Mostra de cinema Sokurov - Poeta Visual

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O menor dos paradoxos não é o fato de Sokurov ter vivido os primeiros anos de sua vida “profissional” senão em certo anonimato, pelo menos sem visibilidade pública, mas sim que ele tenha sido elevado – logo ele, tão pouco representativo, tão marginal no momento exato dessa abertura, que na realidade não era a sua – a emblema de um “cinema russo”, do qual passa a ser praticamente sozinho o representante aos olhos do mundo! Esta situação é explicada por uma série de conjunções que se operam sobre seu caso, aliando sua singularidade, seu isolamento e o fato de encarnar uma certa concepção de artista (abolida nos domínios literários e artísticos, cujos mercados integraram rapidamente as individualidades, alimentado-se delas), e com isso, é preciso afirmar, Sokurov respondia, mesmo sem querer, a uma “demanda” social. Num primeiro instante, as novas autoridades tentam se aproximar. A nova direção do Goskino permite que ele retome seus filmes inacabados. Quase todos os seus filmes, rodados entre 1983 e 1987, são datados desse último ano, pois é o ano de sua legalização. São oferecidos a Sokurov postos nas comissões e nos diferentes órgãos profissionais, mas ele recusa todos, pois seu único desejo é continuar seu trabalho com a mesma disposição de antes. É evidente que os posicionamentos de Sokurov, em matéria de estética, se opunham aos dogmas do estreito “irrealismo socialista” que prevalecia na produção soviética, cujos filmes tornavam-se grotescos em função das exigências de cortes, modificações, acréscimos de cenas, planos ou elementos sonoros pelos responsáveis pelos roteiros, em seguida pela direção do Goskino. Exemplos não faltam. Pedia-se a Tarkovski (em O espelho) para atenuar a tristeza que emanava dos planos de cinejornal com crianças espanholas republicanas refugiadas que chegavam à URSS: convinha, pelo contrário, sublinhar sua alegria ao descobrir o país dos sovietes. Recomendava-se a Iosseliani (em Pastoral, 1976) a criação de um clima positivo característico do kolkhoz de hoje. Chegou-se até – em uma carta do vice-diretor geral D. Agafonov ao vice-presidente do Goskino central, B. Pavlenko – a saudar o fato de na versão definitiva de Outono, de Smirnov (1975) ter sido introduzido um passeio na floresta, “segundo as instruções da direção do Comitê de Estado do Conselho dos Ministros da URSS, nomeada para o cinema e para a direção dos estúdios da Mosfilm”, “para dissipar o sentimento que um tempo chuvoso ou desagradável predominasse por todo o filme”: “como consequência a metragem do filme foi aumentada em 48 metros”21.

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Esses exemplos me foram dados, em 1990, por Viktor Fomin, quando da abertura dos arquivos (no quadro mencionado na nota 21).

François Albera

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