Anais do IV Encontro de Filosofia Analítica

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John Stuart Mil/ e os Ingredientes da Felicidade

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inteligente concordaria em converter-se em um néscio, ainda que, em troca, desfrutasse de maior satisfação. Outra diferença importante em relação a Bentham é que, para este, os prazeres são todos igualmente valiosos. 8 Em contrapartida, John Stuart Mill defende um utilitarismo qualificado, que emerge como a resultante de um processo de severa auto-crítica e de distanciamento daquele "utilitarismo ingênuo" a que ele aderira em sua juventude. Por "utilitarismo ingênuo" se entende a postura reducionista e simplificadora que pretende que todos os conceitos morais sejam reconstrutíveis utilitaristicamente ou definíveis em termos de prazer/utilidade. O Utilitarismo de Mill, ao contrário, procura contemplar a complexidade das experiências morais e a multiplicidade de valores e normas. Afasta-se em muitos aspectos da versão benthamita da utilidade, a ponto de alguns intérpretes entenderem que ele ultrapassa as fronteiras deste modelo de reflexão ético-política. Pode-se dizer que o utilitarismo de Mill é perfectibilista, pois se apóia no suposto de que o ser humano é suscetível de aprimoramento e deve aspirar seu desenvolvimento e aperfeiçoamento. Não se trata, por conseguinte, de uma ética que se paute por inte~ resses cegos ou por desejos facticamente acolhidos, passíveis, portanto, de serem objeto de levantamento empírico. Como herdeiro da Ilustração, Mill estimula no ser humano o ideal de transcendência e superação das próprias limitações, rumo ao aprimoramento moral. No ensaio Utilitarianism Mill se 8

A este respeito pode-se lembrar que também a obra de Bentham foi alvo de malentendidos e de interpretações equivocadas. A tese da equiparação de todos os prazeres deve - como salientou acertadamente Ana de Miguel AJvarez - ser entendida no contexto do projeto reformista c democrático acalentado por Bentham. A exigência de que todos os prazeres fossem vistos como igualmente valiosos, - ou, como disse Bentham, desde que a quantidade de prazer seja a mesma, fazer poesia ou jogar " pushpin" tem o mesmo valor - assim como aquela declaração, atribuída a Bentham, de que cada um conta como um c ninguém como mais do que um - devem ser entendidas no contexto de sua preocupação em denunciar a existência de iniqüidades e de interesses sinistros de uma minoria em detrimento da maioria da população, com vistas a promover uma profunda reforma social e jurídica. Bentham estava fortemente interessado em que o povo fosse ouvido c tivesse seus desejos atendidos. A maioria da população está obviamente mais afeita a prazeres simples, que exigem menos esforço para serem vivenciados, e é menos sensível à beleza da poesia, cuja apreciação requer um gosto educado. A radicalidade com que Bcntham defendia a democracia o levou a insistir em que nenhum interesse fosse excluído do cálculo utilitarista, nenhum prazer fosse considerado menos nobre ou valioso do que outros. Daí seu famoso dictum : "quantitity of pleasurc being equal, pushpin is as good as poetry." Cf. Ana de Miguel AJvarez, Cómo leer a John Stuart Mil/, pp. 25-26.


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