OrFEL - Edição Especial Transborda

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Transborda na cidade B elo Hori zonte - e d iç ã o e s p e c i al - s e te mbro de 2 0 1 1


Editorial Junia Mortimer (Pegada / Fora das Bordas) Ricardo Sangiovanni (O Purgatório) Tatiana Oliveira (FEL - Fora do Eixo Letras)

Expediente Conselho Editorial: Junia Mortimer (Pegada / Fora das Bordas) Ricardo Sangiovanni (O purgatório) Tatiana Oliveira (FEL - Fora do Eixo Letras) Projeto gráfico, capa e ilustrações: Esther Gonçalves (Percepções) Equipe de apoio ao conselho editorial: Rita de Podestá (Transição Poética). Colaboradores desta edição: Ensaio crítico: João Antônio de Paula (CEDEPLAR/FACE/UFMG) – Notas sobre a cidade e a utopia Poemas: Aluizio Moraes de Rezende – Obscuro Desejo Renan Moreira – sem título Hugo Lima – Trânsito Franceline Rodrigues Silva – Co-autoria Saulo de Oliveira Campos – A imaginação Prosa: Isabel de Assis Fonseca – Pensão dispensada Rodolfo Gullar – Estranho comum amor Tradução: Junia Mortimer (Pegada / Fora das Bordas) Ricardo Sangiovanni (O purgatório) Ricardo Viel (O purgatório) Imagem: Fora das Bordas

“Textos assinados são de responsabilidade dos autores.”

Cada cidade pode ser outra/ quando o amor a transfigura (Mario Benedetti) Com esta edição especial* para o Festival de Artes Transversais Transborda 2011, o fanzine OrFEL propõe percorrer a ideia de cidade em seus diversos meandros. E já que o tema do próprio festival, organizado pelo Coletivo Pegada e integrado do Circuito Mineiro de Festivais Independentes, é a ocupação do espaço público, nada melhor do que usarmos nossa ferramenta, o texto, para denunciar o “roubo” e o “amesquinhamento” desse espaço, como elucida o querido João Antônio nas suas Notas sobre a utopia e a cidade. É justamente pela necessidade de reconstruir a cidade como “espaço do diálogo, da polifonia” e também “dos encontros, das situações, do encantamento”, que pretendemos - junto às outras atividades do Transborda 2011 - provocar o questionamento do ethos na cidade hoje, focando no sentido de ethos como modo de ser dos cidadãos. Diante dos sérios riscos de destruição desse espaço de realização do “humano do homem”, espaço da liberdade por excelência, intervenções como esta fazemse ainda mais urgentes, pois colocam em

xeque esse modo de ser contemporâneo em que prevalecem interesses privados sobre os coletivos. Como sabemos, a ideia de cidade se fundamenta justamente no contrário. Isso não significa, no entanto, que a esfera do público deva anular a esfera do privado, pois não nos interessa sermos massa, ou tous-un. Quando essas esferas deixam de ser legítimas e extrapolam uma justa medida de importância na composição da cidade, aproximamo-nos de organizações sociais totalitaristas ou que, diferentes da cidade, não primam pelo bem comum, pela res publica. É como no sertão, por exemplo, se compreendemos, segundo Guimarães Rosa, que “sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias”. Precisamos encarar a encruzilhada do futuro das nossas cidades e nos lançar, como o velho Riobaldo Tatarana, à ação no mundo público - ação política, sem que isso signifique anular a figura de Diadorim, a morada do afeto, por cuja doçura do olhar o jagunço viu “as cores do mundo”. Mas, nessa travessia, nossa maior arma, aqui, é a palavra.

*O OrFEL é uma ação da FEL - Fora do Eixo Letras, frente do Circuito Fora do Eixo que trabalha com a cadeia criativa literária. Esta edição especial, também produzida de forma colaborativa, prioriza autores mineiros, selecionados por meio do I Concurso Literário OrFEL Transborda 2011, com intento de incrementar a visibilidade da produção literária mineira principalmente agora, neste segundo semestre de 2011, quando acontecem os Festivais Independentes no Estado. Esta edição especial foi produzida em parceria com nossos amigos dos blogs Transição Poética e O Purgatório - a eles, nosso muito obrigado.


Ensaio crítico Notas sobre a cidade e a utopia João Antônio de Paula (CEDEPLAR / FACE / UFMG) É preciso imaginar povoadas, cheias de vidas plenas aquelas cidades de Edward Hooper. É preciso imaginar felizes aqueles homens, aquelas mulheres que se apresentam tão silenciosos e melancólicos. É preciso imaginar que a solidão, a que parecem condenados, pode se transformar em festa e alegria, em compartilhamento e cooperação. É preciso lembrar, com Etienne de La Boétie, que a nossa servidão é voluntária, é preciso lembrar que somos a maioria, é preciso lembrar que nada nos impede de fazer da cidade o lugar da vida melhor, da vida não danificada.

devemos tornar humanas as circunstâncias”, o que, no nosso tempo, significa tornar humana a vida na cidade, o que, na nossa cidade, tão longe do mar, significa também ver aqui o que Killian Fritsch viu noutro lugar, noutra cidade pavimentada: “sous les pavés la plage”.

É preciso, com Henri Lefebvre, apostar que a disputa pela cidade ainda está em curso, e que à centralidade única do capital e do poder que o sustenta, se contrapõem hoje outras centralidades, novos sujeitos, novas formas de sociabilidade, de propriedade, de gestão, baseadas na solidariedade.

É preciso dizer com Jacques Rancière, que a democracia não é uma forma de governo, nem um estilo de vida social, sendo, de fato, o modo de subjetivação pelo qual existem sujeitos políticos, que não visam se instalar no poder mas no político, o qual se realiza através do dissenso, pela reivindicação da diferença.

É preciso, sempre, valorizar a ciência, mas é preciso não esquecer a poesia, que ela faz o conhecimento rimar com emancipação. Disse Baudelaire: “É preciso chegar até o fundo do desconhecido para encontrar o novo”; “o real só é possível se visualizado desde o diverso”.

É preciso acreditar que a “máquina do mundo”, aquela entrevista pelo poeta Carlos Drummond de Andrade, de novo se entreabriu e revelou-se inteira, a todos, é preciso acreditar que é possível decifrar seu “claro enigma”, que já sabíamos em nosso coração: que “É preciso viver com os homens, é preciso não assassinálos”, (...) que eles “Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças”.

É preciso fazer da democracia a invenção permanente de direitos, como apontou Claude Lefort.

“Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.” (...)

É preciso não perder de vista que esta hierarquia que nos condena, na cidade e em todo canto, à vida danificada tem nome, é aquela imposta pelo capital, cujo propósito é a busca, incessante, de sua autovalorização mediante a exploração do trabalho, a mercantilização de tudo, a manipulação e a alienação gerais.

É preciso convocar a utopia porque, como disse Ernst Bloch, ela é “consciência antecipadora”, é “sonho diurno”, que atualiza, permanentemente, a construção da plena emancipação. É preciso reconhecer, como disse Marx, que “se o homem é formado pelas circunstâncias,

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do capital; que a história acabou; ao mesmo tempo que irrompem novas contradições, que intensificam o aumento do desemprego – a precarização do trabalho, a desconstituição de direitos sociais, trabalhistas e previdenciários, a perda de biodiversidade, a expansão da desertificação e do aquecimento global, a crise urbana e a crise cultural, uma crise civilizatória.

É preciso saber, como dizem Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem, que “na realidade, não vivemos em um bairro de uma cidade, senão que no poder. Vivemos em algum lugar da hierarquia”.

É preciso não esquecer T. W. Adorno quando disse que, sobretudo, em tempos de crise, é preciso contraditar e resistir, oferecer resistência ao que afirma e reafirma: que não há alternativa, senão a rendição ao ditado imperativo

“Everybody knows that our cities were built to be destroyed” (“Maria Bethânia”, Caetano Veloso)

É preciso construir a cidade como espaço do diálogo, da polifonia, da diversidade, da diferença, da alteridade, do outro, da deriva, dos desejos, dos fluxos, dos encontros, das situações, do encantamento, que a cidade é tanto de Bakhtin, e de Guy Debord, quanto de todos que a querem livre e feliz. É preciso denunciar o roubo do espaço público, é preciso denunciar o amesquinhamento do espaço publico. Disse Oskar Negt – “Gostaria de lembrar também a origem do termo “privado”, que é derivado do verbo privare, que significa roubar. Roubar de quem? Originalmente se rouba da comunidade suspendendo o seu direito. Na origem não está o privado e sim o comunitário.” É preciso ver a cidade como fato social total, no sentido que Marcel Mauss deu à esta ideia. Fato social total que agregaria o mediato e o imediato, o individual e o coletivo, o sincrônico e o diacrônico, o que é e o pode ser, o que será

pela projeção do sonho, do desejo. É preciso concordar com Pierre Francastel: “Os homens, as sociedades não criam o seu ambiente apenas para satisfazer certas necessidades físicas ou sociais, mas também para projetar num espaço real de vida algumas das suas ambições, das suas esperanças, das suas utopias”. É preciso impedir, na cidade, onde for, a desigualdade, a exclusão, a segregação, o individualismo, o privatismo, a violência. É preciso fazer da cidade, de todo lugar, o reino da liberdade, da liberdade autêntica, aquela que Hegel disse só se realizar quando for radicalmente a liberdade de todos. É preciso ler Francisco Jarauta, ler Giulio Carlo Argan, aprender com ele que a história da arte é a história da cidade, e que arte é, como viu Stendhal, promessa de felicidade. É preciso acordar a cidade, aquela que Mário de Andrade cantou certa vez: “Estrelas árvores estrelas E o silêncio fresco da noite estrelada” (...) “É preciso acordar a cidade: Dorme Belo Horizonte. Seu corpo respira de leve o aclive vagarento das ladeiras... Não se escuta sequer o ruído das estrelas caminhando... Mas os poros abertos da cidade Respiram com sensualidade com delícia” (...) É preciso acordar a cidade, preencher seus poros com o que em nós se recusa a acreditar que a última palavra sobre o nosso destino foi dada. 8 de agosto de 2011.

“Quando eu disse a ela que o amor passou, a cidade levemente | OrFEL - Transborda na cidade - edição 2011 | 3 flutuou” (“Disse a ela”, Samuel Rosa e Chico Amaral)


Poemas

Co-autoria

Franceline Rodrigues Silva

(selecionados pelo I Concurso Literário Orfel Transborda – edição 2011)

Para inscrever-me, retiro a caneta do acaso e início a escrita Sou autora, Fundadora, Causa primária Co-autora

obscuro desejo

(sem título)

meretriz mera atriz dos meus sonhos pequeninos percorrer com seus dedos finos meus cabelos enxugar com seu lenço perfumado minhas lágrimas pela manhã meretriz mera atriz no meu divã eu que nada possuo além do obscuro desejo de que você me faça feliz

Aqui de baixo nunca saberei o tamanho do céu E aí de cima sabe-se lá quem sou eu

Achilles de Borborema

Renan Moreira

Achilles de Borborema é o pseudônimo de Aluizio Rezende, engenheiro civil. Tem cinco livros publicados, entre romances, contos e poesias. Belo Horizonte, MG, e-mail: alurez@oi.com.br

Quando acontecer de eu ir, irei correndo e você vem descendo.

É perturbante: avistar esses intranqüilos mares movendo-se em minha direção

E no meio do caminho a gente se esbarra Vira nuvem dessas que trovoa E no meio da noite a gente ecoa e some numa trova, só de farra.

Não obstante, persisto e dirijo-me ao papel

Renan Moreira é músico e escritor amador. Começou a escrever por puro prazer de dar vazão às suas criações literárias. Mantém o blog radikateudispor.blogspot. com. Poços de Caldas, MG, e-mail: renan.mgouvea@ gmail.com

Trânsito Hugo Lima

Pessoas que vêm de dentro Pessoas que vêm de fora Pessoas que me atravessam. Hugo Lima é pesquisador nas áreas da arte, educação e tecnologia. É mineiro, de Belo Horizonte, e-mail: hugolimm@gmail.com

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Num primeiro instante, como uma compositora inexperiente, levanto-me com freqüência, atenta aos detalhes aos quais deverei narrar

“Sometimes I feel like my only friend is the city I live in, the city of angels; lonely as I am, together we cry” (“Under the Bridge”, Red Hot Chili Peppers)

Folhas fibrosas dificultosas de aderência As palavras são frouxas e tênues mas incoerentemente são faceiras embream-se Decidida! Apressadamente como em uma caçada passo a persegui-las e contraditoriamente, Elas a mim

A Imaginação Dyoli Vieira

As bolinhas de gude são planetas, o pião é a terra a girar. O papagaio com seu rabo é um cometa e a linha é um raio pelo ar. Faz um giz de um pedaço de carvão, ensinando o ofício de viver. O quadro negro imenso é o chão e o garoto começa a escrever. Uma poça de água é um oceano onde o moleque se põe a navegar. Seu barquinho é um navio transatlântico, pode ter tudo que imaginar. Cada sonho é um plano bem traçado da criança pensando no futuro. A esperança caminha bem do lado o horizonte é ali depois do muro. rabiscando com firmeza seu destino só precisa de lápis e papel, sabe tudo da vida, bom menino, o mundo a colorir com seu pincel. Dyoli Vieira é o pseudônimo de Saulo de Oliveira Campos, autor de O eco da araponga (1984), Fortes muralhas (1985) e Rastros de sangue (2011). Itabira, MG, e-amil: sauloocampos@yahoo.com.br

Franceline Rodrigues Silva, de Sacramento, estuda pedagogia na UEMG. Belo Horizonte, MG, e-mail: franceline.rodrigues30@hotmail.com A cidade apresenta suas armas: meninos nos sinais, mendigos | OrFEL - Transborda na cidade - edição 2011 | 5 pelos cantos e o espanto está nos olhos de quem vê o grande monstro a se criar” (“Selvagem”, Os Paralamas do Sucesso)


Contos (selecionados pelo I Concurso Literário Orfel Transborda – edição 2011)

Pensão dispensada

Isabel de Assis Fonseca

Sentada na poltrona de couro marrom descascado, Donana assiste à TV com as pernas apoiadas numa cadeira para descansar as varizes, os braços estirados no encosto. Vez ou outra a cabeça cai pra frente por causa do pescoço mole. Suspende a cabeça e pensa nas coisas que tem para fazer. Elas sempre chamaram o Rachid de mão de vaca, mas hoje sou eu que vou buscar o primeiro mês de pensão. Será que dessa vez o governo liberou mesmo esse miserê?

Estranho comum amor

Rodolfo Gullar

O amor fez dos meus dias atordoados algo simples e fantástico, tão mágico que devorou minha sanidade. Me fez pensar em eternidade e destruiu meu medo. O meu amor nasceu de tudo que era estranho, do teu olhar torto para o chão, da tua calça amassada. Nasceu do teu jeito simples de mastigar o doce, da poeira da tua sandália, da cor areia da tua blusa. O meu amor nasceu muitos dias após te ver, muitas horas após te beijar e cresceu a ponto de arrancar de minha boca algumas palavras puras. Nasceu dos versos pobres do seu dia a dia, da sua raiva do fim da tarde, do teu cheiro seco e sem perfume. O meu amor nasceu do mau humor da manhã, do teu copo de café com muito açúcar, da tua luta com o teu corpo. Nasceu da tua pouca vaidade, dos tons fracos de tuas unhas, do teu cabelo sem penteado, do drama, do filme, do romance risonho. Nasceu como uma flor doente de tanta sombra, como uma crise solitária de um cão, como um fim de tarde longe de casa. Com uma sede de vingar por querer sempre mais, como um vício ilógico e fatal.

Donana, cara azeda, como quem tem nojo da comida, foi a única das seis irmãs que casou. A Terezinha teve três pretendentes, mas um deles falava menas, o outro tirava meleca do nariz na sua frente e o terceiro queria ser artista. É bem verdade que Rachid de Donana não era bom amante. Nunca a beijou de língua, tinha a boca frouxa, nem mesmo um filho nela conseguiu fazer. Mas nunca lhe fez mal. Vou logo preparar o angu pros gatos, daqui a pouco terei que enfrentar fila de banco. Será que vou mesmo retirar aquele miserê? A velha leva a panela quente de angu até o quintal e o distribui entre os potes de comida dos gatos roçando suas pernas. Volta para dentro arrastando as chinelas, toma banho, veste seu vestido florido de tricoline, guarda a carteira de tecido com um trocado e a identidade dentro do sutiã, esses pivetes pensam que eu sou besta, calça as alpargatas, põe a sacola de feira debaixo do braço e sai para a rua. Donana sobe no ônibus que a levará até sua agência no centro da cidade. Ela solta uns resmungos de canto de boca enferrujada para um rapaz, que libera o lugar dos velhos para ela sentar. O sacolejo do ônibus é o estalo para seus pensamentos tristes. Os olhos vagam o percurso, o corpo cansado balança pra lá e pra cá. E então o ônibus para no sinal vermelho bem próximo ao banco de Donana. Para encurtar caminho, pede ao motorista que a deixe descer ali mesmo. O motorista abre a porta, ela desce, passa pela frente do ônibus para atravessar a pista e TABLEFE! Seu corpo é levado por uma caminhonete e cai esparramado cinco metros adiante. Donana não vai mais usufruir daquele miserê deixado por Rachid.

O meu amor nasceu, adoeceu como uma parte do meu corpo longe de mim e matou todo o meu equilíbrio, a minha sobriedade e minha vida eterna.

Isabel de Assis Fonseca formou-se em jornalismo e fez especializações na área em “Jornalismo Literário”, “Processos Criativos em Palavra e Imagem” e “Imagens e Culturas Midiáticas”. Belo Horizonte, MG, e-mail: belfonseca@gmail.com

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Eu vou ficar nessa cidade, não vou voltar pro sertão, pois vejo vir | OrFEL - Transborda na cidade - edição 2011 | 7 vindo no vento o cheiro da nova estação” (“Como nossos pais”, Belchior)

“Don’t lean on me man, cause you can’t afford the ticket. I’m back to Suffragette City” (“Suffragette City”, David Bowie)


Tradução Poema de Mario Benedetti, Cada Ciudad puede ser otra Tradução Colaborativa: Junia Mortimer (Pegada / Fora das Bordas) Ricardo Sangiovanni (O Purgatório) Ricardo Viel (O Purgatório)

Cada ciudad puede ser otra

Cada cidade pode ser outra

Los amorosos son los que abandonan, son los que cambian, los que olvidan. Jaime Sabines

Os amorosos são os que abandonam, São os que mudam, os que esquecem. Jaime Sabines

Cada ciudad puede ser otra cuando el amor la transfigura cada ciudad puede ser tantas como amorosos la recorren

Cada cidade pode ser outra quando o amor a transfigura cada cidade pode ser tantas conforme amorosos a percorrem

el amor pasa por los parques casi sin verlos amándolos entre la fiesta de los pájaros y la homilía de los pinos

o amor passa pelos parques quase sem os ver, amando-os entre a festa dos pássaros e a homilia dos pinhos

cada ciudad puede ser otra cuando el amor pinta los muros y de los rostros que atardecen unos es el rostro del amor

cada cidade pode ser outra quando o amor pinta os muros e dentre os rostos que entardecem um é o rosto do amor

y el amor viene y va y regresa y la ciudad es el testigo de sus abrazos y crepúsculos de sus bonanzas y aguaceros

e o amor vem e vai e regressa e a cidade é testemunha de seus abraços e crepúsculos de suas bonanças e aguaceiros

y si el amor se va y no vuelve la ciudad carga con su otoño ya que le quedan sólo el duelo y las estatuas del amor

e se o amor vai e não volta a cidade segue com seu outono já que lhe sobram só o lamento e as estátuas do amor

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“Nos barracos da cidade, ninguém mais tem ilusão no poder da autoridade de tomar a decisão” (“Nos Barracos da Cidade”, Gilberto Gil)

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Orfel recomenda Sobre a cidade na literatura:

Fernando Pessoa, Ode Triunfal

Neste texto, o eu-lírico celebra o urbano a ponto de (con)fundir-se com ele. Contudo, permeando as estrofes, persiste a desconfiança crítica para com o homem-máquina que o poeta sugere em delírios. No sussurro persistente do homem que busca reconhecimento, seja num mundo público ou privado – sussurro que percorre todo o poema, Álvaro de Campos oscila sobre o fino fio de sua memória, pendendo para o quintal da infância. No entanto, a “raiva mecânica” arranca-o de suas tentativas de encontro com suas referências, formação de sua identidade. Sem o encontro consigo, o poeta é lançado de novo em seu delírio que o funde cada vez mais à massa das grandes cidades de maquinarias, afogado na ressaca da modernidade. Vale a pena conferir!

John dos Passos, Manhattan Transfer gares da cidade com a Lambança, uma falsa câmera lambe-lambe feita com caixas de papelão, canos de pvc e tnt, registrando o grito das pessoas. O resultado dessa deriva fotográfica poderá ser visto em cartazes lambe-lambe que serão colados em postes de áreas descuidadas ou subutilizadas da cidade, numa alusão ao grito do lugar.

Em Manhattan Transfer John Dos Passos faz uso de uma série de símbolos para representar a Nova York do começo do século XX. De acordo com a imagem de cidade que John dos Passos cria ao longo do romance, Nova York é uma metrópole constituída na soleira entre a lei e o crime, a ordem e a desordem, o dia e a noite. Desde o início da narrativa, o autor constrói a definição de metrópole como um sistema complexo constituído de aspectos diversos e inclusive confrontantes. Dos Passos explora esses aspectos variando-os de conotações diurnas a conotações bem mais noturnas, tão sedutoras quanto transgressoras e arriscadamente deliciosas. Lambuzem-se!

“Deve ter alamedas verdes a cidade dos meus amores. E, quem dera, os moradores e o prefeito e os varredores fossem somente crianças” (“Cidade Ideal”, Enriquez/Bardotti/Chico Buarque)

“There are places I remember all my life, though some have | OrFEL - Transborda na cidade - edição 2011 | 11 changed. Some forever, not for better, some have gone and some remain.” (“In my life”, Lennon/McCartney)

Durante o Festival Transborda 2011, o coletivo Fora das Bordas propõe a intervenção Digitalambe - vulgo Lambança. Trata-se de uma proposta inspirada nos antigos retratistas ambulantes que percorriam as ruas das cidades com suas enormes câmeras de fole, popularmente conhecidas como lambe-lambe. Os fotógrafos do Fora das Bordas percorreram alguns lu-

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Rubem Braga, A cidade e a roça

Cronista do cotidiano, talvez o mais notável do gênero no país, Rubem Braga ilumina, com uma ternura que não o abandona nunca, maravilhas e vícios da vida ordinária no Brasil - do rural que encontrou, em 1913, ao urbano que deixou, em 1990. Contraste que dá inclusive título a um de seus livros: “A Cidade e a Roça” (1964). No volume está o triste e delicado “Recado ao Senhor do 903”, pedido de desculpas de um morador festeiro de um edifício da capital a seu vizinho do andar de baixo, por causa do barulho alegre que não o contagia (como talvez acontecesse no interior) mas, infelizmente, o perturba. Aqui e ali em seus relatos, o Velho Braga nos mapeia uma cidade feita das alegrias e das desilusões, das tragédias e das solidões, das amizades e dos amores que viveu e que viu passar. Eis o trecho final da crônica “O homem e a Cidade”, de outro volume, “Ai de Ti Copacabana” (1960), que não nos deixa mentir: “Quieto, vou repetindo sem voz, para mim mesmo, teu nome, Lenora - perdida, para sempre perdida, mas tão viva, tão linda, batendo seus sapatos na calçada, andando de cabelos ao vento dentro de minha cidade e de minha saudade, Lenora.”

Bernardo de Carvalho, O sol se põe em São Paulo

Labiríntica é a cidade imaginária que Bernardo Carvalho nos propõe ao provocar um entrecuzamento de histórias entre o Tokyo e São Paulo: com nos alerta Borges, “bastam dois espelhos opostos para se construir um labirinto.” Por aproximações e distanciamentos, as duas cidades se espelham, mas as imagens se traem, e a multiplicação de uma na outra gera essa cidade terceira, cidade labirinto. Nesse labirinto sino-paulistano, “não é só que esteja tudo fora do lugar. Está tudo fora do tempo também.” A cidade labirinto, construída dentro de uma trama que se fia entre a narradora e seu ouvinte, presentifica uma forma de construção ou de recriação, por meio da escrita, de um tempo outro, passado ou futuro; de uma cidade outra, nem Tokyo nem São Paulo; de uma nação outra, nem Brasil nem Japão, que por vezes desconfiamos sem nome e sem lugar, talvez por englobar em sua atualização arquetípica todas as outras. É a maneira pela qual narrador e ouvinte encontram para reconstruirem-se: “cada um reconstrói o mundo como pode”.

Paul Auster, New York Trilogie

Em New York Trilogie, Paul Auster explora questões essenciais à discussão da ideia de cidade que se tem hoje. Uma dessas imagens é aquela da cidade de vidro, o lugar da fragmentação, onde existe a separação entre palavra e coisa: “Havia chegado a uma terra de fragmentos, perdida, um lugar de coisas para as quais não havia palavras e também um lugar de palavras que não correspondiam a coisa nenhuma.” Essa fragmentação ou esse esfacelamento da face sólida das coisas nos remete imediatamente aos aspectos da liquidez característica da sociedade moderna, conforme elucidado por Zigmunt Bauman. À semelhança de uma sociedade líquida, onde inclusive os amores são líquidos, uma cidade líquida seria a cidade puramente das impressões, do transitório, da impermanência, do fugidio, da privação de compromisso. Nessa cidade, “não se deixe apanhar. Evite abraços muito apertados. Lembre-se de que, quanto mais profundas e densas suas ligações, compromissos e engajamentos, maiores os seus riscos.”

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“Chove chove chuva fria. Chove na Cidade Alta. Chove sobre a Mouraria. Chove na Cidade Baixa” (“Loa de Lisboa”, Alceu Valença)



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