Livro crime e castigo

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rondar-me; Svidrigáilov descobriu o meu segredo; Svidrigáilov teve intenções sobre Dúnia. E se agora ainda as tivesse? Pode-se quase afirmar que sim, sem receio de engano. Agora que conhece o meu segredo e me tem na mão, de certa maneira, irá servir-se disso como de uma arma contra Dúnia?" Essa idéia às vezes até em sonhos o perturbava, mas a primeira que se lhe mostrou à consciência, com toda a clareza, foi no momento em que se dirigia para a casa de Svidrigáilov. Bastou esse pensamento para lhe provocar um surdo ataque de raiva. Em primeiro lugar, a situação mudava por completo, até mesmo naquilo que pessoalmente o afetava; não tinha outro remédio senão revelar o mais depressa possível o seu segredo a Dúnia. Não faria bem em ir ele próprio denunciar-se, com o fim de pôr Dúnia a salvo de algum passo imprudente? E aquela carta? Dúnia recebera nessa mesma manhã uma carta? Quem é que, em Petersburgo, poderia escrever-lhe? Seria de Lújin essa carta? É certo que Razumíkhin era uma boa sentinela, mas Razumíkhin não sabia de nada. Não faria bem em ser franco com Razumíkhin? Mas, perante essa idéia, Raskólhnikov experimentou uma sensação de espanto. "Seja como for, é preciso ir imediatamente procurar Svidrigáilov", decidiu finalmente. "Graças a Deus, os pormenores têm aqui menos importância do que o fundo do assunto; mas se for capaz disso... desde que Svidrigáilov intente a menor coisa contra Dúnia, nesse caso..." Raskólhnikov estava tão esgotado por aquele longo mês de lutas e comoções que não se sentia capaz de resolver questões semelhantes senão com estas palavras de frio desespero: "Nesse caso, matá-lo-ei". Um doloroso sentimento lhe oprimia o coração, parou no meio da rua e girou os olhos à sua volta. Que caminho seguira? Onde é que se encontrava? Encontrava-se na Avenida de X..., a trinta ou quarenta passos do Mercado do Feno, que atravessara. O primeiro andar do prédio da esquerda era completamente ocupado por uma taberna. Todas as janelas estavam abertas de par em par. A taberna, a avaliar pelas figuras que assomavam às janelas, estava apinhada. Da sala, onde tocavam clarinete e violino, ao compasso de um repique de tambor, chegava um rumor de canção. Ouviam-se gritos agudos de mulher. Estava Raskólhnikov quase decidido a voltar atrás, a si mesmo perguntando por que tomara o rumo da Avenida de X... quando, de súbito, numa das janelas do estabelecimento, descobriu Svidrigáilov, de cachimbo na boca, sentado a uma mesa de chá[62]. Sentiu um grande assombro, mesclado de terror. Svidrigáilov observava-o e contemplava-o em silêncio, e o que acabou de deixar Raskólhnikov estupefato foi que lhe pareceu ter notado que Svidrigáilov queria levantar-se e escapulir-se suavemente antes que ele o visse. Raskólhnikov fingiu não o ter visto e olhou para o outro lado com o ar perplexo, embora sem o perder de vista pelo canto do olho. O coração pulsava-lhe de angústia. Era isso, sem dúvida, Svidrigáilov queria passar despercebido. Tirou o cachimbo da boca e procurou esconder-se, mas ao levantar-se para afastar a cadeira reparou, provavelmente, que Raskólhnikov o tinha visto e o estava contemplando. Passou-se entre ambos qualquer coisa semelhante à cena do seu primeiro encontro em casa de Raskólhnikov, no momento em que este dormia. Um sorriso de velhacaria assomou ao rosto de Svidrigáilov, que, aliás, se pavoneou. Um e outro se sabiam mutuamente espiados. Até que por fim Svidrigáilov rompeu numa estrepitosa gargalhada.


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