Cariri Revista - Edição 4

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cariri Edição 04

O Mundo para o Cariri. O Cariri para o Mundo

Revista

Geopark Araripe: excursões científicas e turismo sustentável num território de riquezas

José Wilker:

o Cariri íntimo do ator, diretor, produtor e autor cearense

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#caririeditorial

Caro leitor, Encerramos 2011 com a nossa quarta edição nas ruas. Ventos cada vez melhores nos fazem navegar a bons rumos, prósperos destinos. E navegar é preciso. Assim se conquista o mundo, como faziam as caravelas quinhentistas. Muito trabalho e bons resultados. Cada vez mais leitores navegando conosco, cada vez mais patrocinadores prestigiando a maravilhosa aventura de divulgar o Cariri. José Wilker, filho da terra e cidadão do mundo, revelou-nos o Cariri que traz em si, as suas memórias afetivas, sua arte e suas reflexões. Acompanhamos os estudiosos cuidadores do Geopark, mostrando a riqueza de milhões de anos, no sertão que era mar. Viajamos com Freire Alemão ao século XIX, na expedição que levou a um delicioso livro que apresentamos aos leitores.

O mercado imobiliário e os caminhos que se desenham são apresentados e debatidos. Um passeio pela Mostra Sesc Cariri de Culturas, ocorrida em novembro, convida à degustação do teatro, das estéticas visuais, da música e do cinema. Memórias do gosto são docemente contadas no espaço gastronomia. Sérgio Pires acrescenta mais conhecimento ao universo dos vinhos, além de dar dicas de harmonização para o Natal. Prosperidade em 2012, com as bênçãos do incrível prazer da leitura!

Editora-Geral: Tuty Osório

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#caririconexão Por lara Costa

Meses e tweets depois, chegamos a mais uma edição. Parece que a Cariri 03 foi lançada ontem, ou há poucos minutos, tal a velocidade da web. Os comentários, críticas e sugestões de cada seguidor nos transportam para o outro lado. Viramos leitores de nós mesmos. Desejamos, desde já, que amanhã chegue logo, e acreditamos em um mundo de trocas, conexões e informação aprofundada. Que 2012 seja um ano de boas notícias e grandes matérias para a Cariri Revista!

Facebook alô pessoal da Cariri Revista! sou jornalista e viciada em revistas. Boas revistas, claro. e o que é uma boa revista? É aquela que a gente começa a ler e só para quando acaba. e ainda fica esperando a próxima. Foi assim com a Cariri Revista! Comecei com a 3a edição, mas queria ter acesso às anteriores. achei em formato virtual, mas gosto mesmo é de folhear. Como faço? e para assinar? Contem tudoo!! ah, e a matéria sobre a Casa grande pra mim foi uma brisa no coração. linda demais! Parabéns!! Clarisse Castro Parabenizo pela abordagem da diversidade cultural do Cariri na matéria “uma bacia cultural e muitas possibilidades”! e as respostas do economista Frederico lustosa? um show de visão e sabedoria! Parabéns! adorei... verinha torres sensacional todas as edições prezam por qualidade na notícia, além de uma super produção nas fotografias. Parabéns a toda equipe da Cariri Revista. Gilvanildo Ferreira Alves

tweets @Jolaprovitera Joana Laprovitera

encantada com a qualidade da @caririrevista! ainda não conhecia... Parabéns.

@joaoalfredopsol João Alfredo - Vereador em Fortaleza e professor de Direito Ambiental

gostei muito da @caririrevista, q recebi no aerop. de Juazeiro. muito legais as matérias sobre Bárbara de alencar, seu lunga e a Casa grande

@henriquevidal99 Henrique Vidal - Radialista

@caririrevista extraordinária revista!!!! muito boa mesmo!!

@Caririesportes

O Portal do Futebol Caririense

Revista muito bem elaborada e inteligente. Parabéns pela iniciativa ousada de mostrar o que nossa região tem de melhor. Emiliana Fernandes

Envie sua mensagem para Cariri Revista pelo e-mail: contato@caririrevista.com.br, twitter: www.twitter.com/caririrevista ou Facebook: www.facebook.com/CaririRevista.

indicamos aos nossos leitores que se tornem também leitores da caririrevista.com.br/edicao3/ @ CaririRevista

@guiaCariri

Notícias do Cariri

#cariricorrigindo

Na edição 3, o nome da ministra do supremo, ELLEN GRACIE foi grafado incorretamente como Grace.

otima revista essa “Cariri Revista”. Parabéns para equipe de designer e redatores. @caririrevista

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#edição o4 CAPA DESTA EDIçÃO

José Wilker Foto: Rafael Vilarouca EXPEDIENTE

conversa

44

Diretores

Isabela Bezerra Renato Fernandes EDITORA-GERAL

Tuty Osório | tuty@caririrevista.com.br EDIÇÃO DE TEXTOS e redação

Claudia Albuquerque Projeto gráfico e diagramação

Fernando Brito RepORTAGEM E REDAÇÃO

Raquel Arraes Sarah Coelho Roger Pires FOTOGRAFIA

Rafael Vilarouca redes sociais

Lara Costa direção de arte em publicidade

Rubênio Lima Publicidade

88 | 3085.1323 88 | 8855.3013 comercial@caririrevista.com.br REDAÇÃO

redação@caririrevista.com.br www.twitter.com/caririrevista www.facebook.com/caririrevista COLABORARAM NESTA EDIÇÃO

Ricardo Salmito Sérgio Pires Julião JR Antônio Setembrino Camilla Osório 10 CARIRI REVISTA

cultura

64


Desenvolvimento

22 36 gastronomia 60 educação

picotado

12 e 13

FÉ

natureza

34

14

77 80

caririanas vinhos


Wilson bernardo

#cariripicotado

CALDEIRA DO INFERNO Nem bem o sol esquenta o sertão do Ceará e seu Francisco Feijó abre as portas do Bar Caldeira do Inferno. Há 50 anos tem sido assim. Das 7h da manhã às 8h da noite, o Caldeira domina o centro comercial da cidade de Brejo Santo, e não há um só entre os mais de 45 mil habitantes que não saiba apontar a direção do Bar. Pequeno, antigo, cinco portas bem soldadas: o Caldeira do Inferno se esquiniza pela Praça Dionísio de Lucena. De ordinário, o balcão branco vai de ponta a ponta do bar. Cinqüentão, o Caldeira sustenta a fama de espaço saudosista, paragem obrigatória, refúgio de boêmios. Coisa de muita responsabilidade. A chegança de conhecidos e desavisados desnorteia quem tenta acompanhar o fio das dezenas de conversas misturadas, fazendo de seus frequentadores amigos de balcão. “O melhor daqui é minha freguesia. Boto as músicas que gosto: samba, bolero, baião... Fico conver-

Coletivo Café com Gelo

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sando com meus amigos e assim passo o tempo”, declara seu Francisco Feijó. O nome do estabelecimento surgiu da irritação de um juiz de direito. Ao saber que falavam dele, o homem foi até a porta do bar e perguntou: “É aqui nessa caldeira que estão queimando a minha vida?”. Por dentro, o bar se agiganta, feito coração de mãe. Alberga e abarca quem tiver disposição para sentar e jogar um papinho fora. A cerveja gelada é servida pelo proprietário com um sorriso no rosto. Basta puxar assunto para o Francisco se tornar Chico de Sinésio. Afinal, todo mundo é intimo no Caldeira. “Digo que em todos esses anos que estou aqui, nunca teve uma confusão. Zoada tem. Mas zoada tem até em igreja que é proibido”, sentencia seu Chico.

É de ideias que se faz um coletivo. Ideias e oito pernas que viram o Cariri pelo avesso. Rafael Vilarouca, Yasmine Moraes, Allan Bastos e Dukke fazem nos pixels do site Coletivo Café com Gelo (www.coletivocafecomgelo.com) uma pequena revolução. Reinventam o Cariri através de fotografias, poesias e figurinos impactantes. Criado em 2009 pelos fotógrafos Rafael e Yasmine, o Coletivo nasceu do desejo de pular as cercas do sertão e, de uma vez por todas, se expor e mostrar o Cariri para o mundo. Entre tantos dias e poucos anos, como bem frisa Yasmine, o Coletivo cresceu de gente. Ganhou o reforço de Allan Bastos e sua experiência colhida em muitos dias e muitos anos de fotografia. Com Dukke, um sopro de meninice passou a colorir os pixels fotográficos com figurinos fantásticos. Pelos olhos e lentes do Coletivo, o Cariri é jovem, contemporâneo, matreiro. Sem descendentes para cobrar memória ou respeito. Cariri que converge para a virtualidade. Cariri que tem pressa e só tem dívida com o futuro.


Sociedade lírica do sertão

FOTOS: Rafael Vilarouca

Depois de se deparar com o grupo de trabalhadores rurais entoando cânticos de trabalho, o padre Ágio Augusto Moreira passou a alimentar o sonho de fundar uma escola que ensinasse música clássica a trabalhadores rurais. Cinqüenta anos depois, a Sociedade Lírica do Belmonte continua sendo reduto de arte e evangelização. A escola, que fica no distrito cratense do Belmonte, é apontada por muitos como um dos grandes patrimônios culturais do Cariri. Infelizmente, passa por dificuldades financeiras e de reconhecimento.

Zabumbeiros Cariris Há dez anos, quando Amélia Coelho, Evânio Soares, Diego Souza, Haarlem Resende e Rubens Darlan formaram o grupo Zabumbeiros Cariris, tudo era apenas uma brincadeira. Em 2007, quando lançaram seu primeiro CD, “Zabumbeiros Cariris”, a mescla entre tradição e contemporaneidade pasmou o público e demarcou um território próprio na cena musical local. “Conseguimos reconhecimento e boas críticas. Partimos de além-Araripe para o mundo com a bagagem rica em tradição popular e uma leitura do contemporâneo. Conhecemos o verdadeiro valor das coisas do nosso quintal e nelas buscamos inspiração para desenvolver um caminho pessoal”, conta a vocalista Amélia Coelho. Trabalhando com diversas linguagens artísticas, os Zabumbeiros desenvolvem há dois anos um projeto com o Grupo Ninho de Teatro, fazendo a trilha sonora ao vivo da peça “Chariva-

Ananias Sapateiro

Rafael Vilarouca

“Eis como me surgiu a ideia de uma escola de música em zona rural. Passava uns dias de férias em Jamacaru, antigamente Goianinha, distrito de Missão Velha, situado no sopé da serra do Araripe, quando tive a oportunidade de ouvir e ver, pela primeira vez, canções folclóricas regionais, cantadas por camponeses, em pleno julho de 1948. Naquela época, eu era professor de música do Seminário de São José, em Crato”. Assim começa o sonho de um homem que teve um vislumbre.

O sapateiro mais antigo de Juazeiro do Norte tem 91 anos. Ananias Sapateiro, quando fala, cria um brilho nos olhos miúdos, as frases saem sincopadas pelo sotaque carregado, um riso aparece no canto da boca, um chiste na ponta da língua. Ele leva a conversa para onde quer. Nos rastros da memória, fala de quase um tudo que foi acontecimento na cidade. O sobrenome Araújo coloca-o em linha de parentesco com a afamada beata Maria de Araújo. De outro beato, o Zé Lourenço, lembra até das vestes. Na função de sapateiro calçou os pés de quase todos em seus áureos tempos. De tanto fazer sapato, enricou muitas vezes e empobreceu outras tantas. Culpa do baralho e das namoradas. A primeira loja ficava na Rua São Pedro, em Juazeiro – isso pelos anos 40. Chamava-se Sapataria Araújo e recebia clientes de longe. Afinal, quem não gostaria de ter um sapato do mestre Ananias? Nos passos incertos do baralho, perdeu loja, perdeu oficina. Foi trabalhar em garimpo de ouro no Pará. Seis meses depois, retornou a Juazeiro com um quilo de ouro e sequelas de uma febre amarela. A última oficina foi em 1965, na Rua São José, onde ainda hoje reside. Saudades? “Ah! Tenho saudades das namoradas, disso sim eu tenho saudade!”.

ri”, da paraibana Lourdes Ramalho. Em 2011, a convite do Centro Cultural Banco do Nordeste, montaram o espetáculo “Traduções Cariris”, com os músicos Luiz Carlos Salatiel, João do Crato e Abidoral Jamacaru. A primeira viagem internacional veio a convite do Sesc-Ceará e da Universidade de Coimbra, que levou o grupo ao Fórum Mundial de Culturas, em Portugal. “Fizemos dois shows em Coimbra no Campus da Universidade e várias apresentações em lugares pitorescos, como uma capela do ano de 1300. Portugal só veio nos dar mais vontade ainda de continuar em frente”, diz Amélia. Com o novo show intitulado “Candeias”, os Zabumbeiros Cariris mesclam os repertórios de compositores caririenses com os de outros lugares do Brasil – Minas, Brasília, Pernambuco, São Paulo. A ideia é que desse trabalho surja o próximo CD, a ser gravado em Nova Olinda. Tudo muito caririense, é claro.

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#caririnatureza

GEOPARK ARARIPE:

TERRITÓRIO FLUTUANTE EM UM MAR DE RIQUEZAS Por Raquel Arraes

P

assa um pouco das 13h quando a professora Neuma Galvão chega à Escola Municipal 18 de Maio, periferia da cidade do Crato. Na biblioteca, oito meninos e seis meninas, entre nove e treze anos, esperam pacientemente. Depois de cumprimentar a todos, a professora pede que se abra uma roda para os exercícios de sensibilização. E então explica: “Pessoal, hoje vamos falar sobre a importância do Geopark. Para isso vamos confeccionar bonecos de garrafa pet pra montar um teatro com eles”. E dispara a primeira pergunta: “Quem sabe me dizer onde ficam os geossítios?”. Bracinhos se levantam e, um a um, os nomes vão surgindo atropelados: Missão Velha, Nova Olinda, Crato, Barbalha, Juazeiro, Santana do Cariri... Mais uma pergunta: “E quem sabe o que é o Geopark?”. As catorze crianças ali presentes poderiam passar a tarde inteira no jogo de perguntas e respostas sem se atrapalhar. Há meses elas vêm recebendo capacitação de professores da Universidade Regional do Cariri, todos pertencentes ao quadro de funcionários do Geopark Araripe. Não é qualquer capacitação. Ministradas por mestres e doutores, as oficinas têm o intuito de transformar as crianças em “guardiães ambientais”, cidadãos conscientes de seu papel de mantenedores da biodiversidade do planeta. Pela mesma sala, já passaram professores discutindo consciência ecológica, legislação ambiental e o papel do Geopark Araripe como território de proteção da fauna, flora e cultura caririense. Pergunto a duas meninas o que elas entendem quando alguém fala “Geopark”. Ana Vitória, dez anos, fivelinha no cabelo, diz com jeito doce: “O Geopark é um lugar que cuida dos animais, estimula as crianças a cuidar da natureza, do ambiente, das matas, a não queimar 14 CARIRI REVISTA

e não soltar balão”. Thaís Héllen, nove anos, disserta eloquente: “Pra mim é o contato com a natureza, o que você deve aprender com ela. Não pode tocar fogo, porque o que você faz volta pra você. Quando você faz uma coisa boa, a natureza retorna essa coisa boa pra você. A natureza não se vinga. Ela só precisa do que é dela”. A resposta desconcerta. Faço a mesma pergunta ao loirinho Ramon, de 11 anos, que balança ligeiro a cabeça: “O Geopark é um lugar onde tudo é preservado, os fósseis, a floresta. E nesse lugar há professores e professoras que cuidam da biodiversidade caririense”. E ele já teria visitado algum geossítio? “Sim, já visitei os oito geossítios e em cada um ganhei uma experiência. Na cachoeira aprendi que até as coisas do mar precisam ser preservadas. Não tem sentido destruir, destruir e destruir. E quem mais destrói é o homem. Não se contenta com o que já tem, não se contenta com nada. Nem com a Amazônia! Sabia que um terço da Amazônia já foi destruída?”.


Rafael Vilarouca

Pesquisadores ajudam a conservar o único parque nacional

UM TERRITÓRIO DE INCLUSÃO Sob a tutela da UNESCO, a Rede Global de Geoparques é uma imensa teia de proteção que se estende por todo o planeta. O programa tem a missão de influenciar, encorajar e ajudar comunidades em todo o mundo a preservar a integridade e a diversidade dos seus recursos. A ideia é fazer uso desses recursos de forma sustentável e apoiar o desenvolvimento econômico e humano através da valorização do patrimônio e das identidades culturais. Instituída em 2004, em Pequim, na China, a Rede Global de Geoparques é uma parceria única entre instituições governamentais, não-governamentais e comunidades científicas de todo o planeta, atuando sem fins lucrativos e voluntariamente. A intenção é unir forças, aumentando o interesse turístico e científico nos geossítios e, ao mesmo tempo, criando empregos e promovendo o desenvolvimento local.

O trabalho em rede serve para desenvolver modelos de práticas de políticas públicas regionais sustentáveis, definindo normas de qualidade para os territórios que integram os geoparques. Segundo o professor Patrício Melo, vice-reitor da Universidade Regional do Cariri (URCA), fazem parte da rede global os programas de geoparques cujo patrimônio geológico, de biodiversidade e humano tenham apelo global. “Não pode ser uma representação, uma beleza, uma raridade apenas local”. No ranking mundial, a China ocupa o primeiro lugar, com 22 geoparques, a Europa tem 34 parques em 13 países e o Brasil possui um geoparque, sendo o único de todo o continente sul-americano.

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Rafael Vilarouca

Herança geológica no chão do cariri

Se fosse um teste, Ramon, Thaís e Vitória teriam passado com louvor. Espaço de preservação, construção de conhecimento e pesquisa, o Geopark Araripe é isso tudo e muito mais. CIÊNCIA E NATUREZA “O Geopark Araripe nasceu no intuito de reunir informações sobre as riquezas geológicas e naturais da região do Araripe. O conjunto dessas informações, uma vez catalogadas, organizadas, descritas e fotografadas, é encaminhado para o Órgão de Ciência da Terra ligado à Unesco”, explica o professor Patrício Melo, vice-reitor da Universidade Regional do Cariri (Urca). Compreendendo uma área de 3.520,52 km2 da bacia sedimentar do Araripe, região do Cariri, sul do Ceará, o Geopark Araripe abrange seis cidades: Crato, Juazeiro do Norte, Barbalha, Missão Velha, Nova Olinda e Santana do Cariri. Dentro desse território existem porções territoriais menores que se denominam geossítios. Geos­­sí­tios são afloramentos de raridades de importância global sobre o ponto de vista geológico, da biodiversidade, da cultura, da arqueologia e da paleontologia. 16 CARIRI REVISTA

“A Urca se transformou na gestora do projeto Geopark Araripe e para isso teve o apoio do Governo do Estado e do Governo Federal, porque se trata de um projeto de desenvolvimento territorial sustentável. A municipalidade, a iniciativa privada e os órgãos públicos estão envolvidos para fortalecer esse projeto”, completa o professor Patrício. Único geoparque do Brasil, o Geopark Araripe foi criado em 2005 através de uma resolução do Conselho Superior da Urca. Após pleitear o selo da Unesco para o projeto em 2006, numa solenidade em Belfast (Irlanda do Norte), a Urca recebeu parecer favorável e aprovação para a ratificação do Geopark. Em um primeiro momento, de 2005 até 2008, o projeto passou por uma etapa de candidatura, descrição e planos de gestão. De 2008 a 2010 houve um período do aparelhamento orçamentário. Agora, o foco de trabalho está sendo a divulgação do Geopark para as pessoas de todo o Cariri, trabalho este que envolve um conjunto de atividades que se estruturam na educação ambiental, no turismo sustentável e no conhecimento sobre o patrimônio. Exuberante, o Geopark Araripe poderia ser descrito como um manancial inesgotável de riquezas. A máxima não fica descabida ou superlativa por um fato que de tão repetido já se tornou clichê: a bacia sedimentar do Araripe é uma das mais importantes bacias fossilíferas do mundo. Por causa disso, uma procissão de pesquisadores e cientistas de todo o globo chegam aos borbotões ao Cariri em busca de fósseis raros e inacreditavelmente conservados, formações geológicas quase tão antigas quanto a Terra. DE MILHÕES EM MILHÕES SE FAZ UM GEOSSÍTIO “Sem geologês, professor, por favor”, peço ao geólogo Idalécio de Freitas, professor da Universidade Regional do Cariri (URCA). É uma quarta-feira tipicamente caririense. Muito sol, céu azul sem nuvens. Estamos exatamente em uma das extremidades da cachoeira de Missão Velha, um afloramento impressionante composto por rochas negras, imensas, polidas e re-


Rafael Vilarouca

luzentes. O som da água se precipitando sobre as rochas domina o ambiente. A queda d’água e as piscinas que se formam em seu entorno, de tão lindas, acabam sendo um problema para quem vem sem um traje de banho apropriado. A impressão que fica é que a queda d’água foi esculpida por dentro da terra até vir à tona, o que não é de todo errado. O professor Idalécio explica que a rocha que vemos é diferente das demais porque foi formada muito próxima ao assoalho da bacia do Araripe, sendo assim mais dura e fragmentada. “Essa formação antecede a origem da bacia do Araripe. Porque a bacia do Araripe é do período Mesozóico, o que significa uns 145 milhões de anos. Essa cachoeira que você está vendo tem em torno de 400 milhões de anos, época em que os continentes americano e africano ainda eram um só”. Deparar com artefatos tão antigos causa uma profunda sensação de reverência. Quatrocentos milhões de anos depois e o passado se ergue absoluto, imemorial, debochando da transitoriedade da vida. O professor continua a explicar que afora a sua importância para o entendimento da formação da Terra, a cachoeira é pródiga em histórias do passado caririense. “O homem que vinha de Aracati e do Icó vinha seguindo os leitos de água, e o rio era perene nessa época. Então se fala muito em batalhas que se deram aqui entre o índio e o homem branco”. Palco do primeiro aldeamento de índios cariris, a cachoeira possuía um valor mágico para as tribos. Era ali que se refrescavam, depois de dias andando em marcha pelos sertões, e nas paradas realizavam rituais para honrar a queda d´água. Tanta beleza e história juntas não pouparam a cachoeira de depredações. Segundo o técnico agrícola Aluísio Silva, há alguns anos a cachoeira foi dinamitada pela esposa de um fazendeiro dono de vastas terras em Missão Velha. O motivo pífio foi o aborrecimento gerado pela insistência da população em se banhar nas suas águas. Atravessando a ponte, uma vegetação de cactos se distingue junto à água. O solo, duro demais para ser perfurado, impede o crescimento de uma vegetação frondosa. Ali, o professor Álamo Feitosa, coordenador

Guardiões ambientais em formação

do Geopark Araripe, indica um caminho em meio aos espinhos. “Tenho que lhe mostrar algo”, fala já apontando para o chão. De começo não faz muito sentido: apenas veios esculpidos na pedra. “O que é?”, indago. “Icnofósseis. Túneis de vermes”, responde prontamente. A visão é inacreditável. Após 400 milhões de anos, os túneis estão totalmente à vista. “Os vermes que aqui habitavam faziam esses túneis para se locomover”, explica o professor. Antes de irmos embora, Álamo lembra de algo importante. Embrenhando-se novamente no matagal o professor desvenda outra cena inacreditável. “Olha só no que a cachoeira ia se transformar”. O formato não engana. Paralelepípedos. Dezenas, escondidos pela vegetação já crescida. “É para isso que serve o Geo­park, para não deixar que a destruição aconteça. Quando chegamos aqui a retirada das pedras já tinha destino certo. Empresários e prefeituras da região. É difícil colocar na cabeça das pessoas que não é porque elas possuem uma terra que podem explorar de qualquer jeito”, pontua o coordenador. UMA FLORESTA PETRIFICADA A alguns quilômetros dali, uma placa no meio da rodovia CE 295 indica o próximo destino: Floresta Petrificada do Cariri. Irrequieto, o professor Idalécio não esconde o prazer de falar sobre a floresta. “Fiz mestrado sobre ela”. Após uma caminhada em que vemos muitos seixos pelo chão, o professor aponta. “Olha lá, tudo isso é tronco”. E não há dúvidas. A casca dos troncos ainda mantém a forma. Alguns deles nem parecem tão antigos, mas na verdade carregam 70 milhões de anos nas “costas”. CARIRI REVISTA 17


A floresta petrificada se formou de uma copiosa floresta original, composta por pinheiros, araucárias e sequoias. Na época, pequenos rios cortavam a região, constituindo o que se chama de leque aluvional. Chuvas torrenciais que assolavam a região eram responsáveis por enxurradas que arrastavam pedras e árvores. Na medida em que a chuva diminuía, os troncos das árvores se depositavam nos leitos dos rios e iam sendo recobertos pelos sedimentos. “Isso foi no final do Jurássico, então começa outro período diferente, o Cretáceo, mais seco, mais quente... Quando era seco, era muito seco. Quando era chuva, era muita chuva. Isso deu condições futuras para que se formasse um lago, e esse lago entrou em contato com o mar. Isso aqui é 40 milhões de anos mais velho que os peixes do Araripe. Quando esse material já era fóssil, os peixes estavam nadando”, explica Álamo. No processo de fossilização, as moléculas de celulose e lignina que formavam a parede celular dos troncos foram sendo substituídas por óxido de silício e óxido de ferro. “É por isso que ele mantém a forma, mas não a estrutura química. Então aparentemente é um tronco, mas é um tronco dez vezes mais pesado do que se fosse um tronco de madeira”, esclarece o professor. “Visitei a Ilha de Lesbos, na Grécia, sabe? Lá eles se ufanam da floresta petrificada deles. Movimentam por ano mais de 50 milhões de euros através do turismo científico. A nossa tem 70 milhões de anos”. A frase do professor para no ar. E nem precisa ser completada para entendermos que a Floresta Petrificada do Cariri não anda recebendo a atenção devida. Uma evidência que o internauta curioso pode conferir na tela: no item “Missão Velha” da Wikipédia, em plena seção “Atrativos Turísticos”, não há nem sinal da Floresta. GEOPARK NA PONTA DO CINZEL A garota trabalha em um fóssil. Devagarzinho ela retira o que há de sedimento para deixar o que realmente importa, o peixe que se revela praticamente intacto. Trabalho rotineiro no Laboratório de Paleontologia que fica na sede do Geopark Araripe, no Crato. Em nada se parecendo com o expedicionário que acompanhou a reportagem na visita aos geossítios, Álamo Feitosa debate com a aluna a espécie do fóssil que ela tem em mãos e se põe à vontade com calça jeans e camisa leve. “Aqui é que começa o trabalho de verdade”, diz o professor, que aponta para as centenas de amostras fósseis em cima das mesas. Eles são provenientes 18 CARIRI REVISTA

EM CADA SÍTIO UM TESOURO Não precisa ser cientista para constatar. Em cada um dos nove geossítios que formam o Geopark Araripe o visitante se depara com duas flagrantes comprovações: a inigualável concentração de riquezas e a inacreditável diversidade geológica e cultural dentro de uma só região. Na cidade de Missão Velha, o principal geossítio é a velha cachoeira, um cânion com uma queda d’água de 12 metros. Durante o inverno a cachoeira se torna a grande atração da cidade. E no verão, quando suas águas diminuem, pode-se ver icnofósseis, que são registros da passagem de animais pré-históricos encravados em rochas do período Devoniano. Além disso, encontramos todo o contexto da história dos primeiros habitantes da região do Cariri. Também em Missão Velha, outro

da primeira escavação controlada feita no interior do Nordeste, no município de Araripe, distante 40 km do Crato. “Na escavação encontramos bons exemplares de peixes e camarões e estamos descrevendo excelentes e novas espécimes de plantas. Isso fora a asa de pterossauro, que ainda vai levar de oito meses a um ano para ficar pronta”. O objetivo do laboratório é basicamente produzir conhecimento sobre o Geopark Araripe e formar paleontólogos que deem andamento aos estudos. “Aqui a gente discute parâmetros, levanta hipóteses, testa uma por uma. O pesquisador é meio fanático. Você quer ver o fim daquilo. Mas tem que ter a consciência de que trabalho terminado não existe na ciência. É como levantar um iceberg: tem a ponta, mas 90% está pra baixo e vem alguém pra levantar”. E não foi pouco o que os estudos capitaneados pelo laboratório já revelaram. As pesquisas paleontológicas em torno dos fósseis são as de maior visibilidade, afora isso os ciclos de mortandade na região, já identificados, mostram que já havia períodos de seca no Nordeste de 110 milhões de anos atrás. Pergunto a Álamo qual o seu maior sonho, e ele responde de pronto. “Formar dez doutores para dar continuidade ao trabalho feito aqui. E se cada um formar outros cinco, posso morrer sossegado”.


geossítio é a Floresta Petrificada do Cariri. Trata-se de uma antiga floresta de pinheiros, com troncos fossilizados por diversos eventos geológicos. É um geossítio de pesquisa com trilhas para observação. Já na cidade de Barbalha há o geossítio Riacho do Meio, que mostra a riqueza da biodiversidade da floresta de mata úmida, com a presença dos animais endêmicos da região, como o soldadinho do Araripe, além do patrimônio histórico material e imaterial do município. Em Juazeiro do Norte, o geossítio da Colina do Horto não só é um grande centro de romaria e peregrinação como também detém em seu entorno rochas graníficas muito raras. É ao mesmo tempo um sítio de pesquisa sociológica, antropológica e geológica, além do grande apelo turístico, com destaque ao caminho do santo sepulcro. Ainda em Juazeiro, todo o roteiro da fé

que envolve o Memorial e o Museu Pe. Cícero, além do artesanato em cerâmica, couro e madeira, integram o mesmo geossítio. No Crato o geossítio do Rio Batateiras está situado entre o trecho da Floresta Nacional do Araripe e o corredor ecológico que integra o sítio Fundão. O geossítio se destaca pela abundância de suas águas e pelos fósseis que emergem das rochas. Tem um aspecto mitológico, por fazer parte das lendas e mitos dos índios cariris. Já na cidade de Nova Olinda encontramos o geossítio da Ponte de Pedra, um cenário mitológico e arqueológico extraordinário que também conta um pouco dos nossos antepassados índios. Único geossítio que não está aberto à visitação, o geossítio Ipubi, a 2 Km da cidade de Santana do Cariri, é um afloramento de folhedos escuros extremamente frágeis onde há a

insurgência de fósseis. Dedicado exclusivamente a pesquisas científicas, ele guarda afloramentos de gipsita, pedra branca e folhedos escuros que remetem à existência de jazidas de petróleo na bacia sedimentar do Araripe. Em Santana do Cariri há o geossítio Pedra Cariri, uma das minas de exploração de calcário laminado aberta à visitação. Na mesma cidade podemos visitar o sítio Cana Brava, onde fica o Parque dos Pterossauros. É onde estão os principais achados fósseis dessa espécie. Os fósseis encontrados ali são depositados no Museu de Paleontologia da URCA, o carro-chefe do Geopark. Em Santana também há o Pontal da Santa Cruz, ponto estratégico de observação da paisagem de todas as etapas de formação da Chapada do Araripe, que vem se consolidando como um sítio de interpretação da natureza.

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#cariridesenvolvimento

UM GRANDE CANTEIRO DE OBRAS

N

o Cariri, o universo que movimenta o mercado imobiliário vem se transformando numa corrida com muitos participantes, alta velocidade e promessas de grandes recompensas para os que chegam à reta final. A relativa estabilidade econômica do país, a elevação do poder de compra da população e as facilidades oferecidas pelo governo – com destaque para o programa Minha Casa, Minha Vida – provocaram uma confiança jamais vista no mercado. O triângulo Crajubar concentra o grosso dos investimentos, com a liderança isolada de Juazeiro do Norte, que emprega a maior parte da mão-de-obra da construção civil, hoje calculada em 8.000 trabalhadores. A demanda reprimida pela casa própria e a chegada de novos moradores na região – atraídos principalmente pelas vagas nas universidades e os empregos Rafael Vilarouca

O boom do mercado imobiliário gera obras na região do Cariri

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da indústria calçadista – são alguns dos ingredientes que fermentaram a massa e ajudaram a compor um bolo cujo preparo começou há mais de uma década. “Temos uma longa história no ramo da construção, mas só trabalhávamos com obras públicas. De 2007 para cá, começamos uma nova frente. Somos recém-nascidos no mundo da incorporação. Por obra do destino, começamos no momento certo e no local adequado. O mercado estava começando a ascender e hoje está sem dúvida em franca expansão. O centenário de Juazeiro do Norte veio coroar esse momento de efervescência e ebulição, que vem sendo percebido há pelos menos onze anos”, calcula Patrícia Coelho, superintendente do Sindicato da Indústria de Construção Civil-SINDUSCON e diretora administrativo-financeira da CRC, uma das empresas pioneiras de Juazeiro na área de construção. Apesar de serem o elo mais visível da corrente de produção, as construtoras não são as únicas favorecidas pelo horizonte que se descortina. “A construção civil é a maior geradora de empregos do país. Funciona como uma cadeia produtiva, influenciando diretamente outros setores da economia: insumos, máquinas, transportes, distribuidoras, assistência técnica, serviços de apoio e execução – do mestre-de-obras ao arquiteto, do engenheiro ao eletricista”, pontifica Hélder Callou, presidente da Atacon, que comercializa materiais de construção para dois segmentos principais: o cliente que quer reformar ou construir a sua casa e os construtores grandes ou intermediários. “Nos últimos anos, não há como ignorar tantas transformações: a região ganhou equipamentos mais sofisticados, como shopping centers, prédios comerciais, balcões industriais, condomínios horizontais e verticais, além de casas mais simples em grande número”, prossegue Hélder. Um dos maiores e mais





Rafael Vilarouca

Juarez, da Caixa Econômica: o déficit habitacional ainda é alto

comentados empreendimentos ainda está começando. São duas torres – uma residencial (com 64 apartamentos e duas coberturas) e uma comercial (com oito lojas no térreo e 234 salas) – cada qual com 14 andares, numa área vizinha ao Ginásio Poliesportivo, o Hospital Regional e o Cariri Shopping. Para os empresários do setor, trata-se de uma temporada de acordos e prosperidade, após um longo período de vacas magras. “Há uns 20 anos, tivemos um momento perverso para a construção civil, na época do BNH, quando a inflação era altíssima e nós ficamos sem fonte de financiamento para a sociedade. Foram mais de dez anos sem financiamento, o que prejudicou todo o país”, recorda o gerente-geral da Caixa Econômica em Juazeiro, Juarez Domingos da Silva Filho, lembrando que hoje o déficit habitacional brasileiro chega a oito milhões de moradias – 75% das quais concentradas na faixa de renda que vai até três salários mínimos. Essa é a faixa prioritária do programa Minha Casa, Minha Vida, que em 2012 inaugura em Juazeiro um condomínio próximo ao aeroporto, com 1.280 unidades residenciais, abastecimento de água, esgotamento sanitário e toda a infraestrutura exigida pelo Governo Federal. “O município tem que entrar com uma contrapartida, por isso estamos construindo no entorno uma série de equipamentos que vão atender os futuros moradores: calçamento, creche, escola, iluminação, drenagem...”, enumera o Secretário de Infraestrutura de Juazeiro do Norte, Rafael Apolinário. Ele lembra que em tempos passados houve quem aprovasse loteamentos sem a infraestrutura básica, o que já não acontece hoje. Atribui esse antigo desatino a uma política pública cruel aliada a um crescimento urbano desordenado – coquetel indigesto pelo qual ainda se paga as consequências. Ponderando que os 26 CARIRI REVISTA

tempos são outros, enfatiza o acelerado crescimento da região e a busca por melhores áreas. “Hoje, em Juazeiro, os investimentos em terrenos estão super­ aquecidos. Você compra um loteamento e dali a um ano estará valendo o dobro”. Embora o secretário Rafael Apolinário considere que nunca houve um momento tão efervescente quanto este no setor imobiliário, o empresário e deputado Manoel Salviano – responsável por grandes obras a serem inauguradas em breve na região – diz que ainda há muito o que acelerar. “Passamos tempo demais parados, agora entramos numa boa fase. Digamos que estávamos a 10 km e hoje vamos a 40 km por hora. Não é uma imensa velocidade, mas é melhor que antes. Porém, queremos chegar a 80 ou 90 km. Não alcançamos o ápice, mas ainda temos os próximos dez anos pela frente”. ONDE TUDO COMEÇA Os envolvidos na imensa rede do mercado imobiliário são unânimes em apontar a alavanca que deu um impulso extra às obras na região do Cariri: o polo universitário. A Faculdade de Medicina de Juazeiro do Norte (FMJ) foi a primeira a oferecer ensino médico privado no Ceará, tendo iniciado suas atividades no ano 2000. “Ao ser implantado em Juazeiro, o curso de Medicina gerou uma enorme convergência de pessoas de todo o Brasil para o Cariri, pois há grande demanda e pouquíssima oferta nacional de faculdades na área. Isso acarretou uma poderosa injeção de recursos financeiros, porque os alunos são pessoas de alto poder aquisitivo, que consumem, vão ao supermercado,

Rafael Vilarouca

Rafael Apolinário: atenção à infraestrutura


Rafael Vilarouca

Salviano: fôlego para os próximos 10 anos

compram em farmácias, usam automóvel... Enfim, o dinheiro começou a circular na cidade”, recorda a empresária Patrícia Coelho, da construtora CRC. Depois da instalação da FMJ, foi a vez da Universidade Federal do Ceará (UFC) oferecer ensino médico público e gratuito em Barbalha. “Com a chegada dos cursos de Medicina, houve mais investimentos em

UM TETO PARA CHAMAR DE SEU As obras estão adiantadas e os apartamentos logo serão entregues aos novos moradores – para os quais o sonho da casa própria ainda seria uma aspiração longínqua, não fosse o programa Minha Casa, Minha Vida. Localizado próximo ao aeroporto de Juazeiro, os blocos de apartamentos estão distribuídos em quatro condomínios, que somam 1.280 unidades. As obras devem terminar no início de 2012 e estão sendo tocadas pela Construtora Raimundo Coelho (CRC), mas os resultados envolvem os esforços de várias instâncias governamentais, além do apoio da Caixa Econômica. “Existem alguns pré-requisitos para participar do programa. Nós fazemos a seleção das famílias, que devem ganhar até três salários mínimos. Depois entra a Caixa e a escolha final

hotéis, pousadas e infraestrutura urbana. Um marco, sem dúvida. Passamos a ter uma maior valorização tanto dos terrenos quanto da área construída”, detalha o deputado e empresário Manoel Salviano, acrescentando que a demanda ainda é maior do que a oferta – “por isso espero que os investimentos só cresçam”. Hoje as instituições públicas e privadas oferecem, juntas, mais de 50 cursos de nível superior somente em Juazeiro do Norte. E em breve a região vai abrigar a Universidade Federal da Região do Cariri (UFCA) – conforme prevê o programa de expansão das universidades federais no país, sob responsabilidade do MEC. Outras instituições de nível superior são a Faculdade Leão Sampaio de Ciências Aplicadas, credenciada em 2001; a Faculdade Paraíso (FAP), há mais de quatro anos em funcionamento e o Campus Avançado de Difusão Tecnológica da Universidade Vale do Acaraú (UVA). “Pode-se dizer que a educação foi o grande motivador da construção civil em nossa região”, resume Salviano. Patrícia Coelho arremata: “Nós somos vizi-

dos participantes”, explica o secretário de Infraestrutura, Rafael Apolinário. De acordo com a Secretaria de Habitação de Juazeiro, o déficit habitacional do município é de 12 mil famílias. A maioria delas situa-se na faixa de renda entre 0-3 salários mínimos, e muitas ocupam áreas de risco, como Tiradentes, João Cabral, Limoeiro, Timbaúbas, Antônio Vieira e Triângulo. No Crato esse déficit é de 5 mil moradias e envolve famílias com o mesmo perfil – chefiadas por mulheres de baixa escolaridade. “O programa Minha Casa, Minha Vida tem a grande missão de diminuir de forma drástica esse déficit, priorizando as famílias de baixa renda. No Brasil, em cada grupo de mil pessoas, 750 ganham até três salários mínimos, estão esta é a nossa faixa prioritária”, expõe Juarez Domingos da Silva, gerente da Caixa Econômica, que tem uma estrutura montada dentro da própria agência para atender as demandas de habitação. Segundo ele, os interessados que preenchem as exigências básicas do programa passam

a dispor de uma série de facilidades. “Em Juazeiro, o benefício que o governo dá para cada família comprar sua casa chega a R$ 17.000. É um subsídio que varia de local para local. Quanto menor a rendimento, maior o subsídio – ele é inversamente proporcional à renda do cidadão. O restante da moradia é financiado a longo prazo”, detalha Juarez, que não duvida da importância de continuar o programa. “O Minha Casa, Minha Vida teve início em 2009, com a meta de entregar um milhão de moradias até 2011, em todo o Brasil, mas essa meta já foi batida há muito tempo. Já estamos entrando na segunda etapa do programa”. Em Juazeiro, a construção dos quatro condomínios Ten. Coelho (I, II, III e IV), na área do aeroporto, está fazendo circular R$ 52 milhões na economia local, tendo criado mil empregos diretos e gerado quatro ou cinco vezes mais de empregos indiretos. São números que robustecem a economia, mas, principalmente, são possibilidades que deixam de ser sonhos. CARIRI REVISTA 27


nhos de vários estados nordestinos. Em Pernambuco, muitos pais optam por mandar seus filhos estudarem aqui ao invés de Recife, já que, dependendo da cidade, fica mais próximo para eles. Além disso, temos mais tranquilidade e segurança que as grandes capitais. Sendo assim, Juazeiro se transformou num centro de abastecimento, como aliás tem sido desde o início da sua história. Só que agora não se trata só de um centro comercial, mas também de educação e de saúde”. OUTROS FATORES DO BOOM Primeiro do gênero no interior cearense, o Cariri Shopping foi inaugurado em 1997 e é outro marco importante citado pelos empresários. Depois de 14 anos de funcionamento, está dobrando de tamanho, com obras que movimentam R$ 50 milhões e geram 1.300 postos de trabalho diretos e indiretos. A ampliação, feita em etapas, transformará o local no maior shopping do interior nordestino, com quase 200 lojas. “O Cariri Shopping trouxe mudanças interessantíssimas no conceito de ambientação, conforto e climatização, valorizando a área em que foi construído”, diz Patrícia. Além do que já se falou, Hélder Callou, da Atacon,

destaca a força da indústria de calçados como impulsionadora do boom imobiliário – ela cresce, emprega mão-de-obra e atrai novos moradores para a região. “Essas pessoas produzem aqui, vendem fora, trazem o dinheiro e investem no Cariri, comprando moradias, automóveis etc”. Na mesma pisada, Salviano acrescenta: “Houve um tempo em que o maior mercado imobiliário de Juazeiro era na Rua São Pedro, especialmente no setor comercial. Depois houve a instalação do mercado do Pirajá, atraindo movimento para aquela área também. Hoje outros pólos estão se criando em volta do Atacadão, Zenir, Walmart, Hiper Bom Preço e outros”. Percebendo na própria porta a movimentação maior de clientes, Hélder Callou retoma: “Nossa empresa tem seis anos, sendo que nos últimos três a demanda por material de construção aumentou consideravelmente, algo em torno de 70%. E as pessoas estão mais exigentes. Querem um piso melhor, uma cerâmica de mais qualidade, uma porta diferenciada, uma fechadura com design... Tudo isso com bons preços”, diz, ao comentar que o número de lojas revendedoras de material de construção subiu bastante. “Tem gente de Fortaleza vindo se instalar aqui”. Rafael Vilarouca

Helder Callou: 70% de aumento nas vendas 28 CARIRI REVISTA


Rafael Vilarouca

INFORMALIDADE E ESCASSEZ DE MÃO-DE-OBRA

Patrícia Coelho: é preciso crescer de forma estruturada

É natural.O mercado imobiliário é um setor que inevitavelmente tem que acontecer depois de alcançado um conjunto de êxitos e benefícios em outras áreas. Quando há mais gente, é necessário mais casas, mais centros comerciais, mais escolas, mais estradas e vias de acesso. Não à toa, a construção civil é um dos setores que mais empregam em todo o mundo – e o que é importante: absorve mão-de-obra de baixa escolaridade, oferecendo oportunidade de trabalho a pessoas de baixo poder aquisitivo. Há algum tempo se propala o boom imobiliário caririense, com todas as suas conseqüências boas e nefastas. Muitos apontam a informalidade da mão-de-obra como o grande gargalo da construção civil, enquanto outros lamentam o movimento rumo a uma crescente especulação sobre os valores dos terrenos e imóveis. Por outro lado, há grandes empresas de fora se instalando na região. O aeroporto de Juazeiro, com oito voos diários, atende o turismo religioso, de negócios e ecológico, suprindo as regiões Centro Sul do Ceará, Noroeste de Pernambuco, Alto Sertão da Paraíba e Sudoeste do Piauí. É de lá que saem os homens de negócios que procuram novas oportunidades no Cariri. REFORÇO QUE VEM DE LONGE A LC Imóveis investe no Cariri desde o começo de 2009, quando o diretor comercial Luciano Cavalcante Neto foi atraído pelo decantado potencial da região. “Nós fomos para Juazeiro do Norte para vender um empreendimento de Fortaleza para os clientes do Cariri. Colocamos um stand no Cariri Shopping por dois meses e pudemos sentir a necessidade que os clientes tinham de um serviço imobiliário de qualidade.

Os números são controversos. Dados do Ministério do Trabalho referentes à variação do emprego formal em 2009 apontam somente 2.492 trabalhadores formalizados na construção civil de Juazeiro, Crato e Barbalha. Já a flutuação do emprego formal até agosto de 2010 registra 1.801 trabalhadores – ou seja, houve uma diminuição em relação ao ano anterior. No entanto, só na cidade de Juazeiro, o número real de trabalhadores – considerando formais e informais – chegou a 7.500 em 2009. “Em 2010, acreditamos que esse número tenha saltado para 8.000 na região. Veja que quando falamos que o número é referente à região, na verdade estamos nos referindo quase que só a Juazeiro, já que é aqui que se concentram os projetos e construtoras”, esclarece a empresária Patrícia Coelho, superintendente regional do SINDUSCON, órgão que está fazendo um amplo mapeamento dos canteiros de obras da região. Ainda incompleto no fechamento dessa edição, o mapa aponta a existência de 109 construtoras em Juazeiro do Norte, conforme o cadastro de 2010 do CREA. “Você vai ver que no total fecha 121 em toda a região. Mas dessas, há 15 ativas realmente, que se dividem entre Juazeiro, Barbalha e Crato”. O SINDUSCON tem muito trabalho pela frente. “Além da escassez de mão-de-obra qualificada, a questão da informalidade é o câncer do nosso setor. As prefeituras, as secretarias de obras, os órgãos fiscalizadores precisam se articular melhor. Queremos que o mercado cresça de forma estruturada, planejada, e se não for com união jamais conseguiremos isso”, conclui Patrícia.

Nesse período, conhecemos alguns construtores da região, lançamos alguns empreendimentos e a motivação foi imediata. Nosso desafio é desenvolver bons projetos junto a grandes parceiros da região do Cariri”. Em abril de 2012, a empresa completa três anos de atuação na região, tendo concluído com êxito a comercialização de quatro projetos junto com a CRC, alcançando 100% de vendas. “Mais do que resultados financeiros, o grande ganho sem dúvida foi a parceria e a amizade com as pessoas. Ganhamos a confiança da sociedade e dos grandes formadores de opinião, isso é muito gratificante, pois mostra que nosso trabalho está sendo reconhecido”. Agora Luciano se prepara CARIRI REVISTA 29


para trabalhar no lançamento de dois condomínios de apartamentos e um condomínio da casas duplex, todos na Lagoa Seca, bairro nobre de Juazeiro. Outro que veio de fora foi Aristarco Villarim, diretor-presidente da construtora ICH, que trabalha com incorporação e construção de hospitais. Paraibano de Campina Grande, ele veio acompanhar auditorias em algumas obras e acabou se instalando no Cariri. Seu primeiro projeto em Juazeiro foi o Hospital Doctor´s, que desenvolve uma nova concepção de gerência hospitalar, com 35 médicos unidos em sociedade. “Quebrei um paradigma gigantesco aqui na região. Quando cheguei, todos diziam que esse meu modelo não daria certo. Alegavam que os hospitais que têm muitos sócios não vão pra frente. É verdade, mas isso só acontece quando o médico resolve ser gestor”. Aristarco explica que não cabe a um médico preocupar-se com a torneira vazando, o vigia que não veio ou o equipamento que quebrou. No Doctor´s o corpo clínico não fará essa “dublagem de gestão”, dedicando-se somente ao exercício das especialidades

médicas. Tudo num ambiente “de ponta, bonito e humanizado”, destaca o construtor. “O espaço hospitalar é difícil, envolve momentos tristes, então não pode ser um lugar feio, que contribua para a depressão do paciente. Com o Doctor´s as pessoas vão ter um hospital top de linha, mas com calor humano”, entusiasma-se. Ex-estudante de desenho industrial, Aristarco acredita que arquitetura traz bem estar. “Uma casa bem elaborada faz viver bem”, sentencia ele, que ao chegar em Juazeiro ficou impressionado com a carência de projetos interessantes e criativos. “Cada empreendedor tem uma visão e um foco. O meu é baseado em duas teorias que eu mesmo criei. Uma delas é a seguinte: o feio e o bonito têm o mesmo preço. Podemos discutir a qualidade dos materiais, mas o preço de fazer feio ou bonito é o mesmo”. A outra teoria de Aristarco baseia-se numa premissa simples: o item mais barato de um empreendimento é uma mão-de-obra cara. “Um piso de segunda bem assentado, fica mais bonito que um piso de primeira mal assentado”, resume.

A DINÂMICA DE UM MERCADO EM EXPANSÃO Um exemplo da especulação que o boom imobiliário provocou: no bairro nobre da Lagoa Seca, em Juazeiro do Norte, o metro quadrado teve uma valorização de 1.900% – subindo de R$ 15,00 para R$ 300,00 em apenas três anos. Algumas áreas no centro chegam valer R$ 5.000 o metro quadrado. “Por causa do ritmo do mercado, que não acompanha a demanda, já existe uma especulação absurda. Nós temos medo de que isso venha a intimidar o contínuo crescimento. No momento em que temos terrenos com o metro quadrado superestimado, a tendência é intimidar a construção, inviabilizando as novas obras”, adverte Patrícia Coelho, da CRC. Juarez Domingos, da Caixa Econômica, pontua: “Se fôssemos acompanhar essa loucura de hoje do mercado supervalorizado, as 75% de famílias de 30 CARIRI REVISTA

baixa renda não poderiam participar do programa Minha Casa, Minha Vida, por falta de capacidade de pagamento. A Caixa avalia o imóvel com realismo, a ideia é segurar um pouquinho os preços”. Já Hélder Callou, da Atacon, acredita que o ritmo atual vai se manter pelos próximos oito anos, mas sem maiores explosões. “Os preços devem se estabilizar; não há condições de aumentarem, a não ser em corredores de muito movimento, como a Av. Leão Sampaio, a Airton Gomes, a Plácido Castelo...” Manoel Salviano, por sua vez, considera que há espaço para escaladas: “Eu tenho certeza de que daqui a cinco anos o valor do imóvel vai dobrar e os investimentos vão triplicar. Não existe bolha especulativa. Nós vamos chegar a um ponto de saturação, mas não ao fim. Temos hoje uma carência de milhões de moradias.

Na medida em que formos atendendo, a demanda vai diminuindo, mas por outro lado as pessoas vão sempre buscar melhorias e qualidade de vida”. Aristarco Villarim, da ICH, só acredita em crescimento com planejamento: “Juazeiro ainda está para acontecer. A cidade não aconteceu ainda. Ou a Prefeitura parte para um projeto gigantesco de reordenação da cidade, ou não terá mais jeito”. O secretário de Infraestrutura, Rafael Apolinário, adianta que isso já está sendo feito. “Estamos readequando o Plano Diretor do município, que é do ano 2000. Esperamos que até março de 2012 ele seja aprovado. Temos projetos, estamos atrás de recursos. Dentre outras urgências, Juazeiro precisa reformular suas vias de acesso ao centro, fazer mini-distritos industriais e levar adiante o projeto do Anel Viário – que tem mais de dez anos”.


A CIDADE COMO ORGANISMO VIVO A arquiteta Constance Pinheiro faz coro à ideias e posturas que tendem a ver e sentir a cidade como um organismo vivo, que deve ser pensado e gerido em seu conjunto. Na avaliação da arquiteta, Juazeiro do Norte vive um clássico exemplo de crescimento desordenado que se torna mais caótico devido a três fatores fundamentais: a velocidade com que ele ocorre; a concepção provinciana do que é uma “cidade moderna” e os conchavos políticos que dificultam o cumprimento do Plano Diretor. Nessa escalada de desordenamento, a construção de grandes empreendimentos em lugares impróprios só acirra os problemas urbanos “Quando se vai construir uma obra de porte, há um estudo de viabilidade por conta do fluxo que será gerado naquele espaço”. Se esse estudo não é levado em conta, a obra pode gerar desconforto no entorno, agravando problemas de fluxo no trânsito, especialmente em horário de pico. Para a arquiteta, o centro da cidade “obedece a uma lógica de arrivismo imponderável, mas há soluções simples que trariam um enorme ganho de qualidade de vida para quem

mora e trabalha ali. Melhorando o transporte público, desafogamos o trânsito de carros. Impor horários e locais para a passagem de caminhão também é simples e eficiente. A zona azul, por exemplo, foi um ganho para a cidade ao não permitir que o carro fique estacionado o dia inteiro naquele lugar. Existem outras soluções que escapam da lógica de botar prédios abaixo e alargar ruas para viabilizar o fluxo. Eu não acredito que alargar ruas seja sinônimo de crescimento. Pode até causar visualmente uma ideia de metropolização, mas isso tudo não é necessário”. Constance toca em um tema fundamental quando afirma que Juazeiro já foi planejada, tendo como autor do projeto o Padre Cícero e uma equipe que ele reuniu na época. “Por isso, a malha de Juazeiro é retangular, não é tão orgânica quanto a de Barbalha. Mas o que aconteceu foi que a cidade não foi sendo planejada à medida em que foi crescendo”. Ela acredita que há outros modelos de empreendimentos, capazes de atender ao apelo desenvolvimentista e estabelecer um vínculo harmônico com a cidade.

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arquiteta Constance Pinheiro defende uma nova concepção urbana

“Nós não precisamos verticalizar nossas construções, porque ainda tem muito terreno. É a especulação imobiliária que traz essa lógica: aproveitar um terreno pequeno para construir, porque os terrenos vizinhos estão muito valorizados. E a verticalização tem um status que remete á ideia de capital. Então se diz que tem que verticalizar mesmo, para virar capital. O imaginário do que seria uma cidade desenvolvida – que é algo ultrapassadíssimo!”. Constance cita João Pessoa, na Paraíba, como exemplo de cidade que melhorou sua qualidade de vida respeitando o Plano Diretor estabelecido. “Os edifícios crescem na medida em que se afastam da praia, aproveitando o vento que vem do mar. Então a cidade é toda ventilada, respeita o meioambiente e a comunidade. É uma experiência nordestina que funciona”, entusiasma-se. Ela aponta soluções para a própria Juazeiro, enfatizando que “assim como em outras áreas, o urbanismo necessita somar partes para que o todo dê certo”. Em outras palavras: a cidade urbanisticamente feliz é uma orquestra com muitos instrumentos. Todos bem afinados. É preciso, por exemplo, ter qualidade no transporte público, mas não só. “A gente precisa ter algo chamado unidade de vizinhança, que é eu não precisar pegar um ônibus e passar 40 minutos só para comprar uma feira mais barata”, diz Constance, apontando a necessidade de mini-centros dentro da cidade. “Não se pode ter uma zona como o centro atual, que de dia funciona e de noite é ponto de prostituição e marginalidade. Teríamos que ter construções mistas de lojas e apartamentos para quem trabalha no lugar. A especulação imobiliária é algo que precisa ser controlado porque só serve para desenvolver as áreas que os grandes empresários querem que sejam desenvolvidas”. Por fim, vaticina: “Juazeiro não é diferente de nenhuma cidade que se desenvolve. A solução é simples: seguir o Plano Diretor. Está tudo lá”. CARIRI REVISTA 31


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#cariridefé

CARROÇAS EM FESTA

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ão centenas de carroças puxadas por jumentos e cavalos ganhando as ruas de Juazeiro no domingo anterior ao dia de Nossa Senhora das Dores, 15 de setembro. Não vão transportar mercadorias nem catar recicláveis. Vão fazer uma homenagem especial a Nossa Senhora, que segue na primeira carroça, depois de deixar seu pedestal da Matriz e passar a manhã em ritual de decoração de flores, cuidadosamente colocadas ao seu redor pelas mulheres da comunidade, lideradas por dona Salete Cruz Bezerra de Menezes, uma jovem senhora de 83 anos. Depois vem a novena, até as três da tarde. A Procissão dos Carroceiros acontece há 40 anos e integra o extenso calendário de eventos religiosos no Cariri dos peregrinos. Todas as carroças exibem seus enfeites. Flores de verdade, flores de papel, flores de plástico, fitas cortadas de sacolas de supermercado, de restos de tecidos, de papéis de presente. Coroas de cartão colorido. O desfile sai da Fundação Leandro Bezerra de Menezes, o mesmo lugar que abrigou a Associação dos Carroceiros por muitos anos, rumo à Igreja Matriz de Juazeiro, colorindo as ruas do centro, desde o meio da tarde até o cair da noite. É a própria dona Salete quem conta à Cariri Revista como tudo começou. Espontânea e articulada, ela fala sobre a Associação dos Carroceiros – fundada por seu marido, Leandro Bezerra de Menezes, nos anos 50 –, a organização desses profissionais até então esquecidos, o trabalho social conduzido por ela e o dia em que padre Murilo propôs que fosse rezada uma novena para Nossa Senhora das Dores na sede, antecedendo uma procissão. Em tempos de defesa do meio ambiente, de substituição de meios de transporte convencionais por alternativas não poluentes, as carroças, com as devidas adaptações à contemporaneidade, podem considerar seu retorno à lida. Com o renovado esforço da comunidade e as bênçãos de Nossa Senhora das Dores. 34 CARIRI REVISTA

Dona Salete: “enquanto eu existir, Nossa Senhora vai ter a noite dela”

A União dos Carroceiros “Meu marido era muito solidário, ele não podia ver ninguém triste que ia logo saber o que era para alegrar. Dizia que não era pra ninguém passar fome... Um dia ele chegou muito incomodado e me contou que estavam arrecadando dinheiro para enterrar um carroceiro. Falei pra ele que devia ser costume deles, aí ele Callou-se, mas ficou com aquilo. Mais tarde falou comigo: Salete, vamos fazer uma comunidade com esse povo, é um povo tão sofrido, ganham tão pouco...” “Daí ele chamou todo mundo e falou: carroceiros, nós vamos ter uma classe agora, vamos fazer reunião de 15 em 15 dias, vocês vão pagar dois reais a cada reunião e ter direito a escola, médico, remédio... Leandro organizou o trabalho dos carroceiros, ensinou a andar na rua, todo mundo na mão certa, emplacou as carroças, botou fiscal. Tudo isso fez a categoria ser mais respeitada. Ele conseguiu apoio do governo, contratou médicos, professores...” “O governo pagava todos, só não pagava a diretoria, e a diretoria caiu para cima de mim. Trabalhei 25 anos lá dentro, de manhã, de tarde e de noite. Botei clube de mães pra aprender costura, porque as roupas deles faziam pena. Eu comprava os tecidos. Com um real de cambraia fazia quatro camisinhas pros bebês, tudo bordado em ponto paris. Até parto ajudei a fazer. Eu e Leandro botávamos as mulheres no carro e levávamos para o hospital. Fizemos isso um monte de vezes.” “Meu marido dizia que era melhor sustentar jumento com doce de leite do que a mim com dinheiro pros carroceiros. Ora, ele mandava eu fazer as coisas,


eu fazia... Cesar Cals, governador na época, dizia que se cada cidade fizesse uma comunidade como a dos carroceiros, era outra vida pro povo pobre.” A Procissão “Um dia padre Murilo foi lá com as freiras. Dona Salete, ele disse, eu vim aqui por conta da festa de Nossa Senhora. Eu queria que a senhora tirasse uma noite aqui pros carroceiros. Vai buscar a Nossa Senhora de véspera, bota aqui, os carroceiros rezam e depois levam a santa em procissão de volta pra igreja.” “Chamei uma amiga minha, ela ajeitou o altar, botou os alfinetes, flores, tudo, e saímos. No segundo ano lá veio o padre Murilo perguntar se eu queria de novo. Eu disse quero, e enquanto eu existir Nossa Senhora vai ter a noite dela. No dia que carroceiro se acabar, que cada um tiver um caminhãozinho e subir de posto, eu trago uma carroça lá de casa, lá do sítio, e ela desce de carroça na procissão.”

“Só pedi ao padre que a procissão fosse sempre no domingo antes do dia 15, porque era o dia que os carroceiros podiam. Até hoje continua esse domingo pra gente. Padre Murilo morreu, mas todos continuam respeitando isso.” “A primeira vez que saí em cima da carroça falaram muito de mim, disseram que eu queria ser simples, chamar a atenção. Mas não foi. Eu ia de mão dada com Leandro, a pé, na frente da carroça, mas fiquei muito cansada. Leandro perguntou se eu queria ir na carroça e eu disse que sim. Quando me criticaram, eu falei: ora se Nossa Senhora que é Nossa Senhora desce de carroça, por que eu, uma pecadora, não desço também?” “Quando subi no ano seguinte todo mundo bateu palma achando muito bom de eu ter descido de carroça! A partir dali, todo ano era Leandro na frente com os filhos e eu na carroça mais Nossa Senhora. Depois que ele faleceu são os meninos na frente e eu sempre na carroça. E o povo bate palma e eu ajudo, é muito bom!”

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#caririeducação

VIAGENS PEDAGÓGICAS MOSTRAM O MUNDO FORA DAS SALAS DE AULA Entre os ensinamentos dos mestres da cultura e as escavações de fósseis, o Cariri se revela uma fonte inesgotável de conhecimento prático para jovens do ensino fundamental.

Por Roger Pires

A

ansiedade que marca a preparação de um aluno para uma viagem com a turma do colégio enche de disposição a professora Silvia Meneses, coordenadora do ensino fundamental de uma escola em Fortaleza. Entusiasta da região do Cariri, Silvia já acompanhou alunos do colégio onde trabalha em viagens até pela Europa, mas garante, com satisfação, que gosta mesmo é de visitar a região Sul do Ceará. “Acho que para conhecermos melhor o restante do mundo, precisamos primeiro reconhecer as nossas raízes”, justifica. E o conhecimento está diretamente ligado ao roteiro proposto pelo programa escolar de viagens pedagógicas – expediente adotado em vários colégios particulares, no intuito de oferecer um processo dinâmico e sedutor de aprendizagem. 36 CARIRI REVISTA

A viagem, aliás, começa meses antes da partida, quando o destino é sugerido aos alunos e seus pais, seguindo depois com pesquisas e estudos sobre o local. Tal esforço resulta numa apresentação panorâmica que envolve a geografia, a cultura e a história da região, dentre outros aspectos. Os pais são chamados pela escola para conferir o que foi compilado pelos alunos. Muitos se entusiasmam. “Eu também quero ir!”, diz a coordenadora, reproduzindo uma reação comum dos adultos que prestigiam a exposição. Mas quem aproveita mesmo são os pré-adolescentes do 6º ano. Em junho passado, 17 alunos e dois professores, além de Silvia, formaram o grupo de Fortaleza que desbravou parte do Cariri. O roteiro começou em Barbalha, precisamente e propositalmente na época dos festejos de Santo Antô-


nio. De lá, os estudantes partiram para o Crato, Assaré, Nova Olinda, Santana do Cariri e Juazeiro do Norte. No trajeto, museus, igrejas, paradas para comprar lembranças e até escavação de fósseis no Geopark Araripe. “Eu não consigo achar nada, mas sempre vejo os meninos encontrando fósseis”, comenta Silvia sobre as excursões ao parque. A Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Kariri proporciona um momento de troca entre “pessoas do mesmo tamanho”. Para a aluna Ingrid Forti Pompílio, a programação em Nova Olinda foi uma das mais divertidas. Lá, ela e seus colegas tiveram a oportunidade de brincar e interagir com os garotos da própria Fundação, que realiza um trabalho significativo para a região. “Cada pessoa que a gente encontrava, sentíamos como um amigo nosso; parecia que a gente morava ali. Quando conversamos com as pessoas, sentíamos a

emoção de estar lá. Já fui aos Estados Unidos, mas é mais parecido com Fortaleza do que o Cariri, que tem dança e outras coisas diferentes”, compara Ingrid. A programação foi encerrada com uma apresentação de reisado em que os brincantes chamaram os garotos para dançar. Outras duas atividades contaram com a participação de mestres da cultura: uma visita a Espedito Seleiro (capa da edição 01 da Cariri Revista) e uma aula sobre cordel com Luciano Carneiro. Para a coordenadora Silvia Meneses, um dos objetivos principais alcançados nessa vivência é “ver na prática o que é aprendido em sala de aula”, e repassar isso. Para os alunos que não foram ao Cariri, a turma de viajantes preparou uma apresentação que transmite um pouco do clima humano e cultural da região. “Meu sonho é levar todos os professores para lá também, pois tem muita gente grande que não conhece o Cariri”, encerra Silvia.

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Festa de Santo Antônio,Barbalha : diversão para crianças e adultos CARIRI REVISTA 37


A PRIMEIRA VEZ NO CARIRI Por Sofia Osório [11 anos, estudante da 6a série em um colégio de Fortaleza que realiza viagens pedagógicas para o Cariri]

Assim que pisei pela primeira vez no Cariri, já fiquei impressionada. E imaginava o monte de coisas legais que eu iria encontrar por lá. Era tudo lindo! O que muitos podem pensar que é chato, sem graça e que não vale a pena conhecer; é na verdade uma região que tem uma história interessante em cada lugar, que tem animais em risco de extinção, lindas festas, histórico da literatura de cordel, a maior beleza em artesanato e, sem esquecer, é uma região riquíssima em fósseis. E é isso que eu quero mostrar a todos aqui, essa linda terra que é o Cariri. Gostaria de dizer, também, que não vou esconder o fato de que estou adorando escrever nesta revista sobre um lugar tão legal. É isto mesmo, estou orgulhosa de estar descrevendo com palavras um lugar tão rico e bonito como o Cariri. No dia que eu cheguei a Barbalha já estavam prontos os preparativos da festa de Santo Antônio. Foi no dia 09 de junho de 2011. A decoração estava muito mais do que cheia de bandeirinhas, se é o que vocês pensam. Ela estava cheia de flores, enfeitando as bandeiras de Santo Antônio, alguns daqueles bonecões bem grandes pela cidade. E é claro, o pau de Santo Antônio. ENORME, mil vezes ENORME. Sem exagero algum, era tão grande que dava para dezenas de pessoas carregarem. E foi exatamente isso o que aconteceu no dia 13. A missa que assisti na própria igreja de Santo Antônio tinha educação como tema principal. Era linda aquela igreja e o órgão de tubos de lá também era lindo, bem grande. Lá no Crato existe a Universidade Regional do Cariri, onde se aprende muitas coisas sobre o Geopark e a Chapada Araripe. Nesta mesma Universidade vimos um vídeo sobre o “Soldadinho do Araripe”, uma espécie de pássaro em extinção. Se você gosta de cordéis, a Academia dos Cordelistas do Crato é demais! Lembro-me até hoje dos trechos de Luciano Carneiro, ao escrever um cordel sobre seu anelar perdido. O nome do cordel era “Superação”: “Lembro o tempo que fui adolescente Me recordo do tempo de rapaz As transformações que o tempo faz Não faltava na boca nenhum dente Essa mão aleijada já foi boa Um pequeno descuido meio a toa

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Fez eu ver a velhice aparecendo Pois o tempo e a vida vão fazendo Muitas marcas no corpo da pessoa Trabalhando em uma impressora Treze anos sem ter um acidente Coloquei o papel e de repente Levei uma pancada esmagadora Minha mão que foi tão trabalhadora Viu como a saúde rápido voa Eu fiquei como um barco sem ter proa Vendo a carne no corpo se tremendo Pois o tempo e a vida vão fazendo Muitas marcas no corpo da pessoa” Legal, não? Juazeiro do Norte. O que teria a dizer sobre este lugar? É um lugar cheio de história, eu diria assim. O Memorial Padre Cícero é bem mais do que um museu com algumas coisas do Padre Cícero. Além de ouvir a explicação sobre a vida dele, nós podemos acompanhar os fatos mais importantes, através de quadros muito bem pintados, parecem até fotos. Lá nós encontramos até o último lencinho usado por ele, quando enxugou a última lágrima na hora em que morreu. Assaré. Nome da cidade onde nasceu o famoso Patativa do Assaré. Sabem por que foi este o nome dado ao grande poeta? É simples: certa vez um jornalista disse que a forma bonita como ele cantava seus versos parecia o pássaro patativa. Ele morando em Assaré, fica: Patativa de Assaré. Se quiser aprender mais sobre ele, o melhor lugar é o Memorial Patativa do Assaré. Nova Olinda é a terra onde mora o Espedito Seleiro. Cada uma das suas belíssimas peças de couro é muito bem feita nos mínimos detalhes. A Fundação Casa Grande, também em Nova Olinda, funciona junto com o Memorial Cariri, onde se aprende cada ponto da história dos Índios Kariri. Sobre Santana do Cariri, tudo que eu tenho a dizer é que é uma terra riquíssima em fósseis. É possível encontrar dezenas de fósseis no Geosítio Pedra Cariri, entre muitos outros. Fósseis de peixes, plantas, troncos de árvores, etc. Para terminar: de todas as viagens que eu fiz, esta foi a que eu mais gostei. Aprendi muitas coisas novas e a cada passo que dava eu pensava: “Estou aqui no Cariri, e isto aqui é lindo!”.


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#caririmeioambiente

PLANOS PARA UM NOVO MUNDO Os caminhos para a recuperação das áreas degradadas do Cariri e outros problemas ambientais envolvem articulação, parcerias e boa vontade. Soluções criativas são apresentadas por cidadãos atentos às necessidades do planeta.

O

professor Deoclécio Jacinto Said lembra os exploradores dos filmes que contam histórias incríveis, protagonizadas por arqueólogos e outros cientistas. No lugar do chapéu clássico desses personagens, usa um panamá adequadíssimo ao nosso clima tropical. Muito à vontade com as palavras, conta-nos sobre suas viagens e sobre seus projetos. Engenheiro especializado em segurança, com mais cinco graduações e pós-graduações em áreas diversas, inclusive na de meio ambiente, Said fala de seus estudos, formais e informais, com espontânea generosidade e muito conhecimento. Aos 65 anos, cerca-se dos recursos atualizados da tecnologia para acompanhar sites do mundo inteiro, manter seu blog recheado de novidades e estabelecer comunicação com grupos diversos. As viagens que realiza pelo mundo, a fim de conhecer o que acontece em outros lugares, são planejadas com detalhe. Ele e sua esposa, médica que também tem o olhar de viajante estudiosa, juntam grupos de amigos com profissões diversas que têm em comum a curiosidade pela humanidade. São psicólogos, médicos, engenheiros ambientais, todos em busca de observação e novas vivências. Reúnem-se várias vezes antes de cada viagem para selecionar destinos, listar os locais a serem visitados, levantar os contatos a serem feitos. O foco atual é o aquecimento global e todas as consequências nefastas que dele advêm. “Estive no sul da Argentina, na Patagônia, num lugar chamado El Calafate, onde você vê o degelo acontecendo. Na verdade você pode pegar e verificar que isso é uma realidade preocupante”, revela, defendendo o imperativo da urgência nas ações e enfatizando a ligação direta do aquecimento com o agravamento da pobreza no 40 CARIRI REVISTA

Said: onde há devastação da natureza, degradam-se as condições da vida humana

planeta – “onde há devastação da natureza degradam-se as condições da vida humana”, sublinha. Sobre a última viagem conta, entre outras experiências, a de visitar a Nicarágua. “É um país lindíssimo! Conhecemos um lago com 350 ilhas privadas, mas eles têm uma preocupação com o meio ambiente. O lago é límpido e é mantido por aquelas pessoas”, exemplifica. A atenção de Said para o tema das áreas degradadas vem do tempo em que era engenheiro da Chesf e viajou o mundo todo catalogando informações. Da observação da pobreza surgiu a criação de um projeto que enviou recentemente para a ONU, como contribuição aos programas de combate em curso. A ideia do projeto é concretizar soluções. “Calculei por fontes do IBGE a população de trabalhadores mundiais. O mundo tem hoje sete bilhões de habitantes. Dessa população eu tirei, por baixo, 700 milhões de trabalhadores no mundo, em mais de 180 países. Se cada trabalhador, todo mês, depositasse compulsoriamente um dólar no Fundo da ONU para o combate à pobreza, em cinco anos teríamos 42 bilhões e 850 milhões de dólares”, resume, esclarecendo que o dinheiro seria gerenciado por um representante de cada país, escolhido entre os trabalhadores cotistas. “Eu tenho a convicção de que se o mundo se unir e a ONU quiser, isso é possível, pois a ONU tem credibilidade”, entusiasma-se Said. O mesmo interesse levou-o a elaborar um projeto específico para o Cariri, o PRADC (Projeto de Recuperação de Áreas Degradadas do Cariri). Sempre atento


aos caminhos disponíveis, o professor localizou uma linha de financiamento do BNDES que se destina a esse fim e colocou no papel o que será a recuperação de um espaço que abrange mais de 1.000 hectares e aproximadamente 263 propriedades rurais – o equivalente a 25% das propriedades existentes, envolvendo vegetação e rios. Numa parceria entre a Faculdade Leão Sampaio, instituição da qual é diretor, com uma instituição governamental local – e quantas entidades públicas e privadas mais desejarem associar-se, bem como pessoas físicas – a efetivação do projeto prevê reflexos em toda a região, em termos de controle, monitoramento e fiscalização ambiental, extrapolando a área geográfica prevista. “Para um negócio desses, tem que haver o envolvimento de um órgão do governo, uma secretaria de

Meio Ambiente, uma secretaria de Ciência e Tecnologia, o Ibama... Temos também que ter o apoio dos veí­culos de comunicação”, argumenta Said, esclarecendo que a Faculdade Leão Sampaio é a mobilizadora do projeto, porém é necessário convocar setores diversos e envolver as instâncias de governo diretamente atuantes no setor. O PRADC tem duração prevista para quatro anos e poderá acessar cerca de dez milhões de reais do ­BNDES, após a articulação entre as entidades públicas e privadas, criando as condições para a sua efetivação. “O representante do BNDES, numa reunião recente com mais de 250 instituições de ensino superior privadas, expôs para a audiência que a Índia – um país muito menos desenvolvido que o nosso – mandou 1.200 projetos de recuperação ambiental para o Banco Mundial em 2010. O Brasil não mandou nenhum! Foi isso que me motivou. Esse dinheiro existe para ser gasto com recuperação ambiental e nós estamos perdendo por falta de projetos”, lamenta Said.

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#caririconversa

um JAGuNÇO LíRICO gueRReia Pela aRte Por Tuty Osório

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io de Janeiro, 1975. Minha primeira vez no Brasil, minha primeira vez diante da TV em cores, aos 10 anos. Só havia conhecido a TV aos sete – TV em preto e branco nas férias passadas em Portugal. Na infância em Moçambique, colônia portuguesa naquele tempo, no sul da África, não havia televisão. Minhas fantasias de criança foram nutridas pelos pequenos discos de histórias tocados na vitrola embutida no móvel de madeira da sala de visitas, pelos livros que habitavam em profusão a nossa casa e pelo rádio. Era uma ouvinte enlevada e dos sete aos nove anos fui locutora num programa infantil onde dizia poemas e respondia cartas. Daí que a imagem colorida da TV brasileira me deslumbrou com fatalidade. Na tela um homem vestindo um terno claro, chapéu panamá e um bigode que parecia desenhado, perseguido em surdina por um grupo de jagunços que lhe aprontavam tocaia. Uma música sinistra reveza-se com o silêncio. A personagem de terno azul era Mundinho Falcão, protagonizado por José Wilker em “Gabriela”, o primeiro sucesso mundial da teledramaturgia brasileira.

Rio de Janeiro, 2011. O intérprete do homem de terno claro que caminhava lentamente na imagem da minha estreia como telespectadora da TV em cores nos recebe ao vivo na sala de sua casa no Jardim Botânico. Conta à Cariri Revista histórias da infância em Juazeiro do Norte, da memória do Cariri dentro de si e dos múltiplos planos em ampliar a participação das artes cênicas no cotidiano do público, no Brasil e em outras paragens. Ator, diretor, produtor, autor, atuante no teatro, no cinema e na televisão desde 1973, José Wilker não esconde a sua paixão pelo trabalho e a inevitabilidade de sua escolha. É um erudito exigente, contemporâneo ousado e conservador na qualidade. Discorre com fluidez sobre o que se produz no Brasil, nos Estados Unidos, na Europa. E também é conhecedor do que se faz no Irã, na Índia e em pequenos países da África, numa busca constante de outras experiências, novos olhares. Ao falar do Cariri, Wilker revela que os amigos o apelidaram, justamente, de jagunço, em alusão à sua origem sertaneja e à leve rudeza que sobrevive à sofisticação. Conta que a relação mágica com a realidade apreendida na infância permanece até hoje, bem como a ironia lúdica tão característica dos cearenses. Foram as salas de cinema de Juazeiro, o teatro na escola e a biblioteca de seu tio professor – fontes únicas de cultura na cidade da época –, as primeiras influências que o levaram à profissão que exerce. Não nos fala de lembranças de lugares, nem de episódios, embora sirva-se destes para ilustrar o que deseja expressar. Sua memória revelada ultrapassa a descrição de simples lembranças. Mostra um Cariri que vive realmente dentro de si, alicerce de sua identidade, de sua forma de sentir o mundo e de devolver esse sentimento. CARIRI REVISTA 47


Cariri definitivo “O Cariri dentro de mim... A primeira infância é definitiva. Depois você elabora, mas a base está ali, quer você queira, quer não. Eu nasci em Juazeiro, e em que pese voltar sempre a Recife, a minha infância e a minha pré­ adolescência foram vividas no Cariri. Então é assim, entre os meus amigos mais próximos eu sou conhecido como o jagunço, porque por mais que eu tenha me sofisticado, o que eles chamam de jagunço é essa memória em mim.” Imaginação provocada “E a memória em mim está em ter uma imaginação provocada pelo lugar, pelas pessoas do lugar, pela geografia do lugar. Tem uma história da minha infância em Juazeiro que eu até contei numa peça que escrevi, que me parece fascinante. É a história de um sujeito que andava sempre vestido de príncipe, eu me lembro bem. Era o Príncipe Ribamar, ele andava com um rolo de papel debaixo do braço que era um desenho da Gioconda do Da Vinci. Ele se dizia noivo dela e estava sempre esperando a Gioconda chegar, até que um dia

ele descobriu que ela não ia chegar. Isso porque ela viria por via aérea e em Juazeiro não havia aeroporto! Então, ele juntou alguns crédulos e capinou um terreno que é, justamente, onde está instalado hoje o aeroporto de Juazeiro. Até essa noção ele tinha... “ Relação mágica com a vida “Essa relação mágica com a vida, que herdei de lá, é uma relação que não me abandona. No sentido oposto, a extrema religiosidade que conheci em Juazeiro me tornou ateu, ela me levou para o caminho inverso. Despertou uma curiosidade, um questionamento, uma busca de conhecimento onde a religião institucional, oficial, não cabe.” Ironia herdada “A outra memória é a da minha ironia, que é uma herança da minha mãe e das minhas tias, o olhar com que elas viam o mundo ao redor. Ninguém escapava dois minutos sem um apelido, ninguém escapava três minutos sem que elas descobrissem naquela pessoa uma característica particular que a identificava.”

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Primeiras influências “A minha curiosidade sobre os livros vem daí, também. Eu vivia numa casa cheia de livros, meu tio era professor, ali nos Salesianos, e isso eu tenho até hoje. Eu me lembro de não saber ler mas gostar do objeto livro e de ficar tentando descobrir o que havia por trás daqueles desenhos que a gente chama de letra, tentando adivinhar que histórias aquele tipo de coisa escondia. Foi uma revelação quando eu descobri! Havia de tudo, desde dois volumes da Antologia da Poesia Cearense do Dolor Barreira até literatura romântica francesa de Lamartine e Chateaubriand.” “O próprio teatro que eu faço, a profissão que segui – que eu sempre achei que foi por acaso – me foi despertada na minha pré-adolescência em Juazeiro, quando a gente fazia uma ou duas vezes por ano apresentações de teatro para a própria escola e para o padre visitador, que rodava mundo afora visitando os colégios, como uma espécie de inspetor.” “O meu próprio gosto musical, ecletíssimo, se formou também por ouvir, por exemplo, um médico que era o parteiro da cidade, o Dr. Mozart. Ele era louco por ópera italiana e as cantava no intervalo entre o almoço, um banho e uma sesta, a plenos pulmões. Junto com isso havia toda a música popular brasileira e de 50 CARIRI REVISTA

alguma maneira latina que a gente ouvia na única fonte de informação da cidade, o CRP, Centro Regional de Publicidade, que funcionava de 6h às 8h e que tocava músicas de alguém para você.” “E finalmente o cinema, que era, digamos, a atividade cultural mais constante em oferta, e que me mostrou que o mundo era muito maior que aquela cidade da qual eu conhecia o começo e o fim. Não sei se eu te respondi...” Devaneios de sábado “O sábado era o dia em que a gente se informava. Era quando os cantores de feira cantavam na literatura de cordel o que estava acontecendo no mundo, e a gente sabia basicamente do mundo por eles. Quer dizer, a única rede de comunicação de Juazeiro com o mundo era um rádio amador, o prefixo dele era PY7Y4. Por ele chegavam as informações fundamentais, como o suicídio do Getúlio, a vitória do Brasil na Copa da Suécia... chegavam às vezes com um dia de atraso.” Riscos e virtudes das conexões com o mundo “A troca é válida, mas a troca é perigosa, sim...Tinha um slogan de uma rádio em Recife que era: ‘Rádio Jornal do Comércio, Recife, Pernambuco, Brasil. Pernambu-


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co falando para o mundo’. Provavelmente o mundo estava pouco ligando para a Rádio Jornal do Comércio, provavelmente o mundo jamais a escutou, mas as pessoas que escutavam tomavam Recife como uma referência, uma aspiração, um lugar a ser imitado... Havia uma disputa interna na época, não sei se há ainda, entre Juazeiro e Crato, quando Juazeiro aspirava a ser melhor que o Crato e o espelho de aspiração não era outro senão o Crato. Essas relações enriquecem, mas acabam empobrecendo também.” “Recife tinha o Pastoril do Faceta, que era o velho do Pastoril. Na época a televisão mantinha uma sede na cidade, e o pastoril era exibido em pedaços, pequenos trechos durante a programação nacional. Os produtores, vindos de outros lugares do Brasil, propuseram ao pessoal do pastoril que eles trocassem as cores, o encarnado e o azul, porque elas não eram adequadas à televisão. Como basicamente o pastoril é uma coisa cantada através dessas cores, eles não mudaram nada e a televisão teve que se ajustar a isso.” O diálogo e o espelho “Quando eu estava filmando ‘Bye Bye Brasil’, a gente viajava muito e eu tinha a sensação de que o país ia se dividir em cinco. Nós éramos um Brasil que não con-

versava. O Acre, o Pará, o Amazonas não conversavam com o Rio Grande do Sul. O Nordeste pouco sabia do Centro-Oeste. O Sudeste se bastava. Quando voltei, após alguns anos, percebi que tínhamos ultrapassado essa dificuldade. E uma das grandes contribuições para isso veio da televisão. Ela de alguma maneira unificou este país. Hoje falamos uns com os outros. O Ceará fala com São Paulo e não é somente enviando mão-de-obra. Temos unidade sem padronização.” “Você tem que ter o equilíbrio nessa troca porque é muito fascinante você assumir o espelho ou cair dentro dele, e se perder nele, mas só consegue se divertir dentro do espelho a Alice da história. O resto perde a essência, perde o perfil, perde a fonte da imagem. Você tem que ter cuidado com isso.” Juazeiro do começo ao fim “Eu tenho visto fotos de Juazeiro hoje, por causa do Centenário, a Globo News fez imagens lá, conheço umas trocentas pessoas que foram para lá agora por motivos diversos, sejam profissionais, sejam religiosos. Então, eu olho pro Juazeiro e ao mesmo tempo em que ele me encanta, me assusta.” “Me encanta pela saudade, pela cidade que eu conhecia do começo ao fim. A cidade começava na Matriz de Nossa Senhora das Dores, lá embaixo, e só tinha mais uma rua. O resto era mato, e a gente caminhava pelo mato para chegar ao rio. Em cima acabava nos Salesianos. Tinha uma ruazinha e umas casas de taipa onde ficavam as pessoas mais pobres, que vinham pagar promessa ou porque lá era a terra da salvação. Eram retirantes mesmo, que corriam para a região porque era o único lugar poupado pela seca com muita frequência.” O tempo e a cidade “O Juazeiro moderno eu não conheço dele, eu não sei dele, ou eu sei de segunda mão. E esse me assusta... Eu não devia dizer isso, mas me assusta...” “Mas não vou lá mesmo por falta de tempo... Uma viagem para o meu prazer pessoal exige uma ginástica monumental e eu trabalho demais... Não é como ir a São Paulo, que você almoça e volta. É um dia para ir, outro para ficar, outro para voltar. São três dias, e é difícil ter três dias disponíveis assim...” CARIRI REVISTA 51


“Quando eu vivia lá, a gente morava onde todo o mundo morava. Uma quadra, duas ruas antes da Praça Padre Cícero. A cidade morava naquela área ali, os cinemas eram todos ali, o cinema Avenida, a sorveteria, o cartório, a prefeitura, tudo acontecia ali. De vez em quando você se aventurava a ir um pouco mais longe, onde foi construída a igreja dos franciscanos, por exemplo. Diariamente as pessoas ficavam sentadas na calçada, vendo as outras passarem, se visitando, a gente ficava andando o mesmo caminho uma eternidade, a gente ficava tentando namorar. Namorar era uma coisa estranhíssima...” Campos e espaços “Eu tenho a informação de que a casa onde as minhas tias moravam, onde eu morei, foi vandalizada quando morreu o último da família, meu tio. Toda aquela região onde a gente vivia hoje é uma área comercial. Não é mais um espaço de viver, é um espaço de comprar e vender, e esse é um espaço que se enfeia, que se empobrece. Eu sei que hoje esse é o destino de todas as cidades quando crescem. Os centros delas são vanda-

lizados, e de vez em quando resolvem revitalizar esses espaços. Aí Paris faz o Les Halles, Buenos Aires faz Puerto Madero, o Rio de Janeiro está tentando revitalizar a região portuária. Mas o destino é esse. O local onde as cidades nasceram acaba sendo destruído...” Gogós e carrapatos “É inteligente acabar com a disputa entre as cidades. Quando eu ainda morava em Juazeiro, nas eleições havia o PSD e a UDN, os chamados gogós e os carrapatos. Eles se alternavam na prefeitura e a cidade era apenas um pretexto, uma circunstância que podia ser considerada ou não. Eles começaram a se entender mais tarde. A cidade foi dominada por uma família que a uniu, que trouxe uma certa harmonia. Isso foi uma coisa boa. Não sei se solto foguetes, porque é uma herança do coronelismo, mas alguma benfeitoria disso resultou.” O constante lugar do outro “O pior elogio que alguém pode me fazer é me chamar de natural, eu considero isso um xingamento. Eu

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não acredito em ser natural interpretando. A gente mente. A melhor definição de ator que eu conheço é aquela das palavras cruzadas, homem que sabe mentir com quatro letras – ator. Eu tenho que desenvolver mecanismos de exposição que possa controlar. Eu preciso ser uma pessoa observadora, uma pessoa que lê, que tem um olhar sobre o outro, que é curiosa, que duvida, que é teimosa, que é insegura, que é afe­tuosa, que é generosa... Há uma série de qualificativos que te levam a poder representar. Você representa. Ser ator é isso, representar.” “Esse ator que incorpora personagem é um ator que não me atrai, ele revela muito pouco dessa personagem. Há uma corrente forte no Brasil que defende o natural, mas ela vem a serviço da televisão, cujo principal programa é o intervalo comercial. Eu não posso menti-lo, então me deixo assimilar por ele. Muitas pessoas na televisão são tatibitati, falam mal o português, gaguejam... Tentam se parecer ao máximo com as pessoas do dia-a-dia que você reconhece. Isso tem muito pouco a ver com representar. Tem a ver com vender bem certos produtos, que não são só a geladeira, a televisão... São também atitudes de relação entre pessoas e valores que a sociedade de repente prega como fundamentais da sobrevivência. Isso empobrece de alguma maneira o conceito do que é ser ator. Mas nem todo mundo pensa dessa maneira. Se eu estou me preparando para fazer Macbeth, eu não preciso cometer crimes, embora Macbeth seja uma peça sobre assassinato.” Shakespeare para crianças “Não sei se eu vou levar essa ideia adiante, de encenar Shakespeare para crianças, não sei se é economicamente viável... Isso eu vi numa viagem pra Londres, onde a Royal Shakespeare Company apresenta espetáculos de Shakespeare para crianças de cinco até 10, 11 anos... Não tem teatro infantil e teatro adulto, tem teatro. O teatro infantil – não sei como está sendo feito fora do Rio – mas aqui ele é confinado ao espaço que sobra da peça que está no horário nobre. E os atores representam falando com objetos inanimados: oi pedra!, oi árvore! É meio maluco, não me encanta.” “Está certo, algumas peças de Shakespeare exigem talvez cinco ou seis leituras diferentes, você tem leituras mais profundas. Mas toda peça de teatro é ruína. Se você pega o teatro grego, é ruína que você como ator reconstrói. Enquanto está no papel não é nada, é tijolo,

é palavra solta. Já escreveram dezenas de livros diferentes sobre Hamlet. É uma peça que foi montada aos pedaços e que até hoje ninguém sabe o que é. Temos que entender que há uma versão simples do Hamlet.” “Shakespeare fazia teatro para pessoas que não sabiam ler nem escrever. O livro é posterior a Shakespeare – o livro, essa invenção genial! O que Shakespeare fazia era muito simples, só que as classes vão se formando e se apropriam desse tipo de coisa. Determinam que esse é um bem culto, um bem de luxo, que não pode ser apreciado pelo populacho, pois o populacho tem que se contentar com o que de pior se produz. Isso é uma forma de dominação, simplesmente.“ O erudito é popular “Aqui no Rio havia uma coisa interessante há alguns anos atrás. Eram os Concertos para a Juventude, na Quinta da Boa Vista, patrocinados pela Shell. O Karabchevsky regia Wagner, Beethoven, Tchaikovsky, para um público de milhares de pessoas, nas manhãs de domingo. Esse evento era exibido após o Fantástico. De repente, por alguma razão misteriosa, decidiram que aquilo não fazia mais sentido e substituíram os concertos pelo Sai de Baixo, que eu dirigia... Substituir Tchaikovsky por Sai de Baixo!!! Eu me divertia muito fazendo o Sai de Baixo, mas decretar que o povo não entende música erudita é se apropriar de um bem em detrimento de um bem comum, é um problema social mesmo.”

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Produção nacional “É uma pena que certas iniciativas culturais tenham que passar pelo gargalo da política partidária. O Centro Dragão do Mar, em Fortaleza, quase acabou por conta de briga político-partidária. Essas brigas descrevem imensamente a cultura. Eu acho que são uns heróis os caras que conseguem superar isso. O fato é que se está fazendo um trabalho de cinema no Ceará, na Paraí­ba, em Pernambuco, no Rio Grande do Sul, em Minas Gerais. No Pará, por esforço da Dira (Paes). Acho legal que isso aconteça.” And the Oscar goes to... “Alguns no Brasil acham que nós temos que ganhar um Oscar para termos de fato cinema. É preciso que os Estados Unidos e a Europa gostem do que a gente faz, pra gente gostar do que faz. Isso é uma tolice! Eles são outra civilização, outra cultura, outro ritmo de olhar pra vida que não é o nosso, então vamos sempre ser vistos lá como uma coisa pitoresca, da mesma forma que em São Paulo um espetáculo do Ceará é uma coisa pitoresca. E pitoresco pejorativamente.” Leituras do Nordeste “A televisão já experimentou fazer coisas sobre o Nordeste que eu acho que... Não dá para citar porque eu não quero criticar amigos meus, mas eu abomino certas coisas que fizeram, pretensamente nordestinas, a começar pelo sotaque, que está dissociado... As canções que a minha mãe cantava para mim eram canções de trabalho, elas serviam pra me embalar o sono e pro cara cortar cana, estavam ligadas ao cotidiano, tinham um sentido preciso... Não se pode fazer disso uma coisa pitoresca. Para conseguir algum resultado de fato significativo é preciso ser um Gauguin. Aí você vai pro Taiti e pinta o Taiti, sem mentir sobre isso. Mas não existem muitos Gauguin... Eu fico, assim, quicando quando eu ouço esse sotaque de... que região é essa?! Porque as pessoas falam de um jeito no Ceará, de outro jeito em Pernambuco, de outro jeito no Pará, de outro jeito na Bahia, de outro jeito em Alagoas...E a coisa fica um pastel na televisão, as pessoas falando daquele modo esquisitíssimo. Não sei em que lugar do mundo se fala daquele jeito! “

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Cinema no mundo “O maior produtor de cinema do mundo é a Nigéria, depois vem a Índia, depois os Estados Unidos. O maior festival de cinema ocorre em Burkina Fasso, que é um país no centro da África. Nesses lugares, Burkina, Nigéria, Índia, acontece uma coisa bem diferente, que merece um olhar. Burkina reúne toda a produção do cinema negro do mundo uma vez por ano, e distribui para a África. E debate, se reinventa.” “A Nigéria faz quase que um cinema por encomenda, é parecido com o cinema do camelô de cinema de Recife, é feito com VHS e é vendido na feira. O cara vendendo vinte cópias já pagou a produção. A Índia faz uma coisa preciosa. Eles são um bilhão e cem de habitantes e fazem uns dez filmes para exibição nacional. É um número muito pequeno. A maioria absoluta, 90% da produção, é para exibição regional. Tem Bollywood que já se espalhou, é vendido no ocidente. Mas as várias regiões produzem e consomem o próprio cinema. Aqui houve uma tentativa há um tempo atrás, de um pessoal do Rio Grande do Sul. Eles mantinham um circuito que parava em Santa Catarina, e que, de alguma maneira, aumentava a produção de cinema e de televisão. Eles conseguiam produzir ficção, dramaturgia para a televisão, e exibir no mercado do Sul do país. É uma coisa que o Brasil pode fazer.” Roque Santeiro e Padre Cícero “Eu estava no teatro no dia que ‘O Berço do Herói’, que é a origem de ‘Roque Santeiro’, foi proibida pelo Lacerda. O Dias Gomes mudou o título, rearrumou e fez uma novela, que por sua vez também foi proibida. Só veio a ser liberada quando o Brasil entendeu que precisava rir de si mesmo.” “A história do Roque Santeiro é uma história que não é exatamente de propriedade do Brasil nem do Dias. É uma lenda medieval. Aliás, é bíblico, é a história do filho pródigo, da pessoa que some, que é dada como morta e que volta, é o eterno retorno. Quando eu fui fazer o Roque Santeiro, o que me inspirou foi muito mais essa memória – que é da humanidade – do que a memória de Juazeiro. Até porque Juazeiro é um fato concreto, observável, visível, uma cidade que tinha 500 pessoas e que agora tem quase 300.000! O Roque é uma ficção.”


“Algumas pessoas que têm habilidade com determinados sotaques e outras não. No Roque cada um fala como sabe, não existe um sotaque comum. Asa Branca, a cidade fictícia, não é um lugar determinado. O Paulo (Ubiratan) falava: Asa Branca é o Brasil, então os atores estão livres para escolher a forma mais confortável de falar. E fizemos isso. Como o Roque entrava depois do capítulo 20, eu fiquei assistindo e vi que era um carnaval de sotaques. A minha única saída para ser notado era não fazer nada, era trabalhar como se eu estivesse fazendo uma história em quadrinhos, com um desenho de personagem que tem um chapéu, um óculos...”

exatamente como o Dom Quixote de Cervantes, mas é uma reescrita. E Borges brinca com a ideia de que é de fato uma reescrita, porque o valor que o Pierre Menard dá a cada palavra não é precisamente o valor que o Cervantes dava a cada palavra e o leitor de hoje não é o leitor do século em que o Cervantes escreveu. Estar pronto não é tudo “Estar pronto é tudo? Não, tudo é nunca estar pronto, é ser movido pela dúvida. Nunca está acabado, é sempre uma reconstrução. Eu tenho sempre um, dois, três projetos novos, estou sempre começando algo, criando, sempre.”

O reino das palavras “Eu tenho um método que é inspirado num poema que diz assim: penetra surdamente no reino das palavras. Meu trabalho como ator vai muito nessa direção de pegar o texto e tentar entender o que há por trás, o que significa, qual o valor daquela palavra, que espaço eu ocupo aqui... Jorge Luis Borges tem um personagem interessante, o Pierre Menard, que é um autor fictício que estaria reescrevendo o Dom Quixote. Ele escreve

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#caririliteratura

AMORES DO PALADAR, LEMBRANÇAS NA MESA

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e comida é afeto e afeto é memória, a mesa de refeições é um dos grandes centros evocativos, inspiradores e amorosos da vida. Que o diga Anton Ego, o mais exigente crítico gastronômico de Paris. Implacável em suas avaliações, o sofisticado Anton foi às lágrimas numa noite gustativa, quando lhe serviram de surpresa uma iguaria simples, rústica, um mero “prato de camponês”. Detalhe crucial: era a mesma mistura de legumes quentes que ele comia quando criança. Quem viu o hilariante “Ratatouille”, um filme para pequenos que delicia estômagos adultos, lembrará do episódio: o crítico se deleita com o sabor da comida, que o remete imediatamente ao ratatouille feito pela mãe. Logo na primeira garfada, é fulminado por um raio de afeto. Sente o baque. Então larga as anotações de trabalho e devora satisfeito a iguaria, revivendo o menino que um dia recebeu este mesmo prato das mãos de quem mais amava. Os sabores que nos maravilham e as lembranças que os acompanham têm geralmente sua matriz em nossas primeiras refeições: a siriguela comida no pé, o arroz de leite amornado pela mãe, o bolo de milho da tia preferida, os quitutes da casa da avó, os almoços barulhentos e os jantares em família. No centro da nossa infância perdida, arquitetamos os amores perfeitos, os sabores fundamentais e as sementes de um repertório gustativo futuro, recheando os padrões existenciais de que nos serviremos vida afora. Não à toa, as cenas do passado saltam das panelas e vão conosco à mesa. Em outras palavras: lembrar dá água na boca e devorar faz reviver. Essa força evocativa é um dos maiores encantos da cozinha. Até os enfastiados já se depararam com temperos e aromas que remetem magicamente a uma época específica, um dia especial, uma pessoa querida, uma cidade importante, uma tarde de devaneios 60 CARIRI REVISTA

ou as férias de fim de ano. Muito antes de Anton Ego, o escritor francês Marcel Proust viveu uma experiência que resultou na mais famosa cena de memória gustativa de toda a literatura ocidental, tornando célebres uns bolinhos em forma de concha de vieira, as madeleines, que ele comia quando criança. No primeiro dos sete volumes de “Em Busca do Tempo Perdido”, as madeleines são a chave da “memória involuntária”, aquela que pode ser despertada por um sabor ao acaso e que não depende da inteligência, mas da emoção. A cena é longa, sinuosa, inspirada. Depois de anos sem madeleines, o narrador por acaso aceita comer uma, que a mãe lhe oferece com uma xícara de chá. Sem suspeitar do que viria, morde o doce, dá um gole na infusão. E então, surpresa. “No mesmo instante em que esse gole, misturado com os farelos do biscoito, tocou meu paladar, eu estremeci, atento ao que se passava extraordinariamente em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem a noção de causa. (...) De onde poderia ter vindo essa alegria poderosa?”. Ele se questiona, divaga, esmiúça a sensação e de súbito entende: a lembrança vinha das madeleines que sua tia Léonie lhe dava muitos anos antes, quando ia visitá-la em Combray. Antes quase esquecido, o lugarejo de infância ressuscita das cinzas do tempo, graças àquele sabor intacto na memória. E junto com o gosto preservado, ergue-se uma antiga arquitetura emocional: os detalhes do quarto de Léonie, o pequeno pavilhão que dava para o jardim, a casa da família... “E com a casa, a cidade, da manhã à noite em todos os tempos, a praça para onde me mandavam antes do almoço, as ruas aonde eu ia correr, os caminhos por onde se passeava quando fazia bom tempo”. Ao reencontrar o gosto perdido, Proust reconstrói a essência fugidia do passado, o ser que ele foi naquele instante de contornos empalidecidos pela vida adulta.


FOTOS: Rafael Vilarouca

Impossível ficar indiferente à madeleine proustiana: “Todas as flores do nosso jardim e as do parque do Sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas residências, e a igreja, e toda Combray e suas redondezas, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha xícara de chá.” Nesta época do ano, em que os sabores do passado se misturam com os planos para o futuro, a Cariri Revista quis saber de diferentes caririenses qual é a comida que os leva de volta à infância, a chave gustativa do tempo, o sabor de afeto mais profundo. Muitas respostas foram servidas e a mesa ficou repleta: bolo de carimã, tareco, mugunzá, pequizada... Refeição é afeição: muitos se emocionaram, alguns choraram, outros foram pedir às mães que preparassem as delícias passadas. E você, leitor, qual é a sua madeleine preferida? PARA DAR SUSTÂNCIA “Éramos oito irmãos e morávamos em uma casa muito grande, rústica, feita à moda antiga, de meia parede, com muitas janelas. Ficava no Crato, em frente à Praça Bicentenário, que na época a gente chamava de bosque. No quintal havia muitas árvores. Eu costumava ficar pendurado em um pé de siriguela tocando violão e, entre o intervalo das músicas, comia uma fruta. Na época, a dificuldade de criar tantos filhos gerava muita criatividade. A comida tinha que ter determinados nutrientes, mas não podia ser nada caro. O fubá de milho era barato, assim como a massa de puba. Então, uma comida que me faz lembrar da minha infância é o mingau de carimã, que é a massa fermentada da mandioca, que chamam de puba. Pega essa massa, dissolve no leite com ovo, adocica e bota uma pitadinha de sal pra constar. Isso minha mãe servia muito no café da manhã, porque dizia que dava sustância”.

COMENDO PELAS BEIRADAS “Quando eu como arroz de leite, eu lembro da tarde. Acho que o Crato era um pouquinho mais frio naquela época e essa comida quente esquentava o entardecer. A luz do fim do dia... É colocar arroz de leite na boca e sentir de novo aqueles momentos que tive na infância – momentos que ficaram mais esporádicos quando cresci. Eu criança vinha aquele prato enorme com dois ou três dedos de arroz de leite muito quente. Foi quando eu entendi o que é comer pelas beiradas. As beiradas vão esfriando e ficando mais gostosas que o meio, porque se botar a colher no meio queima tudo. E o mais bacana é a diferença de textura. O arroz vem quente no prato, depois esfria e se forma aquela camada de leite. Lá dentro fica cremoso. Aí eu ficava assistindo o ‘Sitio do Pica-Pau Amarelo’, cinco horas da tarde, a hora que vinha essa comida. E isso era todos os dias, dos meus seis aos doze anos. E agora, toda vez que eu como arroz de leite, eu me lembro daquela parte da tarde. Até pedi à minha mãe para fazer hoje”. [Allan Bastos, fotógrafo]

CHEIRO DE CHUVA, CHEIRO DE BOLO “Eu chorei muito lembrando. É como se você voltasse ao passado e sentisse até o cheiro. Eu lembrei do bolo de milho de minha tia Jú. Eu era bebê, tinha uns três anos, e a gente ficava no quintal pra roer a panela do bolo de milho que ela fazia. Era no final do ano, ela sempre fazia esse bolo no final do ano. Eu me lembro do cheiro do bolo, do fogão à lenha e do cheiro da chuva. Era o casamento de dois cheiros quando eu lembro disso, o cheiro do bolo e o cheiro da chuva no quintal. Sempre que eu acordava eu corria pra lá, de calcinha, corria pra casa de tia Jú. Quando chegar no Mauriti vou correr de novo. [Yasmine Moraes, escritora e fotógrafa]

[Abidoral Jamacaru, músico e compositor]

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NO INTERVALO DOS ESTUDOS “Quando eu como salada de frutas, me lembro dos trabalhos de equipe que fazia nas casas dos colegas. Sempre tinha uma salada de frutas para comer. Na época, a gente pensava que fazia uma coisa séria, mas era tudo uma grande brincadeira. E a gente brincava muito. Pega-pega, cabra-cega, esconde-esconde, e aperreava o povo que passava na rua”. [Antonio César Arraes, profissional liberal]

TARECO NAS FÉRIAS DE INVERNO “Tareco era uma comida que minha avó dizia que era do Pernambuco, feita de ovos e farinha de trigo. Minha avó dava à massa uma forma arredondada, a massa parecia com a de sequilho. Então, quando eu tinha 12, 13, 14 anos, eu vinha passar minhas férias em Mauriti. Minha avó tinha uma fazenda com tudo: cavalo, pato, marreco... Bem no início havia uma cancela muito grande, onde a gente brincava de não deixar ninguém passar. As férias coincidiam com o período de inverno, então sempre tinha umas coisas gostosas, como pamonha, canjica. O tareco minha avó sempre servia como merenda, com café com leite ou então com ponche. O ponche ela fazia espremendo muitas laranjas em água quente. E a laranja era muito doce, muito gostosa. Era bom demais!”. [Amanda Tavares, funcionária do Memorial Pe. Cícero]

PEQUIZADA PARA 15 “O prato que mais me lembra a época de menino é pequizada. É tipicamente regional, não só por causa do sabor, que me apaixona, mas também porque era um prato econômico. Para uma família de condições precárias, era um privilégio comer aquele caldo gostoso. Como meu pai nem sempre podia comprar carne, o pequi supria as proteínas. Então, a pequizada não era simplesmente água e pequi. Era água, leite e mais uns temperozinhos. Minha mãe servia com arroz. Aqui no Crato praticamente todas as casas faziam pequizada, era sempre o cheiro que se sentia na hora do almoço. E uma pequizada – para ser séria e de vergonha – tinha que ter no mínimo duas dúzias de pequi, pra ficar aquele caldo grosso e roer bem o caroço do pequi. Então haja pequi! No nosso caso, éramos nada menos que 15 filhos!”. [Francisco Alves Rocha, bancário aposentado]

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MUGUNZÁ ÀS QUARTAS “Minha mãe teve 20 filhos, se criaram 17. E todos nós passávamos muito tempo dentro de casa. Minha mãe era rígida, nosso tempo era da escola pra igreja. Os mais velhos cuidavam dos mais novos e as brincadeiras eram sempre com os irmãos. Nós sempre fomos muito unidos. E toda vez que eu como mugunzá, eu me lembro das brincadeiras de birro com minhas irmãs e irmãos e da voz de minha mãe chamando pra almoçar. É sagrado. Até hoje, toda quarta-feira tem mugunzá aqui em casa”. [Bernadete Cabral, professora de piano aposentada] Mel de rapadura “O gosto de mel de engenho, da merenda da infância, a gente comia garapa com pão doce. Quando fui estudar em Salvador, já adolescente, meu pai mandava uma carga de rapadura para o ano inteiro. Uma carga eram 100 rapaduras. A gente ficava lá direto, de março a julho. Todo dia eu partia cada rapadura no meio, dividindo para mim e para meu irmão Zé Arnaldo, e derretia na frigideira para fazer o mel. Zé Arnaldo ficava do meu lado olhando, esperando o ponto. Depois comíamos num prato de sopa, o mel misturado à farinha. Era um momento grande aquele, de partir, derreter e depois a gente se deliciar com aquele gosto que era o sabor de casa, a lembrança forte, doce mesmo, da família que estava longe. Eu tinha 13 anos de idade.” [Arnon Bezerra, deputado federal]


NO CAFÉ DE AMÁLIA “Sempre que eu como doce de leite, recordo do que era feito por uma senhora do Juazeiro de nome Amália Maria Pereira da Silva. Ela fazia o melhor doce de leite, talvez, do mundo... Foi por volta de 1950 – eu era adolescente – que comi pela primeira vez. Eu era frequentador assíduo de sua casa, o café de Amália como era chamado. Ali se encontrava toda a cidade, ficava quase na esquina da Rua do Cruzeiro com a Rua São Paulo. Além do doce, ela fazia outras comidas e vendia. Mas o que me marcou foi o gosto do doce de leite. Na minha geração, não há quem não se lembre dele.” [Raimundo Araújo, escritor]

mingau DE CARIMÃ O músico Abidoral Jamacaru ensina aqui a fazer o mingau de carimã, que muito o deleitava quando criança. Abdoral explica que o prato é uma herança dos índios cariris e lamenta o esquecimento devotado a esse quitute de alto teor nutritivo e baixo custo. Ingredientes (porção para três pessoas): • 02 colheres de sopa de massa fermentada de mandioca (carimã) • 01 ovo • Açúcar a gosto (pode ser usado o mascavo) • 02 copos de leite • 01 pitada de sal Modo de fazer: Bata tudo no liquidificador. Leve ao fogo e mexa até ficar com a consistência de um purê, aparecendo o fundo da panela. Bom apetite!

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#cariricultura

O espetáculo holandês “Braakland” foi exibido ao ar livre 64 CARIRI REVISTA


Rafael Vilarouca

Por Tuty Osório

QUANDO A ARTE SE MOSTRA Espetáculos, performances, exposições e intervenções ocuparam os teatros, praças e centros culturais do Cariri durante a Mostra Sesc 2011. Fomos conferir de perto a programação e destacamos a relevância do evento.

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Rafael Vilarouca

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cidade é o espaço da revolução, da mudança, o cenário da cultura como expressão de um tempo que se subverte e se narra através da arte. É com estas premissas que Nicolau Sevcenko nos fornece as pistas para acompanhá-lo nas trilhas urbanas da São Paulo dos anos 20 do século passado, na história contada e analisada por ele em “Orfeu Extático na Metrópole”, que a Companhia das Letras lançou em 1992. A cada novembro, a Mostra Sesc Cariri de Culturas acontece espalhada nesse imenso palco citadino descrito por Nicolau. Aliás, multi-citadino, uma vez que se ampliou além das fronteiras do Crato, onde nasceu despretensiosamente em 1987, restrita às artes cênicas, com o objetivo de dar visibilidade aos grupos locais e realizar trocas com outros centros, recebendo alguns convidados de fora. Dane de Jade, hoje consultora do Sesc, era a coordenadora de cultura no Crato no ano de lançamento. Foi de sua criação e determinação que surgiu a Mostra. Carla Prata, a atual coordenadora na cidade, também está na aventura desde o início. Ao longo dos anos a Mostra Sesc diversificou­ se para outras artes: incorporou as artes plásticas, a literatura, o audiovisual, a música. E estendeu-se para outras cidades. Em 2010 visitou Fortaleza logo após encerrar-se no Cariri. Em 2011 aconteceu simultaneamente – além do Crato e Juazeiro do Norte – em Nova Olinda, Caririaçu, Missão Velha, Barbalha, Araripe, Potengi, Altaneira, Campos Sales, Jati, Brejo Santo, Penaforte, Mauriti, Assaré, Jardim, Milagres, Farias Brito, Várzea Alegre, Salitre, Antonina do Norte e Porteiras. Espetáculos, apresentações, performances, exposições e intervenções ocupam teatros, centros culturais, galerias, praças, esquinas, palcos itinerantes. Hoje vêm artistas do mundo todo. Vizinhos latinos e europeus, em especial. Do Brasil participam artistas de todos os estados. Para assistir, há os caririenses bons consumidores de cultura, gente de Fortaleza e de outras cidades fora da região. Os visitantes são, em sua maioria, pessoas ligadas à produção cultural. O público local, por outro lado, vem de todas as classes, bairros, idades e profissões, motivado pela curiosidade e pelo prazer de contemplar, participar, surpreender-se, encantar-se. Dona Cotinha, de 73 anos, na fila do teatro do Centro Cultural do Banco do Nordeste em Juazeiro do Norte, para assistir “O Reino do Mar Sem Fim”, encenada pelo Grupo Pedras, do Rio de Janeiro, comenta 66 CARIRI REVISTA

A atriz Maria Vitória como Maria de Araújo

que não perde uma noite de espetáculo. “Venho com o meu sobrinho, que na minha idade não é seguro sair sozinha”, diz ela, explicando que mora no bairro João Cabral. Costureira aposentada, ainda faz roupas para se distrair ou quando lhe pedem. Não houve uma peça da qual gostou mais do que de outra. ”Gosto de tudo. Tudo é novidade, tudo é diferente”, entusiasma-se. E filosofa: “Olhar o teatro é mais melhor que olhar a rua, que parece ser sempre a mesma coisa, todo mundo andando pra lá e pra cá. Aqui é todo o dia uma história nova, pessoas diferentes que vêm de outros cantos pra contar as histórias. Eu venho todo o dia, porque não serve ficar em casa curtindo doença de velho!” D. Cotinha observou bem. Todos os dias aconteceram eventos muito diversos e diferentes na Mostra Sesc. Houve espetáculos sobre palcos convencionais, como “Os Cactos”, do Grupo cearense Expressões Humanas, que chamou a atenção para o problema dos torturados e desaparecidos da ditadura militar, e “Maria de Araújo”, texto inédito do brilhante dramaturgo Ricardo Guilherme, que resgata a memória da beata protagonista dos milagres que tornaram Juazeiro do Norte um destino religioso consagrado, em interpretação impecável dele próprio e de Maria Vitória como Maria. Houve outros espetáculos com linguagens ancoradas na música, na exuberância de figurinos, cenários e gestos, extrapolando o texto. “Instantâneos”, da


Companhia Bondrés do Rio de Janeiro, inspirou-se no teatro-dança dos rituais de Bali, misturando-se ao teatro popular brasileiro para mostrar situações cotidianas. Com cenários e figurinos coloridíssimos, música executada ao vivo, instrumentos artesanais, tudo com clara referência oriental, a récita provocou gargalhadas vigorosas, palmas calorosas, mas decepcionou alguns. “A pessoa acha que se veste de chinês, bota umas máscaras engraçadinhas, toca uma musiquinha, fica andando pra lá e pra cá e já agrada! Que tédio!”, comentou uma jovem que se encaminhava para abandonar a platéia antes do final. As baianas Aícha Marques e Maria Menezes prenderam o público do começo ao fim com “Uma Vez, Nada Mais”, peça inspirada na era do rádio. Os cenários bem cuidados reproduziam uma casa típica das décadas de 30, 40, no período áureo da Rádio

Nacional. Os figurinos, igualmente fiéis, transportavam o público para a época retratada. As atrizes ocuparam o palco com movimentos do cinema mudo ritmados com a música que acompanhava essas fitas. Em momentos intercalados, a programação da rádio ecoava programas de auditório, rádionovelas e intervalos comerciais, constituindo o único texto presente. Um espetáculo bonito, “para toda a família”, como se dizia no tempo que o inspirou. Nada lúdico, elaborado com o objetivo inequívoco de chocar, magoar, expor sem sofismas a realidade contemporânea que nos fez retornar aos requintes da barbárie medieval, “Braakland”, criado e dirigido por Lotte van de Berg e Guido Kleene, da Holanda, foi exibido ao cair da noite, num descampado fora das áreas urbanas, no Sítio São José, localizado na estrada entre Juazeiro e Crato. Dois ônibus fretados para levar o público

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A arte do grafite CARIRI REVISTA 67


e alguns carros que os seguiam estacionaram longe do espaço onde o espetáculo aconteceu. Da estrada até lá, uma pequena caminhada e a disputa por um lugar nas arquibancadas de madeira, montadas para a ocasião. Muitos acomodaram-se no chão, sobre a terra e o mato. Tudo aconteceu a 50 metros de distância do público, ao qual se pediu silêncio absoluto. Nem todos conseguiram cumprir o compromisso – segredando comentários, reprimindo risos, mexendo-se com ansiedade. Parte da audiência é de moradores da zona rural, mas não foram eles os que tiveram maior dificuldade em aquietar-se. Diante de cenas de estupro, assassinatos, profanação de cadáveres, assaltos, muitos reagiram com gargalhadas nervosas, como se não soubessem que outra reação expressar. Os atores chegaram a cavar com as mãos a própria cova, numa hiper realidade desconcertante para o espectador mais treinado aos experimentalismos do teatro.

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Ao final, os aplausos romperam emocionados, por parte de todos, mesmo que alguns não soubessem exatamente porque se emocionaram. O diretor Guido Kleene ofereceu vinho tinto aos presentes em copos descartáveis, servindo-os pessoalmente de um garrafão revestido de palha. Após esse ato de gentileza com o público, Guido comentou com exclusividade para a CARIRI o que há de específico em mostrar a sua criação no sertão do Brasil. “Nós fizemos essa performance em vários países e é a nossa terceira vez no Brasil. Estivemos antes em São Paulo e em São José do Rio Preto. O que eu gosto aqui, é que eu sinto que tem menos cultura de teatro, é um público mais fresco, no sentido de imaturo, as pessoas nunca viram nada parecido, não sabem como reagir e questionam-se: isso é um filme? O que é isso? Também não sabem se devem ou não falar, rir ou não... E eu acho que isso é interessante. Faz-nos pensar, nós que fazemos teatro, faz-nos pensar novamente sobre o que é isso que eu estamos fazendo”. Guido Kleene encerra a sua fala sublinhando: “Eu sinto que as pessoas entendem o que nós fazemos,


mas da forma delas. Elas olham atentas, achando interessante, e eu fico feliz com isso”. Os integrantes do público mais maduros, menos frescos, saem meio incomodados, mas todos parecem de fato gostar e entender, também à sua maneira. Houve mais na Mostra Sesc de Culturas 2011. A exposição do brasiliense Ricky Seabra propôs, em imagens montadas no computador, quase esboços, como o Crato voltaria a ser Crato se reproduzisse em construções reais sua bela arquitetura histórica de platibandas e fachadas Art Déco, refazendo-se para se resgatar. E houve a Empresa de Memórias Made up Memories, de Ruth Sousa, projeto de arte que remonta memórias de episódios que nunca aconteceram, encomendados por clientes de verdade, interpretados e recriados pela artista. É uma fabricação de lembranças inventadas, com o uso de fotografias antigas, velhos recortes de jornal, cascas de ovos que abrigam brotos de feijão como vasos, aquários, peças de vestuário, objetos variados. E houve a música de todos os estilos, lugares e referências, mostrada também em espaços fechados e ao ar livre. A retrospectiva da obra do cineasta Ro-

semberg Cariri. As manifestações de tradições como as terreiradas e a feira de cordel. As ações formativas em dezenas de oficinas, os seminários que expuseram a produção acadêmica, o teatro de rua, as fotos coladas em postes, muros e paredes das Veias Urbanas de Rafael Vilarouca, as pichações nas ruas do grupo Acidum de Fortaleza. Tudo ao mesmo tempo. De manhã, de tarde, de noite, de madrugada. Não são as estatísticas de fluxo de gente, ocupação hoteleira, cifras movimentadas que traduzem a importância histórica e social deste evento que leva a erudição ao povo, que ensina o popular aos eruditos. A relevância desta arena de culturas promovida pelo Serviço Social do Comércio – Sesc, ficou comprovada nos rostos alegres dos que circularam por ela, mais, ou menos, agradados do que viram, todavia certamente abalados pelo salutar poder de transformação da arte.

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#cariricultura

ONDE O PÚBLICO SE ENCONTRA Os centros culturais são espaços de congregamento. Ao mesmo tempo em que respaldam a formação de plateias, impulsionam vocações e divulgam talentos, eles robustecem as atrações turísticas locais, criam novas ocupações e geram renda, movimentando a chamada economia criativa. No Cariri, alguns desses espaços se destacam pela consistência das ações formativas e pelo trabalho em prol da diversidade regional.

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Rafael Vilarouca

Exposição no Centro Cultural BNB

CCBNB-CARIRI: AMPLITUDE E DIÁLOGO

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om seis anos de funcionamento em Juazeiro do Norte, o Centro Cultural Banco do Nordeste-Cariri não para. Em ritmo de intensa reinvenção, experimenta conceitos, estilos e suportes, distribuídos numa ampla programação. Suas iniciativas estabelecem pontes entre saberes, transformando a sede, na movimentada Rua São Pedro, num espaço de encontro dos diversos públicos, que têm acesso livre e gratuito às atividades. Desde a abertura, em 2006, mais de um milhão de pessoas já passaram pelo Centro, cuja agenda acumula um total aproximado de 4.000 eventos – a contar da inauguração. “O Centro Cultural Banco do Nordeste oferece uma programação cuja premissa é a formação de plateias, dentro de uma concepção diferenciada, que considera a arte e a cultura como elementos indissociáveis do processo de desenvolvimento regional”, afirma Lenin Falcão, gerente executivo do CCBNB-Cariri.

NO MEIO DA RUA, DO LADO DO POVO Atualmente o CCBNB-Cariri trabalha com 25 programas voltados para as áreas de música, artes visuais, artes cênicas, literatura, cinema, tradição cultural, filosofia, história e atividades infantis, além de cursos e oficinas de arte. “Nem todos os programas são desenvolvidos mensalmente, mas eles acontecem pelo menos cinco vezes ao ano, a exemplo do Conversas Filosóficas”, explica Lenin Falcão. Nesses programas, os artistas do Cariri usufruem o espaço que lhes cabe e jamais são vistos como coadjuvantes. Em paralelo, ao serem levados a outras cidades onde o Banco do Nordeste mantém centros culturais – como Fortaleza e Sousa (interior da Paraíba) –, os artistas caririenses estabelecem um diálogo enriquecedor com realidades desiguais. A troca de experiências também se dá a partir de cursos, oficinas, debates e palestras sobre cultura e desenvolvimento. E finalmente, através do Programa Arte Retirante, os artistas abandonam as “quatro paredes” do CCBNB-Cariri e vão até as comunidades, levando shows, espetáculos e recitais. Dentro ou fora das casas de cultura, “todo artista tem que ir aonde o povo está”. CARIRI REVISTA 75


ENTRE A TRADIÇÃO E O EXPERIMENTO “O Sesc é uma entidade que presta serviços de caráter sócio-educativo nas áreas consideradas âncora para o desenvolvimento social: cultura, educação, saúde e lazer”, explica Antônio Queiroz, técnico em cultura do Sesc Juazeiro do Norte. “Sendo assim, a política de responsabilidade social da instituição é pautada no conceito de ampliação da participação popular em atividades fundamentais para o desenvolvimento humano, que nem são viabilizadas pelo Estado”, completa Antônio. No Ceará, o Sesc possui seis unidades – duas em Fortaleza e quatro distribuídas entre o Crato, Juazeiro do Norte, Iguatu e Sobral. As ações implementadas buscam valorizar as práticas culturais locais, bem como suas estéticas, por meio do diálogo integrativo entre os projetos de âmbito nacional e as manifestações representativas das identidades culturais regionais. No Cariri, alguns dos eventos desenvolvidos pelo Sesc já fazem parte do calendário e arregimentam um grande número de visitantes. É este o caso da Mostra Sesc Cariri de Cultura, que em 2011 realizou a sua 13ª edição, uma grande miscelânea de teatro, dança, exposições, shows, instalações, rodas literárias, performances poéticas e mostras de cinema e vídeo. Na ocasião, grupos tradicionais e produções experimentais dialogaram em perfeita harmonia. CARIRI: TERRITÓRIO FÍSICO E MENTAL Para apresentar a grande riqueza cultural do povo Cariri, cujos saberes se enriquecem no cotidiano, O Sesc criou o projeto Ao Gosto Popular, que congrega reisados, bandas cabaçais, violeiros, repentistas, cordelistas e outros responsáveis por carregar “a marca e o sotaque do território físico e mental do Cariri”, como define o técnico Antônio Queiroz. “O Sesc vem mostrar que a questão cultural não pode estar ausente das políticas de promoção do bem-estar social. Nosso projeto rende homenagem à maestria da cultura de raízes populares”. Outros programas, como o Sonora Brasil (que põe o público em contato com a diversidade musical brasileira) e o Palco Giratório (cujo objetivo é difundir e descentralizar as artes cênicas no país) incrementam o 76 CARIRI REVISTA

conjunto de ações do Sesc, que tem como principais parceiros as instituições de ensino e as prefeituras municipais. Por causa de uma parceria com a Universidade de Coimbra, o público português pôde ver os Irmãos Aniceto e outras atrações cearenses na Mostra Sesc Luso-Brasileira de Culturas, que aconteceu em junho de 2011, em Coimbra. “Queremos agregar às nossas ações um caráter de construção do conhecimento em atividades diversas, sobretudo no que diz respeito à transdisciplinaridade e às formas contemporâneas do fazer artístico e da produção cultural. A ideia é fortalecer cada vez mais o nome do Sesc como agente de desenvolvimento, sustentação e disseminação da cultura Cariri”, finaliza o técnico Antônio Queiroz.

Rafael Vilarouca

Centro Cultural do Sesc em Juazeiro


#cariricrônica

CARIRIANAS 03:

DESPEDIDA Por Ricardo Rigaud Salmito

Ilustração: Julião JR

[Professor e cronista ]

Bem manchado por inúmeras mãos, o vidro do terraço do aeroporto recebe agora, em pequena diagonal, mais uma. Marcada, magrinha em braço esticado, de pele castigada. Uma senhora ali de vidro a dentro observa um avião que, fechada a porta, começa a se preparar para deixar o Juazeiro. Em breve vai se dispor para decolagem. Ela chora, chora, passa a outra mão no rosto. Espera, olha e chora. Olho e espero. É madrugada, seu pranto se espalha mais alto pelo silêncio espaço-temporal das emoções. O trator faz o avião se mover e, aos poucos, vai ganhando a pista. Ela, na limitação tátil de realizar algum contato mais efetivo com aquela máquina e com quem nela parte, pronuncia entre prantos: “que Deus abençoe esse avião!” Em seguida volta a chorar. Os raros dali da sala se entreolham, baixam a cabeça, sentem o peso do vidro, do avião e do olhar que separa aquela mulher de um querer que viaja. Ela vem para a cadeira, senta e a mesma mão que tocou o vidro, toca agora seu próprio rosto e o esconde. Um silêncio franco se estabelece. O avião vai embora. Ainda se ouvia o ruído da aeronave, quando desci as escadas. Só pensava no

vidro que amparou a mão e as manchas das mãos. Vidro que é da mesma natureza da saudade, que a gente olha de longe, que sustenta a clareza do outro lado, mas que não (se) está junto. São manchas de memória do toque. A despedida é um território do corpo, despossuído nesse mundo de idas e vindas, insistente de soluços. Sem solução. Partir é definitivamente chegar a algum lugar. Mas também é se ausentar e mudar de lado. Quem vai embora mistura cidadania e nomadismo, apego e fuga. Em nosso mundo de constante circulação, por outro lado, ir embora não determina mais o signo do para sempre. Existem as férias, a flutuação da dinâmica do trabalho, a promoção das companhias aéreas, as retomadas... Tem sempre alguém em transpasse, sob palavra, a chorar na despedida. E alguém que de última hora resolve ficar, porque a cidade aciona seus benefícios e a ocupação do cuidado propõe permanência. Quem nunca volta, viaja em casa, recolhido de saudade. Em outra cidade, sob o efeito da pausa momentânea do dia de serviço, lugares se confundem. O corpo pede passado. O passado pede outro corpo. E como toda tecnologia é de deslocamento,

algumas nos movem, outras fazem as coisas se moverem ao redor de nosso corpo imóvel, ruína do chão. ... Dias depois desço na rodoviária do Crato. Demoro ainda sob o efeito ridículo-circular das correntes que dificultam o acesso ao terminal e confundem, atrapalham, além de, curiosamente, estarem sempre fechadas. Nunca tinha visto acesso permanentemente fechado. Manutenção cíclica do medíocre. Despedida presa a cadeado a nunca mais voltar. Será empecilho para não se perder gente, para ninguém ir embora? Mas também ninguém pode chegar... Piora o não-lugar: nem ligar. Burocracia do chegar e do partir. Às vezes penso que toda cidade deveria ter suas medidas de acolhida e despedida, algo como um projeto permanente de amparo, ao mesmo tempo lugar e sentimento para retorno e permanência, além de sua própria salvaguarda de poesia, atenta aos afetos urbanos inaugurais e de percurso. Falta uma delicadeza sutil aos espaços de chegada e partida: credencial de cidade. É isso. Vida segue, em trânsito. No fundo, no fundo, lugar definitivo mesmo é a estrada, que não chega nem parte, atravessa. CARIRI REVISTA 77


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#cariricolunadesaúde

Câncer de próstata Próstata é uma glândula do sistema reprodutor masculino, que produz e armazena parte do fluido seminal. Câncer de próstata é o tumor mais comum em homens acima de 50 anos.

Por Drauzio Varella

Os fatores de risco incluem idade avançada (acima de 50 anos), histórico familiar da doença, fatores hormonais e ambientais e certos hábitos alimentares (dieta rica em gorduras e pobre em verduras, vegetais e frutas), sedentarismo e excesso de peso. Os negros constituem um grupo de maior risco para desenvolver a doença. Sintomas A maioria dos cânceres de próstata cresce lentamente e não causa sintomas. Tumores em estágio mais avançado podem ocasionar dificuldade para urinar, sensação de não conseguir esvaziar completamente a bexiga e hematúria (presença de sangue na urina). Dor óssea, principalmente na região das costas, devido à presença de metástases, é sinal de que a doença evoluiu para um grau de maior gravidade. Diagnóstico O câncer de próstata pode ser diagnosticado por meio de exame físico (toque retal) e laboratorial (dosagem do PSA). Caso sejam constatados aumento da glândula

ou PSA alterado, deve ser realizada uma biópsia para averiguar a presença de um tumor e se ele é maligno. Se for, o paciente precisa ser submetido a outros exames laboratoriais para se determinar seu tamanho e a presença ou não de metástases. Tratamento O tratamento depende do tamanho e da classificação do tumor, assim como da idade do paciente e pode incluir prostatectomia radical (remoção cirúrgica da próstata), radioterapia, hormonoterapia e uso de medicamentos. Para os pacientes idosos com tumor de evolução lenta o acompanhamento clínico menos invasivo é uma opção que deve ser considerada. Recomendações • Homens sem risco maior de desenvolver câncer de próstata devem começar a fazer os exames preventivos aos 50 anos; • Descendentes de negros ou homens com parentes de primeiro grau portadores de câncer de próstata antes dos 65 anos apresentam risco mais elevado de desenvolver a doença; portanto, devem

começar a fazer os exames aos 45 anos; • Pessoas com familiares portadores de câncer de próstata diagnosticado antes dos 65 anos apresentam risco muito alto de desenvolver a doença; por isso, devem começar o acompanhamento médico e laboratorial aos 40 anos; • Homens com níveis de PSA abaixo de 2,5 ng/mL devem repetir o exame a cada 2 anos; já aqueles com PSA acima desse valor devem fazer o exame anualmente; • Resultados de PSA e toque retal alterados são relativamente comuns, mas podem gerar muita angústia, apesar de não serem suficientes para estabelecer o diagnóstico de câncer de próstata; para confirmá-lo é indispensável dar prosseguimento a uma avaliação médica detalhada e criteriosa; • Optar por uma alimentação balanceada e praticar exercícios físicos regularmente são recomendações importantes para prevenir a doença.

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#caririgastronomia

ÁGUA NO VINHO Por Sérgio Pires [Ex-funcionário do Banco do Brasil, praticante de karatê e aluno do curso profissional para sommelier. No momento elabora dois livros sobre vinho, devidamente engavetados ao lado da adega]

“(...) dizem que a água no vinho faz de duas bebidas excelentes, uma péssima. O mesmo acontece à mistura da virtude com o vício. Nem bom, nem mau. Nem digno de ser amado, nem tão vil que se lhe evite o contágio”. José de Alencar (romance “Senhora”)

O PRIMEIRO VINICULTOR EM TERRAS BRASILEIRAS Somente em 1532 os portugueses trouxeram as primeiras mudas de uva, originárias da Ilha da Madeira e dos Açores (Verdelho, Bastardo e Tinta), para o Brasil, com a expedição de Martim Afonso de Souza, cabendo a Brás Cubas ser reconhecido como o nosso primeiro vinicultor. O início do plantio, primeiro no litoral paulista, na Capitania de São Vicente, não foi bem sucedido, devido às condições climáticas adversas existentes. Brás Cubas, por volta de 1551, plantou um vinhedo com as uvas Malvasia, Verdelho, Galego, Bastardo e Tinta, nas cercanias de Tatuapé, no planalto de Piratininga, hoje um bairro da cidade de São Paulo. No mesmo período os portugueses também tentaram cultivar uvas, sem sucesso, em outros locais. O Padre Manoel da Nóbrega relata o cultivo de uvas em Salvador, Bahia. Duarte Coelho iniciou o cultivo em Pernambuco, na Ilha de Itamaracá, onde há registro de cultivo até 1820, quando as plantações foram abandonadas. Enquanto isso os espanhóis iniciavam o cultivo de uvas às margens do Rio Paraná, em Guaíra-PR. 80 CARIRI REVISTA

Acredita-se que no Rio de Janeiro, durante a primeira invasão francesa, (1555/1560) comandada por Nicolau Durant de Villegaignon, que objetivava criar a França Antártica, houve o cultivo de uvas e a produção de vinho. Assim podemos resumir o que foi o primeiro século de colonização do Brasil em relação ao cultivo da uva e à produção de vinho. Na próxima coluna falaremos do séc. XVII. Temo que haverá pouco o que dizer.

Acredito que com estas poucas colunas escritas na Cariri Revista já possuímos intimidade suficiente para falarmos de um efeito colateral que pode ser gerado pelo vinho. Um súbito e repentino aumento da libido. Mais objetivamente: vinho pode dar tesão. Ainda bem que não é sempre. Vai depender do ambiente propício, mas na companhia certa é infalível. Porém, como dizia William Shakespeare em “Macbeth”, deve-se tomar certo cuidado:

O VINHO E O AMOR A etmologia da palavra vinho em português origina-se do verbete latino vinum, que por sua vez tem origem na palavra grega oinos. Assim está nos dicionários. Mas encontrei, num livro italiano sobre vinhos, que vino viria do sânscrito vena, palavra formada do radical ven (amar), de onde também se formou a palavra Vênus, a Deusa do Amor. Daí é que, desde sempre, o vinho é estreitamente ligado ao amor. Ao prazer de viver. Ao relaxamento do corpo e do espírito. De inebriar as sensações e os sentidos do homem. Uma bebida agregadora, em torno da qual as relações humanas se consolidam. Ainda há o contato com o sobrenatural, na utilização do vinho nos rituais religiosos.

Macduf - “Quais as três coisas que o beber especificamente provoca?” Porter - “...Nariz vermelho, sono e urina. Luxúria, senhor, ele provoca e não provoca; provoca o desejo, mas impede o desempenho.” NATAL E REVEILLON Todos que se atrevem a falar sobre vinho serão em algum momento instados a responder a esta temível pergunta: qual o vinho mais adequado para a Ceia de Natal? A dificuldade está na variedade de pratos que podem compor uma Ceia de Natal. Devemos então nos fixar nos pratos principais da noite. Posso destacar: peru, com diversas receitas, algumas bem doces;


pernil de porco, também bastante versátil; bacalhau; carneiro ou salmão defumado. Também temos as tradicionais nozes, avelãs, castanhas secas e portuguesas, além dos doces, com destaque para a tradicional rabanada. Na ceia de Natal além dos pratos variados, temos muita gente. Teremos também de tentar atingir um paladar comum de gosto. Como meu objetivo é simplificar a vida, vou sugerir o mesmo que farei na minha casa. Um espumante para brindar o Natal. Pode ser um Rosé, cuja cor combina com a festa. Depois, um vinho branco Chardonnay para acompanhar as carnes brancas e até o pernil de porco. Para o salmão defumado um vinho com mais acidez fica mais agradável, recomendo um Sauvignon Blanc. Terei também um tinto. Pensei num de média estrutura, equilibrado e com acidez agradável, boa complexidade na boca e capacidade de agradar a todos os paladares. Concluí que estava falando de um Pinot Noir. Na sobremesa, uma harmonização clássica: rabanada com um cálice de vinho do Porto. Reveillon é espumante. Se estiver no litoral, pule sete ondinhas. Em qualquer lugar que estiver tome sete goles de es-

pumante. Mas nada de sacudir a garrafa e espocar a rolha, isto só vale para os corredores de Fórmula 1. Feliz Natal e Feliz Ano Novo. COMO É QUE INVENTARAM O VINHO Povo – Velho Dionísio! Um vinho de presente. Ontem nós bebemos deste vinho e conversamos muito. Velho Dionísio – Vinho especial. Vinho de senador. Povo – Conversando surgiu a dúvida: como foi que inventaram o vinho? Velho Dionísio – Mas eu sei. Quem me contou foi minha avó Dona Réia. Aconteceu há muito, muito, tempo. Povo – Conta pra nós, Velho Dionísio. Velho Dionísio – Houve um tempo em que ainda não haviam inventado o vinho, mas já existiam as uvas e as pessoas gostavam muito de comê-la... Vai abrindo a garrafa meu filho! Na beirada de um deserto havia uma cidade que produzia excelentes uvas e na outra beirada do deserto, lá do outro lado, havia uma cidade que gostava muito de uvas, mas que não conseguia produzir nenhuma. Povo – Aí uma vendia para a outra?

Velho Dionísio – Isso. Só que numa determinada ocasião uma caravana, formada por dezenas de camelos, todos carregados com talhas de barro cheias de uvas, foi surpreendida pela maior tempestade durante uma travessia. Povo – Tempestade no deserto? Velho Dionísio – Era uma tempestade de areia. Era tanta areia que eles se perderam e vagaram por sete dias e sete noites pelo deserto. Os camelos sacudindo as talhas, as uvas se partindo. Após este tempo, ao chegarem na cidade de destino descobriram que dentro das talhas não haviam mais uvas. Povo – Tinha o quê? Velho Dionísio – Tinha uma bebida que eles experimentaram, gostaram, ficaram alegres e dançaram. Queriam mais. Assim, sempre que se aproximava uma tempestade de areia, lá iam eles para o deserto com os camelos cheios de talhas. Até que numa ocasião alguns camelos ficaram doentes e não puderam ir com a caravana. Após alguns dias as uvas das talhas destes camelos também viraram vinho. Ficou mais fácil de fazer. Mas muita gente se lamentava afirmando que o vinho da tempestade de areia era melhor. CARIRI REVISTA 81


#caririliteratura

UM VIAJANTE DA CORTE NO CARIRI DO SÉCULO XIX Recém-lançado pela Fundação Waldemar Alcântara, o diário completo do pesquisador Freire Alemão é uma saborosa volta ao tempo pelos caminhos de um Ceará profundo Por Claudia Albuquerque

Juazeiro, dezembro, 1859: “Seriam sete horas da noite quando chegamos ao Juazeiro e nos aboletamos em casa de uma família (...). É gente branca, pobre, como é quase tudo aqui pelo sertão”. Chapada, dezembro, 1859: “Montamos a cavalo para subirmos o Araripe. A vista do alto e beira-serra é larga e bonita, vê-se a perder de vista grande parte do Cariri; todo ele é mais ou menos montuoso e com serras baixas”. Crato, dezembro, 1859: “Corremos parte da cidade e fomos à feira (na praça do mercado), onde havia grande barulho de gente, que vendia os seus gêneros”. Barbalha, fevereiro, 1860: “Está bem assentada no alto dum monte, tem muitas casas novas caiadas e um ou dois sobrados. A matriz, que estava fechada, me pareceu grande, mas maltratada”. 82 CARIRI REVISTA

Ao longo do tempo em que percorreu o Cariri, o médico e botânico Francisco Freire Alemão (1797-1874) anotou suas impressões nas folhas amarelas de um diário íntimo, listando os sabores “exóticos”, os caminhos tortuosos, as festas populares, a devoção popular, a luta por água potável, as ameaças de seca, as plantas existentes e os personagens do percurso. Sem artifícios de linguagem, o Cariri de 150 anos atrás resplandece como uma aquarela espontânea nas páginas despretensiosas desse escriba da Corte, quase um “estrangeiro” no sertão do século XIX. Notável membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e chefe da Comissão Científica de Exploração, que em 1859 saiu do Rio de Janeiro para inventariar as riquezas naturais cearenses (v. box), Francisco Freire Alemão produziu trabalhos científicos, desenhos e estudos sobre a província, além de um delicioso diá­rio de andanças. A partir dos manuscritos originais pertencentes à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, o Museu do Ceará já havia publicado a parte inicial das anotações, que agora a Fundação Waldemar Alcântara lança pela primeira vez em sua versão completa, como uma joia reluzente do Projeto Obras Raras.


ANTIGAS DEVOÇÕES Adoentado, Freire Alemão passou a noite do dia 24 de dezembro, véspera do Natal de 1859, escrevendo em casa e ouvindo o alarido das ruas do Crato, repletas de repiques e foguetes. “Há aí um grande rumor e gritos e rezas de rapazes, crianças e estalos de fogos da China, atirados no meio do povo. Eu não posso sair, mas diz o Lagos que está curioso de ver-se, porque está tudo iluminado e cheio de tabuleiros de doces muito variados e de mesas com garrafas de bebidas espirituosas”. No dia seguinte, quando a missa é celebrada na praça, o cientista fica impressionado com o silêncio respeitoso da multidão prostrada de joelhos e com as cabeças envoltas em véus brancos. “A amplidão da abóbada celeste, o som do campanário, o bater nos peitos e o canto do bendito entoado por todo o povo eram para produzir comoção”. Outro evento religioso que ele apreciou foi a procissão do dia 01 de janeiro, que abriu o ano de 1960 no Crato: “Pelas cinco da tarde saiu a procissão da Matriz com sete andores, pequenos mas bonitinhos, iam alguns anjos, com saiotes verde-mar”. O povo “marchava com certa ordem” e à noite as melhores famílias se reuniam para um leilão no largo da igreja.

Temperado pela poeira das estradas, o caderno do pesquisador fluminense oscila ao sabor das constantes partidas e chegadas, às vezes subindo serras, às vezes flanando em praias e sempre adentrando os sertões. No improviso dos dias, ele perfila trivialidades de um passado com tesouros cotidianos, esvoaçantes, esquecidos: uma conversa sonolenta na rede, uma noite antiga de luar, o primeiro prato de imbuzada, a prosa de um vaqueiro, a visita inaugural ao Araripe. Durante dois anos e meio (março de 1859 a julho de 1861), Freire Alemão trotou em seu cavalo junto com a comitiva de estudiosos, produzindo documentos que ainda estão sendo publicados depois de décadas de esquecimento e que ajudam a montar as peças de um grande mosaico histórico, fundamental para a compreensão do Ceará, uma província então “distante” da Corte e das grandes decisões. CANAVIAIS E PALMEIRAS Vigilante e minucioso, o chefe da Comissão Científica inicia suas anotações pela viagem ao Crato, que partiu de Fortaleza no dia 16 de agosto de 1859 e passou por Messejana, Aquiraz, Cascavel, Aracati, Russas (“uma alegre povoação assentada

no vale do Jaguaribe), Limoeiro (“tem 40 casas de telha com 140 a 150 habitantes”), Tabuleiro, São João, Jaguaribe, Pereiro, Icó, Lavras, Missão Velha, Juazeiro e, finalmente, Crato. No Cariri foram três meses de andanças, tempo em que os “científicos” – como eram chamados pela população – conheceram sítios, canaviais, tabuleiros, caatingas, montes pedregosos e as árvores copadas do Araripe. “De manhã estudei o pequi e a flor de jatobá”, diz a certa altura um Freire Alemão sempre atento ao verde do entorno, que ele lista no diário: jatobá, jurema-preta, carvoeira, quixabeira, cajueiro-bravo, pau-amarelo, canafístula, tingui-capeta, marangaba, pau-branco, pereiro, jurema, catingueira, marizeira, juazeiro, oiticica, maniçoba, angico... Ao passar por um sítio incrustado na escarpa do Araripe, o estudioso observa: “O sítio se acha em maior altura da serra e dela se gera de uma larga e bela vista: vê-se o Crato, a matriz de Juazeiro, a serra de S. Pedro e outros montes de perto e de muito longe. Avista-se ainda uma grande parte do Cariri, com seus sítios e canaviais e palmeiras por toda a parte”. Era um tempo de paisagens amplas, há muito extintas, com longas distâncias entre vizinhos que depois seriam próximos:

“O caminho que de Juazeiro conduz ao Crato é de três léguas – de estrada plana, arenosa, tortuosa – e bordado de vigorosa vegetação (...). Ao lado direito nos ficava uma vargem fresca, por onde passa um rio, e toda plantada de cana-de-açúcar, havendo à beira do caminho 13 engenhos, às vezes quase juntos. Quando chegamos ao alto de um morro sobranceiro à cidade, se nos ofereceu um bonito panorama, por diante fechava o quadro a serra do Araripe”. MULHERES ESCONDIDAS Pelo diário recém-lançado, ficamos sabendo que uma vez instalado no Crato, Freire Alemão foi passear pelas antigas ruas do Fogo (onde ficava a casa da comitiva) e do Vale (que considerou larga e longa). Recebeu de um certo Dr. Macedo uma cesta de mangas, ananás e alfenins com desenhos de pássaros, serpentes e ramos. Ao visitar o teatro, achou-o pequeno, porém “melhor que o da capital”. Também repara que a praça é “um grande quadrado bordado de casas térreas”. Logo ouve cantos de penitentes e fica impressionado com o número de necessitados. “Uma das coisas que mais aqui nos atormentam é a quantidade de pobres, de órfãos, de aleijados, de cegos, de presos CARIRI REVISTA 83


to ao jantar as senhoras não vieram para a mesa; mas ao jantar a mulher do Sr. Rosa Carvalho esteve sempre presente, mas em pé e servindo: trouxe uma garrafa de cidra e distribuiu como se fosse champagne”.

da cadeia, que nos vêm pedir esmolas, de joelhos e chorando”. Dá muitas moedas e receita doentes, pois era médico. Em todos os lugares, é recebido pelas maiores autoridades: o promotor, o juiz de direito, o delegado de polícia, o vigário, o boticário, os fazendeiros e os professores. Mesmo entre os mais ricos e poderosos, a maior diversão da tarde era sentar nas calçadas conversando miolo de pote. “Às Ave-Marias fui visitar o Dr. Juiz de direito e em sua casa estivemos sentados na calçada no meio de uma grande roda, onde se conversou bastante”. Existiam, é claro, ocasiões especiais. Em um sarau oferecido pelo estudioso João Brígido, Freire Alemão observa que a música era boa e as danças animadas. “Achamos aqui reunida muita gente, talvez a maior parte da gente graúda do Crato”. Além dos homens, “muitas senhoras, algumas das quais trajadas com simplicidade e elegância”. Tirando essas ocasiões, naquela sociedade patriarcal em que os senhores de engenho detinham poder de vida e morte sobre mulheres e crianças, as figuras femininas da alta classe raramente apareciam na sala onde se reuniam os cavalheiros. Um comportamento que o viajante considera herdado da zona canavieira pernambucana, pois quando vai para o Exu repara que “as senhoras não apareceram aqui pelo sertão, e principalmente no de Pernambuco, elas não se amostram senão em certas ocasiões”. Na vila de Jardim, em que foi recebido por Manoel da Cruz Rosa Carvalho – figurão local – o escriba anota: “Tanto à ceia quan-

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RIVALIDADES HISTÓRICAS Conversando com o povo, Freire Alemão descobre que os mais afamados labirintos vinham de Aracati, enquanto as rendas preferidas eram as de Russas, os bordados do Icó e as redes de Sobral. As redes, aliás, são itens obrigatórios em qualquer casebre do Ceará – como logo percebe o andarilho. “É a primeira coisa que se faz, logo que chega qualquer hóspede: armarem-se tantas redes quantos eles são: bem lavadas e mais ou menos ricas, segundo a fortuna do dono da casa. Entrando-se na casa de um pobre, ele levanta-se de sua rede e a oferece a quem chega”. Apesar da hospitalidade, considera as casas em geral “pouco confortáveis e de uma simplicidade primitiva”. As rivalidades entre os cratenses e os habitantes do Icó, assim como de todo o Cariri cearense a respeito do Exu pernambucano, não passam despercebidas pelo viajante. No Exu, onde lhe ofereceram um jantar iluminado por castiçais de cristal e boa louça (apesar do vinho “sofrível”), ele escreve surpreendido: “Fomos também aqui tratados com certo luxo para o sertão. Temos notado aqui em Pernambuco um certo ar de grandeza na gente e no trato, que não observamos no Ceará”. Sobre a acanhada Missão Velha, registra que se trata de uma das povoações mais antigas do Cariri, mas que nem por isso está muito adiantada. “Tem um bom templo, grande, limpo e ordenado por dentro. (...) Forma um grande largo quadrado, de casinhas antigas, insignificantes e pobres, com palhoças dispersas em roda”. Pouco fala de Juazeiro, então um povoado sem grande importância, mas elogia o vigário, que manda doces e pão-de-ló aos forasteiros. Sobre a

igreja, diz que “é grande, mas está ainda por dentro e por fora inteiramente nua, parecendo que nem emboçadas estão as paredes”. Freire Alemão aprendeu que “do Araripe para o Piauí não há descida abrupta” e que os criadores de gado foram responsáveis pela destruição de grandes trechos da vegetação nativa da região. Ouviu ecos dos feitos de Tristão Gonçalves de Alencar Araripe e viu a forca construída em 1834 para a execução de Pinto Madeira, que afinal morreu fuzilado. Naqueles tempos de longas novenas, assassinos mandados, casamentos de conveniência e costumes rurais, o estudioso do Rio de Janeiro também descobriu aquilo que para alguns é defeito e para outros é fatalidade: “O sonho dourado dessa gente é a sua independência, é o Ceará formando um Estado. Eles fazem uma ideia tão exagerada da sua província, que no seu entender é em tudo superior a todas as outras; e o seu estribilho é sempre: deemnos chuva, dois meses só, todos os anos, que o Ceará não precisa de nada e pode fartar todo o Império.”

SERVIÇO “Diário de Viagem de Freire Alemão”, 591 páginas. Editora: Fundação Waldemar Alcântara (Projeto Obras Raras). Organização: Antônio Luiz Macêdo e Silva Filho, Francisco Régis Lopes Ramos e Kênia Sousa Rios. Fortaleza, 2011.


A COMISSÃO DE DOM PEDRO E AS BORBOLETAS DO CAMINHO Com a bênção de Dom Pedro II e a organização do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), a Comissão Científica escolheu o Ceará para iniciar seu plano de andanças porque a província era supostamente rica em minérios. A equipe de luminares tinha engenheiros, naturalistas e intelectuais, que se dividiam em cinco seções: Botânica (sob a responsabilidade de Freire Alemão, médico e naturalista, também presidente da comissão), Zoológica (sob a liderança de Manuel Ferreira Lagos), Geológica e Mineralógica (com Guilherme Capanema), Astronômica e Geográfica (com Gia­ como Raja Gabaglia) e Etnográfica (a cargo do poeta Gonçalves Dias). Para dar cor aos relatos, o pintor José dos Reis Carvalho acompanhava o grupo, engrossado por auxiliares, animais de carga e 200 caixotes de instrumentos científicos. O objetivo final era estabelecer relações íntimas com o Brasil profundo, aquele que os olhos da época ainda não distin-

guiam bem, pois até ali se haviam norteado pela visão de viajantes europeus. Aquela era a primeira equipe exploratória genuinamente nacional. Com tal empreitada o IHGB pretendia “sancionar a competência de suas elites cultivadas e lastrear a constituição de um saber científico nacional”, como anotam os organizadores do recém-lançado “Diário de Viagem de Freire Alemão”. Quando voltaram para o Rio de Janeiro, os “científicos” estavam carregados de amostras, materiais, imagens e impressões. Milhares de plantas, aves, insetos, pedras, objetos e utensílios perfaziam uma esplêndida cota de material inédito para o Museu Nacional. Com o passar do tempo, porém, aquela jornada de dois anos e meio sob o sol nordestino viria a ser conhecida apenas por episódios pitorescos, como a importação de 14 camelos da Argélia, ou pelos apelidos jocosos que a imprensa oposicionista lhe conferiu. Comissão das Borboletas, uma alusão aos passatempos fúteis, foi a alcunha mais famosa.

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#cariripersonasgratas

aeroporto do cariri No aeroporto de Juazeiro do Norte a CARIRI circulou entre leitores e potenciais leitores. Mostrando que se fortalece a ideia de estabelecer conexões com outras paragens e consolidar a presença na região.

Liduina Brasil , funcionária estadual, é moradora do Crato e leitora da Cariri Revista.

Evandro Parizotto , gerente da loja Maxxi Atacado. Natural de Canoas (RS), mora em Fortaleza e está na região para acompanhar as instalações da Maxxi Atacado. Recebeu a sua Cariri Revista no Aeroporto Regional do Cariri.

Wanderlei Mendonça dos Santos, gerente de produção. Mora em Maceió. Está na região acompanhando as instalações do Wall Mart. Recebeu a sua Cariri Revista no Aeroporto Regional do Cariri.

Roberto Germano de Souza Araújo, superintendente do aeroporto regional do Cariri, reside em Juazeiro e é leitor da Cariri.

Claude Berthe Bloc, professora universitária, mora no Crato.

Vinícius Fernandes Rolim, residente em Juazeiro, é agente da Avianca e colecionador da Cariri Revista.

Verônica Calado, engenheira química e professora universitária. Pernambucana, mora no Rio de Janeiro. Esteve na região para acompanhar o trabalho de uma aluna e conhecer Juazeiro do Norte. Adorou a Cariri Revista

Elise Bezerra, farmacêutica e empresária, curte a Cariri Revista.

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#caririespecial

Veias Urbanas

Por: Rafael Vilarouca

Veias Urbanas foi criado por Rafael Vilarouca, fot贸grafo da Cariri Revista e integrante do coletivo Caf茅 com Gelo.

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