Quando o teatro questiona a fé | Público

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P2 • Quarta-feira 30 Novembro 2011 • 9

com Ana Pereira Caldas) de irregularidades financeiras no valor de 3,2 milhões de euros, Vargas, de 45 anos, integrará agora como representante do TNDMII o Agrupamento Complementar de Empresas,

com representantes ainda do São Carlos, Teatro Nacional de São João, Companhia Nacional de Bailado (CNB) e Cinemateca Portuguesa. Em 2009, Vargas devolveu ao Estado 23.500 euros, evitando julgamento.

adeus a Deus e ao medo de Deus no qual deixei de acreditar quando tinha dezasseis anos (graças a um livro de Schopenhauer).” Explicava também que não pôde contar com a ajuda de teólogos, porque aquele que encontrou assustou-se com o título da peça (Gólgota significa calvário). García diz que revisitou “passagens da Bíblia como se lê banda desenhada”, construindo assim a sua própria leitura. “Claro que, comparada com o original, é pobre e tosca.” Diz que a Bíblia representa “o imaginário, a beleza da palavra, a utopia”, mas também “a violência extrema e, sobretudo, a injustiça”. E explica: “Toda a doutrina é reprovável, porque ela se constrói sob o princípio de nos salvar.” Será por isso que, numa das cenas da peça, um anjo caído de pára-quedas no palco diz aos espectadores que nada pode ensinar sobre guerras, violações e pedofilia porque os homens sabem mais do que é possível ser-lhes ensinado. Na mesma entrevista García diz que se tivesse que escolher entre os livros da Bíblia aquele que melhor exemplificasse as contradições da própria Bíblia escolheria o Livro do Eclesiastes, que, atribuído ao rei Salomão, reflecte sobre as vaidades humanas, sugerindo um desapego às riquezas e tentando fazer compreender a bemaventurança que existe na pobreza. “Está de tal forma emprenhado de contradições que não oferece saída. É, ao mesmo tempo, o fel e o mel.” É verdade que o teatro de García, fazendo-se magnânimo, se sustenta numa provocação muitas das vezes primária, fruto de uma encenação que procura construir uma iconografia plástica ao mesmo tempo que tenta a sua completude através das referências do espectador. O arcebispo de Toulouse disse, contudo, que García “brincava com a fé de muitos crentes” e que “se queria denunciar ferozmente todas as formas de fundamentalismo e rebelar-se contra um Deus todopoderoso que temia desde criança” errou o alvo: “Esses não eram os fundamentos proclamados pelos cristãos.”

Uma das imagens que mais polémica causaram implica um pianista, Marino Formenti que, nu, toca uma adaptação de As Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz, de Haydn. Para o intérprete, esta “é uma declaração de amor passional a Cristo por um homem que não é crente no sentido dogmático do termo”. Formenti diz compreender que a imagem “possa ser perturbadora para certos católicos mas que a provocação não é o objectivo principal [da peça]”.

DR

Direito à indignação A reflexão teológica veio através de um texto enviado à comunidade eclesiástica francesa, difundido pelo jornal católico La Croix, onde Pascal Wintzer, administrador apostólico de Poitiers e responsável pelo Observatório da Fé e Cultura, escrevia: “Ao quererem exprimir a sua revolta com estes espectáculos, martirizam também as relações que a Igreja Católica sempre se esforçou por alimentar com as artes e os artistas”. E, reconhecendo o direito à indignação, mas alertando para as manipulações que pudessem estar a ser feitas por elementos extremistas, escrevia: “Não há cultura ‘pura’, nem uma cultura mais apta a exprimir a fé cristã. Admiti-lo, praticá-lo, seria ‘expurgar’ de cultura, por exemplo, as igrejas. Com que critérios? Que expressão artística poderia ser ‘pura’? E qual a ‘impura’? O diálogo entre ‘o Evangelho de Deus’ e as culturas não coloca uma realidade face a outra. Encontramo-nos frequentemente entre dois iconoclasmos. Os dos encenadores que recusam imagens suavizadas de Deus, imagens que escondem os dramas e os sofrimentos. E a iconoclastia dos que ‘protegem’ as únicas imagens idealizadas, preferindo destruir as outras. Não se pode negar que existe, de um e de outro lado, uma provocação voluntária. Mas a dos artistas não é da mesma natureza que a dos manifestantes.” E alertava: “Se chegarmos ao momento em que um já nada tem a dizer ao outro, ou onde o outro não aceita nada do que lhe é dito, poderá ter vencido o triunfo individual, mas a comunhão humana estará em perigo.” CORTESIA FESTIVAL AVIGNON

Sur le concept du visage du fils de Dieu, do italiano Romeo Castellucci

Prémio BES Revelação 2011 em Serralves

As “imagens pensativas” Ana de Almeida, Catarina de Oliveira e o colectivo [De Almeida e Silva, Giestas e Gonçalo Gonçalves] expõem os seus projectos no Porto, a partir de hoje Sérgio C. Andrade

a Uma espécie de cadáver-esquisito videográfico encenado sobre uma mesa; a história fantasiada de um navio-frigorífico que encalhou no Estoril; um filme num ecrã de dupla face sobre um templo em ruínas. Foi nisto que resultaram os três projectos vencedores, em Julho, da 7ª edição do prémio de fotografia BES Revelação. Trabalhos de Ana de Almeida, de Catarina de Oliveira e do colectivo [De Almeida e Silva, Giestas e Gonçalo Gonçalves], expostos, a partir de hoje, em Serralves, no Porto (até 4 de Março). O primeiro piso da casa-mãe da fundação é o cenário destes trabalhos, que têm em comum o descentramento da visão mais académica da fotografia. Arte que aqui “se expande em várias práticas de construção de imagens, desde a ampliação digital até ao vídeo”, fez notar João Fernandes, ontem, na apresentação da exposição. O director do Museu de Arte Contemporânea de Serralves lembrou que a fundação está ligada à constituição deste prémio, desde o início. E sublinhou a importância que tem, para os jovens artistas portugueses, serem avaliados por um júri internacional – este ano, com Marianne Lanavère, directora do Centro Cultural La Galerie, em Paris, e Manuel Segade, curador

independente na mesma cidade. O terceiro membro do júri foi Ana Anacleto, curadora que acompanhou o desenvolvimento dos projectos vencedores até à sua apresentação em Serralves. Na apresentação que fez dos trabalhos, destacou, como “elemento comum”, as diferentes formas de “percepção da imagem” nos seus diversos suportes, mas também, e citando o filósofo Jacques Rancière, o facto de se apresentarem como “imagens pensativas”, que pressupõem “um pensamento não pensado”, mas que se intui. O trio [De Almeida e Silva, Giestas e Gonçalo Gonçalves] ocupa a primeira sala, com o projecto If it doesn’t bend, I’ll breack it. Sete ecrãs vídeo encadeiam imagens à procura de uma ligação. É o resultado de três meses e meio de trocas de “correspondência” (filmes, imagens e textos) entre os três artistas. “Às vezes foi difícil, e até penoso”, chegar a este resultado, explicou Giestas na apresentação do trabalho, que não quis classificar nem como uma peça, nem uma exposição colectiva. “É algo que está depois, ou no meio disso”, referiu o artista, que estuda em Hamburgo – todos os vencedores do BES Revelação 2001 trabalham no estrangeiro e formaram-se na Escola de Belas Artes de Lisboa.

O trabalho de Ana de Almeida, Al Wahda, divide-se por duas salas: é a reconstituição ficcionada do naufrágio do navio-frigorífico com aquele nome (União, em árabe), em 1989, ao largo do Estoril. “O encalhe não teve grande repercussão, porque não teve vítimas, nem grandes consequências materiais nem ambientais”, diz a artista, actualmente radicada em Viena. Depoimentos de três supostas testemunhas oculares e a projecção de slides com notícias da época e desenhos técnicos do navio constroem a memória desse quase “não-acontecimento”. “Quis fazer a minha própria fantasia sobre o naufrágio e levar o espectador a criar a sua própria imagem mental do facto”, justifica Ana de Almeida. Na quarta sala, um ecrã duplo exibe, de forma dessincronizada, um filme rodado por Catarina de Oliveira nas ruínas de um anfiteatro grego na Sicília. É uma sucessão de “imagens simbólicas que criam diferentes mapas”, diz, num texto, a autora – que não tinha ainda chegado a Serralves na altura da visita guiada para os jornalistas. Ana Anacleto “substituiu-a”, explicando que esta montagem de textos de Pirandello com performances de actores e imagens de ruínas é uma boa expressão da “imanência das imagens de carácter pensativo”, de que fala Rancière.


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