Mostra de cinema Sokurov - Poeta Visual

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foses óticas ou digitais que impõem um pedaço de vazio ou um pouco de peso, como a saliência rochosa na saída da casa de Margarida, delicadamente inflada por uma deformação que lhe confere uma presença vertiginosa. Um corpo é assim estirado sobre uma tábua médica; um outro, homunculus, comprimido em uma garrafa; e a própria imagem varia em suas dimensões e luzes porque tudo vem junto, ameaçado ou sublimado de um só fluxo.

Antes do século Conhecemos esta maneira pictural de Sokurov: ela era forte em Mãe e filho (1996), por exemplo, ou em Elegia de uma viagem (2001). Mas a plasticidade da imagem, sua textura, tinha um caráter mais memorial ou mítico e nunca chegava a ser estreitamente ligada às substâncias do mundo, como o que ela representa em Fausto – desde os órgãos que derramam de um cadáver aberto na primeira sequência até Mauricius enterrado sob amontoado de pedras e de distorções na antepenúltima. Se, como indica uma cartela final, Fausto conclui uma tetralogia iniciada em 1999 com Moloch, seria então visivelmente num retrocesso na lógica das matérias. Em Moloch, o bunker no qual Hitler divaga encontra-se empoleirado em um cume massivo e escultural em meio às brumas. Taurus (2000) descreve a agonia de Lenin impregnando a imagem de uma matiz verdosa quase constante, dando à cor uma potência própria ao torná-la mais insistente do que todas as suas delegações provisórias: o verde é tanto da natureza quanto do cadáver. O Sol (2004) evoca os dias que precederam a rendição de Hirohito e a renúncia de seu estatuto divino, isolando-o do caos da guerra, que só irrompe em duas sequências relâmpagos de fornalha e de ruínas. Em algum lugar em seu refúgio claramente construído, enquanto o mundo parece entrar em fusão, o imperador se deleita com a precisão anatômica de um caranguejo observado com uma lupa. Fausto viria antes destas separações, ele descreveria seu acontecer: este fim de ciclo é um início de mundo, que, de acordo com o desejo de Sokurov, transforma a tetralogia em uma espécie de círculo. Qual a relação entre Fausto e os grandes tiranos do século passado, Hitler, Lenin, Hirohito? É difícil de entender, sobretudo num primeiro momento, porque Sokurov não insiste em uma sede de poder que viria satisfazer Mefistófeles, em uma loucura assassina que seria provocada pelo pacto com o diabo. Pacto e danação são apenas detalhes que vêm firmar uma obsessão já, e desde sempre, presente: profundamente, é a separação da natureza que se encontra no coração do mal para Sokurov, tanto a de Fausto dissecando um corpo para procurar a alma, como a de Hitler proferindo ao fim de Moloch que vencerá a morte. A tetralogia termina com

Cyril Béghin

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