Insânia: nos domínios do pesadelo 1º Capítulo

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Copyright © by Felipe Nani Edição: Filipe Nassar Larêdo Preparação: Anna Civolani Capa: Marcus Pallas Diagramação: Rafael Sales Essa é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares, organizações e situações são produtos da imaginação do autor ou usados como ficção. Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência. Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em partes, através de quaisquer meios. Os direitos morais do autor foram contemplados.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Vagner Rodolfo CRB – 8/9410 N179i Nani, Felipe Insânia: nos domínios do pesadelo / Felipe Nani. – São Paulo: Empíreo, 2019. 244p. ; 14cm X 21cm. ISBN:: 978-85-67191-54-6 1, Romance 2. Terror I. Título. CDD 869.89923 019-1802 CDU 821.134.3(81)-3 Índice para catálogo sistemático:

1. Literatura brasileira: Terror 869.89923 2. Literatura brasileira: Terror 821.134.3(81)-3

Todos os direitos desta edição reservados à: EDITORA EMPÍREO Rua da Chibata, 61. Cj 24B 05734-100 São Paulo, SP – Brasil http://www.editoraempireo.com.br/ Impresso no Brasil 2019

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Dedico essa obra às duas pessoas que a resgataram da gaveta e também me resgataram de mim mesmo. Você que lê e tem alguém próximo que escreveu algo, leia. Mesmo que não concorde, mesmo que esteja sem tempo. Só leia. Muitas vezes uma linha escrita é o desafogar de muitas emoções para o mundo que aquele ser humano necessitou expressar. Uma das únicas coisas que um escritor quer é ser lido. Uma das poucas coisas que o ser humano realmente carece é de um olhar que abraça e está aberto para a ação de compartilhar. Foi com esse semblante que essas duas pessoas tiveram a sensibildade de envolver-me e resgatar-me. Meu desafogar como escritor deve muito a vocês dois. Leticia Mrotzeck; Paulo Roberto; Que a bruxa dos meus sonhos assombre vocês por duas eternidades.

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Nada é verdade. Tudo é verdade. A verdade é uma palavra inútil. Acabou a verdade. A verdade é uma ideia velha. Antônio Abujamra

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A

brisa fresca do entardecer corta o rosto de dois garotos que disputam uma corrida de bicicleta pelas curvas da ciclovia do Parque Anhanguera. A brisa agradável, de um dia que foi ensolarado e agora se despede em um vagaroso pôr do sol, resfria o ambiente com o auxílio da vasta quantidade de eucaliptos e outras milhares de árvores distribuídas pelo parque. A união dessas anciãs da natureza desenha um denso e majestoso arranjo, tornando essa floresta mais um dos belos produtos finais da aleatoriedade que a natureza tem o dom de criar. Otávio olha de relance para seu relógio, preso no pulso esquerdo, vê que já passa das 17h30, mas não perde a concentração no caminho sinuoso da pista e no ritmo veloz das pedaladas. Ele tem de ganhar logo essa corrida, pois o parque fecha às 18h00. Falta só mais uma volta para terminarem, conforme combinaram previamente. O horário não é um grande fator para fazê-lo desistir. Segundo seus cálculos mentais, dá tempo de terminar tranquilamente. Passando pela descida que antecede os trechos finais do circuito, Otávio olha para trás e vê seu amigo vindo ferozmente em sua direção. Ainda não está próximo de alcançá-lo, mas conseguirá se Otávio fraquejar e diminuir o ritmo. A brincadeira de travar disputas é antiga entre os dois. Otávio e Caíque são amigos desde a primeira infância, quando Caíque veio morar em São Paulo, mais precisamente em Perus, bairro próximo ao de Otávio. No decorrer dos

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anos souberam regar muito bem a amizade com brincadeiras, planos para o futuro e muitas risadas, tornando-se quase irmãos. São dois adolescentes movidos a sonhos mútuos. Com isso em seu corpo e também em sua mente, Otávio pedala mais e mais; por não ser a primeira vez que disputa uma corrida com Caíque nessa ciclovia, sabe que se empenhar toda a energia que ainda tem nesse trecho final da última volta, poderá ganhar. Dessa vez uma brincadeira despretensiosa para matarem o tempo, enquanto a amiga Larissa não chega ao parque, como haviam combinado previamente de se encontrarem para fotografar pássaros para o trabalho de Biologia. Após a descida, há um aclive; depois disso, a ciclovia se estabiliza em um trecho plano. Passado o aclive, Otávio olha para trás novamente e não vê seu amigo. Satisfeito por perceber que a energia que depositou nas pedaladas surtiu efeito, já começa a sentir o gosto da vitória. E antes de conseguir voltar a se concentrar no percurso da ciclovia, acaba sendo atacado por um súbito vulto do qual não chega a ter reflexo rápido o suficiente para desviar. O vulto usurpador de mentes desatentas, com penas pretas e azuis cintilantes, dotada de um alongado e fino bico, desce em um rasante furioso, atacando diretamente o rosto do garoto e fazendo-o perder o controle da direção. Seus pés se engancham na correia e ele acaba por capotar com a bicicleta, passando direto pela tangente da última curva do percurso. A ciclovia beira muitos barrancos em suas margens, e é diretamente para a boca do maior deles que Otávio voa, como uma mosca desatenta em direção as teias da predadora silenciosa. Bem feito para o garoto. Quem manda deixar-se consumir pela cegueira de uma vitória que ainda não se concretizou? O anseio pelo gosto da vitória por vezes pode desviar a atenção para a real concretude dos percursos da vida. A queda é violenta. Otávio desce rolando por cima de pedras e gravetos, esmagando insetos com seu corpo. Caído lá embaixo, sente-se tonto, obviamente em decorrência do acidente. É o fim da linha, o fim de sua desejada vitória. O espírito de competição que fora alimentado por diversos agentes da vida, desde que ele

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era uma criança, não permitiu que ele pedalasse com os próprios pés. Se não estivesse distraído, preocupado em fazer bonito, essa narrativa certamente seria sobre outra pessoa. Vou adiantar uma coisa: essa história não é sobre um vencedor. A floresta grita ali embaixo. É um som provocador e diferente de tudo o que Otávio já escutou. Está abafado. Ele não consegue abrir os olhos, mas pode escutar ligeiros passos ao redor. Também sente uma dor atordoante na cabeça, dor essa que prende seus braços em tensão muscular. Otávio devaneia que seu corpo está flutuando, sendo carregado sutilmente para o esquecimento dentro da floresta. A dor é demais e confunde sua percepção. Faz até mesmo com que sinta um hálito quente bem próximo às suas suculentas bochechas. É como se estivesse sendo bem tratado, com muito carinho e atenção – posto à lareira para cuidados especiais. Passos débeis fazem os galhos secos espalhados ao solo se quebrarem ao lado dele. Otávio assusta-se com a ideia de haver ali algo além de um fofo chão de folhas para confortá-lo. Esse pavor é o impulso de que ele precisa para finalmente abrir os olhos, a fim de ver o que há ao redor. Não tem ninguém ali. Não há nenhum ser vivo dentro de seu campo de visão, após esse especial abrir de olhos. Com a visão volteando, o que ele consegue interpretar dos fragmentos de imagens que estão sendo montados por seu cérebro é uma grande elevação de terra atrás de si, e sua bicicleta jogada ao chão a poucos metros de distância, ainda com a roda traseira girando. Também percebe que está, de fato, largado no meio da floresta do Parque Anhanguera. A única reação que consegue externar é um grito em forma de pedido de socorro, já que seu corpo ainda está dormente e não permite que se levante por completo. — Caíque! Me ajuda! Caíque! Estou aqui embaixo! — Sua voz falha, não consegue atingir toda a potência vocal, mas é o suficiente. Em momentos de desespero, qualquer grito proferido é capaz de alimentar um pouco mais a chama da esperança. As árvores se movimentam ao redor. Sua razão vigilante diz que deve ser apenas o vento, soprando com uma força além do comum.

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Entretanto, a maneira brusca como se mexem acresce um pouco mais o pavor que vai tomando conta do corpo do garoto, que permanece com a visão trêmula. O movimento dos galhos chama o foco de sua atenção lá para cima. Otávio nota que, propositalmente ou não, em cima de um galho próximo a ele está a ave que o atacou, parada e imponente, fitando-o com seus olhos sombrios e penetrantes. — Otávio! — Uma voz vem lá de cima do barranco. — Otávio... — Outra voz ecoa de dentro da floresta. Isso o confunde. Duas vozes? Ele só esperava ouvir uma. A voz que vem lá de cima do barranco está assustada, a voz que vem de dentro da floresta é profundamente atemorizante. Ele fixa o olhar no que é seguro, pois é de cima que geralmente se espera a salvação. — Estou aqui! Desce aqui e me ajuda, por favor — suplica o garoto. — Otávio... — A voz ecoa novamente de dentro da floresta. Uma fraqueza súbita faz sua visão escurecer repentinamente. Ao retomá-la, a luminosidade já está mais tênue, indicando o final do dia. O que resta dos raios de sol ilumina a imagem de seu amigo Caíque, que havia surgido inexplicavelmente barranco abaixo, próximo de seu corpo, pronto para salvá-lo. Otávio fica feliz por ter sido encontrado, teme por pensar no que poderia acontecer com ele abandonado à noite, logo após sentir minuciosos sinais de que algo o espreitava sorrateiramente. — Parece que você ganhou a corrida mesmo, Otávio. — Caíque brinca com o amigo machucado. — Vi um poeirão ali em cima depois de você ter sumido de repente. Não vacila assim, não, cara. Agora nós estamos sozinhos aqui. — Caíque está realmente preocupado com a situação que o amigo se meteu e o abarcou junto. — Não foi vacilo meu, foi um acidente. — Otávio responde, fazendo uma careta de dor ao levantar o braço. — Foi aquele bicho maldito que me atacou! — ele diz, apontando o dedo para o galho. Sem tirar o olhar da ave, Caíque tenta ajudar Otávio a se levantar, apoiando-o em seus ombros. — Consegue ficar em pé? Otávio tenta equilibrar-se colocando todo o peso do corpo em

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sua perna direita, a menos afetada pelo acidente. Porém, ao tentar colocar o pé no chão, perde o equilíbrio e volta para o solo repleto de folhas. — Vou pegar sua bicicleta. Apoiado nela você vai conseguir ficar de pé. Depois vou jogar alguma coisa nesse bicho. O ataque a Otávio perturbara Caíque, fazendo-o sentir-se também atacado, ainda que indiretamente, pelo bico daquele corvo, que os observava estaticamente, com a maior frieza possível. — Deixa isso para lá. É só um pássaro, ele não tem culpa nenhuma. Esse é o habitat deles, nós é que somos os intrusos — Otávio diz, ao mesmo tempo em que nota Caíque avançando alguns passos sem lhe dar a menor atenção. Fala enquanto observa a indiferença de Caíque, não ligando para nada do que está falando, que continua a caminhar alguns passos mais à frente. — Vai, Caíque. Me ajuda aqui para irmos embora. — Eu já volto. Caíque busca a bicicleta de Otávio, para que o amigo tenha onde se apoiar para ficar de pé. Em seguida, começa a revirar a infinidade de folhas secas do chão, à procura de algo pesado o suficiente para ser arremessado, mas encontra apenas gravetos podres. Após reunir alguns, procura uma boa posição para acertar o animal, tomando um pouco de distância para executar o arremesso certeiro. Sentindo-se confiante para agir, lança um graveto contra a ave. O galho passa milimetricamente rente à asa da ave, que levanta voo mata adentro, talvez não somente satisfeita ao notar que o menino notou sua presença, como também espantada com a agressão desnecessária. A altitude do voo não é grande, e a ave permanece visível a Caíque que, não contente com o erro, começa a segui-la por uma estranha trilha. O caminho é muito bem arranjado, destoante de todo aquele cenário que, apesar de preenchido por árvores, reverbera um vazio assustador. — Volte aqui, Caíque! Vamos embora logo. Vai anoitecer e vai ficar ruim para subirmos o barranco, nem sei como vamos conseguir fazer isso enquanto ainda é claro, imagina no escuro.

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— Eu falei que já volto, só viemos parar aqui por causa desse pássaro idiota. Vou descontar tudo o que fez para nós. — Já vai fechar o parque, daqui a pouco vai ficar mais escuro. Esquece isso, é besteira. É só um corvo. Empacado, lutando para se recompor e permanecer equilibrado apoiando-se na bicicleta, Otávio não consegue correr para impedir seu amigo de continuar pelo caminho da tolice. Sem lhe dar ouvidos, Caíque prossegue com sua missão particular de vingar-se do pássaro. A ave continua adentrando a mata em um voo plácido, dando a impressão de que a qualquer momento pode parar durante o planar. É um gracioso convite ao garoto. Cada vez mais, Caíque cega-se pela raiva de não ter a chance de acertá-la. Sente-se cada vez mais desafiado a derrubá-la e ter a oportunidade de chutá-la até suas penas esvoaçarem a ponto de serem confundidas com as folhas que forram o chão. A mata fica mais densa e escura. A noite está caindo, fazendo com que a parte escura da plumagem da ave se mescle ao breu do interior da floresta, sendo perceptível apenas o exuberante azul que tinge boa parte de seu corpo. A cada passo adentro torna-se mais abafada pelo cobertor de folhas das grandes árvores anfitriãs. Por um instante, Caíque para um pouco para observar a situação em que se meteu. Vê que já não consegue distinguir que caminho leva de volta para a ciclovia e, consequentemente, para casa. Pega o celular, já são 17h53 do dia 27 de outubro. Está mais do que na hora de voltar. Para complicar ainda mais, não há sinal de telefonia para um pedido de ajuda. Sente-se um tolo, tudo isso foi fruto de uma atitude nada sábia, uma bobagem juvenil com a intenção de mostrar quem é que manda, ele ainda não aprendeu que não está no controle de tudo ao redor. Caíque agora experimenta o drama de ser um hóspede iludido por se aventurar em uma terra hostil. O medo percorre seu corpo em passos lentos, como se pequenos pés gelados subissem por sua espinha causando arrepio. Ele avança mais um pouco, instintivamente. Atrás dele, a trilha que o trouxe até ali não está mais visível, portanto, resta-lhe apenas seguir em frente. Continuando até o final do caminho sem volta, talvez

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consiga achar uma saída alternativa da floresta. Esse é o plano que as circunstâncias depositaram em sua cabeça, não é, e nunca foi algo pensado por ele. Os animais noturnos têm o aval da escuridão para cantar a melodia que se torna assustadora a essa hora da noite, inundando toda a floresta, aumentando o desespero de Caíque, que fica cada vez mais aflito por todas essas nuances. Sem rumo e atento a qualquer movimento que possa ser um bote vindo do meio do escuro, gira em seu próprio eixo e acaba pisando em algo mais sólido, com os calcanhares. Caíque percebe que a trilha rudimentar pela qual vinha avançando torna-se mais delineada a partir desse ponto, tem o aspecto de que fora arranjada deliberadamente para que pessoas caminhem por ali ao serem convidadas. É um bom sinal: para quem não tem muita escolha, qualquer caminho que surja é válido. Seguindo pela trilha de maneira mais confortável, Caíque tem como guia a luz da lua que, em sua imensidão distante, alimenta-lhe a esperança de encontrar uma saída daquele lugar desolador. Passa a correr, para alcançar o mais rápido possível a tão sonhada saída. Sonho recente de um desesperado. Contudo, Caíque chega não à saída, mas a uma clareira circular bem no meio da floresta. Apesar de ele até agora ter se sentido sufocado por aquela mata claustrofóbica, confrontar-se com a imagem literal de um grande vazio não é o motivo para a alegria que há pouco ansiou. Olhando com atenção após se recompor da decepção, Caíque percebe que está ligeiramente enganado. Naquela clareira não existe somente o vazio para corroê-lo. Exatamente no centro, há uma pequena cabana, cujo teto triangular se destaca. De longe, parece ser tapado por um grande amontoado de palhas e musgo. Ergue-se do teto uma improvisada chaminé, de onde sai uma tímida fumaça que, com a refração da luz da lua, desenha uma forma opaca que dança pelo ar, salientando-se contra o breu da floresta. Caíque hesita em avançar pela clareira, mas algo em seu subconsciente o seduz a prosseguir nessa tentadora descoberta. Existe nele uma vontade pulsante de bater naquela portinha lá longe. De onde está, Caíque consegue ver o pássaro que perseguia pousar

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bem na ponta do telhado, próximo à chaminé. O corvo permanece em sua posição calculista de espreita, mas já não é provocador ou intimidador, pelo contrário: sua presença o convida a chegar mais perto. Parecem velhos amigos em um novo lar do qual Caíque agora faz parte. Uma melodia curiosa e agradável surge lá de dentro da cabana e ecoa pela vastidão da clareira, distribuindo-se pelas entranhas da floresta. O som é tão doce e tão bom que faz com que o garoto tenha o desejo de dar o primeiro passo adiante. A fumaça também o alcança, não é de um aroma espantoso ou fúnebre, pelo contrário: é o cheiro mais gostoso que Caíque já sentiu até hoje – cheiro de bicicleta nova. Algo que sonha há meses e seus pais ainda não conseguiram comprar, para que finamente tenha mais chances de ganhar de Otávio nas costumeiras corridas pelas redondezas de Perus. Sente também o nostálgico cheiro de calmaria em uma tarde chuvosa, daquele que sentia enquanto comia deliciosos bolinhos de chuva preparados por sua avó. Infelizmente já faz um tempo que não pode prová-los, desde que sua família se mudou para São Paulo anos atrás, deixando em Tocantins sua avó e boa parte da família. Faz tanto tempo, mas o cheiro aviva todos os bons sentimentos residentes em seu coração. Aspirações para o futuro e sentimentos que ardem como brasa nas profundezas do passado. A fumaça traz na ponta de sua língua o convite para vislumbrar o que mais deseja em vida. O contraponto perfeito para a angústia de sentir-se, há pouco, abandonado pelo mundo dos vivos. Enquanto ele navega por esse doce momento de fantasia, dedos cravam-se com força em seu ombro esquerdo. O que Caíque sente não é dor. É um forte sinal de que está em um lugar onde não deveria estar. Embora desperto, encontra-se bem longe de tudo o que compreendia por real. — Você está louco? Estou gritando aqui faz meia hora! Está fazendo o que no meio do nada? Vamos embora agora. Após ter apertado o ombro de Caíque, Otávio puxa-o pelo braço, com trancos fortes. Caíque observa a cabana que o hipnotiza, lar de mistério e delícias que ele gostaria muito de provar.

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— Eu... Não... Sei... — Caíque plana por essa realidade. — Vamos, já está escuro. Se continuarmos aqui é certo que vamos perder o caminho de volta. Essa cabana não deve ser boa coisa. Essa floresta não é boa coisa. Caíque desfaz o olhar fixo para a cabana, porém não abandona a música e o sentimento que estão ecoando em seu interior. Algo está se mexendo dentro do seu crânio. A emoção é singela, porém é a melhor que já contemplou nesse instante de sua vida. Todos os pelos de sua nuca e braços se arrepiam com a vontade de provar daquilo que a cabana exala. Embora deslumbrado com o que aconteceu, Caíque consente em voltar, acompanhando os passos cambaleantes de Otávio, ainda apoiado em sua bicicleta. Juntos, buscam durante o começo da noite a saída daquele lugar singular e certamente impróprio a dois garotos pouco experientes em desbravar florestas. Os galhos das árvores em volta balançam na direção dos dois. Vultos passam por todos os lados, alguns deles formam silhuetas que arrepiam os garotos. O balançar dos galhos torna-se mais violento, nitidamente impulsionado por repentinas rajadas de vento extremamente fortes, sopradas pela pequena chaminé, que há pouco envolvia Caíque em um agradável devaneio. — Corre, Caíque! Corre! Apressam os passos na tentativa de fugir o mais rápido que podem, tendo em vista que Otávio ainda manca bastante, e só consegue permanecer de pé por estar apoiado na bicicleta. A trilha, que antes estava se escondendo de Caíque, agora volta a estar ali, posta no chão. Tudo toma ares de mera brincadeira de mau gosto, arquitetada por entes sádicos. Dessa vez, o caminho de volta está bem indicado, a floresta quer que eles saiam, mas não antes de provarem também das estranhezas e mistérios residentes em seu interior. — Deve ser ali, Caíque. Consegue ver o barranco lá na frente? Caíque não responde, só acompanha os passos coxos de Otávio, às vezes olhando para trás, buscando sentir-se novamente seduzido

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pela cabana. A debilidade com a qual Otávio caminha aumenta o anseio de sair dali de qualquer maneira e o quanto antes. — Acorda, Caíque! É o barranco, sim, vamos logo antes que alguma coisa nos pegue. — Otávio respira fundo, tentando recuperar o fôlego já desgastado. O vento dá leves tapas nas costas dos meninos, acrescentando um pouco de adrenalina em suas veias para que se acelerem mais. O barranco é íngreme, porém muito alto, com a atual condição física, Otávio não será capaz de levar a bicicleta morro acima, nem mesmo com a ajuda de Caíque, que abandonou a sua na beira da ciclovia, prevendo que seria muito difícil ajudar Otávio e transportar a bicicleta também. Otávio se vê em um dilema, sua bicicleta fora um presente que seu pai havia dado, faz tempo. Não está muito conservada, mas sabe que foi algo que seu pai teve que economizar para presenteá-lo. Já sofre por antecipação imaginando a dimensão do esporro que levará de seu velho assim que chegar em casa. Silhuetas se aproximam, oriundas do interior da floresta, pouco a pouco surgindo por detrás dos troncos. Incumbido com a força do desespero toma a decisão de abandoná-la ali embaixo, esgueirando-se no barranco para começar sua escalada. Com sede de escapar, o garoto, mesmo com dores no corpo, crava os dedos na terra, agarrando-se como pode às pequenas raízes enquanto aos poucos escora o corpo no barranco. Devido a sua leve inclinação, o barranco possibilita que Otávio ganhe apoio com os joelhos e com a ponta dos pés a cada avanço em direção ao topo. Posicionamento que favorece o diminuir da dor provocada pela exigência de esforço físico da tarefa árdua. Durante a subida, vê que Caíque continua parado lá embaixo sem nenhum ímpeto de querer fugir, olhando a escuridão da floresta, deixando o vento vivo bater-lhe no rosto. Por fim, Otávio termina a subida e deixa o corpo desabar sobre o topo do morro de terra. Permanece deitado e estende o braço que não se feriu para seu amigo. Caíque, preso em sua própria consciência, demora alguns instantes para aceitar o convite. — Vem logo, Caíque, eu te ajudo quando você chegar aqui em

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cima! Chega dessa brincadeira de mau gosto, nós não pertencemos a esse lugar. Vamos embora logo daqui. — Acho que nós pertencemos, sim, Otávio. Sinta o vento. É para nós. Você não percebeu ainda? Não percebe que essa brincadeira que estamos participando faz parte do tempero da vida? — Você está delirando. Eu que bati a cabeça e você que fica doido. Vem. — Chacoalha a mão para o amigo. — Sobe, antes que nos encrenquemos ainda mais! Caíque está gelado por dentro e por fora, mas aceita o comando do amigo. Com menos dificuldade que Otávio, já que não está machucado, Caíque escala o barranco. Ele não fala mais nada, pega a bicicleta jogada ao chão poucos metros dali, monta nela e sai pedalando devagar, para que Otávio consiga acompanhá-lo, mesmo que agora tenha que fugir a pé. — Não sei como você não achou tudo isso muito estranho. Aquela cabana. Cheguei até a ouvir passos além dos seus, Caíque. Não deveríamos ter vindo aqui hoje, avisei que já era tarde, mas você ficou insistindo. Nunca mais volto a esse parque. Quero distância. Otávio percebe que está falando com as árvores. A única resposta que tem de Caíque é o balançar de suas costas, pois ele continua pedalando lentamente à sua frente. Caíque está ali fisicamente, mas sua cabeça está muito longe, delirando em sua própria fantasia de sonhos recém-germinados. Está fazendo o que todos nós também fazemos por natureza, só que de uma maneira mais grosseira. A diferença é que Caíque não está conseguindo disfarçar a ganância da individualidade. Até chegar o momento improvável de os sonhos se concretizarem, seguimos o protocolo de tolerarmos uns aos outros com um gentil sorriso no rosto. Agora os sonhos de Caíque jazem nos confins da floresta. A camiseta branca de Caíque reflete uma luz azulada, quando não era para ter luz nenhuma ali. Isso faz com que Otávio olhe para trás, mesmo não querendo fazê-lo, por receio de confirmar a existência do sobrenatural na iminência de atacá-lo pelas costas. — Corre! — Otávio grita, ao verificar que um vulto inidentificável carrega um emissor de luz e está movendo-se rapidamente na direção deles.

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Otávio dispara a correr do jeito que consegue, cambaleando devido a dor que ainda lateja em sua perna. Caíque já está à frente, pedalando despretensiosamente, sem se preocupar com a luz que os persegue. Otávio foca a visão na luz e persiste em fugir do vulto com sua dolorosa corrida. Com a cabeça voltada para trás não é possível ver o pedaço de tronco que está na ciclovia, bem à frente. Inevitavelmente, tropeça e vai de novo ao chão, nesse dia marcado por tragédias. Caíque simplesmente desaparece pela escuridão, deixando Otávio para trás. Ele nunca havia feito isso antes. Há poucos instantes teve o ímpeto de descer floresta abaixo para ajudá-lo a se livrar de um grande perigo, agora abandona-o sem dizer uma palavra sequer. Essa foi a pancada mais forte que Otávio recebeu nesse dia. O sentimento do desfazer de uma amizade cria nele um vazio muito mais nefasto do que sentira enquanto estava jogado no âmago da floresta. Após esse segundo acidente, a luz fatalmente alcança Otávio. — O que você está fazendo aqui a essa hora moleque? — pergunta a luz, que revela ser um fardado guarda ambiental do parque. Da direção que Caíque sumiu, vem um segurança que suspende Otávio pela gola da camiseta e o encara com uma feição nada amistosa. — Vocês, moleques, só dão trabalho para a gente. Por acaso não sabe que o parque já fechou? O que você pensa que está fazendo aqui? — Me acidentei agora há pouco, senhor, e acabei me perdendo na floresta. Andei e andei até chegar naquela cabana. Quando consegui voltar, já era tarde. Estávamos eu e meu amigo, mas pelo jeito ele se assustou e já deve estar na casa dele a uma hora dessas. — Cabana? Do que você está falando? — diz o guarda enquanto puxa Otávio pelo braço, para que se levante e todos caminhem para fora da ciclovia. Ao ser puxado pelo braço, o garoto urra de dor, demonstrando que está machucado e fazendo amolecer um pouco a postura do guarda, que passa a ajudá-lo. O guarda o apoia em seu ombro enquanto, com o outro braço, se comunica com a base. — Seus pais estão em casa? Onde é que você mora? — pergunta o guarda.

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— Moro aqui do lado, em Perus mesmo. Mas espera um pouco, me desculpe, como assim não tem cabana? Vocês não conhecem? É velha, parece existir há muito tempo, não estou inventando nada. Vi com os meus próprios olhos. O guarda ambiental e o segurança se entreolham e resguardam-se em silêncio, após a declaração, lançando no ar uma nuance de desconfiança. A fisgada da dedução os atinge, afinal, a circunstância já é esquisita por si só, e essas alegações abrem uma janela de suposições para que dois homens experientes cogitem o que parece ser o mais óbvio. Otávio é conduzido à base de segurança, que fica localizada ao lado do maior playground do parque, próximo ao estacionamento. Entram no local, que não é muito grande. O segurança se dirige à parte de trás do balcão e tira o telefone do gancho, enquanto o guarda ambiental gesticula para que Otávio se sente em algum dos bancos de madeira da recepção. Agora em um local iluminado, é possível ver o nome bordado em sua farda: SD Gomes. Assim que Otávio se senta, o guarda aplica em seus olhos um feixe daquela mesma luz azul que o perseguira minutos atrás na ciclovia. — Posso dar uma olhada na sua mochila? Se eu olhar vou encontrar alguma coisa? Já vai me adiantando a situação. — Claro que o senhor pode. Eu e meu amigo não estávamos usando drogas, se é disso que desconfia. — Não falei nada disso. É só o procedimento que temos que seguir. Não precisa me ensinar a fazer o meu serviço. O soldado Gomes pega a mochila de Otávio. Revistando-a, não encontra nada suspeito, o que vê é a garrafa de água, uma bermuda e uma blusa de frio. Ao colocar a mochila apoiada no banco, ao lado de Otávio, ouve um chacoalhar de pequenos objetos que desperta sua atenção, e também a de seu companheiro de trabalho, lá do outro lado da sala. O segurança atrás do balcão olha de modo sugestivo para Gomes, insinuando que ele deve ter deixado passar o que estava realmente procurando. Gomes agarra a mochila com a mão direita e sacode-a mais próxima de seu ouvido. Procura a exata região que está produzindo

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o barulho. Localizando-a, abre a mochila novamente e acha um pequeno bolso, quase que secreto, com o zíper camuflado por um espesso tecido. Abrindo-o, o soldado encontra um frasco branco com muitos comprimidos. Abre também, em seu rosto, um leve sorriso de satisfação. — Isso aqui é balinha, né? — Não, senhor, é um remédio meu aí — Otávio responde constrangido. Desde que começou a ser acompanhado por um psiquiatra, ele tem vergonha de expor a situação para os amigos e principalmente para desconhecidos, por medo de enfrentar julgamentos e exclusões sociais. — Remédio “seu aí”, sei. — Vendo que o segurança também está sorrindo de satisfação, o guarda prossegue —, olha, vocês não podem vir aqui, ficar chapados e dar trabalho para nós. Poderia ter acontecido alguma coisa muito séria. Vou ter que chamar seus pais. — Não é droga, senhor. — Otávio abaixa a cabeça, envergonhado. — É um remédio para me ajudar a me concentrar melhor. É só isso. Os guardas não se aguentam e acabam por soltar gostosas gargalhadas. — É sério, estou tomando desde o começo desse semestre. Não adianta vocês ficarem debochando da minha cara, não está sendo fácil lidar com isso. Podem pensar o que quiserem. Mas isso não são drogas ilícitas, é um remédio receitado por um médico que está me acompanhando. — Está bem, criança. — Gomes parece estar mais calmo. — Você quer mesmo tentar enganar a gente? Eu já fui moleque também. ­— Faz um sinal de despedida para o segurança atrás do balcão. — Gostei de você, parece ser apenas um menino tranquilo caminhando por trilhas perigosas. A propósito, eu também moro em Perus. Já acabou o meu turno. Se quiser, posso te dar uma carona até a sua casa. Otávio já havia se preparado para retrucar, mas consegue ser inesperadamente sábio e não continuar a conversa, evitando piorar a situação. — Você consegue caminhar? — pergunta o soldado. — Acho que sim, minha perna já não está doendo tanto quanto antes.

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O segurança, que permanece dentro da base, despede-se do garoto com um gesto de mão, mas não obtém resposta. Gomes, seguido por Otávio, caminha em direção ao estacionamento, descendo por uma escadinha de madeira lapidada no morrinho à esquerda da base. Não demora muito para chegarem ao carro. Alguns pássaros ou morcegos agitam a floresta ao redor, restabelecendo o toque hostil que abraçara Otávio momentos antes. O carro de Gomes é uma camionete com a traseira aberta, que conseguiria facilmente acomodar a bicicleta dele que fora abandonada no interior da floresta. — Posso fazer um pedido para o senhor? — Está abusando, moleque. — Olha de canto de olho para Otávio que se assusta. — Estou brincando com você, tente ficar mais tranquilo, ok? Sua sorte foi grande de termos o encontrado. Há boatos que pessoas já desapareceram nesse parque, sabia? Mas nenhum deles foi realmente confirmado, portanto são apenas boatos. Enfim, pode pedir sim. Assustado, Otávio tem vontade de voltar a falar sobre a cabana, mas opta por fazer o pedido mais simples, para evitar que Gomes possa tenha contato verbal com seus pais. — Minha bicicleta ficou lá embaixo, eu caí com ela em um barranco próximo de onde vocês me encontraram, caso vocês desçam lá amanhã, poderiam ver se a encontram? Foi um presente que meu pai me deu, não queria perdê-la. Mesmo sem a mínima vontade de voltar ao parque depois de se confrontar com a situação sinistra, Otávio se preocupa com aquela bicicleta. Ela representa um vínculo afetivo que estreita a distância física existente no dia a dia entre ele e seu pai. — Amanhã cobrirei a folga do meu amigo. Logo pela manhã estarei fazendo a ronda e aproveito para dar uma olhada nisso para você, está bem? — O garoto consente com a cabeça, está abatido por ter sido atropelado por uma catástrofe física e por outra que não consegue sequer entender, que é o abandono de seu amigo hipnotizado pelos encantos ocultos. O carro ronca com a partida. Descem o caminho pavimentado para a saída do parque, que tem acesso direto à Estrada de Perus. Otávio está machucado em muitos sentidos, aquela floresta arrancou

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dele algo que ainda não tem noção do que seja, e no lugar colocou algo que está incomodando-o profundamente. Otávio olha para trás ao deixarem o parque e vê um manto sombrio, parado bem próximo à saída, despedindo-se dele como se, de sua fúnebre posição, dissesse: “Volte logo.” O coração de Otávio dispara, sua boca fica seca como se tivesse sido jogado um caminhão de areia dentro dela. Em um piscar de olhos, antes mesmo de conseguir falar com Gomes, a figura desaparece, como se fosse uma miragem desse oásis de mistérios. O carro dobra o acesso à estrada e rapidamente se afasta daquele episódio no mínimo curioso.

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