponi

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MoNTAIGNE, CETICISMO E CosTUME LUIZ ANTONIO

ALvEs EvA

Un iversidade Federal do Paraná

"Do costume e de não mudar à-toa uma lei respeitada" (J, 23) é um dos raros capítulos dos Ensaios em que, ao menos à primeira vista, o título parece espelhar claramente o conteúdo. Pois Monlaigne busca, inicialmente, dimensionar o grande e v:triado poder do "hábito" ou "costume" na determinação de muitos aspectos da vida humana, reunindo exemplos que mostram sua ação, tanto sobre nosso corpo (ao determinar nossas capacidades físi cas, alimentares ou nossa percepção sensível), quanto sobre a alma (modelando nossas crenças diversas, os valores que admitimos como " leis de consciência" e, mais do que isso, agindo sobre nossos raciocínios e julgamentos). E disso extrai, em seguida, uma crftica da temeridade com que os partidários da Reforma, cegos para tal ingrediente da ordenação do Estado, pretendem transformá-lo, contrapondo-se à autoridade institucional da Ig reja tradicional. Contudo, se podemos assim brevemente descrever os dois principais momentos lógicos do ensaio, a cJareza com que o título espelha a geografia do texto não é a mesma se mais de perto observamos seu conteúdo. Como exatamente se vinculam a investigação sobre o do c ostume e a norma de ação política que daí se segue? Qual o sentido desta aliança entre o reconheci mento do seu poder e a manutenção das le is aceitas? Digamos que a própria discussão sobre o assim denominado "conservadorismo" de Montaigne tema costumeiro da exegese dos Ensaios que aqui não vamos abordar em seus próprios termos' - poderia ser vista como tentativa de enfrentar essa mesma dificuldade. Nossa pretensão, mais modesta , é a de tentar oferecer alguma contribuição externa para esse debate, ainda que nos valendo de outro tema costumeiro. Buscaremos alhtbavar algumas reflexões sobre a noção de Cupani, A. O. & Monari, C. A. (orgs.) 2002. Unguagem e Filosofia. Anais do Segundo Simpósio Internacional Principia. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 6. Aorianópolis: NEL, pp. 213-32.


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costume segundo suas arLiculações com o ceticismo filosófico. É amplamente reconhecido que Montaigne toma contato com tal filosofia através de suas leituras, por volta de 1576, das obras recém traduzidas para o latim de Sexto Empírico, que nos resta ainda hoje como a principal fonte sobre o ceticismo pirrônico, e mesmo que tais leituras terão algum reflexo no cratamento montaigneano da temática do costume. Não obstante, talvez nos reste ainda alguma ocasião de explicar e fazer valer, contra alguns hábitos de leitura, esta consideração seminal, mas pouco comentada, do próprio Montaigne sobre "o principal efeito" do poder do costume:

fA). .. O principal efeito do seu poder é o de se apoderar de nós de tal maneira que quase não está em nosso alcance o poder de nos reavermos de suas presas e voltarmo-nos a nós mesmos para discorrer e raciocinar acerca de suas ordenações... (I. 23. 115)

* A epokhé ou suspensão de juízo dos pirrônicos, digamos muito sucintamente, resulta da impossibilidade de reconhecimento da verdade diante das várias filosofias em conflito, rodas capazes de oferecer argumentos de grande poder demonstrativo em defesa de suas posições conflitantes e mutuamente excludentes entre si. Para corroborar tal situação, na qual eles descobrem a ataraxfa antes buscada na posse de uma verdade, eles elaboram argumentos e esquemas argumentativos destinados a engendrar a suspensão, entre os quais o Décimo Trapo de Enesidemo - concernente ao domfnio da Ética. isto é, às regras de candura, costumes, leis, crenças míticas e crenças dogmáticas concernentes a esse tema. (Cf. HP L 145 et ss.) Tal esquema argumentalivo é aquele que conduz o filósofo a confrontar os costumes aceitos como supostamente superiores, que pretensamente representariam a verdadeira natureza das coisas, com aqueles que nos causam estranheza, ainda que aceitos por outros povos, para concluir que essa impressão de naturalidade ou superioridade não se sustenta racionalmente - pois, igualmente, os outros povos que agem segundo costumes diversos os tomam como melhores que os costumes contrários e não se pode encontrar um critério isento para julgar esse conflito (pois cada povo acha justo e natural seguir


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aquele comportamento particular que costumeiramente segue). É também nesse sentido que argumenta repetidamente Montaigne, valendo-se de inúmeros exemplos de Plínio e Plutarco sobre os comportamentos dos povos diversos, ou dos relatos dos viajantes sobre os povos do Novo Mundo recém-descoberto, para c oncluir: [B) Estimo que não apareça na imaginação humana nenhuma fantasia tão delirante que não encontre um exemplo nalguma usança pública e, por conseguinte, que nossa razão ("discours") não sustente e fundamente. Há povos onde se volta as costas para quem o cumprimenta e não se olha nunca para aquele a quem ~e quer honrar. Há lugar onde, quando o rei cospe, a mais favorita das d amas da cone estende a mão. E noutras nações os mais fenomenai s e m tomo dele se abaixam ao solo para colher num lenço a sua sujeira (etc.) (I, 23, 111 )

Ou, como diz ele igualmente no ensaio "Dos Canibais", acerca dos tupinambás:

IA] ... Ora. eu acho . .. que não há nada de bárbaro e selvagem nessa nação, pelo que me reportaram, senão que cada um chama de bárbaro o que não é de seu uso - como, em verdade, não parece que tenhamos outra mira da verdade e da razão que o exemplo e a idéia das opiniões e usanças do pais de onde somos ... (I, 31, 205) A argumentação cética nos conduziria aqui, assim, a uma espécie de constatação da relatividade dos valores aceitos. M as se há algum relativismo, não se trata, como também vemos, de um irracionalismo (como usualmente se presume). Bem ao contrário, é exatamente o fato de que a razão poderia igualmente sustentar costumes discrepantes que nos deve racionalmente conduzir à constatação (paradoxal, mas apenas em aparência) de que a razão não pode demonstrar que este ou aquele costume espelham o verdadeiro "padrão da natureza". por oposição ao que seria anti-natural ou, seu equ ivalente, o bárbaro. Ao opor os costumes dos europeus aos dos povos brasileiros mais antigos, Montaigne buscará neutralizar, sob vários aspectos, o juízo depreciativo qne o povo do qual ele mesmo faz parte tende a elaborar acerca dos "canibais", mostrando que tal j uízo não se sustenta segundo os próprios valores "europeus", de que deve partir para o bservá-los. A lição que. contudo, ele


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pretende extrair dessa oposição de costumes é, por sua vez, assim introduzida: " ... Eis como devemos nos guardar de nos ligatmos às opiniões do vulgo e julgá-las pela via da razão, não pela voz comum... " (1, 31, 202). Vale dizer que a tendência imediata pela qual julgamos algo como natural e civilizado, por oposição ao que é "bárbaro" em outros povos cujos exemplos poderiam mostrar uma organização social tão complexa e elaborada quanto a nossa, revela-se uma atitude própria apenas para o "vulgo". Cabe submetê-la ao crivo filosófico da razão, isto é, à suspensão cética de tais juízos, que aqui se identifica à compreensão de que aquilo que inicialmente pensamos ser "natural" no plano dos costumes não corresponde, de fato, à natureza enquanto tal, mas é apenas uma imagem decorrente do modo como nos acostumamos a aceitar algo como natural (a partir de razões que, a rigor, podem ser tão fortuitas e casuais quanto às que poderiam conduzir a aceitar o oposto, desde que igualmente transformadas pelo hábito em imagens da superioridade natural). Em síntese, parlimos de uma situação determinada, na qual o que nos surge como razoável ou narw·al se identifica com aquilo que aceitamos costumeiramente. Podemos, contudo, conduzir nosso julgamento a evoluir filosoficamente para uma postura mais racional, observando que aqueles costumes que contrariam o que tendíamos primeiramente a aceitat· como mais racional também podem ser sustentados racionalmente, o que nos conduz a uma situação de suspensão do juízo sobre a verdade acerca de qual costume se adeque melhor à natureza, e à constatação de que a razão pode sustentat· igualmente bem razões contrárias. Ora, se esta for uma boa maneira de compreender o enquadramento a que Montaigne submete os argumentos céticos, cabe destacar um traço de sua reflexão que parece denotar uma ênfase singular no papel ocupado pelo costume. O costume revela-se aí possuidor de um "poder principal", que é o de "adormecer o julgamento" e fazer com que não possamos mais reconhecer em que dimensão ele próprio - o costume - se apresenta naquilo que reconhecemos como supostamente natural.

IA] Parece-me ter muito bem concebido a força do costume aquele que primeiro forjou este conto: que uma camponesa, tendo aprendido a acariciar e carregar entre seus braços um novillio desde seu nascimento, e


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sempre continuando a fazê-lo, ganhou isto do costume: boi grande ele já era e ela o carregava ainda. Pois, na verdade, é um violento e traiçoeiro professor, o costume. Ele estabelece em nós, pouco a pouco, às oculta<>, o pé de sua autoridade; mas por esse suave e humilde começo, tendo-o assentado e firmado com a ajuda do tempo, e le nos mostra tão logo uma face furiosa e tirânica, contra a qual não temos mais a liberdade de levantar sequer os olhos. Vemo-lo fo rçar de todo modo as regras da natureza: "Usus efficacissimus rerum omnium magister". (0 costume é o mais poderoso mestre de todas as coisas) (I, 23, 109)

Assim, não apenas (1) o costume teria um papel positivo, geralmente desconsiderado em sua devida dimensão pelos homens, de determinar o modo como as coisas nos apareceriam como naturalmente dadas, mas também (2) ele possui o poder de "esconder-se a si mesmo", isto é, de constituir uma espécie de ponto cego pelo qual nos faz denominar de " natural" (em vez de "costumeiro") aquilo que ele mesmo produziu de modo determinado. Graças à s ua própria ação, não podemos ver, assim, o modo particular pelo qual ele age. Por que, então, ele se esconde a si mesmo? Porque justamente aquilo que passamos a denominar "natural" graças à sua ação não mais podemos reconhecer como mero produto do costume, apagando-se assim os traços pelos quais acostumamo-nos areconhecer como "natural" o que assim reconhecemos. Produz-se assim, para nós, uma imagem da natureza que não corresponde aos verdadeiros fundamentos daquilo que nos aparece como natural, e é nestes termos que Montaigne introduz a e numeração cética de costumes a que acabamos de nos referir em I, 23: [A] Os milagres existem segundo a ignorância em que nos encontramos da natureza, não segundo o ser da natureza. O acostumar-se adormece a vista de nosso j ulgamento. Os bárbaros não nos são em nada mais surpreendentes do que nós somos a eles, nem com mais cabimento, como cada um confessaria se soubesse, depois de ter percorrido esses novos exemplos, aplicar-se nos seus pró prios e os examinar sadiamente. A razão humana é uma tintura infusa em quase a mesma proporção em todas as nossas opiniões c condutas, tenham a forma que tiverem. Infinita em marérias. infinita em diversidade... (I. 23, 1 12)

Observemos o nuance paradoxal desta afirm ação. O costume produz a um só tempo uma impressão d a natureza (por oposição ao " milagre") e


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oculta, seja qual for ele, o efetivo "ser da natureza"- que sob esse viés não pode ser apontado senão como seu oposto, isto é, como milagre. 2 Se o "acostumar-se adormece nosso julgamento", o papel da argumentação cética será o de despertá-lo para ver que, bem considerando aquilo que pensamos ser natural, desponta diante de nossos olhos algo que é comparável ao caráter insólito de um milagre. Tal "milagre", porém, é apenas relativo ao nosso estado cognitivo e não se opõe à ordem da natureza, mas àquilo que o costume produz como aparentemente natural, como supostamente mais conforme à razão e à verdade, às custas de esconder que a razão pode ser uma tintura infusa nos costumes mais diversos, isto é, que se podem sustentar como plenamente razoáveis mesmo os costumes que, sem essa reflexão, nos pareceriam anti-naturais. Arazão que pensa aí reconhecer alguma imagem definitiva da verdade não é senão, portanto, ainda resultante de alguma dormência costumeira, ainda nalgum grau distante da compreensão dessa situação que seria mais conforme ao pleno emprego da razão, a da possibilidade de sustentar racionalmente os costumes mais diversos. Reparemos, ademais, como aqui parece ter ocorrido uma certa amplificação da temática original do tropo cético, que originalmente concernia apenas à esfera da moral. O que o ceticismo nos conduz a pôr agora em questão é, de modo mais geral, a relatividade da nossa percepção da natureza enquanto tal, como O· sugerem outras passagens dos Ensaios. Por exemplo: [A](... ) Ir segundo a natureza, para nós, não é senão ir segundo nossa inteligência, na medida em que ela avança e o tanto que aí vemos. O que fica além é monstruoso e desordenado. Ora, a essa conta, para os mais sábios e capazes tudo será, portanto, monstruoso, pois a esses a razão humana bem persuadiu que não possui nenhum pé ou fundamento ... (TI, 12, 526)

Uma hipótese para a explicação das causas do surgimento dessa aparente novidade relativamente ao ceticismo antigo poderia ser proposta com auxílio de outro modo argumentativo de Enesidemo, o Nono, relativo à freqüência ou raridade das percepções. Parece-nos que, ao focalizar o costume como tema central, a argumentação de Montaigne parece


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atender, a um só tempo, às exigências preconizadas por ambos os trapos. De acordo com o Nono Trapo de Enesidemo, deveríamos constatar, diz Sexto Empírico, que as coisas nos surgem como comuns e banais ou surpreendentes e dignas de consideração apenas relativamente ao modo como as percebemos, segundo a raridade ou a freqüência com que nos sw·gem. Um cometa, por exemplo, nos é mais surpreendente ("ekpléktikos") do que a aparição do sol, mas se o sol aparecesse com a mesma raridade, seria muito mais surpreendente. (v. HP, I, 141 ss.) Ou, como diz Montaigne noutra parte: ''Aquele que nunca viu um riacho, quando o encontra pela primeira vez pensa ver o Oceano . .. " (1, 27, 179). Nesse ensaio, ele sustenta que aquele que assume o que lhe parece ser verossímil como verdadeiro é igualmente incapaz de reconhecer que a natureza não se confunde, em seu ser próprio, com o que lhe aparece segundo a relatividade de sua experiência (momentânea, individual ou humana) " .. . Se dizemos ser monstro ou milagre aquilo que nossa razão não alcança, quanto disso não se apresenta continuamente aos nossos olhos ... " (ibid.) Embora o objeto particular dessa relativização, tal como proposta por Sexto, pareça ser o modo como atribuiríamos às coisas valores supostamente intrínsecos, parece possível constatar que, em contrapartida, se há alguma valorização "dogmática" a ser neutralizada por essa argumentação célica, ela poderia estar potencialmente presente, ao menos em princípio, em todo e qualquer objeto que se apresenta a nós no âmbito de alguma experiência de fami liaridade ou raridade determinada. O âmbito, assim, da ação relativizadora ensejada por essa argumentação nos parece, assim, ser bem mais amplo do que poderia parecer à primeira vista. E também aqui o costume falseia a apreensão de como as coisas naturalmente são e oculta os fundamentos daquilo que passamos a aceitar como natural, roubando-nos as próprias balizas pelas quais eventualmente poderíamos medir a perda da natureza- como diz Cícero nesta passagem do diálogo De Natura Deorum, que Montaigne emprega para ilustrar sua reflexão: "O acostumar-se dos olhos familiariza nosso espírito com as coisas; eles não mais se surpreendem com o que vêem sem·cessar e não buscam mais as causas ... " (ibid.) 3 Como se dá, porém, tal enxerto argumentativo, pelo qual se pode-


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ria passar de um tropo argumentativo a outro? Ele se dá na medida em que, sob a noção de "costume", pudermos igualmente entender, tal como o tendemos a fazer espontaneamente tanto, de um lado, os efeitos causados pela regularidade costumeira com que as coisas de modo geral se apresentam, alvejado pelo Nono Tropo, e, de outro, os próprios valores e crenças que são aceitos em virtude da regularidade com que se apresentam, alvejado pelo Décimo Tropo. Da intersecção dessas considerações, parece emergir uma vinculação das condições pelas quais poderíamos ter acesso a uma imagem mais fie] da natureza ou, correspondentemente, de seu falseamento costumeiro, à capacidade mais geral da ação de nosso julgamento diante daquilo que, seja em qual âmbito for (cognitivo ou moral), nos surge como "natural". Dessa feita, a relativização filosófica do cosrume vincula-se também, segundo a ótica cética de Montaigne, a um movimento de nossas faculdades da alma, em que se poderia constatar uma oposição entre a ação da razão e a ação do "acostumar-se" (que pode ser igualmente apresentado como um "adormecimento" de nossa razão, ao qual corresponderá a produção de crenças em verdades definitivas). A cada vez que algo nos aparece como "natural" instaurar-se-ia ipso Jacto uma espécie de ponto cego correspondente à nossa incapacidade de indagar acerca dos fundamentos daquilo que não nos parece requerer essa indagação, diante de uma natureza indefinidamente capaz de desmentir a falsa imagem da natureza produzida pelo costume. Mas é preciso também ver que se constitui uma cetta tensão entre esse exercício da razão levado às suas últimas conseqüências e o reconhecimento do poder do costume. Se o julgamento só acorda de seu sono dogmático segundo a capacidade relativa com que a razão puder efetivamente mostrar a solidez de costumes alternativos (isto é, mostrando que aquilo que se reconhece como um mero costume alheio, aparentemente insólito ou inaceitável, pode igualmente ser bem conforme à razão e à natureza), ocorre também a Montaigne de reconhecer, em diversos momentos, que essa instância muito poderosa deverá ser, por certo, simplesmente aceita como guia para nossa vida, frente à fraqueza da razão em estabelecer verdades. Como se articulam essas duas coisas?


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* Particularizemos aqui o problema ao âmbito que, de saída, circunscrevemos. Em que medida estas observações nos permitiriam elucidar algo da reflexão política de Montaigne, segundo a qual o reconhecimento do poder dos costumes se converte numa crítica daqueles (especialmente os protestantes) que se precipitam em questioná-los e propor reformas radicais das leis em vigor? Em primeiro lugar, é ce110 que o poder do costume lhe surge freqüentemente como um ingrediente "positivo", talvez indispensável, dos vários aspectos da moral e da fundamentação das leis. Podemos, contudo, aqui ver, não apenas que essa dimensão aparentemente benéfica do costume é apenas uma face da moeda, mas que ela pode ser mesmo mal avaliada. Pois, em primeiro lugar, a própria positividade da ação do costume pode agir num sentido nocivo, como expressamente reconhece ele nesta passagem, onde o habituar-se à guerra converte-se no hábito de conviver com a desagregação social: " ... Desagrada-me ver como as naturezas boas e capazes de justiça corrompem-se dia a dia sob a mão e o comando dessa confusão. O longo sofrimento engendra o costume e o costume engendra o consentimento e a imitação... " (lll, 12, 1042) Mas, além disso, como vimos, o costume é um "traiçoeiro mestre", que com o passar do tempo não mais permite aos alunos levantarem os olhos do papel para o encarar de frente. Noutros termos, notar que o costume cria uma falsa imagem da natureza e alertar para o modo como o costume ru1icula a vida pública, desse ponto de vista cético, é também alertar para o caráter pantanoso do solo em que se apóia a ordem social dada. Se levru·mos ainda em conta que nosso juízo sobre o que nos é "natural" embute a medida meramente relativa de nosso entendimento, perceberemos também que esse alerta é passível de ser reiterado ceticamente a cada vez que um julgamento sobre o que é a natureza neste caso particular- isto é, no caso do problema de saber o que exatamente garante a conservação dos Estados- for apresentado. Eis o que Montaigne diz expressamente, em III, 9, 959: "A conservação dos Estados é coisa que verdadeiramente ultrapassa nossa inteligência... " - assim aludindo ao mesmo ponto no ensaio I, 23:


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Há grande dúvida se se pode encontrar qualquer proveito na mudança de uma lei aceita, seja qual for, quanto há de mal em modificá-la: uma police é uma construção de diversas peças postas juntas, com uma tal ligação que é impossível abalar uma de modo que o todo não se ressinta... (I. 23. 119)

Mas como isso poderia ser conciliado com a admissão de que, afinal, é o costume que fundamentaria a conservação dos Estados? Não nos levaria essa interpretação a reconhecer a existência de uma grave contradição interna no pensamento de Montaigne? Pensamos que, em vez disso, cabe observar essa contradição como uma condição para precisarmos o efetivo estatuto de cada uma dessas considerações e compreender que elas se situam em níveis diferentes. Ao apontar para a força do costume como ingrediente da ordem social, Montaigne não está, ao que nos parece, propondo nenhuma teoria positiva sobre o corpo social, mas alertando, como pretendemos mostrar, para a existência de um terreno próprio da ação (em particular da ação política) em vista do qual, em vez de simplesmente nos arvorarmos naquilo que nos parece verdadeiro ou possível de ser conhecido como tal (como fariam exemplarmente os calvinistas), convém considerarmos com mais cuidado o modo como o costume age relativamente aos agentes políticos relevantes, fazendo-os aceitar certas coisas como verdadeiras. Em várias passagens, Montaigne se atém em alvejar a presunção dos reformistas em. direta ou indiretamente, saber como se organiza o Estado. Não apenas eles se movem segundo o otimismo racionalista pelo qual pretendem eleger a consciência individual como critério de interpretação da verdade revelada, mas imaginam também que a instituição dessa liberdade teológica entre os cristãos poderia ser um meio eficaz de resolver os males que enxergam na Igreja e no Estado, entre si há muito associados e identificados, ainda que ao preço da guerra sangrenta que atravessa a França. [B] Para dizer francamente, parece-me haver grande amor de si e presunção de estimar as próprias opiniões a esse ponto que, para estabelecê-las. seja preciso reverter uma paz pública e introduzir tantos males inevitáveis e uma tão horrível corrupção de costumes como a que a guerra civil apona" (I, 23, 120)


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Nesta crítica da presunção racionalista mais um tema do ceticismo antigo ressoa inconfundível - a crítica da "propéteia" ou precipitação dogmática no juízo da verdade, cujo resultado é a "oíesis", ou presunção, da qual o filósofo pirrônico, com sua argumentação antinômica, pretenderia curá-lo, mostrando que se trata de um racionalismo imaturo, desconhecedor da cegueira da razão demonstrativa. Se tal arrogância os leva a vaidosamente se julgarem capazes de intervir nos costumes publicamente estabelecidos, ela é o resultado de sua incapacidade relativa em compreenderem que, no final dac; contas, ela mesma é produto de um entorpecimento dogmático do julgamento (que recuaria dessa presunção caso conhecesse melhor a mal.eabilidade da razão). Eis por que Montaigne adota, a despeito de seus defeitos, o partido católico: O outro partido (calvinista) é bem mais rude, pois se põe a escolher e mudar, usurpa a autoridade de julgar e se deve julgar muito capa7. de julgar o erro que elimina e o bem que produz. [C] Esta vulgar consideração me afirmou em meu lugar( ... ) (e me conduziu) a não cruTegar em meu ombro esse tão pesado fardo. de responder por um conhecimento de tal importância e o usar nisso aquilo que em são julgamento eu não ousaria (... ) nas coisas em que a temeridade de julgar não tra?. nenhum prejuízo: pareceu-me muito iníquo querer submeter as conslituições e observâncias públicas à instabilidade da fantasia privada a razão privada só tem juri.rdiçãn privada - e submeter às leis divinas aquilo que nenhuma política poderia fazer com as leis civis, ainda que a razão humana tenha aqui muito mais comércio( ... ) A capacidade extrema serve para explicar e estender os usos recebidos, não para desviá-los e inová-los... " (I. 23, L21, grifo nosso)

É certo que se formula aqui, caso se queira uma etiqueta, um "conservadorismo", mas é fácil se perder quanto ao seu significado. O que significa aqui, por exemplo, essa afirmação de uma "jurisdição privada da razão privada" (por oposição a uma presumível "razão pública")? Significa isso que o seu próprio ceticismo, no mesmo passo que conduziria a um relativismo filosófico, deveria ser abandonado como uma figura dentre outras da "razão privada" (a despei to das crúicas enfáticas que Montaigne dirige aos protestantes)? Não, e a compreensão desse ponto se articula com a compreensão de por que suas próprias conside-


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rações sobre o costume não haveriam de ser alvo das mesmas críticas que ele dirige aos protestantes. Importa aqui esclarecer o sentido filosófico particular que a reflexão cética de Montaigne confere a essa distinção entre "público" e "privado". Poder-se-ia dizer que os que confundem os dois campos, pretendendo que a razão privada tenha jurisdição pública, comungam da mesma imaturidade racionalista dos reformistas (que fazem tal confusão): desconhecedores da fraqueza demonstrativa da razão, eles se atém cegamente, por assim dizer, ao mérito teórico - ou teológico - das questões. A despeito do problema de saber se estão ou não equivocados quanto ao poder que atribuem à razão em matéria teológica (e Montaigne efetivamente entende que se equivocam) eles não são sensíveis a outro aspecto que só se vê quando observamos a questão de outro prisma, isto é, quando nos indagamos acerca do modo pelo qual aqueles que se apropriarão dessas razões irão compreendê-las. [B] Deus bem sabe: quantos, na nossa presente disputa entre protestantes e católicos, onde há centenas de artigos a suprimir e restaurar, grandes e profundos artigos, serão os que possam se vangloriar de conhecer eJtatamente as razões e fundamentos de um e de outro partido? É um n{IJJlero, se for, que não tem muito com o que nos perturbar. Mas toda essa massa, vai em que direção?" (1. 23, 122)

A "massa", ou o "vulgaire", entra aqui em cena como personagem passível de uma instrutiva contraposição com o filósofo cético, tal como considerado segundo a relatividade com que seu julgamento pode agir frente ao costume. Pois se este filósofo é, como vimos, aquele ao qual idealmente a natureza poderia talvez surgir como "milagre", ao cabo da plena depuração suspensiva das falsas impressões de verdades geradas pela razão, lembremos também que, segundo Sexto, o cético em suspensão é conduzido a uma aceitação não-dogmática do "phainómenon" - daquilo que se apresenta- na forma de um simples critério de ação para a condução da vida prática (um dos aspectos desse "phainómenon" sendo exatamente a aceitação das leis e costumes vigentes). Levando ao limite a compreensão da precariedade da razão e dos fundamentos racionais dos costumes aceitos, o cético compreende igualmente que não cabe aboli-los.


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E acerca do vulgo, o que se poderia dizer? Assim comenta Montaigne o modo como Pierre Bunel recomendara a seu pai a leitura da Teologia de Sebond, como livro muito útil e apropriado aos tempos em que lho dava: ( .. . ) foi quando as novidades de Lutero começavam a ganhar crédito e abalar, em muitos lugares, a nossa antiga crença. Nisso ele teve grande clarividência, prevendo bem. pelo discurso da razão, que esse começo de doença facilmente se agravaria num execrável ateísmo, pois o vulgo é desprovido da faculdade de j ulgar as coisas por si mesmas, deixandose levar pelo acaso e pelas aparências: bastou deixar ao seu alcance a ousadia de desprezar e administrar as opiniões que recebera até então em extrema reverência, como são aquelas que tocam sua salvação, e pôr alguns artigos de sua religião em dúvida e na balança, para que tão logo ele facilmente jogue na mesma incerteza todas as outras partes de sua crença, que não tinham para ele mais autoridade ou fundamento que aquelas que foram abaladas. E ele sacode, como um jugo tirânico. todas as idéias que admitia pela autoridade das leis ou por reverência do antigo costume. [B] Nam cupide crmcultatur nimis ame merutum; [Al dispondo-se doravante a não admitir nada a que não interpôs seu veredito e deu particular consentimento... (11, 12, 441)

O vulgo, afinal, donne tão profundamente o sono do costume que " não é capaz de julgar as coisas como tais" - confundindo a autoridade dos artigos que Montaigne ambiguamente apresenta como relativos "à sua salvação", ou seja, a autoridade religiosa e a autoridade política, que ele não disceme. Mais do que isso, o mesmo sono do julgamento faz com que o vulgo não tenha, no emprego da razão, a destreza que faculta ao cético desconfiar das impressões de verdade, após longa meditação sobre a racionalidade dos valores em conflito. Eis por que podemos afinal encontramo-nos de compreender como podem se harmonizar, nos Ensaios, duas passagens como estas. De um lado, a preconização do exame da intervenção do costume em nosso julgamento, como condição para julgar mais seguramente: [A) Quem desejar se desfazer do violento pré-julgamento do costume. encontrará diversas coisas recebidas com uma resolução ind ubitável q ue apenas se apóiam nas barbas br ancas do uso que as acompanha; porém.


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essa máscara arrancada, remetidas as coisas à verdade e à razão, ele sentirá seu julgamento inteiramente subvenido mas posto em estado bem mais seguro" (I, 23, 117)

De outro, diz ele, adaptando um argumento que as Hipotiposes de Sexto usam em defesa do ceticismo: (A) Quando me apresentam um novo argumento. cabe a mim estimar que, se não puder satisfatoriamente rebatê-lo, um outro a ele responderá: pois crer em todas as aparências das quais não sabemos como nos desembaraçar é mostra de grande simplismo. Ocorreria, desse modo, que o vulgo - e somos todos do vulgo - teria sua crença girando como um cata-vento: pois sua alma, sendo mole e sem resistência, seria obrigado sem cessar a aceitru· as novns impressões, a última sempre desfazendo o traço da anterior... (li. 12, 570-571)

Cabe questionar o costume, mas cabe perceber que o caráter traiçoeiro do costume deve nos fazer permanentemente suspeitar que nosso questionamento não seja capaz de detectá-lo plenamente, quando pensamos ser capazes de nos fiarmos em nosso julgamento - especialmente para atravessar o vendaval de razões contrárias que move espiritualmente as guerras de religião (é assim, ao menos, que nos parece o caso de entender essa enigmática afirmação: "Somos todos do vulgo"). Mas o vulgo propriamente dito - o que poderia fazer efetivamente com seu catavento nessa tempestade? Suspender o juízo e concluir em "ataraxia" pela relatividade dos costumes, que aceitará de modo não dogmático, como parte do ''phainómenon"? Certamente não: ele simplesmente crê na verdade do que aceita, e não discerne a autoridade politica da autoridade religiosa. Mais do que isso, notemos que o dogmatismo, tal como aqui considerado, não se caracteriza apenas pela postura filosófica de aceitar algo como verdadeiro, mas pela atitude de fazê-lo em resultado do adonnecimento da capacidade do julgamento em julgar adequadamente as coisas (em particular as coisas referentes à salvação). Nessa mesma medida, caberia reconhecer que a espécie de defesa do costume que se tem em vista se justifica, não pela solidez absoluta que reconhecemos e m seus fundamentos. mas pelo modo como ele nos subtrai a capacidade de julgar os efeitos do seu questionamento - especialmente no que se refere


Moruaigne. Ceticismo e Cos11m1e

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à dimensão pública desses efeitos. Esta precisão é importante para a compreensão do estatuto das reflexões de Montaignc, que resultam numa curiosa interpretação do critério cético da ação. Diz ele: Tais considerações [sobre a estranheza de nossos costumes] não desviam, no entanto, um homem de entendimento a seguir o estilo comum. Antes, ao contrário, parece-me que todas as formas afastadas e particulares provêm antes de insensatez e de afetação ambiciosa que de verdadeira razão; e que o sábio deve no interior afastar sua alma da massa e mantê-la em liberdade e em poder de julgar livremente as coisas; mas que, quanto ao exterior, ele deve seguir inteiramente as formas recebidas. A sociedade pública não tem o que fazer de nossos pensamentos; mas quanto ao resto, como as nossas ações, nosso trabalho, nossas fortunas e nossa própria vida, lhe é preciso emprestar e dispor a seu serviço e às opiniões comuns, como esse bom e grande Sócrates, que desistiu de salvar sua vida desobedecendo ao magistrado, mesmo sendo um magistrado muito injusto e iníquo. Pois é a regra das regras e a lei geral das leis: que cada um observe aquelas que vigem onde ele se encontra ... (I. 23, ll8A)

O que signjfica essa adesão "externa" do sábio? Não, por certo, que ele dará adesão a tais valores "públicos" segundo o mesmo critério com que são costumeiramente aceitos pelo vulgo, nem que ele exija que todos os aceitem segundo os seus próptios critérios (o que configuraria, neste caso, um exemplo semelhante da presunção que ceticamente Montaigne condena nos reformistas). Aqui o bom cético é aquele que compreende a necessidade de preservar e separar. ao menos nessas circunstâncias, coerentemente com essa condenação, um âmbito próprio em que os efetivos fundamentos filosóficos dessa aceitação podem ser apresentados e discutidos livremente. Nesse sentido particular, a "interioridade" não parece represemar necessariamente a individualidade estrita, mas antes um certo registro discursivo onde a crítica do costume poderia transcorrer em plena liberdade. Igualmente, a vaUdade privada das razões não é relativismo, no sentido em que não conduz o sujeito da reflexão a abdicar de sua coerência nem do juízo sobre a precariedade da razão reformista. Mas o bom cético é também aquele que, no dizer de Montaigne. possui uma "alma em diversos degraus": ele se imbui do que poderíamos


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descrever, na falta de melhor termo, como um "realismo cético", decorrente de uma ceJta desilusão com a imagem habitual da razão no que tange ao seu poder demonstrativo, e busca por isso reconhecer os critérios de racionalidade diversos que virtualmente possuem os diversos homens, ai também compreendidos como agentes políticos. Noutras palavras, ele busca não confundir os dorninios da interioridade e da exteriOt"idade, no sentido que aqui eles ganham- dorninios que os reformistas confundem, não apenas pretendendo impor a sua razão privada, mas a razão privada em geral como critério público, como se houvesse uma suficiente uniformidade e clareza no que se designa pelo próprio nome de " razão". Em vez disso, o cético reconhece a validade dos costumes efetivamente aceitos, mas apenas como critério para a ação: isto significa não somente que, no domínio da política, é preciso partir do fato de que certas crenças são aceitas como verdadeiras, mas que é preciso reconhecer que o modo como são aceitas inviabiliza seu questionamento, ao menos no sentido em que o fazem os reformistas. Ao menos neste caso, se os costumes são aceitos como critério, trata-se apenas e estritamente de critério para a ação, que não se confunde com nenhum engajamento pessoal no que tange ao mérito dessas crenças consideradas em si mesmas (o que, aliás, explicaria bastante quanto aos expedientes paradoxais do texto de Montaigne, que não cabe aqui examinar). A compreensão montaigneana da existência de uma defasagem entre a interioridade e a exterioridade, bem como da existência de particularidades que regem o domínio público e devem ser distinguidas do espaço próprio da reflexão privada, que dele recua, é aquilo que nos pennile também compreender como o ceticismo de Montaigne aceita para efeitos práticos uma espécie de dogmatismo (presente nas crenças religiosas costumeiramente aceitas) com o fito de neutralizar, segundo as possibilidades efetivamente dadas, uma versão mais virulenta do mesmo mal dogmático. Noutros termos. é assim possível compreender como esse ceticismo deságua numa prática política de tolerância. Os costumes tradicionalmente aceitos, segundo os critérios com que são aceitos, revelam-se, desse ponto de vista, corno o substrato possível onde é possível pretender superar a crise da razão política- tal como, historicamente, deu-se a ação diplomática e conciliadora do homem público Michel de Montaigne, con-


Mn111aig11e, Ceticismo e Costume

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selheiro do Príncipe de Navarra, na costura dos acordos que puseram fim às guerras de religião e selaram uma paz duradoura entre católicos e protestantes. Assim sendo, caberia aceitar que, através de suas reflexões sobre o poder do costume, Montaigne estaria postulando alguma teoria geral sobre a aceitação dos costumes como fundamento positivo e necessário do Estado? Além do que já observamos, parece-nos essencial frisar que sua defesa dos costumes tem em vista uma situação contingente, na qual, a seu ver, o Estado se encontra em processo de desagregação social, graças a uma situação de guerra que, com trégua<; e recrudescimentos, perdura há mais de meio século; situação contingente na qual o Estado se compõe de homens particulares que, segundo sua apreciação, crêem dogmaticamente em crenças que, uma vez subvertidas, hão de culminar e aprofundar tal desagregação. E mesmo que essas suas reflexões possam iluminar a prática, elas não constituem, aos seus próprios olhos, um critério decisivo: ele cuida freqüentemente de lastreá-las no que, a seu ver, revela a experiência singular que atravessa o Estado (rancês.4 Mesmo se referindo com freqüência à "experiência" como um critério de conhecimento preferível à "razão", ele mesmo nos esclarece que ela não possui nenhum privilégio de estabelecer constatações definitivamente verdadeiras. capazes de transcender as circunstâncias em que se revelaram aparentemente aceitáveis.5 Assim, poderíamos dizer que, embora a experiência oriente essa reflexão prática singular, a aliança entre as contingências que a determinam e a ignorância em que o costume nos situa frente à efetiva solidez dos laços que compõem o Estado não nos permite afinal tomá-la como válida, sem mais, para outras constelações diversas. Outra particularidade dessa reflexão que nos parece digna de nota reside na maneira pela qual, se estivermos corretos, Montaigne estaria interpretando o critério cético de ação como razão para a aceitação "prática" ou "externa" de crenças dogmáticas. Nessa inLerpretação se entrevê não apenas o recorte de uma esfera particutru· de exigências de ordem prática (ou política), mas também que a condição desse recorte é a transfOJmação do critério cético no embrião de uma espécie de " razão prática". Razão prática, ao menos, no sentido em que a constatação


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cética da precariedade demonstrativa da razão pode ser plenamente articulada com um uso da razão e do julgamento, na esfera política, que (mais uma vez à luz das preconizações do ceticismo antigo) deve levar em conta, na sua terapia dogmática, os argumentos particulares que os interlocutores particulares, segundo sua capacidade de julgamento particular, poderão aceitar. Para uma consideração final, retomemos agora nossa citação inicial acerca do principal poder do costume, num contexto mais generoso: [A]. .. O principal efeito do seu poder é o de se apoderar de nós de tal maneira que quase não está em nosso alcance o poder de nos reavermos de suas presas e voltarmo-nos a nós mesmos para discorrer e raciocinar acerca de suas ordenações. De fato, posto que nós o sorvemos com o primeiro leite, e que o rosto do mundo se apresenta a nós desde a primeira vista, pensamos que nascemos com a condição de seguir sempre esse mesmo andamento ... E por isso acreditamos que o que está fora dos gonzos do costume está fora dos gonzos da razão: Deus sabe o quanto irracionalmente, na maioria das vezes ... (1, 23, 115-116)

Até onde estamos aqui, afinal, diante de wn conservadorismo? De um ponto de vista teórico, "interior" ou "privado" - espaço preservado onde se pode recuar e meditar sobre a esfera da ação - a contrapartida do diagnóstico montaigneano que ocasionalmente move à prudência parece ser a possibilidade de observar que o mundo, tal como nos parece naturalmente dado, é mero produto do costume; que tudo o que escapa de nossa experiência quotidiana e irrefletida pode bem ser mais conforme à razão do que aquilo que o costume nos impinge como verdade inquestionável. Se essa constatação, por certo, não abole essas mesmas precauções gerais quando se trata de passar da esfera privada para a esfera pública, não é aqui exatamente que se cria, afinal, o espaço reflexivo de uma interioridade livre, que pode ceticamente confrontar-se ao jugo tirânico do costume e observar uma paisagem bastante diversa daquela que antes nos teria parecido inevitavelmente fadada a se repelir infinitamente, como se fora nosso destino natural, por simples força do costume?


Montaigne, Ceticismo e Costume

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Bibliografia Céard, Jean ( 1992) ''La coutume dans les &sais de Montaigne", in Expérience, Coutume et Tradition au Temps de la Renaissance, org. M. T. Jones-Davis. Paris: Kliensieck., 23- 38 Cardoso, Sérgio (1996) "Uma fé, um rei, uma lei: a crise da razão política nas guerras de religião", in A Crise da Razão. São Paulo: Minc-Funarte. Friedrich, Hugo (1968) Momaigne. Paris, Gallimard. (ed. original: A. Franke Verlag AG, 1949) Montaigne, Michel de, Les Essais, ed. Pierre Villey - V.-L. Saulnier. Paris: PUF (col. Quadrige), 1988. Sextus Empiricu!l. Outlines of Pyrrhonism (Hypotyposes Pyrrhonianas) (HP). Trad. R. G. Bury, Loeb Classical Edition. Harvard: 1933 (reimpr. 1993) Smith, Plínio (2000) "O Conservadorismo de Montaigne", in Ceticismo Filosófico. EPU-Editora UFPR Starobinski, Jean ( 1993) Montaigne em Movimento. São Paulo: C ia da<> Letras.

Notas 1

Sobre esse tema, v. Ftiedrich (1968), Starobinski (1989) e, num sentido diverso, Schatfer (1990). Da literamra em língua portuguesa sobre o tema. destacamos os artigos de Cardoso (1996) e Smith (2000) 2 Tal oposição parece ser a mesma que se apresenta nas passagens tardias em que Montaigne se refere ao costume como uma "segu nda natureza". marcando a um só tempo a estatura dos limites que deveríamos transpor se desejássemos compreender a ação com que se máscara a natureza e, ao mesmo tempo, o modo como ele se enraíza na apreensão que pensamos naturalme nte ter das coisas. Cf. III, 10, 1009- 1010: " ... Chamamos também de natureza o uso e a condição que temos cada um de nós; acusemo-nos, tratemo-nos nessa medida, estendamos nossas posses e nossas contas até lá. Pois até lü parece-me que temos alguma desculpa. O costume é uma segunda natureza e não menos poderosa .. . " Para uma posição diversa sobre esse ponto, v. Céard (1992), pp. 26 et ss. 3 Cf. De Nawra Deorum ll, 37, 96. 4 Há, por certo, algumas formulações bastante enfáticas, como em 111, 9. 9578: "Não por opinião, mas em verdade. a política excelente e melhor para cada um é. para cada nação, aq uela sob a qual ela é mantida. Sua fonna e comodidade essencial depende do uso ... Nada pressiona tanto um estado quanto a inovação: a mudança dá fonna, por si mesma, à injustiça e à tirania ... " Em


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seguida, contudo, Montaigne compara suas considerações, segundo a mesma metáfora terapêutica, à de um cirurgião que deve discernir, aLravés de sua experiência, a oportunidade de sua intervenção ante o risco de matar o paciente: "Quando alguma peça se desmancha, pode-se amarrá-la; é possível se opor a que a alteração e corrupção natural de todas as coisas nos afaste em demasia de todos os nossos começos e princípios. Mas empreender e refundir uma tão grade massa, e mudar os fundamentos de uma tão grande construção, é afazer daqueles(. . . ) que querem reparar os defeitos particulares com uma confusão universal e curar os doences com a morte . . . [C] O fim do cirurgião não é fazer a má carne morrer, é o encaminhamento da sua cura... Aquele que propõe apenas de suprimir o que o molesta, não vai longe o suficiente, pois o bem não sucede necessariamente ao mal: um outro mal lhe pode suceder, e pior, como ocorreu com os que mataram César, que lançaram a coisa pública em um ponto tal que tiveram de se arrepender de aí se terem metido. Várias vezes depois, até o nosso século, ocorreu o mesmo. Os franceses meus contemporâneos sabem bem o que dizer acerca disso. Todas as grandes mutações abalam o estado e o desordenam. Quem visasse diretamente a cura e a consultasse antes de toda ação hesitaria, de bom grado, de aí pôr a mão... " O que a experiência mostra, portanto, não é apenas que as tentativas de intervir radicalmente na ordem estabelecida são traumáticas, mas que não é possível ter segurança de que as nossas expectativas de melhorar o Estado, dado nosso desconhecimento de sua estrutura, não venham na verdade a produzir males piores do que aqueles com que nosso costume nos permile lidar. Sobre o caráter de urgência com que os problemas atinentes à guerra civil se afiguram para Montaigne, v. Friedrich (1985), pp. 128- 9. 5 V., p. ex., III, 13, 1065: "[B]. .. A razão tem tantas formas que não sabemos a qual nos prender; a experiência não as tem menos. A conseqüência que queremos tirar da semelhança dos efeitos é insegura, posto que eles são sempre dessemelhantes ... " V. tb. 1070B. luizeva@ hotmail.com


MENTAL EvENTS AND PRoPERriES

A. DuTRA Federal University of Santa Catarina, CNPq LUIZ HENRIQUE DE

From Descartes to lhe end of the 20t11 centw·y, discussions about the human mind became gradually less concemed witb its constitution. Less emphasis has been given to discussing the nature of mind, which had been conceived in opposition to the externai, material world. Philosophers became increasingly more concemed with the character o f mental phenomena or events as occw-rences in the same material world where the motions o f bodies, chemical reactions, lhe reproduction o f species , etc., are to be found. Tbus, a certain monism of substance has been accepted by almost everyone, and dualism was given room only as regards concepts. Donald Davidson's anoma/ous monism is typicaUy representative of this tine of thought (Davidson 1980). Neutra! monism, held by WilUam James and Bertrand Russell, among others, in lhe beginning of the 201h century, achieved a similar result (cf RusseU 1996 [1921], 1997 [1927]). According to Davidson dualism still goes on in the philosophy of mind because it is different to describe an occurrence as a physical event oras a mental one. Details and differences are obviously important, but, again, it is worth saying lhat that same view is held by James and RusseU. According to Russell the stuff of lhe world can be called physical, or mental, or both, or none. lt is only inescapable, says Russell, thal what is physical is dealt with by physics, and that what is psychological is dealt with by psychology (Russell 1996, p. 112). In a way, this view anticipates Davidson 's position. According to Davidson it is lhe description of an occwTence what renders it either a physical event or a psychological one, depending on lhe terms - either merely phys ical terms, or also mental ones - that are employed, and depending also Cupani, A. O. & Mortarí, C. A. (orgs.} 2002. Unguagem e Filosofia. Anais do Segundo Simpósio Internacional Principia. Coleçáo Rumos da Epistemologia, volume 6. Florianópolis: NEL, pp. 233-44.


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on lhe place tbat such a description is given in our general conceptual sche me, which we use in order to understand lhe world and people's behavior within it. Russell. in his tum, insists also that lhe present state of science is decisive in this connection. Thus, an occurrence in the world is just movement, or it is ralher behavior or action. depending on how it is described. The ditference lies in the tenns we use in order to talk o f things; it does not li e in lhe nature of things. According to Davidson to acknowledge that the intentional - and intensional - talk is i1Teducible to an extensional language for science does not amount to making any ontological commitments to mental entities . It involves j ust a commitment to the rationality of human beings' action and speech. Davidson maintains lhat phenomena investigated by psychology have a non-lawful character; he denies that Lhere are psycbo-physicaJ laws, which would relate mental events to physical ones. RusseiJ has a more bal anced view on the physical and mental domains: he is also more oplimistic in viewing both domains as lawful. lhough with some reservation as to lheir inter-relations (Russell 1996, pp. 222tf; 1997. pp. 300ff). This is an important ditference between neutra/ monism and the more recent related doctrine, anomalous monism. There is another ditference that is worth noting: according to Russell mentalily is a matter of degree. This point seems ralher to anticipate Dennett's ( 1995) stance, but J will not deal with it here. Conlrary to whal apparently is the case as to Russell and Davidson's discussions and as to the mainstream in the h1story of philosophy, I would like to inlroduce here a distinction between two different sorts of discussion: metaphysical and ontological. Discussions about Lhe nature o f the human mind, the soul or spirit, and about the very existence of a mental substance are metaphysical discussions. Neither Russell nor Davidson avoid such discussions completely, even though lhey give more room to discussion of events (both p hysical and psychological). However. discussions about the character o f mental events are still ontological d iscussions, though they are not metaphysical ones. Tbey do not put into question the nature of mind. S uch discussions are o ntological in Qu ine 's (1953) sense o f lhe term, beca use they deal with certain entities whose very existence we are committed to as we quantify over


Memal Events and Properlies

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tbem. It is not necessary to examine in detail Qu ine's criterion of ontological commitment, but it is worth noting that Davidson follows Quine in this connection. Davidson thinks that his talk about mental events does not involve any ontological commitments, since he does not intend 10 say that mental events and properties exist in lhe world, i.e., in tbat portion of the world tbat is tbe inner parts of human beings, the individuais whose movements are to be described in intentionalterms in order to be understood as rational bebavior or action. The distinction between events, entities and their properties has still an ontological character, even though it certainly stems from our way of viewing things, holistically, as Quine and Davidson put it. To simplify, let us talk of theories. What is an entity according to a certain tbeory may be seen as a phenomenon by another one, and vice versa. According to the former, properties of a certain entity are to be described, and, according to tbe latter, relations between further entities are in question , which are viewed as events or plhenomena involving tJ1ose entities. To revert to Quine's ideas, lhe commonest Ă­nstance in this connection is macroscopic objects, which are e ntities according to our commonsense ontology, but phenomena according to quantum mechanics; they are relations and occurrences involving further entities - the unobservable particles. So, what is an entity - and has properties - and what is an event (phenomenon or occurrence) - Ă­nvolving relations between certain entities - are unavoid able theoretical choices. Such choices depend on tbe viewpoint adopted, on the background theory accepted, and on the scientific (or philosophical) tradition fo11owed. I guess that ultimately we are always doing the (scientific and philosophical) job of pointing out facts and distinguishing among them different kinds of facts. RusseU makes the same point (cf RusseiJ 1996, ch. 26). To him , neutral monism implies that we conceive ilie world as composed only of events. An event is defined by Russell as "someiliing occupying a small fin ite amount of space-time." Russell wishes to avoid the traditional notion ofsubstance. Having in mind lhe tenets of modem physics, he argues that we can even see a piece of matter as constructed out of events. In other words, as Russell himself says, there are no impen-


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etrable events, which do not resuh by our analysis as groups of furlher events. However, RusseLL preserves the concept of a minimal event, which accordíng to hi m is "a logically self-subsistent entity" (Russell 1996, p. 226). That is to say, our analysis is not capable of showing of which events that supposed entity is made. There is a similar point made by Claude Bemard in the 19th century (cf Bernard 1879). Bemard is the founding father of modem, experimental physiology. Probably, Russell did not know his works. Bemard dislinguishes between simple and complex facts . At lhe philosophical levei of discussion, Bernard's problem conceming biology, mutatis mutandis, was the same problem phi losophers of mind and psychology have as to mental events and properties. Bemard wished to refute vitaUsm; he argued thal organisms had no vital properties. Accordíng lo lhe vitalísts vital pmperties are not physicochemical properties. However, Bernard argued that there are vital phenomena, indeed, which are phenomena occurring only in the organisms' inner medium. According 10 him, in the ouler environment where organisms are placed there are no physícochemical conditions necessary to produce phenomena found in the inner medi um of an organism. Such conditions, generally speaking, are lemperature, humidity and the occmTence of certain substances not to be found, in nature, outside lhe üving organisms. According to Bernard the distinction belween simple and complex facts is related to the state of human knowledge at a certain time. The complex fact, or phenomenon, is that fact that can be reduced to simpler facts. A property or simple fact is that factthat, ata certa in moment, cannol be reduced to further. still simpler, facts. Bemard argued against the vitalists that experimental science was in hls days sufficienlly developed in order to show that what was seen before as vital properties could then be seen as just vital phenomena, which were scientific facts that could be explained on the basis o f whal was already known about lhe physicochemical properties of organisms. Generally speaking, a1 each moment in the developmenl of human knowledge properties or simple facts are the ultimate objects of analysis. Since Bernard saw the organism as an inner medium where certain physicochemical properties of matter occur. an organism ceased 10 be an entity. To the vítalists organisms were


Mental Evems and Pmperties

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entilies endowed with certaĂ­n non-physĂ­cal properties, such as life itself. Bernard's experimental physiology is ontologically committed to olher entities, whose physicochemical pro perlies are to be investigated. To Bernard, lhe boundary line for experimental physiology of his days was the cell protoplasm. It is noteworthy tbat Russell (1996, pp. 227ft), in his discussion o f the distinction between mind and matter, about supposed emergem properties and about the reducibi lily ofbolh physics and psychology to a more fundamental discipline, makes Lhe same point as Bemard. Russell also holds lhat lhe slate of human knowledge in a certain time is decisive in connection with the issues here discussed. But let us go back lo the main point. The problem here discussed is not restricted to entities and their properties. Relations among entities are importanl as well. Such relations are occurrences or events, and as for them lhe problem is whelher we can state laws, i.e., whether such occurrences can be described lawfuUy as function relations (mathematically formu lated or nol). The laws of physics express funct ion re lations between variabl.es that refer to physical measurable magnitudes, such as space, tjme, mac;s, force, etc. Thougb Bemard sustained that ali properties found in organisms are physicochemical properties of mauer, according to him life phenomena are to be described by means of specific laws of organization- orga.notrophic laws (/ois organotmphiques). Such biological laws, in their turn, are in-educible to physical or chemicallaws. Bemard could take no other position, since he was onlologically committed to cerlain biological entities, even though such entities are difTerent from that ones posited by the vilalists. In o ther words, Bemard did not imend lo reduce biology to physics, but to make of biology an experimental science. That is why he held an intetmediate position between vitalism and materialism (or physicalism). Similar prnblems are found in phi losophy of mind and psychology. Russell himself partly deals with them in lhe texts mentioned above. Materialist or physicalist programs (cf, for instance, Armstrong 1968). in their tum, aim at reducing psychology to neurobiology, since they hold the thesis of identity of mind and brain (or the central nervous sys-


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tem). They suppose also that neurobiology is fully reducible to physics. There are many reactions against this sort of materialism. By means of ditferent strategies such reactions aim at preserving the psychological character of mental events. Functionalists, cognitive psychologists and behaviorists are such critics of materia~ism. Behaviorists, notably, try to preserve lhe notion of specific psychological laws, the laws of behavior. It is a matter of discussion, however, whether such psychological laws belong lo lhe same kind of function relations that we can find in physics. Davidson (1980) argues that wbere such psychological laws exist, they are just empirical generalizations; they are not strictly causal laws sue h as physical Jaws. According to him Lhe difference is lhat physical laws are invariant as regards special conditions, while psychological laws apply just where there are no otber intervening variables. Just like Dennett (1987) and Quine in his last books (1990, 1995), Davidsou adopts an intentional stance. This kind of intentionalism intends to avoid both materialism and lhe nomological stances, such as behaviorism and cognitive psychology. I g uess that Davidson's objeclions as to psychological laws are not to be regarded as so sound if we take into account more recent achievements by some behaviorist prograrns, such as lhat one concerning the Matching Law (cf. Herrnstein 1997; cf. also Staddon 1993). I wiU revert to lhis point later in this paper. As I have already said, Russell 's stance is more optimistic as regards the lawful character o f psychology (cf. RusseU 1996, ch. 26). The observed behavior of any object of inquiry or entity can lead us to inferred properlies. The behavio r of a magnet puzzled natural philosophers for centuries; it is still amazing to average people, who suppose that a piece of metal has a certain property, which is the property of attracting other pieces of metal. Modem physics is in position to say us that that is not a property but a phenomenon or event involving other entities. Lhe partides, and their properties, such as charge, spin, etc. A human being's intentional behavior leads us also to suppose that such individual has mental properties, such as beliefs, wishes, volitions, cognitions, e tc. Sometimes, such things are referred to as events, such as in Davídson 's díscussions. To say that a belíef ís a mental event avoids the ontological commitment to lhe mind a-; an entity endowed wilh cer-


Mental Evellls and Propcrties

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tain properties, which would be, again, beliefs, wishes, volitions, cognitions, etc. According to Davidson a mental event, as a phenomenon in the world, involves just physical objects, since it is mental only in virtue of the way it is described. Just as Bemard held against the vitalists as regards vital phenomena and properties, according to Davidson there are mental pbenomena, but tbere are no mental properties. Mental properties may be avoided by means of anotber strategy, whicb consists in supposing that lhe organism is in certain inner states. Sucb inoer states would be responsible for any observable intentional behavior. An organism's inner states are also seen as phenomena. Tbe dispositions of an organism exemplify such inner states. Beliefs are sometimes identified with dispositions. This is what Quine does as be follows Carnap in tbis connection (Quine 1960, §45; cf also Carnap 1988 [1956], §§14ff). Dispos itions, in their turn, according to Quine, are an inner, long-lasting state of the organism, a subtle structural condition, whicb may be a neural state, sometbing comparable to solubility, for instance (Quine 1960, pp. 34 and 223). According to Carnap and Quine to say that Joe believes tbat S, for instance, where ·s· stands for any sentence, is to say that Joe is disposed to assent to S whenever it is uttered. Unlike the solubility of a salt, Joe's disposition is not a permanent condition, but .it is acquired by Joe through language leaming. But, though it is an acquired condition, Joe's belief is supposed to be an inner state, which is a phenomenon or event. Sucb a phenomenon may be analyzed and explained by some further neurological research program. However, according to Quine's analyses in Word and Object, to point out that disposition is the furthest acbievement of his investigation. Let us follow Q uine's ideas again, and say that there is an ontological relativity (cf Qu ine 1969) as to what is seen as a state - an event ora relation between enlilies - and as to what is supposed to be an entity and, Lherefore, what is a property of an entily. According to a chemical analysis solubilily is a property of salts; according to quantum Lheory, however, it is a relation between further entities, lhe particles involved in that relation. From Quine•s behaviorist poinr of view in Word and Object an individual's belief, being a disposition, is supposed to expla in


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his behavior, and it is an event or relation between entities, possibly neural entitĂ­es. In this connectĂ­on the question is how neural states may be identified wilh mental events. This problem is raised by materialists and by Davidson as well. There is a strategy to avoid this problem hy identifying beliefs, wishes, volitions, cognitions, etc., not wĂ­th inner states of the organism but wilh properties of the human individual as a whole. I think this is lhe strategy adopted by Dennett, which he calls the intentional stance. In this case we explain the supposed intentional behavior of human individuais hy resorting to certain intentional properties that those individuais have. Human individuais, in their turn, are here understood as intentional 5ystem5. What is the net gain of going directly to human individuais' properties and avoid talking of their states? lf we idcntify a belief with a state, as seen above in Quine's analysis, we may be asked about the entities i.nvolved, what is their nature, whether physical or mental, and what are the laws (if any) describing the relations between such entities. However, if we go directly to the properties of an individual (or system), we may face similar problems. If such propetties are seen as physical features of the inner parts of an organism or of the organism as a physiological enlity, then the same problem of relating what is physical and what is mental is raised. Dennett himself makes this point as he discusses the problem of homunculi. Davidson (1980, essay 13, p. 251) denies that there are irreducible psychological properties. According to him, such properties would belong to the human sou!, i.e., a non-physical entity. In addition to this, to Davidson, states and dispositions are not events, but properties (1980, essay 1, pp. llff). As seen above, Davidson holds a physical monism of substance. but continues talking of mental or psychological events. He ho.lds that we h ave to describe mental events understood as causes o f human action. In this case, any psychotogical properties would be psychological just because the terms that refer to them are irreducibly intentional terms. Therefore, such terms are not directly referential terms; they do not refer to anything in the world. Only physical terms, in physical descriptions of merely physical states, are directly referential, referring to things in lhe world. This is a necessary condition for 1anguage


Memal Events and Properties

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learning itself, according to Davidson, who follows Quine also in this connection, even though reference to objects in lhe world remains always underdetermined (cf Davidson 1995, p. 233, for instance). Davidson also maintains tbat lawful statements or laws are to be found only in physical descriptions. Mental descriptions are not lawful, i.e., they do not include any psychological laws, according to Davidson's Principie of Anomalism of the Mental (1980, essay 11, p. 208). This principie is recognized by Davidson bimself as a fundamental one in his doctrine. Davidson sees any generalizations about human behavior as just evidence of the ex.istence of a causallaw (1980, p. 16). However, such law is not psychological in character; it is a physicallaw, sucb as Davidson maintains in his other two principies: The Principie o f Causal Interaction and lhe Principie o f tbe Nomological Character o f Causality. As seen above, to Davidson, only physicallaws are strictly causallaws. I do not believe, however, that talking about mental or psychological properties o f human beings necessarily leads us to the metaphysical problem of lhe ex.istence of lhe human soul as a non-physical entity. Davidson's criterion of rationality is an acceptable criterion to make sense of human behavior, but it is not lhe only one. An alternative criterion would exactly be a criterion lhat is unacceptable to Davidson, who denies the existence of psychological laws. However, if lhere are psycbologicallaws, such laws assure tbat to ascribe psychological properties to human beings is not just an ad hoc strategy. To my mind lhere is anolher important condition in this connection. We must not give a realist interpretation to such psychological laws. In other words, lhe measurable magnitudes referred to by psychologicalterms are not to be realistically interpreted. Such psychologicallaws may be construed instrumentalistically, and psychological entities and their properties may be seen as useful fictions. This is something comparable to what occurred in lhe history of chemistry and genetics. Dalton's laws inchemistry and Mendel's laws in genetics continue to apply; lhey are accepted by subsequent research programs in those fields. What such more advanced programs do is to add further theoretical explanations, wilhout interpreting realistically tbe terms occurring in those laws.


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Suppose that in psychology a certain theory is accepted in the above terms. It certainly involves ontological commitments. According to its conceptual scheme, there are certain psychological entities, endowed witb certain features and properties. In addition to tbis, such theory is, in a given moment of history, our best achievement in our investigations about human behavior. It is according to that theory that we identify complex facts, or phenomena, and simple facts, or properties, as regards human behavior. In the above conditions, such theory may also contain intentional terms, allowing it to give teleological explanations. This fac t depends entirely on the actual experimental and theoretical resources of such theory. It is a matter of fact about the history of science. I think this is Bernard's as well as Russell's view. Now the question is whether we have such theory in psychology today. In the behaviorist tradition psychologists and philosophers think that Lhe construction of such a scientific psychology began wben the Law of Effect was stated by Thorndyke. I think that the existence of laws is a good criterion in arder for answering the question whether there is already such a theory or research program in psychology. But to this etfect we have to know what a lawful statement is like. As seen above. according to Davidson only strictly causal laws must be accepted. Davi.dson believes that such criterion rules out any psychological laws. However. as I said above, this is a disputable poinl, since behavioral laws, such a<; the Matching Law, are exactly mathematically formulated. Such laws are on a par with physicallaws, whose terms stand for invariant measurable magnitudes. The Matching Law refers, for instance. to time inter vals and to movements made by individuais. But this is not the only issue in this connection. Another possibility is to change lhe standards by means of which we identify a lawful statement. Now the question is: wbat can supporl that alternativc strategy, defining 'law' differently so as to include certain statements as psychological laws? Curiously enough, it is Davidson himself who gives usa hlnt in this connection. By my lights, the reason is: we can hope to save the rationality of certain research programs in psychology. But are such programs worth that effort? Unless we are apt to revert to fundationalism, there is no alternative in this connection


Menlal Events and Properties

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except adopting the internai viewpoint of an actual research program. This is what supporters of the nomological approaches in psychology such as behaviorists and cognitive psychologists do nowadays. I am sure that what I have just staled obviously implies a cet1ain circularity. But it seems to me that it is also just a matter of historical fac t concerrung human knowledge. In lhis connection I believe I follow both Russell and Quine. Let me putthis issue more specifically. What other way is there to characlerize laws except on lhe basis of an accepted scientific theory? I think that it is because modem physics seems to be the mosc developed rcsearch field that Davidson uses it as his model of strictly causallaws. Note that this is a historical criterion as well. But what is tbe reason lo accept modem physics? Again, unless we revert to fund ationalism, there are no independent, externai answers to this question. Novelty in hlstory of science takes hold gradually, as a research program develops and attracts new members. Claude Bernard's idea of biological laws of organization was new in the scientific ambiance of his time. Bemard certainly did not use the term 'law' in exactly lhe same sense a.<> physicists then did. Now the same difficulty strikes again, since pbysicists certainly understood tbe term ' law' on lhe basis of tbeir researcb practice. Thus lhe very question of the meaning of a term is less important than the commilment lo a research program. It is on the basis of an accepted program lhat onc can decide what is scientifically relevant, which are the lawful statements, and what a lawful statement is like. I think thal what I have just said repeats Kuhn 's (1970) analyses of paradigms. Such analyses give usa reasonable image of lhe scientific practice, even though they must not be taken strictly. To sum up, as we investigate whether there are mental (psychological) events or phenomena and whether there are mental (psychological) entities and properties, we face matters of facl regarding the very existence of a research program in psychology and its tl1eory. It is on the basis of such theory lhat we can say what counts as a psychological fact. Later on we can classify psychological facts into categories of complex and simple psychological facts, and so we can identify, on the one hand, mental phenomena, and on the other hand, mental properties. Though


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both Russell and Davidson tried to avoid metaphysical polernics about the nature of the human mind, their monist doctrines still partly preserve the same problems, I think, unnecessarily. As I tried to show above, both Russell and Davidson give hint that we should restrict ourselves to a purely conceptual, ontologkal approach to lhe mental - and this is also a historical approach. 1 References Armstrong, O. M. 1993. A Materialist Tlzeory of the Mind. London: Routledge. Bcmard, C. 1879. Leçons de Physiologie Opératoire. Paris: J.-B. Bailtiere & Fils. Carnap, R. 1988 [1956]. Meaning and Necessity. Chicago: The Uoiversity of Chicago Press. Oavidson, O. 1980. Essays on Actimzs and Evetlls. Oxford: Oxford Un. Press. - . 1995. "Oavidson, Donald". ln Guttenplan, S. (ed.), A Companion to the Plzilosophy of Mind. Oxford: Blackwell. Ocnnett, D. 1987. The lntentional Stance. Cambridge, Mass.: MIT Press. Hemtst:ein, R. 1987. The Matching Law. Papers in Psychology and Economics. Cambridge, Mass.: Harvard University Press. Kuhn. T. S. 1970. The Structure of Scienti.fic Revolutions. Chicago: Thc University of Chicago Press. Quine, W. v. O. 1953. "On What Thcre Is." Prom a Logical Point of View. Cambridge, Mass.: Harvard University Press. - . 1960. Word and Object. Cambridgc, Mass.: Thc MIT Press. - . 1969. "Ontological Re1ativity." Ontological Relativity and Other Essays. New York: Columbia University Prcss. - . 1990. Pursuit ofTruth. Cambridge, Mass.: Harvard University Press. - . 1995. Fmm Stimulus to Science. Cambridge, Mass.: Harvard University Press. Russell, B. 1996 [1921]. An Outline o.f Philosophy. London: Routledge. - . 1997 [1927]. The Analysis of Mind. London: Routledge.

Notes 1

I am indcbted to Susan Haack and Cézar Mortari for their helpful comments and suggestions. lhdutra@cfh.ufsc.br


REMINISciNCIA E

SoNHo EM ARisTÓTELES

RoNIE ALExsANoRo TELES DA Sn..vEIRA Universidade de Sanla Cruz do Sul

1. A Memória e a Reminiscência Aristóteles, em um pequeno tratado intitulado Sobre a Memória e a Reminiscência (MR), 1 diferencia estas duas modalidades de atividades mnemônicas. Ele afirma que "quando se recupera o conhecimento científico ou a sensação que antes se tinha Óu aquilo de cuja posse chamamos 'memória' , isto é precisamente a reminiscência de alguma das coisas mencionadas." (45lb). Assim, a memória é denominada como a posse de conhecimento científico ou do conteúdo da sensação. Por outro lado, a recuperação de tais informações diz respeito ao processo de reminiscência. Desse modo, a memória consiste na armazenagem e a reminiscência em um processo de busca e recuperação de informações oriundas da própria alma e não de informações diretamente referentes às próprias coisas. Então, o objeto de uma referência mnemônica é sempre um conhecimento científico ou o conteúdo da sensação e não algum suposto aspecto ontológico do mundo. Entretanto, em uma passagem anterior, Aristóteles já havia afirmado q ue a memória pertenceria ao entendimento somente de forma acidental sendo própria do sentido primário (450a-10)- aquele responsável pela sensação. 2 Assim, a memória diz respeito propria mente ao que é sensível e apenas acidentalmente ao conheci mento científico. Na seqüência, Aristóteles afirma que a memória pertence a mesma parte da alma que a imaginação (450a-20)- o que parece indicar também o vínculo desta com aquele sentido primário responsável pela senCupani, A. O. & Mortari, C. A. (orgs.) 2002. Linguagem e Filosofia. Anais do Segundo Simpósio Internacional Principia. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 6. Aorianópolis: NEL, pp. 245-55.


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saçào. Ora, a imaginação é a faculdade das imagens e estas são, por definição, sensíveis. Dificilmente consegu imos distinguir as imagens das f01mas sensíveis ou, se quisermos, a imaginação da sensação. Isso porque temos na verdade a presença de três elementos sensíveis diferentes: a) as qualidades sensíveis que são propriedades das coisas; b) as formas sensíveis que são essas qualidades quando são objetos da sensação: c) as imagens que são esse mesmo conteúdo sensível presente na imaginação. Cada um desses elementos é distinto dos demais. Porém, nenhuma dessas instâncias do sensível pode ser discernida perfeitamente - especialmente as formas sensíveis e as imagens que compartilham também uma natureza psicológica. Assim, diremos que uma imagem é o resultado de uma maneira peculiar através da qual uma forma sensível é apreendida pela imaginação e não simplesmente uma reprodução ou cópia dela. Obviamente isso também coloca em discussão a separação das fac uldades da sensação e do intelecto segundo Aristóteles. Ainda que não possamos explorar esse assunto aqui, é necessário tomar claro que tal distinção não nos parece possível de uma ve:l por todas. A investigação aristotélica sobre a alma exige uma consideração da particularidade de cada tipo de alma e de seu respectivo corpo. Nesse sentido, o próprio Aristóteles reconhece (DA 4 14b-25) que nenhuma definição genérica de alma pode ser considerada como cientificamente confiável por desconsiderar a partic ularidade de cada caso. Assim, julgamos que qualquer tentativa de traçar um limite discreto entre faculdades da alma em Aristóteles parece temerária sob pena de se estabelecer regras de distinção que tendem a desconsiderar a especificidade de cada alma. Retomando ao que nos interessa, Aristóteles afirma no MR que "areminiscência é como uma espécie de inferência." (453a-5). Observe-se que não se trata de que a re minjscência seja uma certa forma de inferência - o que poderia nos levar a pensar que o vínculo reminiscente entre determinadas imagens rosse uma espécie tênue de e lo lógico. O que ele diz é que a reminiscência é como se fosse um tipo de inferência. Isso parece querer dizer, por um lado, que se ela é como se fosse, é porque não


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o é. E, por outro lado, se ela não o é, não haveria sentido em compará-la com uma inferência- como Aristóteles o faz. Há uma aparentemente ambigüidade na forma como ele se refere à reminiscência. Porém não se trata de uma ambigüidade qualquer. Ela parece ter sido deliberadamente criada com a finalidade de ressaltar uma certa semelhança - mas não a ponto da reminiscência poder ser considerada uma modalidade de inferência- e, ao mesmo tempo destacar uma diferença- mas não a ponto da reminiscência poder ser considerada algo absolutamente distinto de uma inferência. O problema aqui parece ser o seguinte: a) a reminiscência é uma atividade sensível ou semelhante à.'> atividades sensíveis? ou b) ela é uma atividade intélectiva ou semelhante às atividades intelectivas? Se optarmos por afirmar uma certa relação de semelhança, obviamente será necessário que se estabeleça que grau dessa semelhança estt1 envolvido nela- seja com respeito à sensação ou ao intelecto. Mas Aristóteles não parece ter resposta para esse tipo de problema de fronteira. Isto, supostamente por aquelas razões relativas à especificidade dos tipos de alma a que já nos referimos. De qualquer forma, para nós é suficiente considerar que a reminiscência é uma certa modalidade de operação (deliberada ou não) com imagens. Daí o necessário caráter sensível de seu objeto. Tan1bém, com relação à memória, não parece haver problema em afirmar seu caráter sensível na medida em que se trata propriamente da armazenagem de imagens oriundas da sensação. Um aspecto curioso é a referência que Aristóteles faz a "Antiferonte de Oreo c outros alienados". Ele afirma que Antiferonte confundia as imagens com as coisas acontecidas e, segundo ele, isso ocorre quando alguém "contempla como cópia o que não é uma cópia."3 Esta passagem se refere, com toda certeza, à definição de memória que Aristóteles introduz na seqüência: "a possessão de uma imagem como uma cópia do objeto de que é a imagem." Porém, do ponto de vista de quem percebe uma imagem, como seria possível saber se ela é a cópia de um objeto ou não? Estamos compreendendo aqui que o objeto ao qual Aristóteles faz referência não é uma coisa, isto é, não é a realidade considerada em si


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mesma. O que está em questão aqui é somente a sensação que temos dessa coisa. Assim, o conteúdo da sensação está sendo denominado - ainda que impropriamente - como "objeto". Ele é, na verdade, o conteúdo de uma sensação e serve, na perspectiva da alma, como uma referência originária daquilo que se apresentou inicialmente. Com efeito, para a alma a sensação é a única origem de algo ao qual ela possa se referir e, nesse sentido, "objeto" indica o seu conteúdo. Não podemos utilizar o conteúdo da sensação como forma de promover aquele discernimento entre uma imagem percebida e a apresentação reminiscente de sua cópia pois, vale a pena sublinhar, uma forma sensível também pode permanecer presente à sensação sem que as qualidades sensíveis correspondentes se mantenham atuantes. É o que nós preferimos chamar de funções mnemônicas presentes no âmbito da sensação. 4 Todo o problema da distinção entre a reminiscência e a sensação está explicitada na afirmação de Aristóteles de que "o imaginativo é o mesmo que o sensitivo, porém a essência da imaginativo e do sensitivo são diferentes".5 Aparentemente, o que ele quer dizer é que se trata do mesmo conteúdo sensível (formas sensíveis e imagens) segundo o modo distinto que ele adquire em cada faculdade. Porém, qual seja exatamente a diferença não está claro senão como uma pressuposição que, em geral, fazemos entre uma presença sensível e uma presença reminiscente. De qualquer forma, não parece suficiente afirmar que sabemos que o que percebemos agora é uma presença sensível justamente por se tratar de uma percepção diferente daquela produzida por uma presença reminiscente.

2. O Sonho Aristóteles trata das questões relativas ao sonho em três pequenos tratados: no Sobre o Sono e a Vigília (SV), no Sobre os Sonhos (SO) e no Sobre a Advinhação pelo Sono.6 Neles se estabelece como uma condição para a compreensão do fenômeno do sono o fato de que ele esteja ligado à sensação: "Pois se há algum animal não dotado de sensação, não é possível que durma nem que esteja desperto, já que ambas são afecções da faculdade sensível primeira" (SV 454a-20). Assim,


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a faculdade sensitiva é uma condição necessária para que haja sono e vigília. Também o sonho, enquanto uma atividade que ocorre durante o sono, encontra-se na dependência da sensação. Esta idéia aparece explicitamente mais adiante quando ele afirma que "wn sonho não se produz sem ver e perceber algo" (SV 458b-25). Ainda acerca da relação do sono com a sensação, Aristóteles agregará o princípio importante de que não é possível que um sentido durma e o outro permaneça acordado, (SV 455a-5) isto é, o sono é um fenômeno próprio do sentido comum e não dos sentidos particulares. Como o sentido comum é o responsável pela sensação, o sono é uma afecção da faculdade sensitiva como um todo e não somente de uma de suas partes isoladas. Não nos interessa, aqui, a descrição fi siológica que Aristóteles faz do sono7 e sim estes dois fatores já mencionados: a) quem dorme não é senão o órgão responsável pela faculdade sensitiva - o sentido comum e b) a sensação é uma condição necessária para que haja sonho. Ainda que o sonho seja de certa forma sensível, pois é a facu ldade sensitiva que é afetada por ele, há diferenças entre ele e a sensação. Aristóteles diz que o sonho "não pertence à [faculdade] sensitiva de forma absoluta pois, em tal caso, seria possível ver e ouvir de forma absoluta." (SO 459a- 5). Com efeito, se houvesse tal identificação, não seria mais possível diferenciar quando ouvimos e escutamos de quando sonhamos ouvir ou escutar algo. Ambos os processos possuem, para Aristóteles, uma grande afinidade: ambos são modos de afecção do sentido comum. Segundo Aristóteles, "o sonho é uma certa imagem - pois chamamos sonho à imagem que se produz no sono" (SO 459a- 15). Como não pode haver qualquer imagem q ue não seja originária dos sentidos, se reitera, através desl.a definição, a dependência do sonho com respeito à sensação. Também fica claro que, se "o sonho é uma certa imagem", ele também é uma modalidade da função imaginativa. Não há sonho sem sensação pois as imagens dependem das formas sensíveis fornecidas por ela. Mas seria o próprio sonho uma atividade da sensação? É "evidente que sonhar é próprio da faculdade sensitiva, na medida em que esta é imaginativa" (SO 459a-15). Mais uma vez,


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Aristóteles não parece pensar ser possível definir claramente que funções são próprias de cada faculdade e nem mes mo que seja possível distinguir uma facu ldade da outra. Talvez mais fiel à constituição própria dos animais seja pensar que há um processo que opera as formas sensíveis ou imagens que são originárias da ação típica da sensação mas não se identifica a ela. Aparentemente para Aristóteles, mais importante do que indicar a que faculdade ela pertence, parece ser a descrição de como ela ocorre. No tratado Sobre os Sonhos, Aristóteles define exatamente qual é, no nosso entendimento, um dos problemas capitais relativos ao sonho: se supõe que durante o sono não se vê, nem se ouve, nem, em geral,

se percebe nada. Cahe perguntar-se, entretanto, se é certo que não se vê nada, porém não é certo, ao contrário, que a sensibilidade não sofra afecção alguma, senão que é possfvel que a vista e os demais sentidos sofram uma certa afecção c que cada uma destas afecções arue sobre o sentido de cena forma, como quando se está desperto, ainda que não da mesma forma quando se está desperto (SO 458!r-30).

Trata-se, então, de que a faculdade sensível seja afetada durante o sonho mas de uma forma tal que difere da forma como ela é afetada na sensação. O sonho é, com toda certeza, a presença de uma forma sensível, isto é, quando sonhamos vemos algo, ouvimos algo, etc. Isto faz com que ele esteja Ligado à faculdade sensitiva porém, trata-se de uma cerra forma de afecção distinta daquela que caracteriza a sensação. Esta situação muito peculiar da presença nos sentidos de um sensível sem que se dê a identidade da coisa e da faculdade sensível em ato, produz em nós uma sensação sem que haja um motivo real presente. 3. A Reminiscência e o Sonho Note-se que este modo particular da fac uldade sensível ser afetada é idêntica na reminjscência e no sonho. Entretanto, não está claro como podemos distinguir uma sensação típica do modo reminiscente e do modo onírico de afecção da faculdade sensível. Temos, em teoria dois tipos de sensação: aquelas produzidas a partir de um elemento exterior e aquelas produzidas pelo próprio corpo (SO 460b- 25), porém como


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sabemos de onde são oriundas as afecções da faculdade sensível? Obviamente. não pelo próprio conteúdo das sensações. Aristóteles reconhece a dificuldade. Entretanto o argumento que ele utiliza para afastá-la não nos parece muito seguro. Com respeito aos sonhos, ele diz (SO 460b-25 a 462a) que o sangue é o responsável pela transmissão de sensíveis entre os sentidos particulares e o sentido comum. Assim, quando vemos urna cor verde, o olho transmite esse sensível ao sangue que, por sua vez, transmite-o ao sentido comum. No sentido comum se produz a síntese que confere unidade a cada complexo de sensíveis: os objetos da experiê ncia. Entretanto, o sangue possui a capacidade de manter potenciaLmente em si os sensíveis de cada sentido particular mesmo depois de sua devida transmissão ao sentido comum. Assim, durante o dia, como a atividade dos sentidos é muito intensa, o fluxo de sensíveis que chega ao sentido comum rechaça aqueles que já se encontram potencialmente no sangue e estes "se desvanecem como um fogo menor diante de um maior". Porém, durante a noite, dada a inatividade dos sentidos, os mesmos sensíveis potencialmente contidos no sangue vêem à tona e afetam novamente o sentido comum. Nesse caso, o sentido comum é afetado pelos sensíveis remanescentes no próprio corpo ou, mais precisamente, no sangue e não pelos sensíveis oriundos diretamente dos sentidos. Há uma evidente diferença orgânica entre esses dois modos de afecção do sentido comum. Quando dormimos, apenas uma pequena quantidade de sangue permanece nos órgãos sensíveis e, assim, aqueles sensíveis que emergem desse processo não possuem a mesma clareza dos sensíveis produzidos por uma grande quantidade de sangue. Então, o que se manifesta ao sentido comum é somente um " resíduo de uma sensação em ato". Deve-se enfatizar que se trata de uma diferença enu·e uma imagem (supostamente menos vivaz) produzida pela manifestação do sensível contido potencialmente no sangue e uma imagem (supostamente mais vivaz) igualmente produzida pela manifestação do sensível contido potencialmente no sangue. O argumento de Aristóteles é engenhoso porém podemos observar suas ümüações. Em primeiro lugar, a diferença entre os dois processos


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parece ser somente de ordem temporal. Com efeito, os sensíveis são transmitidos ao sentido comum pelo sangue em ambos os casos. Na sensação, o sentido comum é afetado pelo sensível contido no sangue sem que se passe um grande intervalo de tempo. No sonho, o resíduo de uma sensação em ato contida no sangue vem à tona após uma primeira manifestação ocorrida na sensação. Como poderia o sentido comum distinguir um sensível que é percebido pela primeira vez de um sentido daquele que é percebido pela segunda vez? Supostamente, eles teriam graus de vivacidade diferentes. Esta vivacidade seria produzida pela quantidade de sangue em fluxo no corpo que diminuiria durante o sono. Dessa forma, a força de liberação dos sensíveis contidos no sangue e transmitidos ao sentido comum durante o sono seria relativamente inferior a da vigília. Mas esse critério orgânico impõe, pelas suas próprias características, sérias limitações a sua utilização. Senão vejamos. Para mim que tenho dúvidas se estou sonhando ou se estou em vigília, como ele poderia ser aplicado? O próprio Aristóteles diz que "se alguém não se dá conta de que está dormindo, nada contradirá a imaginação." (SO 462a) e que "os processos que se produzem durante a noite, a menos que sejam muito violentos e intensos, passam inadvertidos em comparação com os processos da vigília, mais intensos" (AS 463a-5)8 - o que permite que se confunda a sensação e o sonho. A princípio, um critério orgânico somente possuiria algum valor se a condição requerida, isto é, a quantidade de sangue presente nos sentidos, fosse manifesta não somente para um observador externo como para o próprio indivíduo que confessa não saber se está sonhando ou acordado. O argumento de Aristóteles parece possuir, então, um grande defeito. A partir dele não posso saber imediatamente se estou sonhando ou acordado. Obviamente, podemos supor que possamos sabê-lo mediatamente pela verificação da quantidade de sangue em circulação entre os sentidos particulares e o sentido comum. Porém a questão se complica ainda mais se concebo ser possível sonhar que estou em condições de verificar a quantidade de sangue presente nos meus sentidos, isto é, se posso sonhar que verifico que estou sonhando ou em vigília.


Reminiscência e Sonho em Aristóteles

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Para Aristóteles, a sensação, a reminiscência e o sonho são modos diferentes de afecção do sentido comum. Porém, como observamos, há dificuldades para distinguir, por um lado, a diferença entre a sensação e a reminiscência e, por outro, entre. a sensação e o sonho. Porém, do nosso ponto de vista, o mais importante é confrontar as duas formas de descrição dessas afecções utilizados por Aristóteles: um modelo " inorgânico" ou intelectual para a reminiscência e um modelo orgânico para o sonho. Poderíamos conceber que o fluxo sangüíneo explicasse também o fenômeno da reminiscência - na medida em que se trata igualmente de afecções do sentido comum. Isto é, a reminiscência seria um caso particular da liberação de um sensível potencialmente contido no sangue que afetaria a imaginação. Restaria explicar a diferença entre a afecção reminiscente e a afecção onírica. Mas qual poderia ser o fundamento orgânico da remiruscência? Como Aristóteles sequer cita o fluxo sangüíneo na análise que faz da memória e da reminiscência parece mais plausível afirmar que o recurso a uma explicação orgânica vale somente para o sonho e não para a reminiscência. Isto é, a diferença de modelos explicativos se deve ao fato de que temos, na verdade, dois processos de natureza muito diversa. Mas porque o argumento orgânico valeria somente para o sonho se ambos os processos são afecções do sentido comum? A esse respeito, note-se que a explicação do sonho oferecida por Aristóteles eqüivale, na verdade, à sua caracterização como uma espécie de memória orgânica já que os sensíveis são mantidos em estado latente no sangue mesmo após a afecção do sentido comum. Talvez a explicação orgânica se aplique ao sonho por Aristóteles têlo considerado um fenômeno involuntário. Mas se a diferença entre a reminiscência e o sonho consistisse no caráter voluntário da primeira, estaríamos negando a noção de reminiscência involuntária - o que, a princípio, não parece muito promissor. Resta ainda a possibilidade de explicar a reminiscência involunrária a partir do fluxo sangüíneo e a reminiscência voluntária como se fosse um certo modo de inferência, portanto como algo de natureza e m certa medida intelectual. Aparentemente, não há como resolver em termos aristotélicos o pro-


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Ronie Alexsandm Teles da Silveira

blema da aplicação de dois modelos de explicação diferentes para duas afecções do sentido comum promovidas igualmente por fatores internos: a presença reminiscente e a presença onírica de uma imagem. Isso parece revelar que, na prática, a relação entre os aspectos fisiológicos e involuntários e as operações cognitivas voluntárias da alma segundo Aristóteles ainda precisam ser melhor esclaree.idas.9

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Reminiscência e Sonho em Aristóteles

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Notas 1

Aristóteles, Tratados breves de historia natural, pp. 233-55. Note-se que não se trata dos sentidos em particular e sim do sentido do qual eles são instâncias ou modos de operação. 3 MR, 45la. 4 Há em Aristóteles uma defesa da: existência dessas funções: Silveira, R. A. T. Funções Mnemônicas c Sensação em Aristóteles. 5 SO, 459a-l5. 6 Aristóteles, Tratados breves de Historia Natural, pp. 257-94. 7 Segundo Aristóteles, "o sono não é qualquer incapacidade da sensibilidade, senão que esta afecção se produz pela evaporação devida à tomada de alimento". (SV 456b-15). Cf. tb. 45Th. 8 O grifo é nosso. Trara-se do Sobre a Advinho.ção pelo Sono. 9 Este trabalho é resultado parcial do programa de pesquisa "Memória e Cognição" financiado pelo Fundo de Apoio à Pesquisa (FAP), pelo Programa UNISC de Iniciação Científica (PUIC) - ambos da Universidade de Santa Cruz do Sul - e pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica do CNPq {PIBIC/CNPq).

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ronie@dhum.unisc.br



Seção 4 Filosofia Moral e Ética



RUSSELL'S MORAL EPISTEMOLOGY: FROM COGNITMSM TO NONCOGNITIVISM? DARLEI DAU' AGNOL

Universidade Federal de Santa Catarina

I camzot see hmv to refute the arguments.for the subjectivity of ethica/ mlues, butl fmd myse{f incapable o.f helieving that ali that is wmng with wanton cruelty is that I don't like it. -

RUSSEU..

1. Introduction Bertrand Russell is well known for his logical and mathematical works. He is, after ali, the aulhor of Principia Mathematica. His ethical and political books, however, have attracted less attention. They were, indeed, read when Russell was still alive and engaging in política! militancy. They had strong in.fluence in the 50s and 60s, when he was campaigning for nuclear disarmament. Almost everyone knows that Russell was a pacifist and an educalional refonner, but apparently, only Russell 's logicaJ works are studied and seem to have philosophical relevance, nowadays. Russell, however, was also a phiJosopher occupied with lhe theorelical problems of ethics. From his early writings to his last ethical books, there is a permanent concern with the fou ndations of moral phllosophy. I would Uke to mention here two main works, which are representative of Lhls point, namely "The Elements of Ethics" (1910) and Human Society in Ethics and Politics (1954). Both works discuss whether "righl'' or "good" can be defined, whether they are analysable, whether moral judgments can be true or false, whether ethics can be a science. These are meta-ethics issues that are paramount to ethical investigations. Cupani, A. O. & Mortari, C. A. (orgs.) 2002. Unguagem e Filosofia. Anais do Segundo

Simpósio Internacional Principia. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 6. Florianópolis: NEL, pp. 259-74.


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Darlei Daii'Agnol

In this paper, I would like to examine an apparent change in Russell's view about lhe nature of moral j udgments. Particularly, I would like to discuss whether bis departure from an objectivistic moral epistemology, held in "The Elements of Ethics" (henceforth EE), lo a subjeclivist one in Human Society in Ethics in Politics (thereafter HS), is well grounded. My question is, then, to know whether Russe U's change from a cogrutivist position to a noncogrutivisl one has valid philosophical reasons. The general problem can be expressed in this way: are ethical j udgements subjective or objective? Firsl of ali, let me make a terminological observation: here Iam using lhe lerm "cognitivist" to express the view that moraljudgements are objective and "noncognitivist" to refer to the view that they are in some sense subjective. Thus, I am not using "cogrutivism'' as it is normally employed, namely as lhe theory that holds that we have moral knowledge and, more specifically, that moral judgemcnts can be rrue or fal se. However, in a broad sense, to hold that moraljudgements are subjective is to deny that they express knowledge since there can be no science or a sound philosophical theory based on subjeclivity. I shall divide this paper in two main parts. In lhe fust, T shall scrutinise Russell's main ethical propositions held in EE. As we shall see, he held a broad Moorean approach to ethics believing tbat it provided a solid foundat ion for moral philosophy. In the second part, I shall examine HS, written almost balf a century laler, where be still keeps part of the thesis maintained in EE, but also makes substantial cbanges. In lhe conclusion, I shall analyse wbether Russell's change of view is philosophically souod. I shall try to show that it is not and present an alternative account.

2. The elements of etbics It is a matter of fact lhat Moore had a strong influcnce on Russell's early conception of philosophy. Por instance, in My Philosophical Development, Russell wrote (1959: 54): ' It was towards the end of 1898 that Moore and I rebelled against both Kant and Hegel. Moore led the way, but I followed closely in his footsteps.' This meant to Russell:


Rusself's moral epi.rtemology: fmm cognitivism to noncognitivism?

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'On fundamental questions of philosophy, my position, in ali its chief features. is derived from Mr. G. E. Moore. I have accepted from him the non-existential nature o f propositions (except such as bappen to assert existence) and tbeir independence of any knowing rnind; also the pluralism which regards the world, both that of existents and that of entities, as composed of an infinite number of mutually independent entities, wilh relations which are ultimate, and not reducible Lo adjecLives o f Lheir terrns or of lhe whole which these com pose', ([1903]: x viii). Eventually, under the inftuence of Wiugenstein, Russell carne later to change his views on these logical and metapbysical issues. But Moore's views on ethical mauers seem to run deeper throughout Russell's life. Moore's intluencc is clear in "The EJemcnts ofEthics". The work explicitly acknowledges Russell's debts and his aulhor refers to Principia Ethica for fuller discussion on the topics examined. The main points examined are: the subject matter of ethics; lhe meaning of "good"; whether iL is definable and/or unanalysable; lhe intuicionist versus the utilitarian account of "right"; the relationship beLween ought (elhical judgments) and is (scientillc propositions); a posirive identification of the bearers of intrinsic value using the principie of organic unities; etc. Let me, then, discuss each of these topics. Regarding the subject matter of ethics, Russell points out that ethics is not concemed with the quesLion "What sort of actions ought men to perform?" This is evcntually wrong for two reasons: first, lhe object of ethics "is to discover true propositions about virLuous and vicious conduct" (EE: 13). That is to say, its aim is not practice, buL propositions about practice. As propositions about gases are not gaseous, propositions about practice are not practicaL The conclusion is lhat "ethics is not something omside science and co-ordinate with it: iL is merely one among sciences" (EE: 14). As 1 pointed out elsewhere (1995), Wittgenstein's Tractalus can be seen as a work directed against Moore's and Russell's attempL to transform ethics into a science. In other words, Wittgenstein wants to establish the limits of what science can say and show that ethical judgements are not propositions in lhe stricL sense, lhat is, they are not pictures of Lhe s tates of affairs. Second, ethics is concemed with lhe reasons thal can be presented


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Darlei Daii'Agnol

to support moral judgements. Thus, "when we are told that actions of certain kinds ought to be performed or avoided, as, for example, that we ought to speak the tmth, or that we ought not to steal, we may always legitimately ask for a reason, and tbis reason will always be concerned, not only witb the actions themsel ves, but also with the goodness or badness of the consequences likely to follow from such actions", (EE: 14). That is to say, ethics deals with the justification of moral judgements. Despite Russell correct observations, he seems here to reduce ethics to meta-ethical concerns, a view that was predominant in ethics throughout twentieth-century analytic philosophy. It neglects, however, that Moore's Principia Ethica rightly kept a tbreefold division of ethics into meta-ethics, normative ethics and practical ethics. Having established the domain of ethical investigation, Russell faces now the question of the meaning of "good". In this regard, he states that "good" has two main senses: either it refers to what is valuable as a means or to what is intrinsically valuable (EE: 17- 20). According to bim , "the most fundamental notions in ethics ... are the notions of intrinsic good and evil" (EE: 58). Now, following Moore's fust definition of intrinsic value, Russell says that "a thing is good when on its own account it ought to exist, and bad when on its own account it ought not to exist" (Idem, p. 17). As can be seen, Russell rejects here the view that "good" means the same as "desired" (c f. EE: 17), something that he will, as we shall see, reconsider in bis later account. Thus, "when we say a thing is good in itself, and not merely as a means, we attribute to the thing a property which it either has or does not have, quite independently of our opinion on lhe subject, or of our wishes or other people's" (Idem, p. 20). Therefore, intrinsic value is an objective ethical notion. To point out that intrinsic value is a property that is independent of desires is not to say that it is indefinable or unanalysable. In fact, Russell accepts the idea that the concepts of good and bad ''are apparently among those which form the simplest constituents of our more complex ideas, and are therefore incapable of being analysed or built up out of other simples ideas" (EE: 16). To avoid misunderstandings, let me distinguish two issues here: whether "good" is indefinable and whether it is unanalysable. Actually, even if "good" stood for a simple property,


Ru.uell's moral epislemology: from cognilivism lo nrmcognilivism?

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it could still be defined. That js to say, simplicity is not a solid ground for saying that intrinsic value is indefinable as Euclid's definition of a geometrical point makes it clear. Moreover, Russell uses Moore's openquestion argument to poinl out that whatever definition of "good" is presented, we may challenge it with a ditferent definition equally right. Thus, if one defines "good'' as "desired", we could indeed ask "is what is desired really good?" and if this question makes sense-as it apparently does- then, theoretically, it shows that "good" cannol be defined in that way. But, lhis is an ill-formulated problem. From the fact that "good" can mean not only "desired", but also ''pleasant", "conform to nature", "conform to God's wiU", it does not follow that "good" is indefinable or that all these definitions are in principie wrong. Therefore. we oeed to reject Moore's open-question argument, not as logically invalid, but as incapable of sbowing that "good" is indefinable. Unfortunat.ely, Russell did not realise this point. A distinct maller is wbether "good" is unanalysable. Ditferently from the issue of whether "good" is indefinable, simplicity is a sound ground for saying that "good" is unanalysable, if it were logically simple and stood for a simple property. This could be lhe case because there is a sense of analysis, namely as a process of decomposing a whole into ils elements, which reaches an end when we find simple properties. This is, however, equally misleading. "Good" does not, necessarily, stand for a simple property. Nevertheless, there is a sense in which it is philosophically relevant to point out that "good" is unanalysable. lt was expressed by Russell in these terms: "as a matter of fact, there is, so far as I can discover, no self-evident proposition as to the goodness or badness o f ali that exists or has existed o r will exist. lt follows that, from the fac/ that the existent world is of such and such a nature, nothing can be inferred as to what things are good or bad" (EE: 22, italics added). Russell rightly points out here that ethicaljudgments (expressing an obligat ion) are quite independent of empirical propositions (is-judgements). Thus, he keeps lhe is-ought distinction. As Moore showed, trying to reduce ethical judgements to empirical ones leads to gross mistakes mainly to the naturalistic fallacy. Ethical judgements are categorially distinct from, for instance, empĂ­rica! ones and this means that ethics is an au-


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tonomous field of investigation. That is why, as Russell correctly saw, an evolutionary ethics based on the hypothesis of the "survival of the fittest" is "wholly destitute of logical foundation'' (EE: 24). Therefore, good is really unanalysable in natural tenns. One may wonder how to guarantee the objectivity of ethical judgments if they do not describe natural facts. Russell shows how this is possible, for example, by a plausible definition of "tight". Having established that "good" (in this particular sense of "intrinsic value") is the fundamental ethical concept and that it is an objective notion, he discusses how to define "right" in tenns of it. On this point, it is worth notĂ­ng that be tries to combine the utilitarian view, which holds that the rightness of an act depends upon the goodness or badness of its consequences with the intuitionist view that judges the goodness and rightness of an act by the approval or disapproval of our moral sense (EE: 25-6). The combination is, eventually, reached by distinguishing subjective rightness (doing what one's believes is right) and objective rightness, that is, that action that produces the best consequences. The central notion, then, is "objective rightness" since one may be wrong in believing that one action is right in itself. Russell makes another distinction worth calling attention: that between lhe mostfortune act and the wisest act (EE: 30-1). The former is the objectively right act that in any circumstances is the one that will have the best consequences. The latter "is that one which, when account is taken of ali available data, gives us the greatest expectation of good on the balance, or the least expectation o f evil on lhe balance" (EE: 31 ). Therefore, an action is right when, among all the possible courses of action open to an agent, it is the one that will probably have the best results. This is, indeed, an objective notion of rightness. Russell can, now, say that a moral act is virtuous and deserves praise; an immoral act is sinful and deserves blame. Finally, there is a last point worth mentioning regarding Russell's first views on ethics. The positive identification of the bearers of inttinsic value is made also using Moore's principie of organic unities, that is, a whole is often better or worse than the sum of lhe values of its parts (EE: 56). Thus, there is no necessary connection between lhe value


Russell'.r moral epistemology: fmm cognitivism to noncognitivi.fm?

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of the whole and tbe addition of the value of each of its parts. Even in making lhe list of lhe intri nsicaUy valuable lhings, RusseU follows a moorean path: friendship and aeslhetic contemplation are among lhe best values in tbe world.

3. Is tbere moral knowledge? A slightly different approach to ethics is given in fluman Society in Ethics mui Politics, many years later. According to Russell himself, he soon carne to disbelieve in objective moral properties in Moore's sense (cf. his new introduction to Philosophical Essays published in 1966). In this section, I shall scrutinise lhe main changes in his views. Before presenting lhe main tenets of Russell 's new ethicalth in.king, it is wortb noting tbat during the 20s and 30s he embraced emotivism. One may even suppose that Wittgenstein's Tractatus, a book that denies that ctbical judgements can be rrue or false, had a strong influcnce on Russell's philosophy in ethical matters. Whatever is the case, it is certain that Russell may even be considered one of his founders o f contemporary emoti vism. In this regard, two main observatio ns must be made. First, in lhe 20s, Russell advanced a way of analysing etb ical concepts, whicb was fully developed by Mackie's Ethics- Inventing right and wrong. This view is now known as '"the errar theory". According to Russell 's new account, ethical concepts such as "good" and "bad" can be eUminated by means of philosophlcal analysis since there is no objective property described by them. The consequence is that any ethical judgement is false or, better, illusory. That is to say, tbese concepts apply to nolhing. In the 30s, however, Russell carne to sustain a different view. According to his new position (cf. 1938: 1 16), a judgement of intrinsic value cannot be interpreted as an assertion, but simply as an expression of desire. This is clearly an emotivist approach to ethical concepts. This theory says that ethkal judgements such as "pain is bad" means, in few words, '路I desire lhat no one feels pain ." lt follows, from this emotivist analysis, that ethical judgements cannot be true or false since they are expressions of one's desires, feelings or emotions.


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h is worth mentioning that Ayer and Stevenson held a similar view also in reaction to Moore's objectivism. In Language, Truth and Logic, first published in 1936, Ayer mainlains that ethical philosophy must restrain itself to definitions and make no moral pronouncements (p. 105). Moreover, h e clearly presents an emotivist analysis o f value judgements. Thus, ajudgement such as "Stealing money is wrong" expresses nothing that can be true or false, but only the moral disapproval of the speaker. A view very close to this was fully elaborated by Stevenson in Ethics and Language. However, Stevenson has two ditferent patterns of analysis. His first pattern of analysis of moral discourse is basically this: '(1) 'Ă­his is wrong" means I disapprove of this; doso as well; (2) "He ought to do this" means I disapprove of his leaving this undone; doso as we/1 (3) ''This is good" means I approve of this; doso as well.' (1944: 2 1) But, this first pattem is insufJicient because it reveals only that, for instance, 'good' is almost like 'hurrah ' (Stevenson 1944: 82), that is, it is used to express speaker's altitudes. The second pattern of analysis tries to eliminate tbe subjective emotive meaning and gives more importance to the cognitive and descriptive content. Thus, according to Stevenson " 'This is good" has the meaning of "Th is has qualities or relations X. Y, Z ... ," except that "good" has as well a laudatory emotive meaning which permits it to express the speaker's approval, and tends to evoke the approvaJ of the hearer,' (1944 : 207). As can be seen. the second pattern of analysis seems more objective. Stevenson applies the same analytical pattem to the concept of intrinsic value (Idem. p. 175). However, Stevenson 's second analytical panem still is subjective since it keeps t11e laudatory meaning expressed by lhe speaker tO evoke the approval of the hearer. A few years !ater, however, Russell held a different account of elhical concepts. lt can be found in Human Society in Ethics and Politics. This new view is neirhcr objectivisric as his first account in "The Elements of Ethics", nor emotivist like his position held in the 20s and 30s and developed by Ayer and Stevenson. Let me, then, analyse this account. First of ali. it is necessary to point out that there is a couple of thesis that remain identical to "The Elements o f Ethics". For instance, Russell holds that there is "a body of ethical propositions, whicb are true (or


Russell's moral epi.ftemology: .from cognitivism /0 noncognitivism '!

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false) in lhe same sense as if they were propositJons of science" (HS: 116). Thus, he is a cognitivís4 if one defines cognitivism as the ethical theory which holds that ethicaljudgments can be true or false. Instances of such propositions are these (Idem, p. 115-6): (I) Surveying lhe act which arouses emotions o f approval or disapproval, we find that, as a general rule, lhe acts whicb are approved of are those believed likely to have, on lhe balance, cffecrs of ccrtain kinds, while opposite effecrs are expected from acts that are disapprovcd of. (2) Etfects that lead to approval are defined as 'good', and thosc leading lo disapproval as 'bad'. (3) An act of which, on lhe availablc cvidence, lhe efrecrs are likcly to be berrer lhan those of any olher act that is possiblc in thc circumstanccs, is defined as 'right'; any other act is 'wrong'. What wc 'ought' to dois, by definiüon, lhe act which is right. (4) lt is right to feel approval of a right act and disapprova1 of a wrong acL

According to Russell, these propositions and definitions set up the basic lheoretical framework o f ethics. I sball examine some of them presently. There is, however, a change in Russell's ethical investigations that it is necessary to examine further. While in EE he defines intrinsic value as a prope1ty that is independent of one's desires and beliefs, in HS there is a certain degree of subjectivism in nis account of what is good in itself. He still thinks that the main meaning of "good" is what " has value on its own account, independently of its etfects" (HS: 1 11). In fact, intrinsic valuc is still the fundamental ethical notion and ·ought' must be defined in tenns of this value. Thus, "an act 'ought ' to be performed i f, of those that are possible, it is the one having tne most intrinsic value" (Idem, p. 112). Russell, then, states the fundamental principal of his elhics:

"The act having most intrinsic value is the one likely to produce tlze greatest balance of intrinsic value over intrinsic disvalue, or the smallest balance of intrinsic disvalue over intrinsic value" (HS: 112; italics added). As can be seen, he still remains a consequencialist ethicist. Wc must, perhaps, pay a líttle more attention to Russell's late definition of "good''. As he clarifies, 'a thing is "good", ... , i f it is valued for its own sake, and not only for its effects' (HS: 51). That isto say,


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Russell's main concern is still re lated to good in a particular sense, that is, as referring to wbat is intrinsically valuable. It is necessary to point out that this is the most importaot sense for ethlcs since what is good as a means can only be established after due consideration for what is an end in itself. lt follows tbat intrinsic value is logically prior to value as a means. Even in his late writings, Russell lhinks tbat ' right' conduct is conduct tbat promotes lhe generaJ good. Thus, right conduct is defined as the "conduct which maximizes lhe balance of value over disvalue or minimizes lhe balance of disvalue over value, lhe choice being among acts lhat are possible," (HS: 130). Having established what is right, he can also say wbat one ougbt to do. Tberefore, Russell denies that "ought" is the most primilive ethical notion since it is defined in terms o f what is good. Which is, then, lhe subjectivist trait of Russell's late account? To answer this question, we need to bear in nĂşnd tbat, in EE, he thought tbat intrinsic value was indefinablc. Tbis mcant that one could not define it in terms of"desire" or " pleasure" or whatever. But in HS he no longer thinks that imrinsic value is indefinable (p. 113). In fact, he suggesrs that " intrinsic value" may be definable in terms of desire or pleasure or both (Idem, lbid.). Ler me quore Russell 's own definjtion of "good" in that particular sense of what is valuable in itself: intrirzsic value is the property of a statc of mind which is enjoyed or which, having been cxpericnccd, is desircd . The opposite of inlrinsic value is callcd intrinsic disvalue. A value and a disvalue are considered equal when a person who has the choicc is indifl'erent as to whcther he cxperienccs both or neither. (HS: 130)

As can clearly be seen, intrinsic value is no longcr indefinable, but it is defined in terms of what is desired or what is pleasanr. These are, presumably, rhe indefinable notions of cthics. U we understand this point well, we can grasp lhe main conclusions o f Russell 's book: "altho ugh, on lhe above theory, elhics contains slatements which are true or false, and not merely optative or imperalive, its basis is still one of emolion and feeling, the emotion of approval and the feeling of enjoyment or satisfaction (itatics added). The former are


Russeil's moral epistemology: f mm cognitivism 10 nnncog11itivism ?

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involved in lhe definition of ' right' and ' wrong' , the latter in that of 'inlrinsic value' " (HS: 118). As can be noted, Russell now defines intrinsic value in terms of lhe feeling of enjoyment or satisfaction. The point is, then, tbat ethics differs from science in lhe fact that its fundamental data are feelings and emotions, nol precepts. Russell asks us to take th.is literally: the data of ethics "are the feelings and emotions lhemselves, not the fact that we have tbem" (HS: 25). Granted, an ethicaljudgment does not state a facl. What it states , according to Russell's new view, is some "hope or fear, some desire or aversion, some love or hate. It should be enunciated in lhe optative or imperative mood, not in the indicative", (Idem, lbid.). Thus, if feelings and emotions are the data of ethics and they are subjective, then ethics must be in some sense subjective 100. Russell. however, is not a full -blooded subjectivist, 煤1at is, be does not hold, for instance, that wbatever is desired is good in ilself. But he explicilly holds that ethical tenns are '路egocentric" (HS: 111; J30). This means that intrinsic value must bc defined in tenns of the feeling of satisfaction, whicb is a subjective notion. Therefore, Russell holds a kind of subjectivism in his later writings. There is another point worth mentioning here, where Russell explicitly wants to separate himself from Moore's etbics. In bis own words: "Lhe beliefin 'sin' as something rneriting the purely retributive infliction of pain is one which cannol be reconciled with any ethic at all analogous to that which I bave been maintaining, thougb it has been advocated independently of theology, for instance in G. E. Moore's Principia Ethica" (HS: 95). It seems, then, that Russell no longer subscribes to Moore's positive identi fication of the bearers of intrinsic value or intrinsic disvaJue. 11 may also be assumed tbat he abandoned Moore's principie of organic unities, if not lhe method of isolation, as an instrumem to establish what is good in itself. The range of intrinsically valuably things in Russell's late ethical writings are as follows: "we may distinguish three kinds of sources of intrinsic value: fi rst, good in which there can be private ownership, but which can, at least in theory. be sufficiently supplied to everybody. Of these. the stock example is food. Second, goods which not only are private, but, by their logical character, are incapable of being generally


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enjoyed. These are those derived from pre-eminence, whether in fame or power or riches or what not. In theory, we might ali be rich, but we cannot all be Lhe richest man alive. Desires for pre-eminence, therefore, have a logically inescapable competitive character. Third, there are intrinsic values of wbich lhe possession does nothing wbatever to diminish the poss ibilities of equal enjoyments for o lhers. In this category are such thiogs as health, pleasure in bcing alive on a fine day, friendship, love, and the joys of creation" (HS: 133). According to Russell, these are the means to happiness. Indepeodently of the fac t that this may nol be a better lislthan Moore's, since lhe author of Principia Ethica did j ustifiably not include the possession of material things among lhe intrinsically valuable goods, the fact is that now Russell is not only concemed with meta-ethical issues, but tries to provide a positive idcntification of what is good in itself and explores its political implications. Since 1 would like lo concentrate on the issue of the objectivity of value judgements, I sball not comment in detai1 on Russell 's new lisl of intrinsic values. What may be observed, however, is lhat the things that Russell attached to intrinsic value are things that are desired or enjoyed. Tbis suggests, according to Russell 's own words, lhal there can be no intrinsic value in "a unjverse devoid of sentience" and that intrinsic value "may be definable in terms of desire or pleasure or both" (HS: 113). To be more precise, intrinsic value must, as we have seen above, be defined in terms of the feeling of satisfaclion. This view seems to me to be wrong. lt introduces subjectivism into ethics. Obviously, subjective judgements still can be true or false (e.g. "I am feeling cold now"), but then they do not express knowledge, if we take science to be universal. The conclusion is that non-cognitivism would be true. I shall, then, argue against Russell's view in the next section. I would like lo show that Russell's first approach to inrrinsic value (in EE) was nearer to the truth than bis late account as stated in HS.

4. FinaJ observations Having reconstructed Russell's two main views held in EE and HS, we can critically assess his moral epistemology. My main intention is try


Russell's moral epistemnlogy: fmm cognitivism to noncognitii'テ行m?

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to show that Russell's later account is false. That is to say, I do not think lhat when we mak.e an ethical judgment we are expressing our own approval or disapproval of something or our feeling o[ satisfaction. In other words, when we say lhat somelhing has intrinsic value. that it bas worth in and by itself, we are not expressing our subjective feelings of enjoyment. I shall also presenl an alternative view, which exhibits Lhe objectivity of values. First of all, it is worth noting that Russell 's account of ethical concepts in HS seems contradictory. That is to say, he wants to keep some descriptive basis for ethics (he accepts the idea that elhical judgements can be true or false), but, al lhe same time , insisls that ethical judgements express only the emotion of approval and the feeling of enjoymenl of the speak.er. It is a matter o f historical fact that emoti vists have denied that value judgements can be true or false. Thus, some philosophers think that these two positions cannot be held together. For this reason, Ayer ( 1972) may be right in his analysis o f Russell 's moral phiLosophy pointing out that we must reject tbe descriptive part of HS as unsatisfactory, despite lhe facl that lhe prescriptive prut may be acceptable. However, whether or not Russell 's views are aulo-contradiclory, the impoflant point is whether inuツキinsic value judgemenls are subjective or olherwise. Let me. then, try lo say why Russell's egocentric subjectivism is untenable. Consider his example given in the epigraph of this paper, namely "wanton cruelty". Tf one asks oneself why such behaviour is morally wrong, lhe answer is nol that one does not like it or that one h as lhe emotion of disapproval of it. Quite the contrat)', lhe righl answer lO the question "Why cruclry is wrong?" is tbar to inflicr deliberatively pain is intrinsically bad. We ali know this not only from our own experiences, bul also by seeing humans and other an imal's reactions when lhey are in pain. Many things cause physical and mental sufferiog and among !:hem we also find peoplc's cruel acrions. The behaviour that is inlentionaily aimed at producing discomfort and distress on others is certainly bad in itself. If the above considerations are plausible. as I think they are. then it fo llows thal a value judgement such as "Pain is intrinsically bad" is on


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Darlei Daii'Agnol

the basis of a normative j udgement Like "You must not be cruel". More importantly, the first judgement does not express one's disapproval of physical or mental suffering, but that pain is bad in itself quite independently of what one might think or like or desire. Given this fact, it is ce11ainly objective and it provides lhe grounds for other k.inds of judgements. Therefore. neither intrinsic value is a property of a state of mind nor value judgements express ooJy the feeling o f approval or disapproval of something. Russell may be rigbL in rejecting some aspects of bis first approach to intrinsic value. To clarify this point, we can distinguish, as O'Day does (1999) lhree conceplions of intrinsic value: i) lhe realistic; ii) lhe objetivist; and (iii) the subjetivist. The former holds that intrinsic value is a property of lhe tltings themselves, that is, that it is wholly independent of valuers. Thus, intrinsic value is considered a non-relational property. In some of Moore's writings (e.g., in Principia Ethica and in bis paper "The Conception of Tntrinsic Value") we can find lhis account. Moore argued in Principia Ethica tbat a world wilh nice landscapes is beautiful even if there is no conscious being there to contemplating it. Now, an objectivist approach holds lhat intrinsic value is a property of the things themselves, but it is not quite independent, in lhe strong realistic and transcendent sense, of valuers. lntrinsic value is, in this view, a relaciona! property. In Aristotle's elhks wc can find this conccption of what is good in itself. Even in some of Moore's writings we can lind this account since the author of Principia Ethica carne to hold that intrinsic value means "worth having for its own sake" and lhe implication of such a definition is that only agent-related things can be good in lhemselves. But to be agent-related is not yet to be subjective. Thus, according to this view. only experiences, virtues, knowledge, pleasure, etc. can be worth having for their own sake. Finally, lhe subjectivist maintains that whatever one desires for its own sake or be.lieves to have worth in itself has intrinsic value. It holds aJso that intrinsic value is a relational property, but unUke the objectivist account, il slresses the dependence of one's own desires or beliefs on lhe determination of what is good in itself. In Stevenson 's emotivism, at least in his first analytical pattern of "good", wc can find cbis way of cxplaining intrinsic vaJue. We can also


Russefl's moral episumwlogy: fmm cognirivism to noncognirivism?

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say that Russell 's first account was objectivist while his later account is subjectivist. What is wrong with lhe realistic approach is that intrinsíc value is not a non-relational property, but [ am not going to argue against this view here. However, ethical subjectivism is not the only alternative to this view, contrary to what Russell lhought. In fact, lhe best explanation of what intrinsic value is g iven by the objectivist account, which holds that intrinsic value is a relational property, but it is not dependent on one's own desires. That is to say, intrinsic value is a property that we can ascribe to things because they have such and such characteristics and when we do so we are not expressing our own subjective approval, our own desires, our own feel ings, etc. For example, when we say tbat virtue or knowledge are good in themselves, that they are wortb having for lheir own sake, we are not saying that we approve of them or that we have a feeling of satisfaction in having them. It is because virtue is valuable in itself that we desire it. Thus, what really happens is that we desire virtue because it is good and not that we desire virtue and then it is good for us. The only possible conclusion is that intrinsic value is a property that can be ascribed to things independen tly of one's own opinions. Thus, perhaps RusseU was right in rejecting Moore's apparent platonic account of intrinsic value given in Principia Ethica. But he was nol right in adopting lhe opposite site, that is, some form of subjectivism. Intrinsic value judgemems do not have lhe form ·J dislike cruelty; but "cruelty is intrinsicaUy bad".

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Darlei Dall'Agnal

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LEGALIDADE E

EsTADo

DE DmEITO EM WEBER E KELSEN

DELAMAR JosÉ Vot.PATO DUTRA

Universidade Federal de Santa Catarina/CNPq

1. Introdução Para o esclarecimento do conceito de estado de d ireito é necessário ter claros os seguintes conceitos com e le re lac ionados, quais sej am, democracia e legalidade. Segundo e le, estado de direito e democracia aparecem a n6s como objetos inteiramente separados. Há boas razões para isso. Porque o governo polftico é sempre exercido na forma j urídica, o sistema legal pode existir onde a força política não foi ainda domesticada pelo estado de direito. E o estado de direito existe onde o poder de governar não foi ainda democratizado. Enfim, há governos ordenados legalmente sem as instituições do estado de direito e há estado de direito sem constituição democrática. Naturalmente, esses fu ndamentos empíricos para a divisão do trabalho no tratamento acadêmico dos dois as sumos não implica que, de um ponro de vista normativo, o estado de direito possa existir sem democracia. (HabcrmasJ997,p.293)

Portanto, 1] pode haver estado de d ireito sem democracia e 2] pode haver legalidade sem estado de direito. Para compreendermos essas afi rmações temos que distingui r os sentidos dos termos aqui e nvolvidos. A possibilidade de haver estado de direito sem democracia [1] impüca em ter que tomar a noção de estado de direito, sim, num sentido normativo, mas substanciaL Nessa perspectiva, o estado de d ireito garante um conjunto de direitos substantivos com relação ao poder legiferante do Estado. Para que haja legalidade sem estado de direito [2], temos que tomar a legalidade como uma forma, a qual pode a lbergar tanto uma concepção normativa de direito, q uanto qualquer outra regra, para a qual Cupani, A. O. & Monari, C. A. (orgs.) 2002. Linguagem e Filosofia. Anais do Segundo

Simpósio Internacional Principia. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 6. Florianópolis: NEL, pp. 275-82.


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Dela mar José Volpalo Dulra

não estamos dispostos a atribuir o valor d!a justiça. Veremos que a legalidade é necessária para o estado de direito em razão de sua forma, mas pode albergar normas com conteúdos diferentes e mesmo contraditórios entre si. "O direito não possui estrutura própria. cuja forma pudesse sofrer modificações. Pois a forma do direito e representada como um estojo ou cápsula plástica que se ajusta a qualquer tipo de ação de regulação por parte da administração. O conceito de lei é despojado, à maneira positivista, de toda e qualquer detem1inação de racionalidade. O minimum ético restante passa da forma semântica da lei para a fonna democrática da legislação" (TrFG2 p. 208). Este é um argumento para distinguir estado legal de estado de direit-o, o qual deverá ser entendido a partir da democracia. A partir de Weber e Kelsen, pode-se mostrar que a legalidade é um dos elementos do estado de direito, o que ainda não determina nenhuma restrição conteudistica ao poder, sendo um primeiro estágio do estado de direito, necessário, mas não suficiente. Habermas tratará a noção de estado de direito a partir do aspecto normativo do direito e do poder, o que remeterá, em sua concepção processual de legitimidade, para o princípio da democracia, já que é o modo como se dá conta da legitimidade do direito. Portanto, normativamente, para Habe1mas, o estado de direito vem conectado com a democracia, pois é a única maneira de se dar coma da normatividade, sem apelar a alguma noção axiológica substancial.

2. Elementos da sociologia do direito de Weber: o estado legal Para Weber, pode haver estado sem direito, mas não direito sem estado. Portanto, não há, para ele, um direito substancial que pudesse receber o nome de direito, independentemente de um aparato normativo. Daí a sua filiação ao positlvismo. Pois, o positivismo, caracteriza-se, mais do que pela afirmação de que o direito é o direito positivo, pelo que subjaz a essa afirmação, a saber, que o direito é o direito positivo porque o direito. em última análise, não passa de uma forma coercetiva. (Cfr. FG p. 113 [TrFGl p. 117.) De fato. segundo Kelsen, "o Direito positivo é essencialmente uma ordem de coerção. Ao contrário das regras do


Legalidade e Estado de Direito em Weber e Kelsen

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Direito natural, as suas regras derivam da vontade arbitrária de uma autoridade humana e, por esse motivo, simplesmente por causa da natureza de sua fonte, elas não podem ter a qualidade da auto-evidência imediata. O conteúdo das regras do Direito positivo carece da necessidade "interna' que é peculiar às regras do Direito natural em virtude de sua origem [... ] a doutrina que declara a coerção como característica essencial do Direito é uma doutrina positivista e se ocupa unicamente com o Direito positivo" (Kelsen 200, p. 559). Como conseqüência, o sistema do direito natural tende a ser um sistema estático, ao contrário do positivo que é um sistema dinâmico, em razão de ser um produto da atividade humana, o que determina um caráter, na história, conservador do direito natural. Poder-se-á ver adiante de que modo as formulações de Weber sobre o direito são compatíveis com essa fonnul ação de Kelsen. Segundo Weber, a legititnjdade é uma crença no dever ser de uma norma (cf. Weber 1998, p. 26). A ação social legítima pode ser: a] racional com relação a fins; b] racional com relação a valores [por. ex., o direito natural); c] afetiva e d] tradicional. Essas são ações racionais e legítimas. Assim, a legitimidade é fntima quando afetiva, quando referente a valores e quando tradicional [religiosa]. É externa quando referente a fins racionais. O direito, como ordem jurídica, está garantido externamente pela probalidade da coaçãn (física ou psíquica) (cf. Weber 1998, p. 20 e 27). A legalidade é uma fonna de legitimidade sobre a qual se acrescenta a coerção. Sendo a legitimidade uma crença, nada impede que normas distintas e mesmo contraditórias possam ser consideradas como válidas (cf. Weber 1998, p. 26). A seguir, pode-se ver como Weber apresentará um conceito de direito, bem como de poder, neuu·o a qualquer determinação de legiti midade no que concerne a conteúdos, já que qualquer conteúdo pode ser objeto de uma norma legítima. O conceito de coerção remete, para Weber. à questão do poder: "poder signjfica a probabilidade de impor a própria vontade, dentro de uma relação social, mesmo contra toda a resistência e qualquer que seja o fundamento desta probalidade" (Weber 1998, p. 43). O poder, quando revestido de legitimidade, é obedecido. A obediência aos ditames dopoder metamorfoseia-o em dominação. A disciplina. como se sabe. para


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De/amar José Volpato Dutra

Weber, é uma obediência automatizada. Uma associação de dominação é política quando pode contar com a coerção extema, portanto, com o poder. O Estado é um instituto político que consegue manter com êxito o monopólio legítimo do uso da força física para manter a ordem. Segundo Weber, a coação física não é o modo normal de manutenção das associações políticas, mas é o seu meio específico, a sua última ratio. Essa consideração de Weber, por um lado, unifica poder e direito, enquanto uma pura forma coercitiva despida de conteúdo e, por outro lado, separa essa forma de qualquer conteúdo que possa vir a lhe ser acrescentado. Ou seja, a definição de direito, como acima visto, une-o intrinsecamente, com o poder, ou seja, com a coerção. Mas, não determina qualquer conteúdo. Mesmo a legitimidade jurídica, aqui, é despida de conteúdo, pois ela é formal, remetendo ao procedimento de sua criação e à crença de que esse procedimento é legítimo. Nas palavras de Weber, não é possível definir uma associação política - inclusive o 'estado' assinalando os fins da 'ação da associação' [... ] não exisüu nenhum fim que ocasionalmente não haja sido perseguido pelas associações políticas; c não houve nenhum [... ] que todas essas associações tenham perseguido. Só se pode definir, por isso, o caráter político de uma associação pelo meio [... ] que sem ser-lhe exclusivo é certamente específico e para a sua essência indispensável: a coação física. (Weber 1998, p. 44)

Essa consideração de Weber permite-lhe oferecer uma concepção de legitimidade da legalidade neutra com relação a conteúdos, bem como uma concepção de direito também conespondente a essa neutralidade. Nesse sentido, Weber é partidário de uma legitimidade estritamente processual. já que uma norma portará um índice de crença na sua legitimidade, dentre outros motivos, por causa do procedimento legal pelo qual passou. Esse imbricamento entre estado e legalidade nos remeterá à noção de estado legal, cuja melhor formulação em Weber será a burocracia. O Estado regido pela legalidade é portador de algumas características peculiares. Primeiro, o seu aspecto processual, já "que qualquer direito


Legalidade e Estado de Direito em Weber e Kelsen

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pode criar-se e modificar-se por meio de um estatuto sancionado corretamente quanto à forma·•; segundo, a legalidade, já que "se obedece, não a pessoa em virtude de seu direito próprio, mas à regra estatuída, a qual estabelece ao mesmo tempo a quem e em que medida se deve obedecer. Também o que ordena obedece, ao emitir uma ordem, a uma regra: à 'lei' ou ao 'regramento' de uma normaformalmente abstrata" (Weber 1998, p. 707).

3. Kelsen e a análise do estado de direito como pleonasmo Na conu·amão de Weber (cf. Kelsen 2000, p. 271- 2), o qual separa Estado de direito [mas não o direito do Estado), Kelsen funde direito e Estado na sua maior profundidade. Kelsen critica a separação que Weber faz entre uma consideração sociológica do estado, o qual poderia ser exercido, seja legalmente, seja de qualquer outro modo. A isso Kelsen chamará de concepção mística do poder do Estado. Ou seja, para ele, o Estado só existe como ordem jurídica. Como para Weber, para Kelsen também "o direito é uma organização da força" (Kelsen 2000, p. 30), no enLanto, ao contrário de Wcber, a validade de uma norma identificar-se-á com sua existência (cf. Kelsen 2000, p. 43). Nesse sentido ele adere ao brocardo hobbes.iano auctoritas, non veritas Jacit legem. À teoria que separa direito e Estado, Kelsen chama-a de bilateral, segundo a qual o Estado vincula-se aos direitos que ele mesmo produziu. Assim, o estado existiria independentemente do direito, em seguida ele criaria o direito se autovincularia a ele. lsto porque o Estado precisa de legitimação e para ser legitimado pelo direito este tem que ser pressuposto como sendo uma ordem essencialmente diferente do si mesmo. É deste modo que o Estado seria transformado de um fato de poder, ou do poder como fato, em um estado de direito (cf. Kelsen 1991, p. 301). Seu argumento é que os atos de estado, como criar leis, são na verdade, atos de indivíduos que criam leis. Esses indivíduos são autorizados juridicamente a fazer tais atos. D izer que o Estado cria o direito significa apenas dizer que estes indivíduos, autorizados juridicamente, criam o direito. E isso só quer dizer, no fundo, que o direito regula a sua própria criação. "Não é o Estado que se subordina ao Direito por ele criado, mas


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é o Direito que, regulando a conduta dos indivíduos e, especificamente, a sua conduta dirigida à criação do Direito, submete a si esses indivíduos" (Kelsen 1991, p. 327). Portanto, se todo Estado é um estado de direito, esta última expressão não passa de um pleonasmo como "descer para baixo" (cf. Kelsen 1991, p. 328). Segundo ele, haveria uma contradição entre conceber o Estado como não sendo não jurídico para, depois, tentar concebê-lo juridicamente. Assim, "como organização política, o Estado é uma ordem jurídica" (Kelsen 1991, p. 302). Nem toda ordem jurídica será um estado, por ex., as relações jurídicas internacionais. O poder estatal, portanto, é a vigência de uma ordem jurídica. O poder do Estado não é uma instância mística para além da eficácia de sua ordem jurídica. O poder do Estado funde-se com a eficácia da norma jurídica. Por1anto, o Estado não existe independentemente da ordem jurídica, podendo ou não, ser enfmmado pelo direito e exercido pelo direito; não, eles são a mesma coisa. O próprio KeJsen, no entanto, aponta para o significado normativo da expressão estado de direito, a saber, a satisfação dos requisitos da democracia e da segurança jurídica (Kelsen 1991, p. 328), a qual ele descarta como um preconceito jusnaturalista para com o direito, pois o direito e o Estado não passam de "uma ordem coerciva de conduta humana- com o que nada se afirma sobre seu valor moral ou de Justiça" (Kelsen I991, p. 334). Portanto. "também uma ordem coerciva relativamente centralizada que tenha caráter autocrático e, em virtude da sua flexibilidade ilimitada, não oferece qualquer espécie de segurança jurídica, é uma ordem jurídica e a comunidade por ela constituída - na medida em que se distinga entre ordem e comunidade - é uma comunidade jurídica e, como tal, um Estado" (Kelsen 1991, p. 334). Porém, por ter confundido estado legal e estado de direito (Ferrajoli 2000, p. 360), Kelsen não acede ao conteúdo normativo deste último. Ora, como se pode perceber, Kelsen não se pergunta por uma concepção normativa do Estado. A conseqüência disso é que ele deixa de se perguntar pela questão da justiça ou da legitimidade, fundindo-a com a eficácia. Pois, a justiça ou a legitimidade são puras formas, podendo justificar quaisquer conteúdos. os quais só podem ser dados pelo direito positivo (cf. Kelsen 2000, pp. 14- 5). Kelsen cita, como exemplo, o di-


Legalidade e Estado de Direito em Weber e Kelsen

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reito de propriedade, o qual foi estabelecido como direito legítimo pelo direito natural, mas que se configura, na verdade, como um dos vários direitos historicamente criados. Para Kelsen, só há, na sociedade, conflitos de interesses, os quais tem que ser solucionados (cf. Kelsen 2000, p. 19), sem fazer qualquer referência a idéias irracionais de justiça ou legitimidade. A única concessão que pode ser feita, com base na experiência, é que sistemas jurídicos igualitários são mai s duradouros (cf. Kelsen 2000, p. 20). Justiça, para Kelsen, é que uma regra seja aplicada onde tem que ser aplicada e injusto é deixá-la de aplicá-la quando deveria ser aplicada. A justiça, legalmente considerada, não conceme ao conteúdo da norma, mas à sua aplicação. Justiça, nesse sentido, não conceme a conteúdos, mas à própria ordem jurídica (cf. Kelsen 2000, p. 20). Como não poderia deixar de ser, com essa formulação Kelsen retira qualquer noção normativa presente no estado de direito, reduzindo-o ao seu primeiro estágio, ou à sua forma, qual seja, a legaUdade. Em suma, a teoria da legalidade de Weber e Kelsen aplica-se a todos os estados, mesmo àqueles que não são estados de direito. No caso de Weber, nem todos os estados se utilizam do meio organizativo e racionalizador do direito, já, no de Kelsen, qualquer estado, por definição, pode ser apreciado com um conjunto de regras jurídicas, as quais são, como se sabe, coercitivas, por definjção.

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A IDÉIA DE RAzÃo PúBLICA EM RAWLS LUIZ PAULO RouANET Pontifícia Universidade Católica, Campinas Et pour moi, la maxime que f ai Ie plus obscrvée cn toute la conduite de ma vie, a été de suivre seulement le grand chemin, et de croire que la priocipale finesse est de ne vouloir point du rout user de finesse. Les lois communes de la société, lesquelles tendent toutes à se faire du bien lcs uns aux autrcs, ou d u moins à ne point se faire du mal, sont, ce me semble, si bien établies, que quiconque les suit franchcment, sans aucune dissimulaúon ni artífice, mene Une vie beacoup plus heureuse Cl plus assurée, que ceux qui cherchcmleur utilité par d ' autres voies, lcsqucls, à la vérité, réussisscnt quclquefois par rignorance des autres hommes, ct par la faveur de la fortunc; mais il arrive bicn plus souvem qu' ils manquem, et que, pensam s'établir, ils se ruinent (Descartes, Carta a Elizabeth, Janeiro de

1646). 1

1. Introdução A idéia de razão pública é central a muitas teo rias políticas, entre as quais destaco as de John Rawls e de Jürgen Habermas. No debate travado entre ambos, em 1995 , no âmbito do The Joumal of Philosophy. Habermas chamou a atenção para essa idéia como aquela capaz de efetuar uma cunciliação entre a sua visão e a de Rawls. Partindo disso, procurarei expor o que significa a idéia de razão pública para Rawls. Isso vai ser feito tomando como base principalmente o texto de Rawls Cupani, A. O. & Mortari, C. A. (orgs.) 2002. Linguagem e Filosofia. Anais do Segundo

Simpósio Internacional Principia. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 6. Florianópolis: NEL, pp. 283-96.


284

Luiz Paulo Rouatzet

de 1997, ''The Idea of Public Reason Revisited", no qual expõe com a máxima clareza a sua visão sobre o assunto. Naturalmente, o tema foi abordado pelo autor em outras obras, entre as quais pode-se citar: A Theory of Justice, "Kantian Constructivism in Moral Tbeory", ''The Idea of an Overlapping Consensos'' e mais particularmente em Political Liberalism (1996), onde dedica uma corúerência a esse tema. Os três artigos foram republicados em John Rawls, Collected Papers, Samuel Freeman (ed.), Cambridge, Mass.j London: Harvard University Press, 1999 (daqui por diante, CP). Também jmportante, por fornecer uma visão alternativa, é o artigo de Bruce W. Brower, "The Limits of Public Reason", The Journal of Philosophy, 91(1), January 1994, pp. 5-26. Rawls não fornece uma definição fechada de razão pública, pois isso seria incompatível com sua concepção de democracia: "O liberalismo político vê [a] insistência na verdade absoluta (wbole truth) em política como incompatível com a cidadania democrática e com a idéia de direito legítimo" (CP, "The ldea of Public Reason Revisited", p. 579). Desse modo, sua caracterização da idéia de razão pública mais se assemelha a uma descrição do que a uma definição. Como quer que seja, eis sua caracterização: "Um cidadão se engaja em razão pública quando ele (ou ela) delibera dentro de um âmbito do que ele (ou ela) considera como a concepção política de justiça mais razoável, uma concepção que expresse valores políticos que se pode esperar, também razoavelmente, que outros, como cidadãos livres e iguais, endossem." (idem, p. 581). Isso implica que não haverá uma única concepção razoável, mas várias, a razoabilidade sendo a capacidade de propor e aceitar propostas alternativas de solução dos problemas políticos da sociedade. A razoabilidade aparece também como uma das características centrais do pensamento de John Rawls. Para ele, "Os cidadãos são razoáveis quando, vendo uns aos outros como livres e iguais em um sistema de cooperação social ao longo das gerações, estão preparados para oferecer uns aos outros termos justos de cooperação segundo o que consideram como a concepção mais razoável de justiça política; e quando concordam em agir nesses termos mesmo ao custo de seus próprios interesses em situações particulares, contanto que outros cidadãos também aceitem esses termos." (idem, p. 578).


A Idéia de Razão Pública em Raw/s

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Assim, John Rawls insiste sobre o fato de que sua concepção política não é a única, embora tenha motivos fo1tes, particulares. para achar que sua concepção, a de ''justiça como eqüidade", apresenta uma que pode obter um grau razoável de consenso. Mas não se trata de uma teoria fechada. "O liberalismo poUtico (... ) não tenta fixar a razão pública de uma vez por todas na forma de uma concepção política de justiça privilegiada" (idem, p. 582). Admite, por exemplo, a teoria da ação comunicativa, de Habermas, ou visões católicas e outras. Nunca é demais repetir que Rawls está interessado em apresentar uma concepção política, e não metafísica

2. O texto "A idéia de razão pública revisitada" O texto foi publicado em 1997, e está reunido nos Collected Papers de John Rawls. Visa estabelecer a noção de razão pública, para responder a algumas das objeções que vem sendo feitas à teoria mais recente de Rawls. Devido ao tempo de que disponho, serei obrigado a expor e comentar o texto simultaneamente. Parto da primeira afirmação de Rawls no texto citado: "A idéia de razão pública, tal como a compreendo. pertence a uma concepção de uma sociedade democrática constitucional bem-ordenada."2 Essa ressalva é esquecida por alguns comentadores, que reclamam da inaplicabilidade de suas idéias para um âmbito maior, como o intemacional.3 A restrição do âmbito de análise da razão pública é justificada por Rawls por razões econômicas: é mais eficaz verificar até que ponto se pode resolver as questões dentro de um âmbito restrito, em primeiro lugar, para só então am pliar esse escopo. Diz Rawls: "Alguns perguntarão: por que não dizer que todas as questões em relação às quais os cidadãos exercem seu poder político final e coercivo uns sobre os outros encontram-se sujeitas à razão pública? Por que seria mesmo admissível que se fosse além do leque de valores polfticos? Respondo: Meu objetivo é considerar primeiro o caso mais forte, no qual as questões políticas dizem respeito aos aspectos mais fundamentais. Se não honrarmos os limites da razão pública aqui, parece que não os honraremos em nenhum outro lugar. Caso Lenham validade aqui, poderemos passar a outros casos." (1996, p. 215; grifo meu).


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O procedimento é o mesmo adotado em Uma teoria da justiça: tratase primeiro de examinar como se aplicaria a teoria da justiça como eqüidade no âmbito de uma sociedade bem-ordenada, para então prosseguir, verificando quais as adaptações necessárias para sua extensão às sociedades imperfeitamente ordenadas, deixando de lado as não-ordenadas de todo. É preciso levar-se em conta, também, que essas sociedades precisam efetuar seus ajustes a fim de, justamente, aproximarem-se das sociedades bem-ordenadas e do modelo ideal de uma sociedade justa. Um dos itens, por exemplo, seria a redução da corrupção nesses países, que desviam os recursos e a força de suas sociedades, impedindo de se aprimorarem. Mas isto tudo é tratado em Law of Peoples (1999) e não será abordado aqui. 4 Aqui, portanto, preocupamo-nos com a chamada "teoria ideal". Não é por acaso, então, para voltar ao texto que estamos analisando, que Rawls o inicie enfatizando o universo em que está pensando sua teoria da razão pública: "A idéia de razão pública, tal como a compreendo, pertence a uma concepção de uma sociedade democrática constitucional bem-ordenada." (CP, 573). Ele tem conhecimento das críticas ao âmbito restrito de sua noção de razão pública, e defende essa restrição, dedicando uma seção (6: "Questions about public reason") para responder-lhes. A segunda afirmação a nos chamar a atenção, no texto de Rawls, é a seguinte: "Proponho que, na razão púbUca, doutrinas abrangentes (comprehensive) da verdade sejam substituídas por uma idéia do politicamente razoável dirigido aos cidadãos como tais" (CP, 574). Como ele afirmará, a verdade total é, de certo modo, incompatível com a democracia (ibidem). Também na polêmica com Habermas, de 1995, a compreensão da noção de verdade é um elemento-chave para entender a diferença entre ambos os pensadores.5 Seguindo a separação religião-Estado já defendida por Locke na Carta sobre a tolerância , a razão pública não irá interferir com as doutrinas abrangentes desde que estas respeitem os princípios constitucionais de uma sociedade democrática. "A exigência básica é que uma doutrina razoável aceite um regime democrático constitucional e a idéia associada de direito (law) legítimo" (CP, 574).6 Trata-se, portanto, de uma análise aplicada, pelo menos em um primeiro momento, às sociedades


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democráticas bem-ordenadas em geral, e Rawls cita as democracias da Europa ocidental, os Estados Unidos, Israel e a Índia (ibidem). Na primeira seção, Rawls analisa diretamente a idéia de razão pública, e abre a seção dizendo que "A idéia de razão pública especifica no nível mais profundo os valores morais e politicos básicos que devem determinar a relação de um governo democrático constitucional com seus cidadãos e a relação destes entre si". E acrescenta: "Em suma, diz respeito a como a relação politica deve ser compreendida" (ibid.). Isso não se aplica, bem entendido, aos que não aceitam esses valores. Aos fanáticos de qualquer tipo, por exemplo. 7 Vamos à citação completa de Rawls: Aqueles que rejeitam a democracia constitucional com seu critério de reciprocidade rejeitarão, é claro, a própria idéia de razão pública. Para eles, a relação política pode ser a de amigo ou inimigo, com aqueles que pertencem a uma particularidade religiosa ou secular ou com os que não pertencem a ela; pode ser uma luta incessante para conquistar o mundo para a verdade absoluta. O liberalismo político não vale para os que pensam dessa maneira. A preocupação de abarcar a verdade absoluta [the whole truth] em política é incompatível com uma idéia de razão pública que é inerente à cidadania democrática. (CP, 574)

Em seguida, Rawls explícita alguns aspectos da idéia de razão pública (aqui cabe notar que Rawls não dá à palavra idéia um sentido técnico mais preciso, como em Kant), que, segundo ele, formam sua estrutura. Estes são: ( 1) as questões políticas fundamentais às quais La razão pública] se aplica; (2) às pessoas às quais se aplica (autoridades do governo c candidatos a cargo público); (3) seu conteúdo tal como dado por uma família de concepções políticas razoáveis de justiça; (4) a aplicação dessas concepções em discussões de nom1as coercivas a serem produzidas na forrn a de um direito legítimo para um povo democrático; e (5) a checagem, por parte dos cidadãos, de que os princípios derivados de suas concepções

de justiça satisfazem o critério de reciprocidade." (CP, 574-5). No que concerne às questões polfticas, é importante notar que não são todas elas, mas apenas as fundamentais, aquelas a que o autor se


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refere como o "fórum político público". Este se divide em três partes: "o discurso dos juízes em suas decisões, e especialmente dos juízes da corte suprema; o discurso das autoridades governamentais, especial mente os chefes de governo e legisladores; e finalmente, o discurso dos candidatos a cargo público e os seus chefes de campanha, especialmente em suas falas em público, programas de partido e pronunciamentos políticos" (ibid.). Quanto ao primeiro grupo, o dos j uízes, é importante destacar que Rawls tem em mente, como é natural, o sistema judiciário anglo-saxão, especialmente norte-americano, onde as decisões judiciais são objeto de referência e consulta não só para os profissionais do Direito, mas para todo o público, sendo citados em inúmeras ocasiões. Seria o caso de se pensar, e ignoro se a lguém já o fez, em que medida isto se aplica a outros tipos de instituição judiciária, mormente aquelas baseadas no direito romano, como é a nossa. 8 Aliás, a própria expressão "fórum político público" remete à centralidade do Direito no contexto do pensamento que estamos analisando. Os dois outros grupos, o dos governantes e legisladores, por um lado, e o dos candidatos a cargo público, por outro, são também as pessoas que possuem, ou devem estar imbuídas de uma responsabilidade em suas falas públicas. Uma questão marginal, mas importante, no que diz respeito ao último grupo, é a do financ iamento púbüco das campanhas, que voltaremos a abordar adiante. Entre os u·ês grupos, é o dos jufzes que merece, mais estritamente falando, a designação de detentor da razão pública. São eles que propriamente ponderam, e decidem, o que é de interesse do bem público. 9 Distinto desse fórum político público é o que Rawls chama de cultura de fundo (backgmund culture) (CP, 576). Em Politicalliberalism, Rawls já definira a expressão: Doutrinas abrangentes de todos os tipos- religiosas, fi losóficas e morais - pertencem ao que podemos chamar de 'cultura de fundo' [backgrmmd culture] da sociedade civil. Trata-se da cultura do social, não do político. É a cultura da vida cotidiana, de suas muitas associações: igrejas c universidades, sociedades eruditas e científicas, c clubes c times, para mencionar apenas alguns.


A Idéia de Razão PtÍb/ica em Rawls

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E prossegue: "Numa sociedade democrática, há uma tradição de pensamento democrático, cujo conteúdo é no mínimo familiar e inteligível para os cidadãos comuns educados em geral." (1996, p. 14, I,§ 2). No texto que estamos analisando, Rawls acrescenta algumas especificações. Diz que a cultura de fundo É a culrura da sociedade civil. Numa democracia, essa culrura não é, claramente, oriemada por qualquer idéia ou princípio central, seja político ou religioso. Suas muitas e diversas instâncias [agencies] e associações, com sua vida inte rna, residem em um âmbito legal que assegura as já conhecidas liberdades de pensamento e de expressão, e o direito de ljvre associação. (CP, 576).

E Rawls deixa bem claro, na seqüência, que "a idéia de razão pública não se aplica à cultura de fundo com suas muitas formas de razão nãopública, nem a qualquer tipo de mídia" (ibidem; grifo meu). 10 Distinto também da idéia de razão pública é o ideal da razão pública. Segundo Rawls, Esse ideal é realizado, ou satisfeito, sempre que juízes, legisladores, chefes de governo e outras autoridades do governo, bem como candidatos a cargos públicos agem a partir de, e seguem a, idéia de razão pública e explicam a outros cidadãos seus motivos para sustentar posições políticas fundamentais em termos da concepção política de justiça que eles consideram mais razoável. (ibidem).

Em ocasiões específicas, poré m, os cidadãos que não pertencem a nenhum dos grupos mencionados podem seguir o ideal da razão pública: essas ocasiões são as eleições. E trata-se de ocasiões vitais. "Quando firme e disseminada, a disposição dos cidadãos a ver-se a si próprios como legisladores ideais, e a rejeitar autoridades do governo e candidatos a cargo público que violem a razão pública, é uma das raízes políticas e sociais da democracia, e vital para a continuidade de sua força e vigor" (CP, 577). Rawls aborda em seguida o problema do pluralismo, ou de como - dado que o fato do pluralismo implica em que vivemos numa sociedade que possui concepções rei igiosas, pol íticas e morais dive rsas, às vezes conflitantes e até mesmo irreconciliáveis- conseguir a adesão


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das diversas concepções a um mesmo ideal da razão pública. 1 1 Rawls responde do seguinte modo ao problema assim colocado: Os cidadãos são razoáveis quando, vendo uns aos outros como livres e iguais num sistema de cooperação social ao longo das gerações, estão preparados para oferecer uns aos outros justos termos de cooperação, segundo o que consideram a concepção mais razoável de justiça política; e quando concordam em agir com base nesses termos, mesmo ao custo de seus próprios interesses em situações particulares, contanto que os outros cidadãos também aceitem esses termos. (CP, 578)

A linguagem é obviamente contratualista, mais especificamente, rousseauniana. De fato o é, com a ressalva de que não se trata aqui do primeira nível, isto é, o da posição original, o momento hipotético da formação do contrato, mais precisamente tratado em Uma teoria da justiça (1971 ), mas do segundo nível, do estabelecimento das condições pelas quais se pode dar, concretamente., a convivência em uma sociedade justa. Trata-se portanto de uma adesão atual, constante, que precisa ser a todo momento lembrada. 12 Essa resposta me parece satisfatória. Pablo da Silveira diz que não vê como convencer pessoas, ou comunidades, ou sociedades que já não estejam anteriormente convencidas, pelo menos em parte, da desejabilidade das instituições liberais. Sua crítica diz respeito à formação da cultura de fundo. Para Rawls, la rcproducción (o eventual creación) de una cultura democrática es un problema indepeniente de! funcionamento de las instituciones. De este modo, la existencia de Las condiciones culturales que hacen posiblc el overlapping consensus debe ser vista como un dato externo cuya presencia o auscncia sólo puede ser constatada por los ciudadanos. La teoría rawlsiana de la estabilidad se vuelve así incapaz de enfrentar problemas como e! de la apaúa ciudadana, el multiculturalismo dentro de una sociedad, o las relaciones ajenas a la tradición política liberal. (Silveira, 1998, p. 345-6)

Não me deterei sobre essa crítica. Gostaria apenas de destacar um ponto, que me parece da máxima relevância, que é o da "apatia cidadã". De fato, se, como diz Descartes, a indiferença é o grau mais baixo


A idéia de Razão Pública em Rawl.f

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de moralidade, então o problema pode residir não tanto na adesão exagerada a uma determinada crença ou doutrina, mas na indiferença em relação a elas, na falta de perspectivas e de ideais, incluindo o da razão pública. Voltando à resposta de Rawls, os ideais da razão pública devem ser continuamente lembrados. Somente isto pode assegurar a coesão de uma dada sociedade. Isto se efetua através do discurso público dos três grupos mencionados, e através de uma "educação para a cidadania", que mostre a relevância e a central idade dos valores democráticos (esta última sugestão não está explícita em Rawls, mas pode ser derivada de seu pensamento). O problema é como fazer isso sem se confundir com uma doutrina abrangente qualquer. É aí que entra a noção de razoabilidade, ou seja, da expectativa razoável de que outros dêem sua adesão também razoável aos princípios propostos, porque é de seu interesse fazê-lo. Somente assim sabem que terão também sua própria liberdade preservada. E somente os fanáticos não podem fazê-lo. 13 O que se segue daquilo que as partes consideram como razoável, e uma vez votado, isto é, o povo tendo dado seu assentimento expresso a isso, toma-se uma lei legítima. Trata-se do momento que se reproduz não só na ocasião do hipotético contrato social, mas efetivamente na ocasião das votações, seja para a formação de uma Assembléia Constituinte, o que é raro, seja nas eleições periódicas. Daí decorre a idéia de legitimidade política, com base no critério de reei procidade: Nosso exercício do poder poütico é apropriado somente quando nós sinceramente acreditamos que as razões que oferecemos para nossas ações políticas(... ) são suficientes, c também razoavelmente pensamos que outros cidadãos podem também razoavelmente aceitar essas razões

(CP, 578).

Para voltar mais uma vez àqueles que não aceitam os princípios democráticos expostos, veja-se o que diz Rawls no seguinte trecho: Uma vez que a idéia de razão pública especifica no nível mais profundo os valores políticos básicos e especifica como a relação política deve ser compreendida, aqueles que acreditam que as questões políticas


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fundamentais devem ser decididas pelo· que e les consideram como as melhores razões segundo sua própria idéia de verdade absolULa [whole trutlz] (... ) e não pelas razões que podem ser compartilhadas por to-

dos os cidadãos como livres e iguais, rejeitarão evidentemente a idéia de razão pública. O liberalismo político vê essa insistência na verdade absoluta em política como incompatível com a cidadania democrática e a idéia de direito legítimo. (CP, 579; grifo meu).

Qual a diferença e ntre essas visões, com sua concepção de verdade absoluta, e o liberalismo político? Simplesmente que o liberalismo político não considera que sua concepção se sociedade seja verdade num sentido absoluto, apenas considerando que ela é razoável e é portanto candidata à adesão por parte do maior número de doutrinas abrangentes, e que é razoável esperar que seja escolhida por esse motivo, não impondo de forma alguma sua aceitação: são os cidadãos quem escolhem, em última instância, a forma de governo e de sociedade em que querem viver. 14 Terminando esta seção, Rawls fala sobre o caráter da democracia que ele está examinando, e que é uma democracia deliberativa. Nesse contexto, defende o financiamento público das campanhas poliricas, nos seguintes termos: "A deliberação púbüca deve ser tornada possível, reconhecida como uma característica básica da democracia, e liberada da maldição do dinheiro." (CP, 580). E acrescenta: "Em constante busca de dinheiro para financiar campanhas, o sistema político é simplesmente incapaz de funcionar. Seus poderes deliberativos ficam paralisados ." (CP, 580). Como vemos, esta não é uma exclusividade de nosso sistema político, embora aqui seja mais grave, pois a corrupção acrescenta a esse ônus um peso maior e torna o mal mais difícil de ser debelado. Não disponho de tempo para abordar todas a~ questões que o texto discute, mas gostaria de mencionar duas que me parecem particularmente importantes. A primeira diz respeito à relação entre religião e razão pública na democracia, questão que Rawls coloca do seguinte modo: Como é possível para aqueles que sustentam doutrinas religiosas, algumas baseadas na auloridade religiosa, por exemplo, a Igreja ou a Bfblia,


A Idéia de Raziio Ptiblica em Raw/s

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sustentar ao mesmo tempo uma concepção politica razoável que apoie um regime democrático constitucional razoável? (CP, 588).

Esta questão aparece, às vezes, no conflito que surge quando instituições geridas por entidades religiosas (como orfanatos, escolas, unive rsidades) seguem estatutos que se colocam direta ou indiretamente contra as n01mas e a prática constitucional do pais em que estão instaladas. Aí me parece, seguindo os preceitos indicados por Locke na Carta sobre a tolerância, que as leis do Estado devem prevalecer. A segunda questão, que me toca particularmente, 15 é o papel da tolerância na teoria da razão pública de Rawls, que ele indica como segue: os princípios da tolerância c da liberdade de consciência devem ocupar um lugar essencial em qualquer concepção democrática constitucional. Eles estabelecem a base fundamental a ser aceita por todos os cidadãos como justos e rcgulativos da rivaJidade entre doutrinas. (CP, 591).

3. Conclusão Como conclusão, passo a destacar, com apoio no texto de Rawls. os principais pontos de sua discussão da idéia de razão pública. Em primeiro lugar, "Concepções políticas razoáveis de justiça nem sempre conduzem às mesmas conclusões" (CP, 606). O voto deve decidir sobre essas diferenças. Em segundo lugar. o debate é benéfico e bem vindo dentro de uma cultura democrática. "Os cidadãos aprendem e tiram proveito do debate e da argumentação, e quando seus argumentos seguem a razão pública eles instruem a cultura política da sociedade e aprofundam sua compreensão mútua mesmo quando não se pode chegar a uma concordância." (CP, 607). Em terceiro lugar, como foi dito no princípio, "na razão pública. idéias de verdade ou do que é certo baseadas em doutrinas abrangentes são substituídas por uma idéia do politicamente razoável direcionada aos cidadãos enquanto tais." (ibidem.). Em quarto lugar, é importante enfatizar que o fato das concepções políticas não se identi ficarem com uma doutrina moral qualquer não significa que não sejam elas próprias morais. Como diz Rawls: "As


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concepções políticas de justiça são elas próprias intrinsecamente idéias morais" (CP, 610, n. 91). A questão central, portanto, parece ser a da relação entre religião e política no que conceme à idéia de razão pública. Nesse aspecto, a concepção de Rawls difere daquela do Iluminismo, no sentido de que nem defende uma visão secular nem uma visão religiosa, o liberalismo político devendo levar em conta a ambos como única forma de obter um consenso. "Não há, ou não precisa haver, guena entre religião e democracia. A esse respeito, o liberalismo político difere agudamente do, e rejeita o liberalismo iluminista, que historicamente atacou o cristianismo ortodoxo." (CP, 611)_16 Para terminar, gostaria de citar um último trecho do texto de Rawls, que é uma alusão direta a seu debate com Habermas (Cf. Habermas, 1995). Há limires, porém, para a reconciliação por meio da razão pública. Três tipos principais de conflitos contrapõem os cidadãos: aqueles que derivam de doutrinas abrangentes irreconciliáveis; aqueles que derivam de diferenças em status, posição de classe, ou ocupação, ou de diferenças em ernicidade, gênero, ou raça; e finalmente, aqueles que derivam dos ônus do julgan1ento. O liberalismo político diz respeito principalmente ao primeiro tipo de conflito. (CP, 612; grifo meu).

Estes são os limites da reconciliação por meio da razão pública.

4. Bibliografia Browcr, Bruce W., 'The limits of public reason". The Journal ofPizilosophy XCI( I), January 1994, pp. 5-26. Descartes, René, CEuvres erlettres. Paris: Gallimard, 1953 (Pléyade). Habcm1as, Jiirgen, Mudança estrutural da esfera pública. Trad. Flávio R. Kohe, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. - . ''Reconciliation through the public use of reason". The Journal <~{ Philosophy XCll(3), March 1995, pp. 109-31. Rawls, John, A Theory o.f Justice. Cambridge, Mass.: Harvard Univcrsity Press, 1971. - . Political Liberalism. New York: Columbia University Press, 1996, including "Reply to Habem1as".


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- . Collected Press. Ed. Samuel Freeman, Cambrídge, Mass.; London: Harvard University Press, J999a. - . Lo.w o.f Peoples. J999b. Rouanet, Luiz P., O enigma e o espellw: uma análise dos discursos sobre a paz de Erasmo e Rawls. Tese de doutorado, São Paulo: Universidade de São Paulo, 2000a. - . "Um panorama das discussões sobre a paz e a tolerância", SínteseRevista de Filosofia, vol. 27, 88, maio-agosto 2000, pp. 183-98, 2000b. - . "O debate Habermas-Rawls de 1995: uma apresentação". Rejle;ciio, Campinas, 2001, a sair. Sandel, Michael J., Democracy's Discontent- America in search ofa public philosophy. Cambrídge, Mass.; London: Harvard Univcrsicy Press, 1996. Silveira, Pablo da, "La teorfa rawlsiana de la estabilidad: overlapping consensus, razón pública y discontinuidad." In Sônia T. Felipe (org.), Justiça como eqüidade- Fundamentaçiio e i111erlocuç6es polêmicas (Kant, Rawls, Habermas), Florianópolis: Insular, 1998.

Notas 1

René Descartes, Lettre à Elizabeth, Janeiro de 1646, in CEuvres et lettres, Paris: Gallimard, 1953 (Pléyade), p. 1229. 2 John Rawls, "The ldea of Public Reason Revisited" ( 1997), it1 Collected Papers (CP, 1999a), p. 573. Todas as traduções, exceto quanto explicitamente indicadas, são minhas. 3 Por exemplo, Pablo da Silveira, 1998, pp. 359-60: "Rawls parte de I supuesto de que los ciudadanos adhieren a cienas concepciones comprehensivas y que esas conccpcioncs los conducen a adherir a cicrtos valores polfticos. Pcro em ningún momento se plantea como construir el puente entre ambas cosas, em el caso de que csto se haya debilitado o que diretan1ente no exista". Voltarei a este artigo ao longo do texto. 4 Rawls 1999; cf. Rouanet 2000a. 5 Como procurei mostrar em Rouanct 2001, a sair. 6 Sobre a " neutralidade" do Estado diante da religião ver também Michael J. Sandel, 1996, p. 61 e ss., e passim. 7 Como lembra Silveira (1998, citado), p. 359: "Lo caractarfstico dei fanático es que, si bien acepta la importancia de la independencia moral para sf mismo, no la acepta para quiencs no piensan como él." 8 No contexto do pensamento anglo-saxão, exemplos de como a reflexão pode proceder baseando-se nas decisões judiciárias são encontrados em muitos au-


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tores, mas além de Rawls pode-se cilar R. Dworkin, H. L. A. Hart e Michae l Sandel ( 1998). 9 Há alguns dias, o juiz que preside o Supremo Tribunal de Justiça do Brasil, sr. Marco Aurélio de Mello, disse, num claro recado ao ramo executivo do governo, que "as decisões do Supremo devem ser respeitadas sob risco de colocar em suspeita o faro de vivermos numa democracia" (palavras aproximadas, que cito de memória, exl.nlÍdas de um jornal televisivo). 10 É importante noLar, como nota Rawls na nota 13 desse texto (CP, 576, n. 13; cf. também 1996, p. 382, n. 13) que a razão pública de Rawls não é idêntica à esfera pública de Habermas, tal como exposto em Habermas, 1984. A esfera pública de Habcnnas é bem mais ampla, c se refere, em termos gerais, a tudo o que não é "privado". Cf. Habermas, 1984, p. 19 e ss. e passim. 11 Este é um problema que Silveira ( 1998) também coloca, e que considera que Rawls não se preocupa em responder. O texto de Silveira foi apresentada em 1997, mesmo ano do artigo de Rawls ''A idéia de razão pública revisitada", que ora analisamos. Obviamente, Silveira não podia ter conhecimento deste, e não sei até que ponto isto alteraria sua crítica. 12 Como expf>e Silveira (1998): ''Justice as faimess es una teoría esLrUturada en dos niveles. El primero es aquel cn el que se define una concepción de la justicia aplicable a la estructura básica de la socicdad. El segundo cs aquel en el que se establece la capacidad que tiene dicha concepción 'de gencrar sus propios apoyos en vista dei contenido de s us princípios e ideales tales como fucron formulados en el prirnero nível' ( 1993a: 140-l)." (p. 346; l993a é Política[ Liberalism). 13 Sobre a relação da sociedade democrática com as seitas ou pessoas intolerantes, ver TJ, § 35, 1971, pp. 2 16-2 1, do qual destaco: "O que é essencial é que, quando pessoas com diferentes convicções fazem exigências conflitantes sobre a estrutura básica como uma questão de princípio político, e las devem julgar essa<; pretensões com base nos princípios de justiça.'' (p. 221 ). 14 Isto fica claro em Law of Peoples (Rawls, 1999b), onde Rawls considera também aceitáveis, do ponto de vista do liberalismo político, outras formas políticas. 15 Cf. Rouanct2000a e 2000b. 16 Ver também a entrevista de John Rawls a Bernard Prusak, de Commonweal, uma revista católica liberal, em janeiro de 1996, reproduzida em CP, 616-22. Ver especialmente pp. 619-20. lrouanet@uol.com. br


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UTILITARISMO E OS DffiEITOS MORAIS MARIA CECILIA MARINGONl DE CARVALHO

Pontiflcía Universidade Católica, Campinas

1. Introdução Vivemos uma época que parece caracterizar-se por uma tomada de consciência mais aguda daquelas reivindicações que costumam ser qualificadas como direitos - isso vale não apenas para os chamados direitos legais ou positivos, assim denominados por estarem incorporados em um código de Leis, mas também para outros (supostos) direitos, considerados morais, não necessariamente positivados ou inseridos em um sistema legal, mas que, não obstante , as pessoas alegam possuí-los e gostariam de vê-Los reconhecidos. Não por acaso a linguagem dos direitos tem penneado a discussão ético-poütica contemporânea: as graves violações de direitos humanos perpetradas durante o século que passou não permitiram que o tema dos direitos permanecesse à margem das inquietações filosóficas de nosso tempo, mas deram-lhe uma cenu·alidade jamais vista na filosofia moral. Hoje em dia dificilmente se debatem alguns dos problemas que mais afligem a consciência moral do homem contemporâneo,- por exemplo, violência, genocídio, miséria, discriminação contra minorias. aborto, eutanásia, pena de morte, comportamento predatório do homem frente ao meio-ambiente, o modo muitas vezes cruel como são tratados os animais não- humanos, dentre outros- sem que se faça referência aos direitoc; de indivíduos que estão sendo escassamente respeitados, quando não, injus<amente violados. Todavia, ainda que a existência dos chamados direitos morai s possa parecer inquestionável, a filosofia não pode se eximir de investigá-tos Cupani, A. O. & Mortan, C. A. {orgs.) 2002. Unguagem e Filosofia. Anais do Segundo Simpósio Internacional Principia. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 6. Florianópolis: NEL, pp. 297-312.


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Maria Cecilia M. de Carvalho

com sua lupa, tão importante o papel que desempenham em nosso cotidiano moral e político. E precisamente aí emerge o paradoxo: a despeito da importância que os direitos têm em nosso dia-a-dia, sua adequada tematização não é tarefa das mais fáceis, chegando a se constituir em desafio para qualquer filosofia moral. São tantas as reivindicações às quais se pretende dar o estatuto de direitos, que já se fala na necessidade de se deflacionar o pensamento moral de alguns (pretensos) direitos. Neste texto pretende-se examinar se o Utilitarismo é capaz de lidar adequadamente com a questão dos direitos. Existe uma desconfiança mais ou menos generalizada de que o Utilitarismo não consegue justificar djreitos morais. Tal desconfiança se apoia no fato de que uma Ílloso!la que preconizaria como princípio fundamental a maximização da felicidade/bem-estar da maioria - como parece ser o caso do Utilitarismo - padeceria de insutl.ciências teóricas que não a permitiriam acomodar direitos, uma vez que o respeito a estes pode muitas vezes estar na contra-mão da busca do bem coletivo; assim, aparentemente, f.Ob os pressupostos utilitaristas, o respeito às reivindicações individuais, quando o conteúdo destas excede o das normas sancionadas por lei, só pode ser atendido se for compatível com a promoção da felicidade/ bem-estar geral ou do maior número. Esta suspeita de insuficiência do Utilitarismo para dar conta dos direitos morais é reforçada quando se tem em visla que Jeremy Benlham, o fundador do Utilitarismo, qualificou os direitos naturais de "nonsense". não obstante John Stuart Mill não haver compartilhado deste ponto de vista, mas considerado o respeito aos direitos morais como um pré-requisito para uma sociedade genuinamente feliz. A questão é polêmica: boa parte das críticas endereçadas à ética utilitarista acusam-na de inadequação , exatamente por ela (supostamente) não dar conta ou não contemplar de modo suficiente nossas intuições morais ordinárias, mormente aquelas atinentes aos direitos e deveres morais individuais frente aos interesses da sociedade. É o caso, tal vez, de se perguntar aos que assim pensam se não seria exatamente por priorizar o bem-estar que o Utilitarismo se acha em posição privilegiada para defender direitos e deveres morais. Um crítico contemporâneo do potencial utilitarista para subsidiar uma defesa consistente da força moral dos direitos é o filósofo norte-americano David


O Utilitarismo e os direitos morais

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Lyons. Seus ataques não permaneceram irrespondidos, mas foram objeto da réplica de seu conterrâneo, Richard B. Brandt. Pretende-se neste trabalho oferecer uma reconstrução dos dois lados desta contenda, representados emblematicamente por David Lyons e Richard B. Brandt: o primeiro sustenta a dificuldade que enfrenta qualquer versão do Utilitarismo para contemplar adequadamente a força moral de direitos legais, justificáveis uliHtaristicamentc~ o segundo defende uma versão refinada de Utilitarismo que, sem abandonar o núcleo das idéias utilitarista-;pelo menos tal é a pretensão- conseguiria contemplar a força moral de direitos legais justificáveis utili tatisticamente.

2. A ofensiva de David Lyons contra o utilitarismo Em um ensaio intitulado "Utility and rights" 1 Lyons move cerrado ataque aos utilitarismos, buscando reconstruir suas possíveis tentativas de defesa a fim de temar solapá-las uma por uma. Se suas críticas forem pertinentes, o Utilitarismo estaria fulminado, pelo menos enquanto teoria que se pretendesse capaz de dar coma da força moral de direitos legais. Existem duas teses acerca das relações entre direitos e utilitarismo que, segundo Lyons, desfrutam de ampla aceitação tanto por utilitaristas como por seus críticos. A primeira- chamada por Lyons de tese da exclusão dos direitos morais, ou si mplesmente, tese da exclusão sustenta que o Utilitarismo é hostil à idéia de direitos morais. vale dizer. àqueles direitos que são pensados como existindo independentemente de reconhecimento e de imposição social. A segunda - chamada de tese da inclusão dos direitos legais, ou simplesmente, tese da inclusãodefende que o Utilitarismo é capaz de acomodar a idéia de direitos legais e/ou prover uma teoria normativa sobre eles. 2 Lyons endossa a tese da exclusão, pois entende que um Utilitarismo conseqüente repudiaria a idéia de direitos morais, mas aceita com restrições a tese da inclusão, na medida em que reconhece a capacidade do Utilitarismo para acomodar direitos legais, em que pese questionar seu potencial para dar conta da força moral daqueles direitos legais justificados militaristicamente. O cerne da argumentação de Lyons pode ser assim antecipado: a


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tese da exclusão pressupõe que direitos morais têm o condão de fazer a diferença, quando da avaliação da conduta humana, exatamente por afastar/enfraquecer toda uma gama de razões utilitaristas, guiadas pela idéia de bem-estar, as q uais poderiam em princípio militar favorável ou contrariamente à conduta que é objeto de avaliação. Por outro lado, a tese da inclusão, na medida em que assume que os direitos legais são moralmente neutros, não possuindo ipso facto força moral ou normativa, não parece oferecer dificuldades para um utilitarismo. Existem, todavia, direitos legais que até um utilitarista gostaria de reconhecer como geradores de força moral. É precisamente neste ponto que Lyons centra o alvo de sua crítica. Argumenta que o Utilitarismo não consegue acomodar de modo satisfatório a força moral dos direitos legais justificáveis sob os pressupostos utilitaristas. Admite que não obstante possam existir razões utilitaristas para se respeitar direitos legais justificados, tais razões, insiste Lyons, não são equivalentes à sua força moral, dado que elas - segundo Lyons - não têm como excluir que ponderações utilitaristas guiadas pela idéia de bem-estar possam eventualmente recomendar um desrespeito àqueles direitos . Em suma, o Utilitarismo apenas aparentemente respeitaria a força moral de alguns direitos legais positivados: tal é o caso quando o respeito à força moral se revelaria conveniente, isto é, se ajustaria ao fim supremo que é a maximização do bem-estar. Do contrário. um utilitarista conseqüente estaria sempre obrigado a desconsiderar a força moral de direitos legais.

2.1. Direitos legais com força moral O famoso exemplo discutido por Lyons de um direito legal com força moral pode ser assim descrito: Suponhamos q ue uma pessoa tenha alugado uma casa com garagem, cujo acesso é possibilitado por uma entrada privativa, a qual só ela pode usar. Às vezes alguém estaciona um veículo obstruindo sua entrada, violando, portanto, os direitos da moradora de livre acesso à sua garagem, o que pode ou não gerar-lhe alguma inconveniência. Compete-lhe permjtir ou não que outros estacionem em frente à sua entrada. Nesse sentido, seus direitos fazem a diferença no que diz respeito ao que ela e outros podem justificadamente fazer. Eles fazem a d iferença, ainda quando são


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violados. Se outros desrespeitam seus direitos, compete-lhes eventualmente se desculpar ou mesmo compensá-la por alguma inconveniência que lhe tenha sido causada. Contudo, seus direitos não são ilimitados, pois há situações que parecem justificar uma vioJação: o motorista de um veículo de emergência, quando em serviço, por exemplo, poderia justificadamente bloquear a e ntrada, independentemente de obter permissão para tal. Embora tenham limites, direitos fazem uma diferença na argumentação moral, no sentido de que nem todas as ponderações justificam um desrespeitO a eles e, ainda quando o justificam, não se pode perder de vista o fato de que foram violados. 3 Lyons entende que se considerarmos a situação de um ponto de vista utilitarista, tudo parece indicar que o detentor de um direito somente estaria plenamente autorizado a exercê-lo com vistas à promoção do bemestar humano em máximo grau possível; da mesma forma o desrespeito aos direitos só seria legitimáve l pelas mesmas razões de maximização da utilidade. Mas isso- argumenta Lyons- parece redundar na tese de que os direitos não fazem qualquer diferença, não erguem qualquer barreira no momento de se avaliar o que os envolvidos possam legitimamente fazer, exceto na medida e m que o reconhecimento legal daqueles direitos altere de tal modo as circunstâncias. que determinados cursos de ação possíveis tenham alguma relevância no saldo de utilidade. Todavia, este não é o modo pelo qual a situação moral do detentor de direitos é vista quando se assumem que seus direitos legais são moralmente defensáveis.4 Nosso autor não está defendendo que não possa existir fundamentação utilitarista para os direitos legais. O Utilitarismo é compatível com instituições que outorgam direitos. A questão que o intriga é saber o que valem tais direitos no âmbito do utilitarismo. Uma teoria que considerasse algumas institujções corno justificadas , mas não conseguisse acomodar a força moral de direitos legais conferidos por essas mesmas instituições padeceria de incoerência. Lyons argumenta que nem o Utilitarismo direto ou de atos nem o utilitarismo indireto ou de regras conseguem resolver satisfatoriamente o problema. Vejamos como ele sustenta sua argumentação.


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2.2. O utilitarismo direto e os direitos morais Nenhum utilitarista precisa negar que determinados direitos possam ser conferidos por instituições legais justificadas utilitaristicamente. Tais direitos seriam considerados pelo utilitarista corno moralmente defensáveis e dotados de força moral. Lyons busca mostrar que esta força não pode ser adequadamente defendida por uma teoria moral fundada na promoção do bem-estar. 5 Embora reconheça que instituições recomendadas pelo utilitarismo possam conferir um espaço de liberdade e impor um conjunto de restrições ao comportamento de outros que correspondam à força moral de direitos legais ordinários- como o da moradora de uma casa com garagem de fazer pleno uso de sua garagem no exemplo discutido - , tal força moral não tem como ser defendida no âmbito do utilitarismo, uma vez que as instituições outorgantes de direitos encontram sua justificação na promoção do bem-estar, o que significa que pode haver circunstâncias em que um desrespeito às normas ou aos direitos institucionais gerem mais bem-estar. o que neutralizaria a suposta força moral dos direitos outorgados por essas mesmas instituições. Em suma, o argumento de Lyons. no que tange ao Utilitarismo de atos, é pertinente e tem sido muitas vezes reiterado na literatura: O Utilitarismo direto ou de atos não tem como defender adequadamente a força moral de direitos. Resta examinar se alguma versão do utilitarismo de regras se apresenta em melhor posição para defender a força moral de direitos legais.

2.3.

f: o utilitarismo de regras uma a lternativa viável?

Segundo Lyons a versão utilitarista de regras não parece tampouco oferecer solução adequada para o problema de acomodar a força moral de direitos legais. De saída ele exclui de sua consideração a teoria do código moral ideal de Richard Brandt, pois a considera pouco relevante para o problema em questão, uma vez que o interesse de Lyons é saber se, pm·a um utilitarista faz alguma diferença de um ponto de vista moral que existam leis e instituições sociais moralmente defensáveis. Entende que um adepto de versão utilitarista de Brandt não levantaria a questão, pelo menos não diretamente. pois não seria essa sua pJeocupação primordial.


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A questão para Lyons, form ulada de outro modo, é a seguinte: o que

se seguiria do fato de uma instituição poder ser apoiada pelos melhores argumentos utilitaristas?6 Se se segue que as regras precisam ser respeitadas, ou que haveria uma obrigação moral de respeitá-las. então haveria fundamento para a alegação utilitarista de que sua teoria acomoda direitos legais dotados de força moral. 7 Todavia, Lyons duvida seriamente de que uma teoria utilitarista possa consistentemente fund amentar uma obrigação moral dessa ordem. O cerne da argumentação de Lyons parece ser o seguinte: precisamos distinguir entre a) raz.ões para se manter uma instituição e b) razões para um indivíduo se confom1ar às regras institucionais. É razoável supor-se que a justificação utilitarista de uma instituição forneça ao utilitarista uma razão para manter aquela instituição. Mas não podemos concluir que disso se sigam razões para se conformar às suas normas. A justificação utilitarista de uma instituição provê uma razão para que um indivíduo se atenha às suas regras somente se isso for exigido, nas circunstâncias particulares, para que a instituição seja mantida. Todavia, é perfeitamente possível violarem-se regras sem se ameaçar a instituição - mais precisamente, sem ameaçar sua utilidade. Em um tal caso a justificação urilitarística da institUição não fornece ao utilitarista nenhuma razão para que ele se conforme às suas regras, sempre que uma maior utilidade possa ser derivada de uma transgressão dessas regras. A questão poderia ainda ser abordada de modo diferente. Poder-se-ia acrescentar que as regras ou norm as precisam incluir sanções destinadas a dissuadir transgressões a elas. Uma instituição utilitarista poderia ser projetada de forma a tomar allamente indesejável que um funcionário público as violasse. Assim, sanções útejs poderiam assegurar que os direitos legais sejam respeitados. Segundo Lyons, entretanto, tais expedientes não fazem mágica. Um indivíduo guiado por considerações utilitaristas não se deixaria influenciar tão decis.ivamente por considerações de auto-interesse como o argumento assume. Enquanto utilitarista, ele deve estar disposto a aceitar um risco para si, a fim de poder servir de modo mais efetivo ao bemestar geral, e violar certos direitos legais, quando esse fo r o preço a ser pago pela maximização do bem-estar.


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Poder-se-ia ainda supor- prossegue Lyons -que um funcionário público não transgrediria as normas que está encaiTegado de administrar, pela simples razão de que acharia errado fazê-lo. Ele poderia assumir que está obrigado a respeitá-las. Mas se supusermos que tal obrigação é operantc, estaremos admitindo a influência ou a relevância de argumentos não-utilitaristas. Se o argumento sugerido há de fazer alguma diferença, ele precisaria estar fundado na idéia de uma obrigação independente, não redutível à idéia de bem-estar. Recorrer a obrigações para além do bem-estar, entretanto, redunda em conceder que princípios utilitaristas necessitam ser suplementados por algum princípio deontológico e, portanto, não-utilitarista, não conseqüencialista, para fazer face a direitos legais ordinários com força moral.

3. Ricbard Brandt : O Utilitarismo como moralidade de princípios Brandt entende que o utilitarismo, embora não seja primariamente uma teoria dos direitos. o é por implicação. 8 O utiütarismo é compatível com a idéia de direitos que, mesmo não sendo absolutos, geram obrigações morais for1es, não descartáveis por incrementos irrisórios no saldo líquido de utilidade. Richard Brandt é o autor de uma sofisticada versão de Utilitarismo de regras, conhecida como "Utilitarismo do Código Moral Ideal" ou "Utilitarismo do código maximamente desejável para uma sociedade". De acordo com esta versão utilita.rística de regras um código moral é ideal ou maximamente desejável para uma sociedade ( desejabilidade de uma instituição sendo determinada pela utilidade) se e somente se não existir outro código moral, cuja aceitação- isto é, cujo reconhecimento pela grande maioria dos adultos desta sociedade - acarrete maior utilidade esperada, levando-se em conta também os custos de se fazer com que o código seja aceito e mantido Em princípio, dois códigos diferentes podem cumprir tal condição. 9 Ademais, um código moral .ideal deve ainda satisfazer duas outras condições: a) completude e b) consistência. Assim um código moral precisa ser completo, isto é, ele há de conter regras que contemplem cada situação moralmente relevante. Além disso. precisa ser consistente. ou seja, não pode conter regras dissonantes entre si.


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Isso posto, uma ação será correta se e somente se ela não for proibida pelo código moral ideal da sociedade na qual ela se inscreve; e um agente será considerado moralmente censurável ou digno de louvor por um ato se e na medida em que o código moral ideal de sua sociedade condená-lo ou louvá-lo por seu ato. 10 Para que se possa dizer que um código moral tem aceitação ou vigência em uma sociedade é necessário que duas condições estejam satisfeitas: 1) cada regra do código deve ser reconhecida pela maioria dos adultos dessa sociedade; 2) cada regra deve ter vatidez pública, isto é, quem a reconhece precisa ainda acreditar que os outros a reconhecem. 11 O que uma teoria como a do código moral ideal de Richard Brandt tem a responder a Lyons? Se o Utilitarismo é definido como uma teoria que subordina a obrigação moral à maxirnização da utilidade, então Lyons tem razão e o utilitarismo, nesse caso, não tem como defender a força moral de direitos. Contudo, o utilitarismo de Brandt não equipara o ato moralmente correto ou moralmente obrigatório ao ato conveniente ou útil. A Teoria do Código Moralldeal e o Utilitarismo de atos não são extensionalmente equivalentes. No âmbito da versão utilitarista de regras como a de Brandt um termo como "moralmente correto" ou " moralmente obrigatório" não é supérfluo, pois não é desejável que um sistema moral considere obrigatório ou exigível todo e qualquer comportamento idealmente conveniente, uma vez que a imposição de exigências ou obrigações envolve alguns ônus, como os que derivam, por exemplo, do esforço para ensiná-las, da incidência de sentimentos de culpa indesejáveis que podem ter efeitos psicológicos nocivos, etc. 12 Assim, ainda que um ato possa ser conveniente no sentido de que maximiza a utilidade, poderá não ser conveniente considerá-lo exigível; um código moral ideal regerá somente aqueles tipos de ação para cuj a inclusão no código existam fortes razões utilitarísticas. O princípio da Teoria do Código Moral Ideal leva em conta um âmbito de ações moralmente indiferentes. Brandt retoma aqui uma distinção que fora tão cara a J. S. Mill, ou seja, a distinção entre o que podemos querer que seja exigido por um código moral e o que nós consideraríamos conveniente ou desejável, mas que não queremos considerar moralmente exigível. Este âmbito inclui não só as ações


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superrogatódas, que são vistas como dignas de louvor, mas não obrigatórias, mas também a totalidade dos desideratos, cuja utilidade consiste em serem racionais de um ponto de vista pmdencial. O utilitarista precisará, pois, estabelecer uma diferença nítida entre comportamento desejável (no sentido de conveniente ou maximizador da utilidade) e o comportamento moralmente obrigatório no sentido de exigido por um sistema moral considerado ideal ou ótimo. Retomando agora o problema de Lyons sobre a capacidade de o utilitarismo defender a obrigação moral de se respeitar direitos legais justificados utilitaristicamente. Suponhamos que o sistema moral ótimo para uma dada sociedade dê suporte ao sistema legal ótimo, e que um agente utilitarista entenda que, numa situação particular, a utilidade será maxim izada se alguns direitos forem violados. Poderá/deverá um agente utilitarista agir em desrespeito ao sistema moral ótimo para se curvar à utilidade imediata? Brandt repele a objeção de que um utilitarista não poderia fundamentar nenhum direito moral. Pelo menos quem defende uma teoria como a sua não incorre em inconsistência se pretende oferecer fundamentação para direitos e reconhecer-lhes a força moral. Observa ainda que, se um sistema moral for cuidadosamente projetado, não haverá grande disparidade entre o exigido e a conduta maximizadora do benefício. Para evitar tal disparidade um código moral utilitarista de regras ótimo conterá cláusulas de escape, admitindo, por exemplo, que um motorista estacione ilegalmente defronte à entrada de uma garagem em se tratando de uma situação de emergência. 13 Contudo, suponhamos que exista uma disparidade pequena entre as exigências derivadas do código e o comportamento gerador de maior bem. Digamos que, numa dada situação, a inconveniência causada à moradora da casa com garagem seja relativamente pequena em comparação com as vantagens que seriam auferidas por uma pessoa que obstruísse sua entrada de garagem. Lyons entende que um utilitarista estaria neste caso obrigado a se curvar à promoção da utilidade, desrespeitando portanto os direitos individuais. Ao contrário de Lyons, Brandt entende que, se se aceita um código ideal, seria inconsistente aconselhar sua violação, ainda que em um caso particular tal violação pudesse maximizar


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a utilidade. Uma concessão em favor do utilitarismo de atos só seria admissível quando enormes ganhos em utilidade demandarem correção ou reparos nos princípios do código ideal de regras. Assim, um utilitarista conseqüente concluirá pela existência de uma obrigação moral de se respeitar direitos, em consonância com o código ótimo, salvo em circunstâncias extremas. 14 Contra a argumentação de Lyons segundo a qual seria irracional e inflexível da parte de um agente moral utilitarista- sendo este alguém que endossa o sistema moral apenas e tão somente em razão de tal sistema maximizar a felicidade - opor-se a um afastamento do sistema, ainda quando tal afastamento maximizasse a felicidade Brandt faz valer que este argumento não anula a obrigação moral de se respeitar um direito ( ou de não se obstruir a entrada da garagem, para ficarmos com o exemplo). Assim, se Lyons entende que para um utilitarista inex istiria uma obrigação moral de se respeitar a força moral de direitos legais, parece que ele está confundindo o termo" obrigação moral" com o termo "desejável" ou "conveniente". 15 Há um segundo ponto que Brandt considera criticável na argumentação de Lyons. Este autor parece estar supondo que um utilitarista consistente possa adotar uma postura ambivalente, que consiste em, de um lado, apregoar ampla e publicamente - inclusive algumas vezes para si próprio - uma moralidade que exige que se evitem certos tipos de atos, - como, por exemplo, quebra de promessa, - de sorte que as pessoas sejam levadas a se sentir culpadas se deixam de realizá-lose, de outro lado, optar e recomendar a alguns indivíduos selecionados que optem por aquele curso de ação que maximiza a utilidade esperável em uma situação particular, independentemente de quais sejam as exigências do código moral que ele proclama. Contudo, como mostra Brandr, uma estratégia ambivaJeme está eivada de dificuldades e não é maximizadora da utilidade, dado que uma tal estratégia só funciona se enganamos outras pessoas e mantemos segredo sobre nossos pontos de vista; em suma, se agimos de um modo incompatível com a confiança mútua. O indivíduo que adotasse tal estratégia precisaria ser insincero em suas discussões éticas. Isso eliminaria uma das fontes mais importantes de conhecimento ético que é diálogo franco e aberto com os ou-


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tros. Assim, parece que a estratégia que Lyons supõe que um utilitarista poderia/deveria adotar não seria uma estratégia efetiva que maximizasse a utilidade. 16 Isso posto, Brandt conclui que o argumento de Lyons não tem por que abalar o utilitarista, embora admitindo - como já dito- a possibilidade de haver uma razão moral forte para se violar um direito. Seu utilitarismo ideal de regras é incompatível com uma violação de direitos com base no (suposto) fato de que isso viesse a acarretar um incremento marginal de bem-estar geral. Brandt conclui que : se pretendemos nos manter utilitaristas, no sentido de entendermos que a moralidade deve maximizar a utilidade a longo prazo ou de longo alcance e, ao mesmo tempo, entendermos que uma moralidade utiUtarista deve conceder espaço para o reconhecimento de direitos que são primafacie, porém, não descartáveis por ganhos marginais de utilidade, é necessário endossarmos duas teses: 1. A primeira é que uma pessoa estará praticando o ato coneto ou o ato obrigatório, não exatamente por seguir seus princípios morais atuais, sem se importar para onde eles levam, mas por seguir os princípios morais cuja aceitação na sociedade maximizaria a utilidade esperada. Isto significa que quem deseja agir corretamente poderá ter que refletir sobre seus princípios morais em situações particulares. 2. A segunda é que o ato será coneto quando permitido ou requerido pelo código moral cuja aceitação promete maximizar e não comprometer a utilidade; em circunstâncias extremas, o ato correto poderá consistir naquele que maximiza a utilidade, ainda que tal ato conflite com o código maximizador da utilidade. As dua.c:; teses em conjunto são compatíveis com um conceito de direito não descartável por um acréscimo in-isório no bem-estar coletivo. Segundo Brandt, agir deste modo não implicará em grande perda de utilidade; todavia, se houver alguma perda, tal é o preço que há de ser pago por uma moralidade de princípios.


O Ulilitarismn e os direitos morais

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4. À guisa de conclusão Para finalizar vale ressaltar o quanto Brandt considera importante a linguagem dos direitos morais. Parece que o discurso dos direitos tem um importante papel, uma força motivadora que o discurso dos deveres, das obrigações, do certo e do errado, não parece possuir. 17 Em primeiro lugar, quando se fala em direitos dá-se centralidade ao que uma pessoa está intitulada a fazer/ter/ desfrutar. Ao mesmo tempo, enfatiza-se que se trata de algo que é importante para seu bem-estar. Esta parece ser precisamente uma peculiaridade do discurso dos direitos: a de dar especial realce a um determinado bem, colocando-o em especial evidência. Se colocamos em foco interesses particularmente importantes, efou as condições necessárias para obtê-los, podemos atrair a compreensão e a simpatia hwnanas de um modo que dificilmente seria possível se falássemos tão- somente em deveres e obrigações. Um discurso centralizado em direitos. sobretudo quando estes estão sendo violados ou insuficientememe respeitados, pode até deflagrar uma revolução - mas dificilmente um discurso sobre deveres o faria. Segundo, a expressão "tem um direito a" sugere força moral. mais do que o termo" obrigação". Ademais - e isso com certeza se deve à influência de R. Dworkin - o discurso centrado em direitos tem uma eficácia moral mais intensa do que um discurso que ressaltasse incrementos substantivos de bem-estar geral. Exi ste um terce iro benefício advindo da linguagem dos direitos. este consiste em que ela encoraja os indivíduos, vítimas de privações ou violações de direitos, a se sentirem ressentidos, a protestarem e tomarem uma posição firme. Dizer "Você tem um direito a isto" parece implicar que determinadas aliludes ou comportamentos estão justificados. Desnecessário é ressaltar que encorajar o oprimido a resistir e a se opor ao tratamento a que é submetido resulta benéfico para a sociedade a longo prazo. Alguns defensores de direitos civis reconheceram que nenhum ganho adveio da moralidade ou do altruísmo daqueles que estavam em melhor situação: os ganhos costumam provir da ação dos oprimidos. Isso pode até ser um exagero. mas a verdade é que o sistema moral não é eficaz, a menos que uma simpatia para com o oprimido, bem como a


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prontidão do ameaçado para protestar e se rebelar em benefício próprio contribuam para a mudança social. Pode-se dizer que o que é importante não é o conceito de direitos, mas o fato de que os oprimidos se tomem ressentidos e dispostos arebelar e a fazer valer seus direitos e o fato de o fazerem sem qualquer sentimento de vergonha ou escrúpulo desaprovando inclusive aqueles que se acomodam. Pode-se dizer que o conceito de direito não é importante. Importante são as atitudes e ações. Ocorre, porém, que o conceito e as atitudes não são facilmente separáveis. Dizer que uma pessoa tem um direito é dizer, ao menos em parte, que determinadas atitudes suas são justificáveis. E dizer que uma ati.tude está justificada significa dar apoio a ela, assim como dizer que uma atitude não se justifica significa enfraquecê-la. O conceito de direitos morais parece, pois, que desempenha um papel no desenvolvimento de uma moralidade e sociedade mais humanas e, nesse sentido, se pode dizer que longe de ser supérfluo, a moralidade o exige. Poder-se-ia considerar inapropriado o alinhamento do Utilitarismo do Código Moral Ideal nas fileiras do Utilitarismo, se se entende por Utilitarismo aquela teoria moral que prescreve a ação maximizadora do saldo líquido de Utilidade. Não há dúvida de que, se se pretende salvaguardar alguns direitos morais e reservar um espaço de ação a ser considerado moralmente indiferente, o Utiltiarismo de atos precisa ceder espaço a uma versão mais refinada. Todavia, a Teoria do Código Moral Ideal se mantém utilitarista na medida em que define o código moral ideal como sendo aquele que possui máxima utilidade de vigência. Poder-se-ia no entanto indagar, se não seria, quiçá, mais garantido, se se quer preservar direitos, abandonar-se de vez o Utilitarismo e optarse por uma ética deontologista, centrada em direitos. Acredito que não, pois perder-se-ia o que o Utilitarismo tem de altamente positivo, que é sua preocupação com a felicidade, com o bem-estar, com a minimização do sofrimento e da dor. Ademais, o Utilitarismo é uma teoria que se preocupa com a questão da decidibilidade em situações de conflito. Em circunstâncias extremas, quando violações de direitos enfrentam violações de direitos, o Utilitarismo parece apontar uma saída, recomendando aquele curso de ação que conduz a um menor número de tais violações.


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Nesse sentido, ainda que o Util itarismo não seja uma teoria moral baseada em direitos, ele favorece, indiretamente, o curso de ação que mellior permite que os direitos morais sejam levados a sério.

Referências Bibliográficas Brandr, Richard B. "Some merits of one form of rule - utilitarianism". In: Richard B. Brandt. Moraliry, Utilitarianism, and Rights. Cambridge, Nova York: Cambridge University Press, 1992; pp. 111-36 - . "Utilitarianism and moral rights". 1n: Richard B. Brandl. Morality, Utilitarianism, and Rights, pp. 196-214. - . "Thc concept of a moral right and its functioo". ln: Richard B. Brandt. Morality, Utilitarianism and Rights, pp. 179-95. Lyons, David. ''Utility and Rights". In: David Lyons. Rights, We(làre and Mifl's Moral Theory. Nova York, Oxford: Oxford Univcrsity Press, 1994, pp. 147-76.

Notas 1

Lyons, O. '"Utility and Rights''. In: D. Lyons. Rights, Welfare and Mill's Mora/17zeory. Nova York, Oxford: Oxford University Prcss, 1994; pp. 14766. Trina-se da versão revisada de um ensaio apresentado em 1980 no encontro anual da American Socicty for Polilical and Legal Philosophy. Uma versão preliminar, intitulada ''Ulility as a possiblc ground of rights'' foi publicada em Nous 14 (1980); pp. 17-28. 2 Cf. O. Lyons. "Utility and Rjghts", pp. 149-50. 3 Cf. Idem, ibidem, p. 156. 4 Cf. Idem, ibidem, pp. 155-9. S Cf. Idem, ibidem, p. 161. 11 Cf. Idem, ibidem., p. 167. 1 Cf. Idem, ibidem. p. 168. 8 Cf. R. B. Brandt. "UtiJitarianism and moral rights". In: R. B. Brandt Morality, Utilitarianism and Right.\·, Nova York: Cambridge Utúversity Prcss, 1982, p. 196 9 Cf. R. B. Brandt "Some mcrits of' onc form of Ru1e-Utilüarianism". In: R. B. Brandt. Morality, Utilitarianism and Rights p. 11 9. Uma primeira versão deste artigo data de 1965. 1 Cf. R. B. Brandt. "Some merits of one form of rule- utilitarianism" In: R. B. Brandt. Morality, Utilitariani.mr and Rights, pp. 119-20.

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Maria Cecilia M. de Carvalho

op. cit., p. 120. Cf. R. Brandl. "Utilitarianism and Moral Rights", p. 204. 13 Cf. Idem, ibidem, p. 205. 14 Cf.Idem, ibidem, p. 205. 15 Cf. Idem, ibidem, pp. 205-6. 16 Cf. Idem, ibidem, p. 206. 17 Cf. R. B. Brandl. "The concept of a moral right and its function". In: R. D. Brandt. Mnrality, Utilitarianism and Rights, np. cit., pp. l93ss. Uma primeira vers達o deste artigo data de 1980. -,

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mcccilia@puc-campinas.br


O MoDELO DAS EMoçõES EM KANT MARIA BoRGES

Universidade Federal de Santa Catarina

1. A exclusão das emoções do domínio da moralidade Desde a primeira seção da Fundamentação, com o famoso exemplo do filantropo, Kant é claro quanto à carência de valor moral das emoções, o que fez Sabini e Silver escreverem no artigo "moções, responsabilidade e caráter"': "Um capítulo kantiano sobre emoções e responsabilidade é fácil de escrever e rápido de ler: O domínio do moral é o domínio da vontade expressa na ação. Emoções estão acima da vontade, por isso não tem valor moral intrínseco." 1 De acordo com os autores, a razão de não ser atribuído nenhum valor moral às emoções é que elas seguem o modelo da dor, de acordo com o qual "as emoções são forças brutas desconectadas de funções mentais mais elaboradas".2 Assim como a dor é um fato sobre nós, independente de valores ou outros aspectos do nosso caráter, as emoções, mesmo as mais complexas, estariam completamente fora do comando da razão. Kant, como outros ps.icólogos e fisiologistas contemporâneos, é tido como um autor que adota um modelo no qual emoções são pré-cognitivas, meras percepções de estados corporais não específicos ou de estados diferenciados do sistema nervoso simpático. 3 Conseqüentemente, poderíamos ser considerados responsáveis por um relativo controle da expressão dos nossos estados mentais, mas não seríamos responsáveis por possuí-los. Alem disso, na visão de Sabini/Silver, certos estados emocionais são como a dor num viciado em drogas, no qual a responsabilidade pela ação é atenuada pela intensidade do estímulo. Marcia Baron, no Livro Kanlian Ethics Almost Without Apology, critica a posição de Sabini/Silver, objetando que o modelo da dor não é o Cupaní, A. O. & Mortari, C. A. (orgs.) 2002. Linguagem e Filosofia. Anais do Segundo Simpósio Internacional Principia . Coleção Rumos da Epistemologia, volume 6. Rorianópolis:

NEL, pp. 313-23.


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Maria Borges

modelo de explicação das emoções utilizados por Kant: É um sério erro pensar que a psicologia kantiana das emoções, ainda

que aproximadamente, concorda com o modelo da dor e que sentimentos tais como simpatia ' nos movem a agir sem o nosso assentimento racional'. (... ) Nós decidimos como agimos. Se Kant deve ser criticado, é por concepção de ação muito robusta, não pela visão de agentes como passivos com respeito aos seus sentimentos. Baron defende, portanto, uma posição diametralmente oposta a de Sabini/Silver: nós não somos passivos em relação aos nossos sentimentos, somos, ao contrário, responsáveis pelo que sentimos. Mesmo admitindo que leituras da Fundamentação e Crftica da Razão Prática poderiam j ustificar uma concepção negativa das emoções, como não podendo ser controladas pela razão, Baron sustenta que esta visão poderia ser corrigida se tomássemos os textos tardios, tais como a Religião, Metafísica dos Costumes e Antropologia. Tentaremos mostrar que nenhum destes modelos pode explicar totalmente as emoções em Kant. Baron tem parcialmente razão, pois algumas emoções não seguem o modelo da dor, tais como simpatia e gratidão, as quais podem ser cultivadas. Contudo, Kant descreve alguns afetos como sendo precognitivos, involuntários e passivos. Este é o caso, por exemplo, do terror nas batalhas, que toma conta do agente independentemente de sua vonLade, causando efeitos físicos desagradáveis. Neste sentido, a afirmação de Baron de que somos responsáveis por nossos afetos não se aplica a este estado de coisas. A diversidade de sentimentos e inclinações não nos permite dar uma resposta simples para ao controle ou não das emoções pela vontade, para tanto deveríamos compreender a diversidade e heterogeneidade das inclinações, assim como seu locus no mapa da alma.

2. A taxinomia das inclinações Incünações, no sentido restrito, são apenas uma parte do que é denominado faculdade do desejo. Contudo, no sentido amplo, denominamos inclinações toda a gama de impulsos empíricos que incluem instintos,


O modelo das emoções em Kant

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emoções e apetites. Estes fenômenos estão relacionados com duas faculdades: a faculdade de desejar e do sentimento de prazer e desprazer. O sentimento de prazer (Lust) ou desprazer ( Unlust) causado por um objeto pode ser sensível ou intelectual. O prazer sensível pode nos ser dado pela sensibilidade ou pela imaginação; o prazer intelectual pode ser provocado por conceitos ou por idéia (Ant , 7: 230). O sentimento de dor (Schmerz) e deleite ( Vergnügen) é relacionado ao prazer e desprazer apenas da sensibilidade. O prazer e desprazer sensíveis relacionam-se ainda a outros dois tipos de incünação: sensitividade (Empfo.uisamkeit) e afeto (Affekt). A diferença entre eles é que o primeiro pode ser escolh.ido, ou envolve escolha , enquanto somos totalmente passivos com respeito aos afetos: Sensitividade (Empfindsamkeit) (.. . ) é uma faculdade e um poder que permite os estados de prazer e desprazer, ou até mesmo os impede de serem sentidos. Sensitividade é acompanhada por uma escolha. ScntimemaJismo, por outro lado, é uma fraqueza devido ao seu interesse na condição dos outros que podem representar o sentimentalista confonne sua vontade, e até afetar aquela pessoa contra sua vontade. (Ant, 7: 236)

Afetos são sentimentos de prazer que dificultam a renexão, através da qual as inclinações deveriam se submeter 'às máximas racionais: são "precipitados e irrefletidos (animus praeceps)" (DV, 6: 408), agem como a água que rompe uma barragem (Ant, 7: 252), tomam cego o agente (7: 253), tendo como consolo que essa tempestade rapidamente diminui e acalma-se, permitindo ao sujeito voltar a um estado onde a reflexão é possível novamente. O modelo kantiano de afeto é a raiva, sentimento tempestuoso por natureza, todavia inconstante, não possuindo a permanência do ódio, o correspondente à raiva no terTeno das paixões. Se o afeto exemplar é a raiva, um bom exemplo de sensitividade é o sentimento de simpatia, expresso na Doutrina das Virtudes: ainda que sendo sensível, pode ser treinado para impulsionar a realização de ações morais, desde que dirigido pela razão. Alem do prazer sensível, temos ainda o prazer intelectual, causado pela idéia ou conceito de algo. Pode-se mencionar aqui os sentimentos úteis para a receptividade da mente ao conceito de dever, tais como o


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sentimento moral, o qual, na Doutrina da Virtude, é definido como "a susceptibilidade para sentir prazer ou desprazer simplesmente da consciência de que nossas ações são consistentes ou contrárias à lei do dever" (DV, 6: 399). O amor aos seres humanos (Menschenliebe) também faz parte, junto com auto-respeito e consciência, da receptividade da mente ao conceito de dever. Kant refere-se, não ao amor de deleite (amor complacentiae), mas ao amor de benevolência (Wohlwollen, amor benevolentiae), visto que este poderia ser exigido como dever, mas não o primeiro, pois seria contraditório que alguém fosse obrigado a sentir prazer. O amor de benevolência, exatamente por não ser direto, admite algo próximo ao cultivo aristotélico, disposição que pode ser despertada pelo hábito.4 Enquanto as divisões do sentimento de prazer e desprazer dizem respeito à forma como somos afetados por objetos, sejam eles sensíveis ou intelectuais, as divisões da faculdad·e de desejar referem-se à forma como nos referimos aos objetos que queremos possuir. A facu ldade do desejo é dividida em quatro níveis: o primeiro, a propensão (Hang, propensio), é aquele desejo que precede a própria representação do objeto, tal como a tendência dos povos do norte de beber bebidas fortes (AntM, 25, 2: 1340); o segundo é o instinto, que consiste num desejo sem o conhecimento prévio do objeto, cujo exemplo é o desejo da criança pelo leite ou, conforme a Antropologia publicada, o instinto dos animais a proteger sua cria (Ant, 7: 265); o terceiro nível é a inclinação, definido como um desejo habitual e exemplificado com o desejo de jogar ou beber. Se uma inclinação torna-se muito forte, ela transforma-se em paixão, que dificilmente pode ser controlada pela razão (Ant, 7: 251). Estar sob a emoção da paixão implica ser incapaz de decidir, de forma razoável, por uma inclinação em detrimento de outra: "A inclinação que impede o uso da razão para comparar, num determinado momento de decisão, uma inclinação com a soma de todas as inclinações, denomina-se paixão" (Ant, 7: 265). A fim de determinar o modelo ou modelos para as emoções, seria profícuo localizá-las num esquema kantiano da alma.


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3. As inclinações no mapa da alma5 Nas tições da Antropologia anotadas por Parrow, Kant difere nciaria três instâncias daquilo que denominava de alma no sentido genérico (Seele) e cuja referênc ia é o eu: "nós observamos a alma (Seele) numa tripla perspectiva, isto é alma (AnimafSeele), mente (Animus/Gemüth) e espú·ito (Mens/Geist) (APa 25: 247). A alma passiva é denominada de alma/anima (Seele); quando a alma é reativa, ou seja, responde ativamente aos dados sensíveis recebidos passivamente, ela é mente/animus (Gemüt); quando ela é puramente ativa, ela é espírito/mens (Geist). Essas três instâncias da alma (passiva, reativa e ativa) referem-se, de acordo com as anotações de Collins, não a três substâncias, mas a "três formas formas de nos sentirmos vivos" (AntC, 25: 16). As três divisões da alma relacionan1-se com as fac uldades superior e inferior da alma, a primeira sendo ativa e a segunda, passiva (AC, 25: 16). A facuLdade inferior, por ser passiva, corresponde à perspectiva da alma enquanto anima; a faculdade superior, por ser ativa, corresponde a perspectiva puramente ativa do espírito/mens ou reativa da mente/animus. A divisão das faculdades em inferior e superior aplica-se as três faculdades analisadas da alma: Faculdade cognitiva, a faculdade de desejar e ao sentimento de prazer e desprazer. Relativamente à facu ldade de desejar, exercitamos nosso poder de escolha relativamente a um objeto do entendimento com a faculdade de desejar superior, utilizamos nosso poder de escolher um objeto da sensibilidade através da faculdade de desejar inferior. Em relação à terceira faculdade, nós temos prazer e/ou desprazer da sensibilidade através da fac uldade inferior, enquanto os prazeres dados pela imaginação e entendimento pertencem à faculdade superior. Esta diferença pode ser ilustrada ao comparar dor ao sentimento moral. O sentimento de prazer e desprazer inclui três tipos de prazer: o prazer sensual, o prazer da imaginação e o prazer intelectual. Os sentimentos portanto, vão desde o mais ligado à faculdade de sentir prazer inferior, até o os sentimentos de prazer e desprazer superiores, como é o caso do prazer obtido por um conceito. A dor física parece não ad-


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müir realmente um controle racional, pois trata-se de um desprazer da alma/ anima, ou seja, da alma animal ou apctitiva. A dor é definida como um "desprazer da sensação", explicada pelo efeito produzido na mente pela sensação da minha condição física (Ant, 7: 232), sendo involuntária. Oposto à dor física, nós temos o prazer ou desprazer devido a um conceito, tal como o chamado sentimento moral da Metafísica dos Costumes, sentimento originado como efeito do conceito do dever: "[O sentimento morall é a susceptibilidade de sentir prazer ou desprazer meramente do fato de estar consciente que nossas ações estão conforme à lei do dever" (MS, 6: 399). Obviamente, há uma grande distância entre a dor e os sentimentos morais, ainda que ambos possam ser classificados como sentimentos (Gefühlen), o primeiro relaciona-se à facu ldade de sentir inferior, relacionada à sensibilidade, o segundo à faculdade de sentir superior, relacionada à razão. Enquanto a dor física é involuntária e pré-cognitiva, o sentimento moral envolve a ação e o conceito de correção desta. Não podemos decidir de forma alguma se sentiremos ou não dor, enquanto podemos decidir se vamos ou não sentir o prazer do sentimento moral, bastando para isso agirmos conforme a lei moral ordena. A faculdade de prazer inferior relacionar-se-ia coma parte puramente passiva e aí residiriam os fenômenos puramente sensíveis ou animais, tais como a dor, a fome, a sede. A facu ldade de prazer superior incluiria a parte reativa e ativa. A sensação de desprazer que sentimos ao saber que nossas ações são en·adas relacionar-se-ia com a parte ativa, visto que se trata de sentimento relacionado a um conceito, o conceito de dever. Entre a parte puramente passiva e a parte puramente ativa, residiria os sentimentos reativos. Uma interessante passagem da Antropologia- Parow nos mostra como o sentimento de desprazer atinge diferentemente as diversas partes da alma: eu não posso impedir a dor que atinge meu corpo de passar à minha alma; apenas de refletir sobre isso. Por exemplo, se eu for acometido de gota e pensar o que será de mim no futuro, como eu vou ganhar meu pão e isso me causa tristeza no meu estado de alma, emão aqui a mente (animus) se agila. A doença da mente (Gemiithskrankheit) é também o que me toma infeliz. Visto que tais reflexões nunca atinge os animais.


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eles nunca são infelizes. Mas, finalmente, o mais alto grau de trisreza acontece quando meu espírito (Geist) tenra abstrair da todas as dores e desperta em mim uma auto-reprovação, quando eu imagino para mim mesmo como eu causei essa doença a mim mesmo e tomei-me infeliz através da minha própria culpa. (AntP, 25: 247-8) Vemos aí claramente a diferença entre três níveis de desprazer: a dor, a tristeza e a auto-reprovação. A primeira é puramente física, impossível de ser controlada, mesmo que indiretamente, e independente de qualquer conteúdo cognitivo; a alma (anima) sente o ferimento do corpo enquanto dor. Este é um exemplo da faculdade de sentir inferior, na qual o sentimento é dado através apenas da sensação. O segundo nível relaciona-se ao desprazer de um afeto, a tristeza, e admite uma causa não mecânica: a tristeza é causada pela imaginação que agita a mente (animus) quando imagina um futuro cheio de infortúnios. Aqui temos a parte reativa da alma (animus), a qual relaciona-se à faculdade de sentir superior. A tristeza é despertada pela imaginação, a qual agita a mente. Os animais nunca sentir-se-ão desgraçados, ainda que possam sentir a dor do feri menta. Kant defende, todavia, na palestra Sobre a Medicina filosófica do corpo (Rektoratsrede) que os animais possuem imaginação, ainda que no gado a força da imaginação não seja dirigida por nenhuma escolha ou intenção deliberada do animal. Esta é a razão pela qual "ainda que um certo mau estar oprima a mente do animal quando ele é levado ao cativeiro, a ansiedade que aflige a miserável raça humana escapa ao animal, o qual não sabe do que se preocupar" (Rek, 15: 944). Mesmo que se suponha que os anima is possuem imagens trazidas pela imaginação, nos homens esta facu ldade é mais pronunciada, dando uma maior duração e intensidade aos afetos. O terceiro nível, o desprazer do espírito (Geist), esta completamente ausente nos animais, visto que ele depende da razão que desperta a auto reprovação; a consciência moral criaria em mim o sentimento de desprazer por saber que não agi con·etamente. Entre a parte puramente passiva, no qual o sentimento de pra~er dependa da forma com a qual o objeto afeta minha sensibilidade diretamente. e a parte puramente ativa, na qual a satisfação deve relacionar-se a um conceito, nós temos uma gama de fenômenos intermediários que


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incluem o sentimento do belo, a sensitividade e os afetos. A sensitividade e os afetos pertencem ao donúnio reativo da alma. São fenômenos diferentes da dor, na medida em que eles necessitam de outras fac uldades, além da sensibilidade, para serem despertados, Esta é a razão pela qual o modelo da dor não pode explicá-los. Os afetos, como vimos, necessitam da concorrência da imaginação; a sensitividade, por sua vez, é regulada pela vontade. Os afetos (Affekten) são tipicamente reativos, agitações da alma como reações a algo que afetou a nossa mente. A avaliação des tes fenômenos da alma, que incluem raiva, alegria, pesar, medo é, em geral, negativo: "Afeto é espanto através da sensação [ Überraschung dureh Empfindung] onde a compostura da mente (animus sui compos) é suspensa. Afeto é precipitado e rapidamente cresce a um grau de sentimento que torna a reflexão impossível (É imprudente [unbesonnen]) (Ant, 7: 252). Sendo portanto algo próximo a uma surpresa, um espanto, ele não é passível de ser diretamente controlado pela vontade. Podemos decidir se realizamos ou não uma ação con·eta e portanto, se sentiremos o prazer ou desprazer que esta nos proporcionará moralmente. Mas não podemos decidir se é apropriado ou não sentir raiva numa determinada situação. Por vezes, sentimos raiva, ainda que não desejássemos; outras talvez fosse desejável senti-la, mas não a sentimos. Kant refere-se a esta possibilidade na Antropologia: "Mtútas pessoas até desejam ficar com raiva, e Sócrates ficava em dúvida se não seria bom ficar enraivecido algumas vezes; mas ter afetos tão sob controle que se possa deliberar quando alguém deve ou não ficar enraivecido, parece paradoxal." (Anl, 7: 252). Quanto ao aspectos cognitivos, os afetos envolvem menos elementos cognitivos e a faculdade do entendimento do que o sentimento do belo, o qual envolve uma harmonia entre e ntendimento e imaginação. Mas por certo envolvem mais elementos cognitivos do que a dor fís ica, por exemplo. A raiva envolve uma percepção de que algo injusto ou errado foi realizado que prejudica o agente indevidamente ou fere suas concepções do que é COJTeto e justo. A sensitividade. por sua vez, é um fenômeno próximo aos afetos, a qual admite escolha. Ela pode ser cultivada, a fim de dar uma reposta


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correta em situações nas necessitamos da benevolência prática. É um fenômeno da parte reativa, que pode ser modificado pela pane ativa. Quando ao aspecto da voluntariedade, os sentimentos que atingem a parte animal da alma são involuntários, não podendo ter sua sensação controlada. Tal é o caso da dor, da sede, da fome, . . . No outro extremo, o prazer e desprazer do espírito, como é o cac:;o do sentime nto moral e respeito, é controlável através das nossas ações, visto que ele não é móbil das ações, mas conseqüência da consciência da con eção ou não moral de uma ação. Os afetos, ainda que fenômenos da parte reativa da alma (animus) parecem envolver em graus diferentes a imaginação, por um lado~ e o corpo e a parte animal da alma (anima), por outro. A tr isteza, como vimos, vem da imaginação de um estado futuro ou passado de ocorrências indesejáveis. Ela envolve, assim como alegria, a reprodução ou antecipação de eventos. Kant cita igualmente a saudade dos suíços como uma conseqüência da atividade da imaginação, que consiste "na recordação de uma vida despreocupada e numa companhia da juventude, a saudade dos lugares onde gozou dos prazeres simples da vida" (Ant, 7: 178). No texto "Da Medicina filosófica da alma", ele atri bui à imaginação uma força ainda mais intensa, que pode interferir com movimentos corporais: Essa é a razão pela qual os terríveis movimentos que nós denominamos convulsões, c epilepsia, podem afetar outras pessoas: a imaginação lhes torna contagiosos. Isso dá origem a uma estratégia. a qual não pertence exclusivamente ao médico, de praticar Medicina meramente aLravés da força da imaginação( ... ) Logo, a confiança os inválidos depositam no seu médico adiciona força aos seus remédios alé para os mais enfem1os"' (Rck, XV, 15: 944) Visto que os afetos são movimentos da mente que podem agitar a mente (Rek, 15: 940) e a imagrnação pode alterar os movimentos corporais, ela pode igualmente alter;u· os afetos. Todavia, esta alteração não deve ser considerada como um efeito do poder direto d a mente e é dependente da várias in formações que estão fora de controle por parte do agente. Os aferos podem ser modificados pela imaginação que tra7. imagens à mente, as quais causarão sensações agradáveis ou desagradáveis. O papel da imaginação é cl aro quanto ao medo: assim como


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a tristeza é causada pela antecipação de um futuro sombrio, o medo é causado pela antecipação de um perigo .. A raiva, por sua vez, é causada pela consciência de uma ofensa, ou de uma injustiça causada a nós ou a o utrem. Esses sentimentos, ainda que pertencendo a parte reativa da alma, não estão separados de elementos cognitivos na avaliação de imagens que nos vêem a mente. A idéia, portanto, que os sentimentos são cegos e absolutamente pré-cognitivos não pode ser sustentada dentro da interconexão das partes da alma. Os sentimentos de tristeza, alegria, raiva, medo, . .. dependem de avaliações cognitivas da situação reproduzida ou antecipada pela imaginação, o que nos mostra a relação entre as partes reativas e ativas da alma. Do fato, porem, que há um julgamento cognitivo das imagens apresentadas pela imaginação, não significa que podemos deliberar sobre os afetos e nem que possam ser facilmente cultiváveis, o que é um erro de alguns comentadores que, tomando a simpatia como modelo, estendem para todos os afetos o que vale apenas para aquela. Ainda que a imaginação tenha o poder modificar os afetos, trazendo à mente imagens agradáveis ou desagradáveis. esta interferência depende de outros aspectos, tais como a intensidade do afeto e a realidade do objeto deste sentimento. Tomando novamente o exemplo da Antropologia Parrow: eu poderia decidir que um estado de tristeza é pernicioso para a minha enfermidade e, mesmo assim, a avaliação de um futuro sombrio despertaria em mim esse afeto, contrariamente à minha vontade. O poder da imaginação não pode negar a evidência que fmma meus juízos verdadeiros. Pela mesma razão, o temor nas batalhas não pode ser facilmente controlável. visto que há um perigo real de ser morto.

4. Conclusão Podemos concluir que as emoções apresentam um continuum que vai de fenômenos reativos a ativos da alma. Um exemplo do último tipo é o sentimento moral, o qual é despertado pela consciência moral da correção o u incotTeção da ação. Mas é na parte reativa da alma que reside a maior parte do que podemos chamar de emoções. Aqui nós temos igualmente um continuum:


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desde os afetos, que são os mais incontroláveis, tais como raiva ou o temor, até a sensitividade, tal como a simpatia, a qual pode ser modulada pela vontade. A raiva e o temor seriam os mais próximos do modelo da dor, ainda que eles contenham alguns elementos morais e cognitivos que este modelo não poderia explicar. Contudo, na sua fal ta de controle, podemos dizer que eles compartilham algumas características da dor. O modelo de Baron, por sua vez, é capaz de ser aplicado à simpatia e sentimentos morais, m as certamente não à raiva e ao temor. O erro dos comentadores, portanto, é considerar q ue emoção em Kant possui apenas um modelo e um fenômeno referente, quando, de fato, refere-se a uma multiplicidade de diferentes fen ômenos, que devem ser explicados de formas diversas.

Notas 1

Sabini, J. & Silver, M., E motio ns, respo nsability and c haracter, in: Schoeman, F. Responsabiliry, Clwracter and Emotions, Cambridge University Press, 1987, pp. 165. 2 Tbid., 166. 3 Sabini e Silver citam como autores que defendem essas posições, respectivamente Robcn Zajonc ("Fecling an.d thinking : Pre ferenccs need no inferc nces", American Psycologist 35, 151-75), Willian Jarnes ("What is an cmotion", in Arnold (Ed.) The nature of emotion, London, Pcnguin, 1968), Frankenaeuser ("Experimemal approachcs to thc srudy of catecho1amines and cmotion", in: Levi (ed.), Emotions: their parameters and measuremelll, New York, Raven Press, L975). 4 " Desta forma, o dito "você deve amar seu próximo como você mesmo", não significa que você deve imediatamente (primeiro) amá-lo e (depois), devido a esta amor, fazer o bem para ele. S ignifica, ao contrário, que você deve fazer o bem aos seres humanos, e sua beneficência produzirá amor com respeito a eles (como uma aptidão à inclinação e m geral)." (DV, 6: 402). 5 Para a elaboração da divisão·da alma, sou tributária do trabalho de Julian Wucnh, Kant's early ac:c:ount l~{ the se[{. Tese de doutorado, University of Pe nnsylvania, 2000. mariaborges@ yahoo.com


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Universidade de Brasília

1. Os cinco Principia canmbrigienses 1 No contexto da rica prod~ção intelectual da Universidade de Cambridge, destacam-se quatro obras q ue receberam o nome Principia. Em 1686, Isaac Newton publica os célebres Philosophiae naturalis principia mathematica, a grande axiomatização da mecânica moderna. Mais de duzentos anos depois, em 1903, Bertrand Russell publica os Principies ofmathematics, a versão preliminar do programa logicista. Naquele mesmo ano, George Edward Moore lança os Principia ethica, o ensaio de filosofia moral que se tomaria ponto de controvérsia, sobretudo pela conceiluação de Bem e pela conhecida idéia da falácia naturalista. Por fim, entre 19 JO e i 913, vêm à luz os três volumes dos Principia mathematica. de Russell e Whitehead, a versão madura da tentativa de reduzir a matemática à lógica. O que têm em comum esses quatro Principia cantabrigienses, de vez que um deles é de física, outro de ética e os restantes são de lógica e matemática? A resposta está à mão: todos eles são textos conceptuais, ostensivamente preocupados em elucidar noções, estabelecer relações entre elas e, de um modo geral, em determinar princípios capazes de possibilitar a solução de problemas, metodicamente. Mas, não está enunciada acima uma referência a cinco Principia? Por que foram citados apenas quatro? Na verdade, é em vi1t ude de uma mera contingência histórico-onomástica que uma quinta obra não se tenha juntado às quatro já mencionadas, pois ela é um esforço importante no sentido de esclarecer conceitos, definir métodos, e estabelecer teses. Essa obra é The methods of ethics, de Henry Sidgwick, publicada em Cupani, A. O. & Mortari, C. A. (orgs.) 2002. Linguagem e Filosofia. Anais do Segundo Simpósio Internacional Principia. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 6. Rorianópolis: NEL, pp. 324-32.


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1874 e considerada o melhor texto britânico de filosofia moral do século XIX. Por mérito, The methods of ethics é mais um dentre os Principia cantabrigienses, porquanto esse Livro partilha das propriedades que, com toda justiça, deram tanto destaque aos trabalhos de Newton, Moore, Russell e Whitehead. Russell e Moore, enquanto estudantes, foram alunos de Sidgwick, aparentemente sem perceber que tinham como professor um dos maiores intelectuais da Inglaterra vitoriana. Não obstante, Sidgwick exerceu clara influência sobre ambos, o que, há mujto, já foi percebido pelos estudiosos daquele período histórico. Neste trabalho, por opção metodoLógica, iremos cingir-nos a Sidgwick e a Russell, pesquisando suas teorias sobre axiomas éticos. O que disseram eles sobre o assunto? O que podemos aprender com eles, na presente situação da teori a ética? 2. A estrutura do pensamento filosófico-moral, segundo Sidgwick

Logo no início do seu livro, Sidgwick conceitua a ética como sendo a teoria da prática, voltada para aquilo que deve ser, na medida em que isso dependa da ação voluntária do homem. Ele delimita claramente o âmbito do discurso moral, dis.tinguindo-o com respeito às teorizações de outras disciplinas. Em particu lar, ele afirma a clássica autonomia do dever (to ought ), relativamente ao ser, deixando claro que a norma não pode ser deduzida a partir de fatos, nomeadamente de fatos psicológicos (Sidgwick 1981, pp. 1-14). A prática moral define-se a partir da configuração de um fim, sendo que Sidgwick delimita aqui apenas duas possibilidades: Perfeição e Felicidade. A Felicidade, ao que parece, pode ser buscada por si mesma. De qualquer modo, para que Perfeição ou Felicidade sejam alcançadas, certas regras devem ser estabelecidas, no que Sidgwick introduz a noção de método da ética. Numa aproximação imperfeita, nós poderíamos dizer que um método da ética é aquilo que, usualmente, seria chamado uma fHosofia moral. Em outras palavras, um método da éLica é uma forma de pensar a moral , de organizar-lhe princípios e regras. Segundo Sidgwick, há três métodos da ética: o egoísmo hedonista, o intuicionismo e o hedonismo universal. O egoísmo hedonista postula a


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maior felicidade do indivíduo, entendido no sentido da primeira pessoa, como princípio supremo. O hedonismo universalista visa a felicidade geral, entendendo-a como desejável, sem qualificação. Por fim, o intuicionismo toma a perfeição como fim, e postula que o homem tenha a capacidade de captar princípios e regras que a ela conduzam. Egoísmo hedonista, hedonismo universal, também chamado utilitarismo, e intuicionjsmo são os três métodos da ética, desenvolvidos na história da filosofia, respectivamente por Epicuro (egoísmo hedonista.), por Bentham (utilitarismo) e por Kant e Clark (intuicionismo) (ibidem, pp. 77-88). Ao longo de todo o seu üvro, Sidgwick faz constantes referências ao assim chamado senso comum (common sense), que seria a maneira não-elaborada de se tratar temas morais. No seu cotidiano, as pessoas têm crenças morais e formulam juízos a respeito, no mais das vezes, de forma dogmátjca. Ao filósofo cabe transcender o senso comum, fazendo ver às pessoas como elas deveriam pensar e não como, de fato, pensam (ibidem, p. 373). Enquanto teorias filosóficas, egoísmo, utilitarismo e intuicionismo contrapõem-se ao senso comum e o superam. Precisamente porque vão além do senso comum, os métodos da ética envolvem argumentação, raciocínio e, mais do que isso, eles envolvem prova. Para Sidgwick, um método da ética é uma espécie de principiologia moral, de vez que visa provar as suac; conclusões, com o auxilio de teses fundamentais, às quais ele dá uma importância toda especiaL Apesar da sua grande admiração pelo pensamento clássico, Sidgwick critica as concepções éticas tradicionais, particularmente as gregas, observando que elas não fonnulam princípios capazes da dar critérios suficientemente claros para a ação. Dizer, por exemplo, que devemos sempre escolher aquilo que estiver de acordo com a natureza, literalmente, dei xa-nos no ponto onde estávamos. Outras vezes, os filósofos formulam princípios absolutamente incontroversos, mas tautológicos e irrelevantes. No seu trabalho de estabelecer racionalmente uma teoria da prática, um método da ética tem de lançar mão de princípios verdadeiros e evidentes que, como na geometria, devem ser concebidos de fonna axiomática (ibidem, pp. 338-43). Que princípios são esses? Sidgwick discute várias possibilidades, afirmando, porém, que não haveria um


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axioma que fosse o único, ao menos para o utilitarismo, a teoria por e le favorecida. Mas, em tal concepção, os seguin tes princípios são axiomáticos: (A) O bem de qualquer indivfduo não tem maior importilncia do que o bem de qualquer outro indivíduo, sob o ponto de vista do universo, se é que se pode falar assim. (B) Como ser racional, eu tenho a obrigação de procurar o bem, de fonna geral.

Empregando os axiomas (A) e (B), podemos deduzir a Máxima da Benevolência: Cada um tem a obrigação moral de considerar o bem de qualquer outro índivfduo tanto quanto o seu próprio bem, excepto na medida em que julgar que ele é men01; se visto imparcialmente, ou que ele é menos cognoscfvel, ou menos alcançável (ibidem, p. 382). Os princípios (A) e (B), em virtude da sua evidente verdade, são axiomas. Outras teses tradicionais, entretan to, não gozam da mesma transparência e devem ser provadas a partir de axiomas, de modo a serem eticamente admissíveis. Esse é o caso, por exemplo, das máx..imas que exigem dizer a verdade ou cumprir promessas. Devidamente qualificadas, elas podem ser tomadas como verdadeiras, mas isso demanda uma prova. Sidgwick menciona vários outros axiomas éticos possíveis, que são diferentemente tratados pelos diversos métodos, como, por exemplo, o Axioma da Justiça (Casos similares devem ser tratados similarmente) (ibidem, p. 387). Tais princípios são pontos de referência obrigatórios do raciocínio moral, porquanto e les forne.cem o ponto de apoio necessário, a partir do qual os nossos raciocínios podem desenvolver-se, nessa área. Até aqui podemos dizer que Sidgwick entende a ética ordine geometrico, na medida em que nela tem lugar a intuiçlio de princípios evidentes e a prova de teoremas dai deriváveis. Nesse ponto, nós enfrentamos o perigo de uma comparação historicamente inexata, ou seja, a tentação de aproximar Sidgwick de Espinosa. Sidgwick, como Espinosa, toma de empréstimo da geometria, ainda que de modo vago, o modelo de organização i~telectual, mas as semelhanças entre esses dois autores não são grandes, embora ambos sejam


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utilitaristas. Em Sidgwick, não há o ostensivo arcabouço metafísico que está presente na obra de Espinosa e, o que é mais importante, há uma relação indissociável, com o mencionado senso comum. De um lado, o filósofo deve superar o modo ingênuo e popular de pensar a moralidade. De outro lado, porém, o senso comum deve permanecer como instância de controle dos nossos raciocínios abstratos. Ao aplicar axiomas e admitir premissas, nós podemos tirar conclusões que estejam em .flagrante oposição relativamente ao senso comum (ibidem, p. 210). Nesse caso, há algo de errado com o nosso raciocínio ético, o que deve levar-nos a rever as nossas posições morais. Sidgwick é notoriamente ambíguo ao relacionar o pensamento moral com o senso comum: de um lado, o primeiro deve transcender o segundo; de outro, o segundo deve controlar o primeiro. 3. Russell e a lógica do pensamento moral

Como aluno de Sidgwick, Russell escreveu cinco pequenos trabalhos para cursos do seu mestre, entre eles um ensaio sobre axiomas éticos, datado de 1894 (Russell, 1999-A). Ele inicia esse seu trabalho estabelecendo o fato de que nós formulamos juízos éticos, considerando-os como verdadeiros ou falsos. P011anto, se assim é, nós precisamos de um critério que sirva como ponto de referência de tais julgamentos, o que nos leva a admitir a necessidade de axiomas éticos: nossas conclusões são derivadas de premissas e essas pedem o apoio de proposições mais gerais que, por sua vez, não se sustentem sobre outras proposições. Portanto, como não podemos fugir do desejo e da ação, não podemos escapar à necessidade de axiomas éticos (ibidem, p. 54). Ora, axiomas devem ser proposições evidentes e muito gerais, como os princípios básicos da aritmética. Será que a nossa intuição nos fornece tais princípios? Ao contrário do seu mestre Sidgwíck, Russell mostra-se céptico a respeito desse assunto, fazendo ver que as nossas intuições morais nada nos apresentam além de máximas particulares, tais como a proibição de mentir ou de matar ou a exigência de sermos bons para com o nosso próximo. Russell partilha da tese do seu mestre, segundo a qual não se deriva a obrigação a partir do fato, mas não crê que


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tenhamos elaborado axiomas morais com evidência bastante para atrair a adesão de cada um (ibidem, pp. 54-5). Referindo-se ao imperativo categórico de Kant, Russell ressalta o seu caráter meramente formal, além da sua insuficiência. Contra Kant, ele levanta uma observação bizarra: um batedor de carteiras, sofrendo de tuberculose galopante, poderia desejar que bater ca11eiras se tornasse regra universal. Isso permitir-lhe-ia passar os seus últimos dias Longe da cadeia, com a vantagem de ganhar mais roubando os outros do que poderia ser roubado. Não lhe impo11aria o fato de que a sociedade fosse à ruína, sob tais circunstâncias, pois a morte próxima não lhe traria sofrimento com tal situação. Como objeção contra a teoria de Kant esse exemplo de Russell não é necessariamente o melhor, mas, no presente contexto. interessa-nos a clara percepção de que um axioma propriamente ético é um princípio material, ou seja, é uma enunciação de conteúdo, que nos diz como moldar as nossas ações. Russell não enuncia um ax ioma desse tipo, mas e le o delineia: o bem procurado pelo agente só pode ser o seu próprio bem. Por conseguinte, um axioma ético há de conter uma exigência de autorealização, além de uma definição, ainda que parcial, do que seja o bem do indivíduo. Não obstante, como o agente moral vive em sociedade, essa exigência de auto-realização conduz a uma dimensão comunitária, que é a inevitável dimensão do sacrifício (ibidem, pp. 55-56). Nesse ponto, Russell, simplesmente, conclui o seu trabalho, dizendo que outras investigações a respeito devem ocorTer no âmbito da metafísica. Nessa primeira fase do seu pensamento ético, a posição de Russell quanto a axiomas pode ser resumida da seguinte maneira: ele admite que eles tenham de existir, mas confessa que não os vê com c lareza. Pode delineá-los, mas não enunciá-los. Em 1903, quando Moore publica os Principia ethica, RusseU adere à<; idéias do colega. das quais tornouse um fervoroso defensor, até 1913. quando as abandonou. A partir de 1914, cvm o advento da 1ª Grande Guerra, temas morais voltam a preocupar RusseU, mas aí sob uma perspectiva política mais imediata. É somente em 1922 que ele volta a assumir uma posição filosófica, agora sob o signo da assim-chamada teoria do erro. Num ensaio publicado postumamente, mas escrito em 1922, Russell


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pergunta: há um bem absoluto? A sua resposta é, obviamente, negativa, mas, ao fundamentá-la, ele enuncia uma nova tese, segundo a qual expressões como bom ou mau teriam o mesmo status e o mesmo destino da frase O atual rei da França, o que implica que expressões morais devam ser eliminadas, por meio de uma análise lógica adequada. Portanto, todas as frases nas quais a expressão bom tenha ocorrência primária são falsas e as respectivas negações são verdadeiras. Segundo Russell, nesse traballio de 1922, a proposição fundamental da ética tem a seguinte forma: "Existe um predicado comum a A, B e C, mas que está ausente em X, Y e Z ... ". Ora, qualquer exemplo de frases desse tipo é falso, o que transfonna toda a teoria ética numa infinita seqüência de falsidades. Nesse sentido, a ética seria a antítese da matemática, tal como está apresentada nos Principia. A matemática é tida como uma seqüência de proposições verdadeiras, demonstradas a partir de axiomas lógicos verdadeiros. A ética seria uma seqüência de falsidades, deduzidas de princípios falsos (Russell, 1999-B). Obviamente, como esse jogo proposi.cional é argumentativo, mesmo em 1922, Russell deveria admitir a existência de argumentação moral, embora desprovida de interesse, tendo em vista a falsidade das suas frases. A passagem de Russell pela teoria do erro foi breve, de vez que ele logo abandonou a tese do seu ensaio de 1922. Mas seria apenas em 1935 que ele formularia uma nova posição, a ser mantida pelo resto da sua vida. Tal posição é o emotivismo, ou seja, é a tese de que um juízo ético não teria qualquer conteúdo de verdade ou falsidade, sendo mera expressão, de desejos do agente. Portanto, dizer X é bom, seria o mesmo que afirmar Eu desejo X. Mais tarde, o emotivismo passaria por elaborações sofisticadas, sobretudo nos trabalhos de Stevenson, mas Russell já delimitou claramente essa teoria, a partir de meados dos anos 30. O tom de todos os trabalhos de Russell, nessa sua derradeira fase de pensamento moral, corrobora a percepção de que não haveria verdade em ética e que nenhuma argumentação moral seria possível. Um dos exemplos então aduzidos é bastante significativo: se o seu filho está doente, o amor leva-o a tomar providências, entregando-o ao médico para que a ciência o cure. Nessa simples seqüência de eventos seria absur-


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do procurar qualquer espaço para uma demonsu·ação (Russell, 1999-C, p. 129). Não obstante, duas objeções poderiam ser aqui levantadas contra RusseU: l. Admitamos que um juízo moral apenas expresse desejos. Ora, o agente sabe o que quer, pois conhece a sua mente. Como o próprio Russell afinna (1999-A, p. 54), num tal caso, o agente não pode errar, salvo se interpreta mal os seus próprios estados psicológicos. Mas aí nós teríamos uma curiosa conclusão: um juizo moral não apenas poderia ser verdadeiro, mas ele sempre o seria, salvo em casos excepcionais. 2. Como observa Pidgen, mesmo se juízos morais não forem verdadeiros ou falsos, não está excluída a idéia de argumentação moral. Com efeito, desejos não podem ser verdadeiros ou falsos, mas podem ser satisfeitos ou não. Suponhamos, então, que o agente enuncie uma frase de desejo A. Com o seu awu1io, nós podemos derivar uma outra frase de desejo B, desde que disponhamos de um conjunto de asserções factuais C, no qual se estabeleça que, se A for satisfactível, então B também o será. Portanto, uma ética emotivista, ao menos no sentido de Russell, não tem como escapar da argumentação e, portanto, da racionalidade (Pigden, pp. 133-34).

4. O que nós aprendemos com Sidgwick e Russell Mais de um século nos distancia de Sidgwick e várias décadas nos separam de Russell. Nesse ínterim, a teoria ética evoluiu enormemente, mas, no que diz respeito à questão de axiomas éticos, o assunto parece ter sido deixado tal como foi entregue por aqueles pensadores. Mesmo assim, a leitura desses cantabrigienses, sob a ótica do tema ora tratado, pode trazer-nos algumas üções de interesse: l. Com Sidgwick, nós aprendemos a entender a ética no seu próprio domínio, distinta de outras disciplinas, e argumentativamente constituída. A sua ênfase a respeito dos· axiomas contém um


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apelo à evidência que hoje nós não subscreveríamos, mas que cabe valorizar, no sentido da busca de uma base racional para as nossas argumentações. 2. Com Russell, nós aprendemos a perceber que o ponto crucial para o raciocínio ético está no axioma material e que as nossas intuições a respeito são fortemente falíveis. Negativamente, ao formular a teoria do eno e a tese do emotivismo, Russellleva-nos a perceber que não há escapatória, no que diz respeito à argumentação mora.!. Com todas as dificuldades que o assunto apresenta, a busca de premissas e a derivação de conclusões morais é inevitável, salvo quando preferimos não tratar desses assuntos. Bibliografia Pigden, Charles (ed., 1999). Russell on etlúcs: Selectionsfrom the writings of Bertrand Russell. London: Rç>Ut!edge. Russell, Bertrand (1999-A). "Ethical axioms". In Pigden (1999), pp. 53-6. - . (1999-B). "Is there an absolute good?" In Pigden (1999), pp. 122-4. - . ( 1999-C). "What I believe". ln Pigden (1999), pp. 127-30. Sidgwick, Henry ( 1981 ). The methodv o[ etlzics, ?ll ed. Indianapolis, Cambridge: Hackett Publishing Company (1874).

Nota 1 Cantabrigiense é aquilo que vem de Cambridge (= Cantabrigia, em latim c em português).


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A coleção Rumos da El>istemologia se destina a veicula r pesquisas atuais nesta área de estudos e em domínios conexos. Os textos fornecem uma apresentação crítica, mas também acessível, dos temas enfocados. A coleção procura fornecer subsídios para a formação de novos pesquisadores e para a atualização dos mais experientes, destinando-se l>rioritariamentc a alunos do final da graduação c início da pús-graduação, assim como a seus professores.

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