Livro Fantastica

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METAMORFOSE


ÍNDICE

1.

CONTO DO DANIEL LANDIN: TÍTULO XXXXX....................................... 2

2.

CONTO DO HUGO MESSI: MANICÔMIO SISTEMA ................................... 5

3.

CONTO DA SÓRIA CELESTINO: A CRISÁLIDA E A ÁGUA ........................... 7

4.

CONTO DO LEON NEVES: NÉVOAS DE SONHO À SOMBRA ....................... 10

5.

CONTO DA NIKELEN WITTER: SOBRE ESPELHOS ................................. 11

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Conto do Daniel Landin: Título XXXXX

O

garoto pulou a cerca e correu alguns metros plantação adentro. Agarrou a cenoura, mas

aquela não era uma cenoura qualquer, não era uma cenoura comum. Seu corpo ficou imóvel, paralisado por uma força sobrenatural. A respiração lenta, as mãos presas à cenoura, a cenoura presa à terra. Uma armadilha cruel. Estrategicamente no centro do terreno, havia uma casa formada por pedras disformes e mucosidade verde e barrenta. Teto feito de palha e gravetos podres, e a porta de madeira soltando tiras de tinta acinzentada. Dessa porta, saiu a bruxa. Um longo chapéu preto e irregular, a pele verde. O nariz comprido e pontudo, o vestido negro e velho. Uma bruxa clássica. Saindo da casa, ela aproximou-se da plantação onde estava o menino e disse: - Veja que surpresa encontro aqui... Uma criança tentando roubar as minhas cenouras! O garoto tremeu, chorou, lutou para se desvencilhar da armadilha... Sem sucesso. - Garoto burro, pego em uma armadilha para coelhos! Malditos coelhos com seu pelo tão branquinho, orelhinhas sapecas, e dentes afiados, destruidores de cenouras! - reclamou a bruxa, simulando orelhas e dentes com as mãos. - Não viu que eu coloquei doces na frente da minha porta, moleque? - Não, eu não vi nenhum doce... - Ele ainda tremia apavorado. - Como não viu? Ali na frente da casa, do lado das alfaces - disse a bruxa indignada. - À esquerda do espantalho? - questionou ele. - Não, menino! Tu és cego? Siga com os olhos o caminho depois do portão de entrada. - Ela apontava e gesticulava irritada. - Você passa os brócolis, passa os repolhos, bem em cima daquela pedra ali, viu? - Agora eu vi... - O menino abaixou a cabeça lentamente e iniciou um choro baixinho. - Por favor, dona bruxa, não me coma não, eu imploro! - Mas você é um ser burro mesmo, não é? Olha essa plantação enorme de legumes aqui! Eu sou uma bruxa vegetariana! Não como carne de nenhum tipo, moleque! Você não consegue ver como a minha pele é sedosa, de um verde charmoso? - Então você vai me libertar? Por favor, me liberte e eu nunca mais... - Não! - interrompeu a bruxa - Eu não vou te libertar! Normalmente vendo as crianças para os ogros que moram debaixo da ponte, mas você está tão magro e desnutrido, que não paga nem o esforço da viagem. - Então por que não me alimenta por alguns dias? Umas sopas de legumes, uns doces, e eu estarei pronto para ser vendido! - Sua fome é tanta assim?! Você comeria uns pratos de sopa mesmo sabendo que o propósito deles é deixá-lo mais suculento para os ogros? - Se eu não comer nada, morrerei de qualquer forma. E, se for para morrer, prefiro que seja de barriga cheia... Por alguns segundos, enquanto encarava os olhos do menino preso ao chão, lavados pelas lágrimas, a essência maldosa da bruxa foi abalada. Seu coração petrificado sofreu uma séria avaria. Surgiu uma rachadura sob o cinza intenso que o envolvia. E por aquela abertura surgiu um vermelho intenso e pulsante. - Crianças, crianças! Só pensam em comer sem parar, com seus dentes devoradores e suas mandíbulas incansáveis! Eu até poderia tentar te engordar, moleque, mas vocês, crianças, são imprevisíveis! “Eu ainda me lembro da minha prima de segundo grau, Claudislene... Pobre Claudislene! Eu dizia a ela: 'Claudislene, pare de comer crianças, Claudislene! Você está ficando gorda demais, Claudislene! Suas veias vão ficar entupidas dessas crianças, Claudislene!'. Mas ela não me escutava, nunca escutou! Aquela obesa construiu uma casa todinha de doces pra atrair mais crianças. Eu falava para ela tratar essa compulsão, tentar uma alimentação mais verde, mas não, ela me ignorava. “Então, um dia, o corvo trouxe uma carta, um pedido de ajuda. Minha prima estava alimentando a um pivete com todo tipo de comidas gordurosas, mas o tal João não engordava. Era frango

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com farofa, bolo de bacon, açaí com paçoca, arroz com Nutella, e o moleque nada! Pobre Claudislene, ela não merecia aquele fim... “Vai que você, ladrãozinho de leguminosas, é igual a esse João. Uma criança com um metabolismo irritantemente invejável! Não vou ficar esquentando minha barriga na beira do caldeirão e gastar toneladas de comida para, no fim das contas, você continuar magro e sem valor! Não, você merece ter outro destino, outra punição! - Que punição pode ser pior do que a fome que já sinto, ou os dentes de ogros cortando a minha pele? - Eu vou te transformar em um sapo! Você vai passar o resto dos seus dias em lagos imundos, comendo moscas e outros insetos! - E soltou uma risada longa, alta e maligna. Então puxou de sua cintura uma varinha negra e comprida, apontando-a em seguida para o garoto. O menino fechou lentamente os olhos, abaixou a cabeça, e ficou em paz. Em sua feição, só calma e serenidade; nos lábios, um sorriso resignado. - Que cara é essa, moleque?! - A bruxa estava indignada com a atitude do menino. - Como você pode ficar tão calmo e feliz se estou prestes a te transformar em um sapo?! - Sapo está bom para mim... - Não, nada disso, ser sapo não é bom! Ser sapo é ruim! É viver em um lago imundo! - Mas existem lagos limpos de água cristalina, e eu serei um ótimo nadador. - Mas vai viver comendo moscas e insetos! - Se virar um sapo, vou ter paladar de sapo, e vou gostar de comer isso. - Mas nunca mais vai poder ver sua família e amigos! - Eu não tenho família, e muito menos amigos. Minha mãe e meus irmãos morreram há dois anos por conta da peste. Meu pai havia morrido antes, na guerra, então fiquei aos cuidados do meu padrasto por alguns meses. Ele batia em mim todos os dias. Daí fugi de casa e passei a morar nas ruas. Eu não tenho ninguém para quem voltar, e provavelmente nunca mais terei. Ser um sapo não parece um destino tão mal assim, não é? Um tremor, e o som de rocha se partindo. O som veio do peito da bruxa. Sua pele parecia menos verde, mais clara e viva. Embora seu rosto mostrasse uma raiva como nunca antes, a dureza da face contrastava com o que ela realmente sentia. As rachaduras abertas nas duras paredes de seu coração eram agora enormes cânions avermelhados. - Pois então eu te transformo em burro de carga! Vou fazer você arar minhas terras noites e dias, sem descanso! - Mesmo um burro de carga precisa comer, e precisa de cuidados para poder trabalhar. Precisa de um local para dormir e não pode adoecer. Assim, só me resta a certeza de que terei mais cuidados, e serei tratado com mais carinho que em qualquer dia dos últimos dois anos. Mais um tremor. E a pele da bruxa era agora pálida como a neve. - Então te transformo em uma lesma! - Lesmas tem suas casas nas costas para morar, e será mais fácil encontrar o que comer. - Então eu te transformarei em uma estátua, um enfeite novo para o meu jardim! - Estátuas não sentem fome, nem frio, nem medo, nem dor. Não sentem saudade daqueles que morreram, nem são atormentadas pela lembrança de dias que nunca voltarão... Nada que você faça comigo poderá me machucar mais do que o mundo já me machucou. Nada pode me fazer chorar mais do que o mundo me fez chorar. Ser uma bruxa não tem significado nenhum nesse mundo. Nada consegue ser mais cruel do que a própria vida. A bruxa desabou aos prantos. Um ruído alto saiu de seu peito. O chapéu pontiagudo caiu ao chão. Seu longo cabelo cobriu todo o rosto. Suas lágrimas regaram a terra e o feitiço que prendia o menino à cenoura foi quebrado. Mas ele permaneceu ali parado, olhando para ela. - Por que não vai embora, moleque? Está esperando o que para fugir? Você está livre, e eu sou uma bruxa que pode transformá-lo em coisas terríveis! Vá embora daqui! - Eu não vou deixar você assim, caída no chão e chorando, todos viraram as costas pra mim, ignoram a minha dor, então sou incapaz de fazer o mesmo com você. - O menino estendeu a mão para a mulher. Ela ergueu o rosto e olhou-o.

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A pele verde agora estava rosada, o enorme nariz adunco tinha um tamanho quase normal. O olhar já não era assustador. Mostrava uma mulher diferente, renovada. Ela estendeu sua varinha, apontando na direção dele, mas nada fez. O menino então sorriu e disse-lhe: - Acho que, afinal, eu bem que poderia transformar você... já pensou em ser uma mãe? Em um mundo onde reina a crueldade, o verdadeiro poder transformador não está em varinhas mágicas.

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1. Conto do Hugo Messi: Manicômio Sistema

N

o caminho, escolhas precisam ser feitas e delas surgem as experiências que nos acompanham,

nos modificam, nos aprisionam... E esta é a história de um garoto, que simplesmente, fez escolhas e seguiu seu caminho. Em uma pequena cidade, havia um garoto que via o mundo de maneira própria. Sabe-se que ele era amigo próximo dos livros e da música e, por influência das muitas horas gastas em mundos diferentes, compartilhando seu tempo com gênios instrumentistas e criaturas fantásticas, tinha algo peculiar em seu modo de pensar. Mas, felizmente, seus pensamentos lhe rendiam escritos interessantes, com histórias próprias, vindas de uma mente que se sentia confortavelmente livre e compreendida. Porém, não demorou muito para que seu mundo começasse a criar as primeiras rachaduras. Era hora de crescer, de ser um interno oficial do Manicômio Sistema. O garoto inocente e de mente exímia voltada para o invisível do mundo, deixou os pais, e partiu. Mesmo se não quisesse, era hora de crescer... As noites tornaram-se mais frias, não havia mais o conforto do próprio lar. O garoto rumava por caminhos desconhecidos, porém cheios de subjetividades estranhas. Não sabia mais no que podia acreditar pelo caminho, pois este não era mais como seu pequeno mundo recém-deixado. O caminho novo era enigmático, as entrelinhas bem estreitas podiam esconder o mal, onde parecia haver o bem ou guardar os segredos justificantes daquilo que parecia totalmente mal... Era sim, um novo caminho. Mas por este o garoto passou sem muitos problemas. À medida que ficava triste, a música do violão de madeira desgastada confortava seus anseios e os livros levavam-no para longe. Quando precisava expressar o que pensava, ouvidos que também seguiam pelo caminho atentavam-se para a pureza do que era dito. O caminho chegou ao fim, bem às portas do Manicômio Sistema... O garoto se inscreveu como paciente e tornou-se um número. Não sabia o porque de estar ali, nem mesmo sabia o que lhe esperava, mas sabia que era necessário ser um interno. Era preciso crescer... Os dias se passaram obscuros quando o garoto percebeu a rotina no manicômio. Em sua mente, as histórias e as músicas começaram a dar lugar a dúvidas e incertezas. Tudo era rápido demais, frio demais, nada fazia muito sentido naquela loucura padronizada, onde todos perdiam suas vidas para tentar ganhá-las. O garoto, com sua mentalidade particular e extensa, não rendeu tão facilmente à insanidade que dominava os pacientes mais antigos do Sistema. E como tinha suas ideias próprias, mesmo com as altas doses de medicamentos de manipulação, começou a ser considerado um louco diferente em meio à loucos iguais. E loucos diferentes eram empecilhos para os governantes do manicômio, pois estes se tratavam de casos que precisavam de tratamentos distintos. O garoto sabia que não queria ser um louco igual. Via que toda aquela realidade destrutiva e sem sentido não lhe cabia, porém era cada vez mais difícil manter-se como queria. Sua música já não estava em harmonia com seus pensamentos. Não havia espaço para seus instrumentos, muito menos tempo para deleitar suas melodias e as dosagens dos medicamentos eram cada vez maiores. Estava ficando difícil resistir aos seus efeitos. Era hora de tomar os medicamentos, hora de crescer... Palavras cheias de significado saíam da boca do garoto, entretanto chegavam dúbias aos ouvidos dos loucos iguais. Isso, aos poucos, atordoava seus pensamentos. Será que realmente tudo o que falava era tão sem sentido quanto afirmavam? Seria ele o verdadeiro maníaco em meio a normais? Não poderia ser... ou sim, poderia... “É hora de tomar os medicamentos”, disse o enfermeiro, em uma grande tevê com apenas um canal sintonizado e comum a todos os internos. “Por quê?”, perguntou por fim, o garoto.

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Um velho igual lhe respondeu: “É preciso crescer.” “Mas e se eu não quiser crescer?”, respondeu o garoto, que já não era mais tão jovem como quando havia entrado no Manicômio. O velho respondeu, novamente: “Essa escolha não existe. Uma vez dentro do Sistema, você deve fazer parte dele, ou nunca será curado e nunca poderá sair...” Com aquelas palavras, o já não tão jovem garoto percebeu que todos ali entravam no Sistema, porque procuravam sair dele em algum momento. Os pobres coitados mal sabiam, que do manicômio só se saía com o fim da vida. Mas os anos se passaram, o garoto já tinha feições de um jovem maduro, porém profundamente marcado pela resistência às doses cavalares de seus medicamentos. Estudava coisas inúteis, decorava textos utópicos sobre a administração do manicômio e jurava fidelidade à figuras que não conhecia. Era realmente difícil manter a música e os livros em seu coração. O jovem, foi visto como uma ameaça ao pudor do sistema, pois este ainda não reagia como esperado ao tratamento. Sua loucura diferente o levou até o pior dos meios de utilizados pelo manicômio. Como era um caso a parte dos outros, o jovem foi levado para a solitária e ali, viu suas perspectivas turvarem-se completamente. Não havia mais ninguém para ouvir sua música, tampouco suas histórias. Os pensamentos já não eram mais compartilhados senão consigo mesmo e aos poucos foram definhando, tornando-se turvos, tênues, confusos demais... Aos poucos o papel outrora cheio de histórias foi ficando branco, sem o que ser escrito, descrito, pensado... A música já parecia confusa, as melodias estavam em desarmonia. O silêncio o ensurdeceu, o escuro o cegou, tudo em seu interior foi se tornando resquícios de uma sanidade abalada. E havia a pequena janela, por onde entregavam a comida, já contaminada pelos medicamentos malditos, que agora pareciam necessários. Durante algumas horas da manhã, ela ficava aberta, permitindo uma visão limitada dos loucos iguais que ficavam lá fora. Pareciam ficar cada vez mais normais. Agora começava a entende-los de forma estranhamente dúbia e impensada. A cada dia, durante aquelas horas em que a pequena janela ficava aberta, o jovem já mais velho, admirava aqueles que estavam do outro lado. Realmente, a hora de crescer chegara, e ele estava crescendo. Um dia a porta de sua cela abriu e o jovem homem saiu para os corredores do manicômio. Podia ver, mas não podia sentir; falar, mas não se expressar; ouvir, mas não compreender. O garoto havia se tornado um homem. O louco diferente se foi e deixou o espaço para o louco igual, pois era hora de crescer. Agora crescido, o que outrora havia sido garoto, vivia a rotina destrutiva rumo à sua cura, pois esta esperança agora havia se tornado sua força motriz. Pobre louco igual, um dia soube, porém esqueceu-se que uma vez dentro do Manicômio Sistema nunca haverá uma cura. Só é liberto de seus muros aquele que tiver, finalmente, deixado a vida...

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2. Conto da Sória Celestino: A Crisálida e a Água

O

convite do mago deixara Sófiher em um conflito interno entre a felicidade e apreensão. A

promessa de evoluir em sabedoria para conduzir seu povo era animadora, mas o preço para atingir esse propósito a desconcertava. As dúvidas e incertezas, acerca daquela jornada tão misteriosa e oculta pelo Vale da Morte, eram aterrorizantes diante de seu ímpeto de sempre tomar ciência, racionalizar e controlar todas as circunstâncias. Foi com esse estado de espírito que a princesa guerreira encontrou-se com os cavalheiros do mago. O sol despejando seus raios sobre a paisagem, bela e quase idílica, permitiu uma viagem encantadora embalada por conversas divertidas. O mago os recepcionou em frente à taberna e deu-lhe um longo abraço. A amizade de muitos anos fez com que ele imediatamente percebesse seu estado. A noite começou a cair quando outras pessoas foram se juntando ao grupo. A lua gibosa avultou-se para vigiar os passos daqueles que eram conduzidos pelo mago através de uma trilha. A princesa guerreira observava e refletia como usualmente fazia. Analisou cada guerreiro até o momento em que se viram diante da pequena entrada de uma caverna. O mago lançou um olhar desafiador e bradou: - A jornada começa agora. Só os bravos, aqueles disposto a desafiarem a si mesmos, conseguirão atingir o prêmio que almejam. As provas trarão ensinamentos diferentes para cada um porque essa é uma experiência que se faz consigo mesmo. Uma luta contra os próprios demônios. Nesse primeiro desafio quem não se sentir preparado para seguir poderá desistir. Mas quem prosseguir irá até o final quando então sairão no terceiro dia. Sófiher não temia desafios e foi a primeira a entrar na caverna iluminada por algumas tochas. Avançou destemida, a passos largos, pelos corredores, sendo seguida a alguns metros pelo grupo. O silêncio se fazia presente, quando pequenos murmúrios, que se assemelhavam aos frêmitos de almas condenadas, foram ouvidos. Das paredes rochosas começaram a sair espectros semelhantes ao das pessoas do grupo, que avançando contra ela, faziam todos os tipos de acusações. Ela seguiu caminhando sem se importar com as palavras proferidas. Sua trajetória em busca do autoconhecimento lhe possibilitou seguir adiante sem se sentir atingida. No entanto, ao olhar para trás viu que muitos membros do grupo estavam sendo encurralados por aquelas alucinações. Foi nesse momento que o espectro de uma das guerreiras parou diante dela e proferiu uma palavra que atingiu seu coração e ela se sentiu fraquejar. Caiu. Lágrimas copiosas começaram a escorrer pelo seu rosto. Olhou novamente para o espectro, e, enxergou nele, sua própria dor. Resoluta, ergueu-se para seguir adiante, e, experimentou, naquele primeiro momento, a cura... As provas seguiram noite adentro e no segundo dia o numero de guerreiros tinha diminuído... A princesa guerreira sentiu um grande pesar pelos que desistiram, e, por aqueles que mesmo tendo permanecido, não davam o melhor de si. Só que agora era sua jornada que parecia acabada. Um conglomerado de pedras impedia sua passagem para a outra câmara da caverna. Só lhe restava refletir sobre sua vida, seu espírito. A frustração e a raiva dominaram seu ser. Foi então que ela se deu conta de como carregava cargas desnecessárias, sentimentos mal resolvidos, medos a serem enfrentados! Tudo lixo a ser reciclado! Quanto material a ser transformado em energia e vitória! Não sobre o mundo, mas sobre si mesma. O que lhe restava senão estar feliz por todos os desafios superados! Os maiores demônios estavam dentro de si e ela os tinha enfrentado e vencido! O que representavam aquelas pedras senão toda aquela energia negativa que ela tinha que expulsar de si mesma? Agora ela entendia porque ao invés de subirem a montanha onde a sensação de estar próxima ao Altíssimo se fazia presente, eles fizeram uma trajetória nas profundezas da terra. Na verdade, aquele caminho árduo, íngreme e doloroso era para dentro de si mesmo. Cada obstáculo vencido representava elevar-se. Ao atingir tal estado de compreensão, sentiu que de suas mãos emergiram esferas azuis. Concentrouse, ainda mais, nas forças positivas do universo, reciclando toda a energia negativa que vislumbrou em seu ser. Revestida com a energia de luz, deu um único golpe que pôs abaixo todas as pedras. Ao implodirem transformaram-se em poeira mágica e seus olhos contemplaram a beleza que se deflorava diante de seus olhos.

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O percurso daquele dia reservou uma bela surpresa. Aquele espaço entre as cavernas estava a céu aberto e uma pequena floresta se formara ali. O canto dos pássaros podia ser ouvido... As flores exalavam um perfume inebriante... O toque dos pés na terra e na vegetação renovava a energia... Sófiher se sentia una com esse universo... Fechou os olhos e respirou profundamente... Sua contemplação foi interrompida pela voz do mago trazida pelo vento: - Meus heroicos guerreiros e guerreiras! Vocês caminham em direção à profundeza do seu ser que é o que leva efetivamente a união com o Ser Supremo. Vocês não estão sozinhos porque eu e todos os seres iluminados estamos acompanhando suas lutas e os desafios. Quero parabenizar Sófiher que realmente tem se desafiado e se mostrado muito valorosa nas batalhas! Muitos outros desafios os aguardam e outras tantas revelações como as que já tiveram. Ajam com sabedoria e discernimento. Observem os sinais no decorrer do caminho. Esse é o meu conselho para o ultimo dia. O que o mago queria dizer com observar sinais no decorrer das provas e agir com sabedoria e discernimento? – perguntou a si mesma. Ela encontrou com uma guerreira e três guerreiros durante a travessia na floresta. A guerreira assumira o compromisso de conduzir o grupo. Sófiher não se sentiu confortável com a situação, mas, resolveu ceder. A noite caiu e eles resolveram dormir. Na manhã seguinte ao despertar viu-se sozinha. Os pertences do grupo estavam ali, porém, eles haviam desaparecido. Inclusive a guerreira que se intitulara líder. Por um momento o receio se abateu sobre ela, mas a vontade de chegar até o final falou mais alto. O que quer que tenha acontecido, ela reuniria o grupo novamente e eles atravessariam aquela mata. O ronronar de uma gatinha chamou sua atenção. Ela estava presa em um emaranhado de plantas porque seguramente quis dar um salto maior do que era capaz. Ao se aproximar, o pequeno animal agiu como se fosse um grande felino prestes a devorar sua presa. A princesa guerreira achou curiosa tal atitude. Libertou-a, não sem antes sofrer arranhões, e a carregou no colo. Mais adiante... Ei-la... Nasce larva e assemelha-se a um verme segmentado e com rudimentos dos três pares de patas. Uma lagarta, que após ter-se alimentado vorazmente até crescer, deixou de se alimentar no último instar, esvaziou o estomago, fixou-se e irá sofrer a ultima muda, da qual surge a crisálida. A princesa guerreira sorri e promete uma visita antes de sair dali. Dois filhotes de bichos preguiça são vistos. Sofiher se aproxima e ambos se lançam em seu colo, não lhe sobrando alternativa, senão deixar a gatinha com mania de tigresa segui-la, e, carregar os dois pequenos animais. Ela ouviu um pequeno ruído e para seu espanto viu que a lagarta que a pouco estava na crisálida, transformara-se em borboleta e tentava arduamente romper o casulo. Seu sofrimento era imenso. Comovida, a princesa guerreira coloca os dois animais no chão e tenta delicadamente ajudar a borboleta a se libertar. A borboleta finalmente se liberta. No entanto, não consegue voar e é acolhida suavemente pela mão da princesa que segue seu caminho carregando os bichos preguiça e a borboleta e sendo seguida pela gatinha. Quando terminou a travessia na floresta o mago apareceu e perguntou: - Você percebe Sófiher onde esta errando na condução do seu povo? Atônita, respondeu: - Atravessei sozinha a floresta. Sequer tive a companhia daqueles que deveriam estar comigo na travessia. - Será que não? – perguntou o mago enquanto deslizava sua varinha – Aí estão teus companheiros. Os animais e a borboleta que ela havia conduzido tomaram a forma dos guerreiros e da guerreira. - Vês agora, Sófiher? Você permitiu que uma guerreira sem condições conduzisse o grupo porque não quis tirá-la da ilusão de que ela era uma gatinha medrosa não a tigresa feroz que pensa ser. Ao invés de forçá-los a buscar a saída você carregou os jovens guerreiros por considerar que eram apenas filhotes sem experiência alguma. Quanto à crisálida. Você destruiu a possibilidade que esse velho guerreiro tinha de renascer. Ele que viveu como a lagarta sendo visto como alguém digno de nojo e desprezo finalmente teria a oportunidade de se transformar num ser humano que pudesse voar. Mas você com esse sentimento de proteção e de querer ser sempre forte e tudo para todos o impediu. Ele passou por uma transformação. Mas ela nunca será completa porque você não permitiu que ele fizesse todo esforço possível para quebrar o casulo. Pois é esse esforço que fortalece as asas para que a borboleta possa voar.

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Eis a resposta do que veio buscar. Agora você será transformada em um animal. Vamos ver se realmente passará pelo seu processo de transformação. Em questão de segundos a princesa se transformou numa águia muito velha e alçou voo para o topo da montanha. Do alto, seus olhos aguçados observam a tudo. Ela vê uma presa e seu instinto animal a induz a ataca-lo, mas, ao fazê-lo, se dá conta de que o bico já não é afiado e mortal e que seu voo se tornou lento. Ferida pelo contra ataque da presa a águia segue para repousar no pico da montanha. As fadas chamam por seu nome: - Sófiher... Sófiher... Tenha coragem... Ou você se renova ou morre... A menção da frase "renova ou morre" a fez lembrar do seu pai... Fez sua alma chorar e soltar um grande grito de dor... Memórias tão vividas... Papai! Papai! Aquela águia está louca? O pai pegou-a no colo. – Ela se renova ou morre - os lindos olhos azuis cintilavam enquanto em versos, ele explicava: A águia ao envelhecer, Vê-se diante de um dilema, Acomodar-se e morrer, Ou renascer arrancando bico e pena... Semelhante é a proposta, Perante a dor e solidão, Renascer é a resposta, Quando não a encontra o coração... Dor tirana e insólita, Como o da águia que se desafia, Certa ao final é a vitória, Para aquele que luta e confia. A dor a dilacerava, corroia, matava e era só o que ela queria... Morrer para estar junto com o pai. As fadas clamavam, imploravam para que Sófiher se permitisse viver: - Sófiher seu povo é o legado que seu pai te deixou. Por isso ele a formou corajosa, sábia, com bom coração e justa. Para que você continuasse a cuidar do seu povo com o mesmo amor que ele cuidou. Ele cumpriu o ciclo dele. Você tem que cumprir o seu. Você não pode morrer agora. Do alto da montanha, a princesa guerreira vislumbrou o pequeno povoado. A dor era inevitável e necessária. Sozinha e sob o olhar cuidadoso das fadas, ela começou a arrancar todas as penas. O silêncio só foi quebrado pelo impacto do bico contra a pedra. Vencida pela dor e pelo cansaço ela adormeceu. Ao despertar, viu-se renascida... Novo bico e nova plumagem... Alçou um lindo voo e retornou para a montanha. O mago a transformou em humana novamente e a convidou a se juntar ao grupo. O velho guerreiro sorriu e foi ao seu encontro. Sófiher estava envergonhada e triste pelo mal que julgara ter causado. Olhando-a nos olhos, o homem disse: - Não se entristeça por eu não ter conseguido fortificar minhas asas... Já estou velho e o simples fato de ter saído do meu estado de lagarta e conseguido virar borboleta já foi uma grande evolução. Para mim faltou o empenho e a persistência para sair da crisálida e voar. Mas em compensação sobrou em você o desejo de me ajudar e proteger. Você olhou para mim quando eu ainda era larva e prometeu voltar para ver minha transformação. Foi daí que nasceu em mim o ímpeto de querer me transformar rapidamente em borboleta e sair da crisálida. Porque você enxergou minha beleza onde muitos só encontraram a feiura. Você enxergou a borboleta mesmo eu sendo uma lagarta. Nunca recebi sentimentos como esses em minha vida. Minha eterna gratidão, nobre princesa águia. A dor que você enfrentou me deu forças para buscar alternativas para voar. Cada um de nós renasceu na proporção da dor que resolveu enfrentar e superar...

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3. Conto do Leon Neves: Névoas de Sonho à Sombra Nome do conto inspirado pelo “Mínimo de Sugestão”, como quis Henry James, obtido por um fragmento do inteligentíssimo conto detetivesco “Arquivo nº6: Além das sombras” de Joe Gore.

N

ão pretendo tecer toda a história e toda transformação a que fui vítima, senão um proposital

breve relato do que me aconteceu; sem falar no fato de que tive de me acostumar a esta metamorfose biológica, reaprender a escrever com a mão que ainda não se transformou de todo. Acho que não me acostumei a este novo corpo – venho pensando em suicídio faz um bom tempo. Meus dedos, os que completaram esta mutação vagarosa e dolorida, transformaram-se em uma espécie de tentáculo ou membro cuja extremidade é uma ponta viscosa e, parece-me, dona de vida própria. Minhas pernas, duas hastes compridas e membranosas com pelos na sola; meu peito repleto de fungos. Meu coração, um tabernáculo de sei qual aberração. Disse vagaroso, mas esta transformação deu-se com certa e espantosa velocidade – se analisado a partir do fato de tê-la percebido há pouco mais de um mês. Recordo (motivo provável de minha doença) que o Exército andou em polvorosa cá no Brasil há cinco meses, aproximadamente; a mídia fez questão de abafar, mas o caso é que, descobri por internet, perdeu-se o controle de um vírus estudado nos laboratórios da ByBrasil. Houve apenas um prejudicado nesta manobra atabalhoada. Naquela noite do dia cinco a neblina forrou minhas propriedades e pareceu invadir, irradiar por entre as paredes uma fumaça inodora que só aos poucos foi engrossando. O ar, apesar disso, não ficou pesado – pelo menos não me pareceu difícil de respirar. Não obstante a estranheza daquela repentina neblina, por não ter ideia quanto a origem daquela bruma tudo me pareceu normal. Por um tempo, tão-somente. Quando, motivado apenas por curiosidade, olhei para fora, vi no lugar da luz da lua uma brancura que não se explica; acho que algo me fez ir até a janela, não sei. Observei pelo vidro que a intensidade daquele fenômeno aumentava de acordo com o passar dos minutos (lá se ia a aparente normalidade). Achei ter visto movimentos estranhos, furtivos, mas naquele momento senti meus olhos pesados, enevoados; caí num torpor cujo sono fora, creio, embalado por mãos inumanas – sei disso porque a última imagem que carrego, uma efígie apenas, foi de mãos ou garras me encostando, voluptuosas. Na manhã do dia seguinte (adormeci ali mesmo, na sala) vi em derredor de minha casa pegadas desproporcionais – pés ou patas dir-se-iam gigantes circundavam-na, displicentes. O próprio dia amanhecera carregando consigo uma luz avermelhada que não se esquece, irritando os olhos de quem vê. Descobri posteriormente que o Exército Brasileiro estava envolvido até o talo com um projeto secreto cujo nome e cuja abominação não sai mais de minha mente. Névoas de sonho. Para piorar descobri, através de minhas pesquisas – não houve nenhum relato no país que se referisse direta ou indiretamente ao fenômeno; que apenas minhas propriedades foram infectadas; malditos aviões. Meu corpo dói. Mas esta dor foi sobrepujada pelo horror em que estou sendo transformado. É minha intenção não deixar terminar esta metamorfose biológica, assim como cessar meu relato. Recuso-me a falar mais sobre; é por demais aviltante esta minha situação. No que estou me transformando e no que serei mais adiante: é por demais contra meus princípios. E aguentar não sei se vale a pena. Estou decidido a acabar com tudo isso.

FIM

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4. Conto da Nikelen Witter: Sobre Espelhos

Foi assim: o menino entrou na sala de espelhos numa tarde branca de inverno. Perseguia uma bola multicor e os guardas o acharam tão gracioso que não puderam evitar um pouco de sorriso. A sala de espelhos é enorme, quase um salão, mas não tão grande, quase uma galeria, mas não tão comprida. É coberta de espelho em três paredes. Naquela em que é possível olhar para fora, para os jardins de noiva, há um espelho entre cada vão de janela. É uma sala linda de se ver, mas poucos gostam de entrar nela. Menos ainda de entrar sozinhos. Só as crianças muito pequenas não têm essas inquietações. É sinal de estar crescendo recear ir à sala de espelhos e de amadurecimento esconder isso o quanto se puder de todos os outros. Só os pequenos e os loucos poderiam amar sem restrições refletir-se tantas vezes quanto era imaginável, até o inimaginável. Só quando a luz começou a diminuir – e o acendedor passou colocando fogo no óleo de baleia dos lampiões – foi que os guardas lembraram. Ninguém vira o menino voltar pela porta em que entrou. Não, com toda a certeza, o menino não saíra da sala de espelhos. Os guardas procuraram, por lá e por toda parte. Nada, nem de menino, nem de bola colorida. A brincadeira virou susto, que virou desespero e, depois, tristeza. Nunca mais se soube do menino. Um tipo de riso seu, porém, pareceu ter ficado dentro da sala. Sei de muitas pessoas que disseram ter ouvido o menino por lá. Alguém, numa festa, jurou ver o menino refletido, olhando os homens de peruca e as mulheres de saia quadrada com um riso nos lábios. Divertia-se o menino. O que era aquela criança no meio dos adultos, perguntou uma dama que ignorava o ocorrido. Mas não havia criança. Não na sala como ela julgara. Só os espelhos podiam saber do paradeiro do menino. O tempo acumulou histórias e quando não era festa já ninguém entrava na sala, fosse sozinho ou acompanhado. Então, até mesmo as multidões, que nunca admitiram o pânico que as festas entre os espelhos começavam a causar, resolveram que os jardins seriam melhores no verão e as salas com altos lambris de madeira muito mais quentes nas noites de inverno. A sala de espelhos foi ficando sozinha e até o riso do menino se foi, depois de tanta solidão. Há quem diga que foi o abandono que transformou tudo, que metamorfoseou o menino em peixe. Porque peixes de calda longa podem nadar sob a superfície dos espelhos d’água e o menino já não se satisfazia apenas com a sala de espelhos, vazia de gentes e de risos. Afinal, nem mesmo a revolução conseguira voltar a encher a sala. Mas nesse dia, também pronto a mudar, foi que o peixe-menino fugiu. Grudou-se no espelho de uma espada e saiu para o mundo. Foi navegando de reflexo em reflexo, indo a todo lugar, ficando mais em uns que em outros. O melhor de tudo é que os peixes são muito mais difíceis de ver do que os meninos. O ruim é que alma de menino não pode virar peixe e, por causa disso, a solidão que o fizera ir além da sala de espelhos não o abandonou. Então, por vezes, os espelhos bruxuleiam como a superfície cristalina dos lagos, fingindo que é a luz que falha sobre eles. Não é não. É o peixe-menino vindo à tona em busca de um amigo. Olhe bem nos próprios olhos e, sob a superfície, verá os olhos do menino-peixe, convidando para brincar.

Revista Fantástica – Primeira Edição – Metamorfose

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