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Isquemia

Há tempos não o via quando, de repente, ao entrar numa casa comercial, vi no meio de outras pessoas uma mão acenando para mim, mas no primeiro tempo não identifiquei a sua fisionomia, pois estava muito magro e o rosto portanto muito afilado. Ao se aproximar, dei-lhe um abraço, aquele abraço amigo de infância que o tempo não destruiu. A voz sumida, quase inaudível, mais parecia que estava soprando. Foi então que percebi a existência de algo errado. Olhando fixo para mim e após me abraçar, eu ficava a me lembrar que amizade é coisa muito rara e amigo é coisa para se guardar no lado esquerdo do peito, como diz a canção.

Enquanto ele escrevia algo num pedaço de papel, eu me lembrava do passado, do nosso time, das serenatas daquele tempo que pensávamos nunca terminar. Pensava eu. A infância e juventude passaram e agora, após tanto tempo, se foi o melhor de nossos dias. Mas continuamos com a vida, alegre e saudável, procurando usufruir se possível dela o melhor. Muitos amigos daquela época lamentavelmente se foram, deixando atrás seus atos e amizades construídas.

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Não digo seu nome, pois não é o momento. uma vez que tenho outros amigos e não farei esta injustiça, ainda que de público. Magro e quase sem voz continuava escrevendo numa folha de papel e, de repente, fez um ar de riso que me animou bastante. Percebi tratar-se de uma doença aliás, fato comum aos da minha geração.

Vi seu olhar de cansaço, sua voz sumida, gestos com a vida que agora assumia contra sua vontade. Voltando-se para mim e ao mostrar o papel lá estava escrito: Isquemia. Tudo, pois, como leigo e na minha santa ignorância, não sei fazer a diferença entre AVC, derrame e infarto. Assunto para Dr. Demóstenes, reduto dos Cunha Lima, especialista nesta matéria.

Na verdade sabia eu diferenciar o amigo do não amigo estando ele na primeira colocação. Feito isso, me deu um aperto de mão e escreveu noutro pedaço de papel: Gol contra, lembrando um a zero quando perdemos para o time da outra rua, tendo ele feito o referido gol e nunca mais esqueceu, nem voltou a jogar.

Continuamos a conversa por simples gestos como amigos de sempre. Ao nos despedirmos saindo da casa comercial, ao olhar para trás, uma furtiva lágrima descia nas suas faces e de minha parte, como Nat King Cole do nosso tempo, cantava eu baixinho: “Quero chorar não tenho lágrimas que me rolem nas faces, para me socorrer...”

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