"Sanshiro", Natsume Soseki

Page 1


sanshiro 1ÂŞ ed.indd 2

26/11/2013 12:29:34


sanshiro

sanshiro 1ÂŞ ed.indd 3

26/11/2013 12:29:34


sanshiro 1ÂŞ ed.indd 4

26/11/2013 12:29:34


natsume soseki

sanshiro

Tradução do japonês e notas

Fernando Garcia

Estação Liberdade

sanshiro 1ª ed.indd 5

26/11/2013 12:29:34


Título original: Sanshiro © Editora Estação Liberdade, 2013, para esta tradução

Preparação

Revisão

Assistência editorial

Imagem de capa

Ideogramas à p. 7

Composição

Editores

Antonio Carlos Soares Fábio Fujita Fábio Bonillo Utagawa Hiroshige: Templo Kinryuzan em Asakusa, em Cem vistas de locais famosos em Edo. Latinstock/© Christie’s Images/Corbis (DC) Hisae Sagara Miguel Simon Angel Bojadsen e Edilberto F. Verza

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ N231s Natsume, Soseki, 1867-1916 Sanshiro / Natsume Soseki ; tradução do japonês e notas Fernando Garcia. - 1. ed. São Paulo : Estação Liberdade, 2013. 272 p. ; 23 cm. Tradução de: Sanshiro ISBN 978-85-7448-214-9 1. Romance japonês. I. Garcia, Fernando. II. Título. 13-02635 CDD: 895.63 CDU: 821.521-3

Todos os direitos reservados à Editora Estação Liberdade Ltda. Rua Dona Elisa, 116 | 01155­‑030 | São Paulo­‑SP Tel.: (11) 3661 2881 | Fax: (11) 3825 4239 www.estacaoliberdade.com.br

sanshiro 1ª ed.indd 6

26/11/2013 12:29:34


sanshiro 1ÂŞ ed.indd 7

26/11/2013 12:29:34


nota dos editores

Adotamos aqui o padrão empregado em nossas traduções de obras japonesas — o prenome antecedendo o nome de família, à maneira ocidental. No entanto, apre‑ sentamos o nome do autor na forma original, com o pseudônimo que escolheu para si próprio, Soseki, grafado depois do patrônimo, de modo que o leitor brasileiro possa conhecê-lo pela denominação que o tornou mundialmente notório. Natsume Soseki recebeu ao nascer, em 1867, o nome de Natsume Kinnosuke (sobrenome + nome). A partir de 1887, passa a assinar seus escritos com o pseudônimo (Soseki), que em chinês significa “incômodo” ou “estorvo”.

sanshiro 1ª ed.indd 8

26/11/2013 12:29:34


INTRODUÇÃO DO AUTOR

Sanshiro, após se graduar em uma escola superior no interior, ingressa na Universidade de Tóquio, onde entra em contato com uma nova atmosfera. Lá seu relacionamento com outros calouros, veteranos, moças, etc., gera diversas situações. Esta obra consiste apenas em soltar tais pessoas nessa atmosfera. De resto, deixo as personagens nadarem livremente, pois imagino que o fluxo do enredo correrá de modo natural. Acredito que, assim fazendo, tanto os leitores quanto o autor pouco a pouco conhecerão melhor as pessoas influenciadas pelo ambiente criado. Caso a atmos‑ fera não exerça nenhuma influência de valor, ou as personagens não se mostrem dignas de nossa atenção, infelizmente só nos resta, ao leitor e a mim, delas desistirmos. A obra é apenas trivial. Nada faço aqui de misterioso.

9

sanshiro 1ª ed.indd 9

26/11/2013 12:29:34


I

Ao abrir os olhos em meio a uma pestana, ele percebeu, sabe­‑se lá desde quando que, a mulher estava conversando com o senhor ao lado. Com certeza aquele senhor era o interiorano que embarcara duas paradas atrás. Quando o trem ia partir, ele gritara loucamente, atirando­‑se para dentro do vagão; em seguida, havia se despido da cintura para cima e mostrado as costas repletas de marcas de mo‑ xabustão. Foi uma cena que Sanshiro jamais esqueceria. Tanto se impressionara que observou atentamente o senhor desde o momento em que ele havia secado o suor do corpo e voltado a se vestir até quando se sentara ao lado da mulher. Já a moça vinha viajando desde Kyoto. Sanshiro notou­‑a no instante em que ela subiu no trem. Sobressaía­‑lhe a pele escura. Em Kyushu, o rapaz se transferiu para a linha Sanyo, e à medida que se aproximava de Kyoto e Osaka as mulheres iam se tornando cada vez mais brancas, o que lhe dava uma forte sensação de que se afastava de sua terra natal. Assim, quando a moça entrou no mesmo vagão que ele, sentiu de alguma forma que ganhara uma aliada do sexo oposto. A tez dela era realmente a de uma mulher de Kyushu. Ela tinha a mesma cor da senhorita Omitsu, dos Miwatas. Até o instante em que deixou sua terra, Omitsu fora sempre inoportuna. Foi um prazer poder afastar­‑se dela. Pensando em sua situação de agora, contudo, ter a companhia mesmo de Omitsu não seria nada ruim. Todavia, julgando pelo semblante, essa mulher parecia­‑lhe bem mais elegante. Tinha a boca tesa e os olhos bem delineados. A fronte era larga como a de Omitsu, mas não em demasia. A moça causava uma sensação agradável. A cada cinco minutos, Sanshiro erguia o olhar em sua direção. De vez em quando os olhares dos dois se en‑ contravam. Quando o senhor sentou ao lado da jovem, observou a reação dela o quanto pôde, cuidando ao mesmo tempo para não ser 11

sanshiro 1ª ed.indd 11

26/11/2013 12:29:34


notado. Ela sorriu ao convidar o senhor para se sentar, cedendo­‑lhe espaço. Momentos depois, Sanshiro sentiu sono e acabou adorme‑ cendo. Pelas aparências, durante seu sono a mulher e o senhor trava‑ ram amizade e começaram a conversar. Ao abrir os olhos, Sanshiro passou a escutar, calado, a conversa dos dois. A moça dizia coisas assim: “Em Kyoto sem dúvida a gente encontra bons brinquedos mais baratos do que em Hiroshima”. Ela aproveitara haver descido em Kyoto para tratar de alguns assuntos e comprara um brinquedo numa loja ao lado do Takoyakushi.1 Estava muito feliz, pois depois de tanto tempo estava voltando para sua terra e veria seu filhinho. Preocupava­‑se porque estava voltando para a casa de seus pais por necessidade, já que não recebia mais o dinheiro que seu marido lhe mandava. Ele trabalhara um bom tempo em Kure, na fábrica da Ma‑ rinha, mas durante a guerra havia ido para Lüshun.2 Depois que o conflito terminara, ele até havia voltado. Porém, dizendo que queria juntar dinheiro por um tempo em Dalian3, lá fora ele de novo traba‑ lhar no exterior. No início estava tudo bem, ele costumava escrever à mulher e todo santo mês enviava uma ajuda; agora, no entanto, fazia meio ano que ela não recebia nem carta nem dinheiro. Estava tran‑ quila porque sabia que ele não a trairia; mas, como não podia ficar só comendo à espera de notícias dele, só lhe restava voltar para a casa de seus pais e esperar. O senhor não fazia ideia de onde era o Takoyakushi, nem pa‑ recia se interessar por brinquedos, de modo que desde o início ape‑ nas concordava com tudo; porém, demonstrou súbita compaixão após escutar sobre Lüshun e disse ser mesmo uma grande pena. Durante a guerra, o próprio filho lhe fora tomado pelo Exército e 1. Nome popular do saguão dedicado ao buda da Medicina, Bhaisajyaguru, no templo Myoshinji em Kyoto. 2. No início do século XX, Lüshun era um porto militar situado na então região da Manchúria. Foi palco da Guerra Russo­‑Japonesa, após a qual passou para o domínio nipônico. 3. Cidade portuária também situada na Manchúria que se tornou um forte centro econômico após a Guerra Russo­‑Japonesa. 12

sanshiro 1ª ed.indd 12

26/11/2013 12:29:35


acabou perdendo a vida nas bandas de lá. Não sabia para que dia‑ bos serviam as guerras. Se depois de tudo a economia ainda melho‑ rasse, mas nada disso; mataram­‑lhe o filho e os preços só subiam. Não há coisa mais imbecil. Nem tivera a chance de ir fazer dinheiro em algum lugar quando a situação fosse mais favorável. Tudo gra‑ ças à guerra. Mas o importante era manter a fé. O marido dela havia de estar vivo e trabalhando. Era só esperar mais um pouco e ele decerto voltaria. O senhor ia assim dizendo e confortando a mu‑ lher, sem descanso. A locomotiva logo parou, e ele desceu cheio de energia do vagão e se despediu da jovem, desejando­‑lhe boa sorte. Seguindo aquele senhor, desceram outras quatro pessoas, mas apenas uma subiu. O vagão, que antes já não estava lotado, agora causava um sentimento de solidão. Talvez fosse culpa do pôr do sol. Um funcionário da estação seguia a passos firmes sobre o telhado, iluminando tudo lá de cima com um lampião. Como se lembrasse de repente, Sanshiro começou a comer a marmita que comprara na estação anterior. Pensava ele que deviam ter se passado dois minutos desde que o trem partira, quando a jovem se levantou ligeira, passou ao seu lado e saiu da cabine. Pela primeira vez, a cor de seu obi 4 realçou­ ‑se aos olhos de Sanshiro. Com a cabeça do ayu de seu cozido de verduras e pescado ainda entre os lábios, acompanhou com o olhar a mulher que se distanciava. Enquanto devorava sua comida, imaginou que ela devia ter ido ao banheiro. A mulher logo voltou. Dessa vez pôde vê­‑la de frente. A mar‑ mita de Sanshiro já estava no fim. Ele baixou a cabeça e manejou com energia os pauzinhos sobre a comida, enchendo a boca com duas, três porções, mas a moça não fez menção de retornar ao seu assento. Ergueu os olhos de leve para averiguar e, ora, lá estava ela, parada bem em frente. Mas foi só ele mover o olhar que ela então se mexeu. Passou ao lado de Sanshiro, mas, em vez de se sentar de novo, avançou um pouco, virou o corpo para o lado e esticou o pescoço para fora da janela, olhando em silêncio a paisagem lá 4. Faixa larga usada como uma cinta sobre o quimono. 13

sanshiro 1ª ed.indd 13

26/11/2013 12:29:35


fora. O vento batia forte, e Sanshiro percebeu que esvoaçavam sua­ vemente as madeixas que caíam sobre as orelhas da jovem. Nesse momento, ele jogou pela janela, com toda a força, a caixa agora vazia de sua marmita. Sua janela e a dela estavam separadas apenas por uma outra. Ao ver que a tampa da caixa que ele lançara contra o vento por infortúnio voltou, Sanshiro percebeu a estupidez que fizera e procurou com os olhos o rosto da mulher. Infelizmente, encontrou­‑a com a cabeça ainda fora do trem. Em seguida, no en‑ tanto, ela apenas encolheu o pescoço, serena, e começou a esfregar a fronte com seu lenço de chita. Sanshiro pensou que seria melhor se desculpar. — Perdão — disse ele. — Não foi nada — respondeu ela, ainda esfregando o rosto. Sanshiro não tinha mais o que dizer. A mulher também se calou e voltou a cabeça para fora do trem. Sob as lamparinas opacas, três ou quatro passageiros exibiam rostos modorrentos. Ninguém falava. Apenas a locomotiva seguia tonitruando. Sanshiro cerrou os olhos. Após instantes, ouviu uma voz feminina: — Não falta muito até Nagoya, não é? A mulher havia em algum momento se voltado para ele, suas cabeças estavam agora lado a lado. Sanshiro se sobressaltou. — É verdade — respondeu, embora não fizesse ideia, pois era a primeira vez que ia a Tóquio. — Desse jeito o trem vai chegar atrasado. — É. — Você também vai descer em Nagoya? — Sim, vou. O ponto final do trem era em Nagoya. Foi uma conversa casual. A mulher acabara de se sentar no assento diagonal ao de Sanshiro. Por mais algum tempo, ouviu­‑se apenas o som da locomotiva. Quando o trem parou na estação seguinte, ela lhe disse que não se sentia segura em andar sozinha e insistiu que ele a acompanhasse depois que descessem. Sanshiro achou sensato. Todavia, não se sen‑ tia disposto a aceitar o pedido tão facilmente. É evidente que hesitou, pois se tratava de uma mulher desconhecida; porém, como lhe faltas‑ 14

sanshiro 1ª ed.indd 14

26/11/2013 12:29:35


se coragem para recusar, deu a entender que, vá lá, faria companhia a ela. Entrementes, o trem chegou a Nagoya. O grosso de sua bagagem já estava encaminhado para Shim‑ bashi, em Tóquio, então não havia com o que se preocupar. Car‑ regando consigo apenas uma maleta de tecido e um guarda­‑chuva, deixou a bilheteria da estação. Usava na cabeça o chapéu do uni‑ forme de verão dos estudantes das escolas superiores.5 Contudo, para sinalizar que já era graduado, retirara o brasão. Olhando­‑se à luz do dia, via­‑se que apenas naquele local o tecido ainda estava novo. A mulher o seguia logo atrás. Sanshiro sentiu que fora um tanto infeliz ao escolher usar aquele chapéu. Mas a jovem agora já o seguia, não havia mais o que fazer. Para ela, estava claro que era apenas um reles chapéu sujo. O trem em que vinham deveria ter chegado às nove e meia, mas atrasou­‑se cerca de quarenta minutos e agora já passava das dez. Contudo, devido ao calor que fazia, a cidade ainda estava mo‑ vimentada, como se a noite houvesse acabado de começar. Logo em frente se viam duas ou três pensões. No entanto, todas pareceram a Sanshiro bastante sofisticadas. Caminhava sem pressa, ignorando, ao passar pela frente, uma pensão de três andares que já contava até mesmo com iluminação elétrica. Como não conhecia a região, não fazia ideia de que rua levava a qual lugar. Seguiu por uma via mais escura. A mulher vinha calada atrás dele. Da esquina de uma trans‑ versal relativamente solitária, avistou a dois prédios adiante uma placa onde se lia pensão on’yado. Era uma placa suja, adequada tanto a Sanshiro quanto àquela mulher. Ele se virou de leve para perguntar curtamente a opinião da companheira e, ao escutá­‑la dizer que ali estava bom, entrou sem pestanejar. Quando ia esclarecer que os dois não viajavam juntos, foi interrompido com “bem­‑vindos”, “entrem por favor”, “mostro­‑lhes o quarto”, “é o número 4 da porta ameixa”, 5. De acordo com o sistema educacional da época, as escolas superiores ofereciam cursos sequenciais em diversas áreas, bem como cursos preparatórios para o ingresso na universidade. O acesso era restrito, pois havia apenas cinco escolas em todo o país que correspondiam a essa categoria; uma delas ficava em Kuma‑ moto, onde Sanshiro se graduou. 15

sanshiro 1ª ed.indd 15

26/11/2013 12:29:35


enfim, com uma recepção que não lhe permitiu abrir a boca e o fez entrar com a moça no tal ameixa número 4. Enquanto a criada buscava­‑lhes o chá, sentaram­‑se de frente um para o outro sem pensar em nada. Quando a criada voltou e disse que também lhes preparara o ofurô, faltou­‑lhe mais uma vez coragem para dizer que na verdade não viajava junto com aquela mulher. Pediu licença para ir na frente e, balançando uma toalha de rosto, dirigiu­‑se ao ofurô, no fim do corredor, ao lado do toalete. Era um cômodo lúgubre, com aparência suja. Sanshiro despiu­‑se do quimono e saltou para dentro da banheira, pondo­‑se a refletir. Dava tapinhas na água e pensava que se enfiara em uma maçada, quando escutou passos no corredor. Parecia que alguém havia entrado no toalete. Esse mesmo alguém saiu depois de alguns instantes. Lavou as mãos. Por fim, com um movimento brusco abriu a porta corrediça do ofurô até a metade. Era a mulher, que lhe perguntou: — Quer que eu lhe ajude a se lavar um pouco? — Não, não precisa — respondeu Sanshiro em voz alta. A mulher, porém, não se foi. Muito pelo contrário, entrou no quarto de banho. Uma vez dentro, desatou seu obi. Parecia disposta a dividir a banheira com Sanshiro. A moça não demonstrava nem si‑ nal de vergonha. Ele saiu da banheira de um salto só. Secou­‑se como pôde, retornou ao quarto de dormir e sentou­‑se bem exaltado numa almofada, até que a criada veio trazer o livro de registro de hóspedes. Sanshiro pegou o livro e escreveu sem mentir: “Sanshiro Oga‑ wa, 23 anos, estudante, vila Masaki, distrito de Miyako, província de Fukuoka”. Sobre a mulher, porém, ele não imaginava o que escrever. Pensava que seria bom esperar até que ela retornasse do banho, mas se achou obrigado a fazer algo de imediato; a criada aguardava pa‑ cientemente. Sem opção, escreveu o nome “Hana”, “23 anos”, com o mesmo sobrenome dele, mesma província, mesmo distrito, mesma vila, e devolveu o caderno. Começou a agitar de forma afoita o leque que tinha em mãos. A mulher logo retornou. — Perdão, fui grosseira — disse ela. — Que nada — respondeu ele. 16

sanshiro 1ª ed.indd 16

26/11/2013 12:29:35


Sanshiro retirou um caderno de dentro da pasta e pôs­‑se a escre‑ ver seu diário. Não havia nada que escrever. Mas achou que haveria muito a anotar se a moça não estivesse ali. — Volto logo — disse ela ao deixar o quarto. Contudo, Sanshiro teve ainda mais dificuldade em anotar algo no diário. Imaginou aonde ela poderia ter ido. A criada veio arrumar o leito. Ela trouxe um único colchonete grande. Mesmo ele afirmando que precisavam de dois, ela insistiu que o quarto e a rede para mosquitos eram pequenos, de modo que não chegaram a um acordo. Ela parecia enfadada. No fim das contas, afirmou que o patrão saíra, mas que o consultaria quando voltasse e então traria outro colchão; irredutível, estendeu o único que trouxera e armou uma só rede para mosquitos. Alguns minutos depois, a mulher retornou. Desculpou­‑se pela demora. Via­‑se apenas uma sombra por detrás da rede, e a moça fazia algo que produzia um som metálico. Com certeza era o brin‑ quedo que comprara de lembrança para o filho. Após um tempo, ela rearrumou o embrulho. De dentro da rede veio a voz da mulher: — Já vou dormir. Sanshiro, murmurando em consentimento, sentou ao rodapé da porta e ficou abanando seu leque. Achou que seria melhor perma‑ necer desse jeito, acordado até o amanhecer. Contudo, os mosquitos zuniam para cima dele. Era impossível aguentar do lado de fora da rede. Levantou­‑se de supetão e retirou da pasta uma camiseta de calicô e um par de ceroulas, vestindo­‑se apenas com isso, e atou por cima uma cinta azul­‑escura. Foi para dentro da rede levando consigo duas toalhas de banho. A mulher ainda abanava seu leque do lado de lá do colchão. — Desculpe, mas é que sou fraco dos nervos e não consigo dor‑ mir num colchão em que outros dormiram... Se me dá licença, vou fazer algo para tentar evitar as pulgas. Dito isso, Sanshiro pegou uma ponta do lençol estendido que saía do colchão e foi enrolando a roupa de cama para o lado onde a moça dormia. Com isso, criou uma longa divisória branca bem no 17

sanshiro 1ª ed.indd 17

26/11/2013 12:29:35


meio do colchão. A mulher, ainda deitada, virou o corpo para o ou‑ tro lado. Estendendo as toalhas, colocou­‑as de comprido, uma junto da outra, no território que demarcara para si, e deitou­‑se teso. Nessa noite Sanshiro não moveu pés e mãos nem um centímetro sequer para fora da estreita área de suas toalhas. Tampouco dirigiu a palavra à companheira de quarto. A jovem, do mesmo modo, permaneceu imóvel, voltada para a parede. Enfim raiou o dia. Quando ele se dirigia para tomar sua refeição, após lavar o rosto, a mulher deu uma leve risada e perguntou: — Apareceu alguma pulga ontem à noite? — Não. Por sorte, não. Obrigado por perguntar — respondeu Sanshiro, sério, já descendo as escadas, e lá embaixo se pôs a bicar, afoito, uns grãos de uva de uma tigela. Pagaram a conta e saíram da pensão. Foi apenas quando chega‑ ram à estação que ela disse a Sanshiro que iria tomar a linha Kansai em direção a Yokka’ichi. O trem dele logo chegou. Como para a mulher ainda faltava algum tempo, ela teria de esperar. Acompanhou­‑o até a entrada da bilheteria e fez uma reverência, dizendo polidamente: — Desculpe pelo incômodo... Bem, tenha uma boa viagem. Segurando com uma mão a maleta e o guarda­‑chuva, Sanshiro retirou aquele seu velho chapéu com a mão livre e enunciou apenas uma palavra: — Adeus. A mulher fitou seu rosto e enfim lhe disse com expressão sere‑ na, rindo consigo mesma: — Você não é lá uma pessoa muito corajosa, não é? Sanshiro sentiu como se houvesse sido arremessado para fora da plataforma de embarque. Ao entrar no vagão, estava enrubes‑ cido até as orelhas. Por alguns momentos ele se tornara pequeno. Minutos depois, o apito do maquinista ressoou de uma ponta a outra do longo comboio. O trem estava partindo. Sanshiro esticou sorrateiro o pescoço para fora da janela. A mulher já havia partido. Tudo que ele pôde ver foi o grande relógio da estação. Sem chamar a atenção, foi se acomodar em seu assento. Havia muitos passa‑ geiros. Contudo, ninguém parecia notar seus movimentos. Apenas 18

sanshiro 1ª ed.indd 18

26/11/2013 12:29:35


o homem que estava sentado na sua diagonal reparou quando o rapaz voltou ao seu lugar. Sanshiro sentiu um pouco de vergonha quando os olhos do ho‑ mem caíram sobre ele. Pensando em tentar ler um livro para distrair o espírito, abriu a pasta e viu que as toalhas do dia anterior estavam amarrotadas sobre suas coisas. Puxando­‑a para si, enfiou a mão no fundo da pasta para pegar qualquer coisa que seus dedos tocassem primeiro, e eis que veio uma coletânea de ensaios de Bacon, que ele não entenderia por mais que os lesse. O encapamento do livro era precário, por demais fino e de baixa qualidade para um Bacon. Antes de partir, ele havia metido dentro da mala pesada os livros que não tinha a intenção de ler no trem. Porém, quando terminara de fazer as malas, jogou dois ou três desses volumes que faltaram no fundo de sua bagagem de mão; por azar, foi um desses que pegou. Sanshiro abriu seu Bacon na página 23. Nesse momento, não parecia capaz de ler nenhum livro. Bacon, então, certamente era uma leitura que não lhe apeteceria. Não obstante, o jovem abriu cerimonioso o livro à página 23 e percorreu os olhos pela folha toda, sem discriminar nada. Por ora, o que ele queria em frente àquela página 23 era apenas re‑ viver a noite anterior. Quem seria aquela moça? Encontravam­‑se de fato mulheres as‑ sim nesse mundo? Poderiam elas ser tranquilas e despreocupadas como aquela? Ou seriam apenas ignorantes ou, ainda, valentes? Tal‑ vez fossem ingênuas. Resumindo, como ele não forçara a situação até onde poderia, não conseguia agora chegar a uma conclusão. Deveria ter ido um pouco mais longe. Mas tivera medo. Espantou­‑se quando, ao se despedirem, teve de ouvir que “não era lá uma pessoa muito corajosa”. Sentiu como se o ponto fraco de seus 23 anos houvesse sido exposto de um golpe só. Nem seus pais poderiam ter acertado mais em cheio... Sanshiro foi pensando em tudo isso, o que apenas o fez desapontar­‑se ainda mais. Tinha a impressão de que fora esmurrado por um sujeito qualquer, por um murro tão forte a ponto de ele não conseguir mais erguer a cabeça. Também sentia que devia sérias des‑ culpas à página 23 do seu Bacon. 19

sanshiro 1ª ed.indd 19

26/11/2013 12:29:35


Ele não deveria ter entrado em pânico daquele jeito. Não parecia alguém que recebera educação, um universitário. Isso refletiria deve‑ ras em seu caráter. Alguém como ele não devia ficar de mãos atadas nessas situações, embora se pudesse concordar que, para um rapaz com sua boa educação, não haveria outro modo de se portar quando se deparasse com pessoas assim. Sua conclusão era que devia a todo custo evitar se aproximar das mulheres. Mas lhe faltava resolução. Era sufocante. Tal como se houvesse nascido inválido. Entretanto... Sanshiro mudou de humor num repente, lembrando­‑se de outro mundo. Estava indo para Tóquio. Entraria na universidade. Conhe‑ ceria acadêmicos célebres. Relacionar­‑se­‑ia com estudantes de gosto requintado. Faria pesquisas na biblioteca. Redigiria livros. Seria lou‑ vado pela sociedade. Deixaria sua mãe feliz. Ele pensava vagamente nesse futuro e, vendo que recuperara a energia, perdeu a necessi‑ dade de enterrar o rosto na página 23. Ergueu a cabeça num movi‑ mento leve, o que mais uma vez chamou a atenção do homem que se sentava na sua diagonal. Dessa vez Sanshiro devolveu­‑lhe o olhar. O bigode do homem era denso. Ele tinha um ar de sacerdote xintoísta, com seu rosto alongado e o corpo esquálido. Apenas a linha do nariz, retilínea, parecia ocidental. Para Sanshiro, que ain‑ da era estudante, um homem desses só podia ser professor. Sob o quimono malhado de tecido branco, ele vestia uma roupa de baixo tradicional, como manda o figurino, também branca, e meias de um azul­‑escuro como a noite. Inferindo por seus trajes, Sanshiro julgou que seu companheiro de viagem era um professor do ensino médio. Vendo­‑o através dos olhos de uma pessoa que antecipava um futuro brilhante para si, era possível sentir certo desdém. O homem já devia ter seus quarenta anos. Agora não subiria muito mais na vida. O companheiro de viagem tragava incessantemente um cigarro. Soprando longas colunas de fumaça pelas narinas, sua pose de bra‑ ços cruzados lhe fazia parecer bem despreocupado com o mundo ao redor. Volta e meia o homem levantava­‑se para ir ao banheiro ou sabe­‑se lá o quê. Espreguiçava­‑se todo a cada vez que levantava. Aparentava estar entediado. Seu vizinho de assento deixou o jornal que terminara de ler ao seu lado, mas ele não parecia ter interesse 20

sanshiro 1ª ed.indd 20

26/11/2013 12:29:35


em tomá­‑lo emprestado. Sanshiro, absorto, já deitara os ensaios de Bacon de cabeça para baixo. Pensou em apanhar um romance para começar a ler de fato, mas desistiu por achar uma maçada. Em vez disso, queria tomar emprestado o jornal do passageiro em frente. Para seu azar, ele dormia profundamente. Sanshiro estendeu a mão e, já tocando no jornal, perguntou ao homem de bigode: — Alguém vai ler? O homem disse com tranquilidade: — Está livre, como você pode ver. Tenha a bondade. Por outro lado, Sanshiro, que pegava o jornal, não estava nem um pouco tranquilo. Abriu o jornal e nada encontrou digno de leitura. Terminou pas‑ sando os olhos por tudo em um ou dois minutos. Dobrou­‑o com todo o cuidado e o colocou de volta no lugar, fazendo um sinal de agradecimento ao homem, que devolveu o gesto perguntando: — Você é estudante de uma escola superior? Sanshiro ficou contente porque o homem reparou no vestígio do brasão em seu velho chapéu. — Sim — respondeu. — De Tóquio? — indagou ainda o homem. Sanshiro começou a responder: — Não, de Kumamoto... Mas... — e logo se interrompeu, calando­‑se. Queria dizer que se tornara um estudante universitário, porém se conteve, achando que não havia necessidade. Seu companheiro de viagem também não se interessou, disse um “Ah, sim” e pôs­‑se a tragar seu cigarro. Nem sequer perguntou por que um estudante de Kumamoto estava indo para Tóquio nessa época. Talvez não se interessasse por estudantes de Kumamoto. Nesse instante, o homem que dormia em frente a Sanshiro manifestou­‑se: — Sim, é mesmo. Contudo, era certo que ainda dormia. Estava falando sozinho. O homem de bigode olhou para Sanshiro e riu de leve. O rapaz aproveitou para perguntar: 21

sanshiro 1ª ed.indd 21

26/11/2013 12:29:35


— Aonde vai o senhor? — Tóquio — respondeu lentamente. Por algum motivo deixou de achar que ele tinha cara de profes‑ sor do ensino médio. Todavia, é claro que grande coisa não era, pois viajava de terceira classe. Sanshiro cortou a conversa nesse ponto. Ainda de braços cruzados, o barbudo volta e meia batia ritmadamen‑ te no chão com o dente da frente de seu geta.6 Transparecia tédio, mas um tédio que não buscava conforto na conversa. Quando a locomotiva chegou a Toyohashi, o homem que dor‑ mia levantou­‑se de um salto e desembarcou ainda esfregando os olhos. Sanshiro achou improvável que se pudesse abrir os olhos da‑ quele modo, justo na hora exata. Por certo dormira demais e perdera a estação, ponderava o jovem; mas, ao olhar pela janela, constatou que não foi o caso. O homem passou tranquilamente pela catraca da bilheteria e seguiu em seu caminho, como qualquer cidadão em plena lucidez. Sanshiro tranquilizou­‑se e mudou de assento, indo para o lado oposto. Agora se tornara vizinho do homem de bigode. O barbudo tomou por um momento seu lugar à janela e esticou o pescoço para fora com o intuito de comprar uns pêssegos. Colocando as frutas entre ambos, perguntou­‑lhe se queria comer. Sanshiro agradeceu e comeu um. O bigodudo parecia gostar, pois comia um atrás do outro. Disse a Sanshiro que comesse mais. O rapaz pegou mais um. Enquanto comiam os pêssegos, os dois quebraram o gelo de até então e começaram a falar sobre diversos assuntos. De acordo com a teoria daquele homem, o pêssego é o fruto que mais se assemelha aos lendários ascetas imortais do taoísmo. Ele possui um gosto marcante. Mas, para começar, o caroço é pouco prático. Ainda por cima, tem uma constituição muito curiosa, pois é cheio de cavidades. Era a primeira vez que Sanshiro ouvia tal teoria e achou seu companheiro de viagem bastante enfadonho. O homem continuou a lhe contar mais coisas. Disse que o poeta

6. Tamanco japonês com dois saltos (ou “dentes”), um próximo ao calcanhar e outro mais à frente, feitos com blocos de madeira. 22

sanshiro 1ª ed.indd 22

26/11/2013 12:29:35


Shiki7 era louco por frutas e que era capaz de comer quantas fossem. Certa vez havia comido dezesseis enormes tarugaki.8 E para Shiki nem fora um grande feito. Ele mesmo não poderia se comparar ao poeta... Sanshiro o escutava sorrindo. Sentiu que somente o interes‑ sava a conversa sobre Shiki. Achou que poderiam continuar a falar um pouco mais sobre ele, mas o homem prosseguiu, animado: — Quando gostamos de alguma coisa, de qualquer jeito acaba‑ mos estendendo a mão em sua direção, não é? Não há como evitar. Os porcos, por exemplo, como não podem estender a mão, esten‑ dem o focinho. Dizem que se você amarrar um porco de modo que ele não possa se mexer e colocar em frente a ele uma bela refeição, o bicho vai alongando o focinho, até alcançar a comida. Não há pro‑ va mais assustadora de persistência. Do jeito que falava, era difícil saber se ele estava sendo sério ou apenas brincando. O homem continuou: — Ainda bem que não somos porcos. Se nosso nariz crescesse à revelia na direção daquilo que queremos, certamente ele já seria tão grande que nem sequer conseguiríamos entrar no trem. Sanshiro não conteve o riso, mas seu vizinho permaneceu es‑ tranhamente sério. Enquanto apanhava os caroços e cascas dos pês‑ segos que estavam espalhados, embrulhando­‑os num jornal para jogá­‑los pela janela, prosseguiu: — É um verdadeiro perigo. Um homem chamado Leonardo da Vinci certa vez injetou trióxido de arsênico no tronco de um pesse‑ gueiro só para ver o que iria acontecer, se o veneno chegaria até o fruto. Mas alguém comeu um pêssego e morreu. É um perigo. Se não tomarmos cuidado, é um perigo. Dessa vez Sanshiro não achou graça. Além de ficar perdido ao escutar o nome do tal Leonardo da Vinci, por alguma razão lembrou­‑se da mulher da noite anterior, o que lhe causou um estra‑ nho desconforto e o fez apequenar­‑se e calar­‑se. Seu companheiro, 7. Shiki Masaoka (1867­‑1902), nome literário de Noboru Masaoka, poeta japonês contemporâneo e amigo de Soseki, conhecido como o principal responsável pelo desenvolvimento do poema haiku moderno. 8. Caqui adstringente adocicado. 23

sanshiro 1ª ed.indd 23

26/11/2013 12:29:35


contudo, não dava o menor sinal de ter percebido. Passado um tempo, perguntou: — Aonde vai em Tóquio? — Na verdade é a primeira vez que vou, não sei direito... Estava pensando em, pelo menos por ora, ir para um dormitório do Estado. — Kumamoto, então, já... — Eu acabei de me graduar. — Ah, sim — disse o homem, mas não lhe ocorreu dar as con‑ gratulações. Apenas indagou, como se fosse a coisa mais natural do mundo: — Portanto, suponho que você vai agora para a universidade? Sanshiro sentiu um quê de insatisfação e arrematou a conversa com um monossílabo: — É. — Qual área? — foi inquirido novamente. — Humanas.9 — Direito? — Não, literatura — respondeu. — Ah, sim. Sanshiro sentia uma estranheza a cada vez que escutava esse “Ah, sim”. Decerto se tratava de um homem assaz eminente, que gostava de pisar nos outros ou que não tinha a menor simpatia pela universidade. Entretanto, como não conseguia definir em qual dos casos enquadrá­ ‑lo, não sabia que tratamento devia dispensar ao companheiro. Como se houvessem combinado, os dois fizeram uma pausa para comer uma marmita em Hamamatsu. Mesmo após terminarem a refeição, contudo, o trem não fazia menção de partir. Olhando­ ‑se pela janela, viam­‑se quatro ou cinco ocidentais indo e vindo. Dois deles pareciam ser marido e mulher, e andavam de mãos dadas apesar do calor. A mulher vestia branco da cabeça aos pés, pare‑ cendo muito encantadora. Desde o dia em que nascera até então, Sanshiro vira apenas uma meia dúzia de ocidentais. Dois foram seus professores em Kumamoto, e um deles, infelizmente, era corcunda. 9. À época, o ensino superior japonês era dividido em três grandes áreas, que compreendiam: Direito, Ciências Políticas e Literatura; Engenharia, Física, Agro‑ nomia e Farmácia; e Medicina. 24

sanshiro 1ª ed.indd 24

26/11/2013 12:29:35


Mulheres ocidentais, só conhecera uma, que era missionária. Tinha o rosto muito pontiagudo, que lhe incluía na família dos badejos ou das barracudas. Por isso, uma ocidental como a de agora, de beleza descomunal, era um achado mais do que precioso. Ela lhe pare‑ cia indescritivelmente requintada. Sanshiro fitava­‑a com intensidade. Achou que seria natural uma pessoa assim agir com altivez. Chegou a pensar que, caso fosse para o Ocidente e se encontrasse em meio a pessoas como aquela, haveria de se sentir diminuído. Quando o casal passou em frente à sua janela, esforçou­‑se para escutar a conversa, mas não entendeu nada. Aparentemente, o sotaque de seu professor em Kumamoto diferia bastante do deles. Nisso, seu companheiro de viagem esticou o pescoço por de‑ trás, dizendo: — Não parece que vamos partir. Ao olhar para o casal de ocidentais que acabara de passar, co‑ mentou em voz baixa: — Ah, que beldade — e deu um pequeno bocejo. Sanshiro se deu conta de que agia como um provinciano e re‑ colheu de supetão a cabeça, sentando­‑se. O homem imitou­‑o, retor‑ nando também ao seu assento. Uma vez sentado, disse: — São de fato belas essas ocidentais, não é? Sanshiro não soube dizer diferente e aceitou a opinião com um monossílabo e um sorriso. O bigodudo então disparou: — Somos patéticos, não? Com estas caras, e fracos assim, apesar de termos vencido a guerra contra a Rússia, nunca chegaremos a ser um país de primeiro mundo. É natural, olhemos ainda para nossas construções, nossos jardins, e também os acharemos a nossa cara... Ah, se é a primeira vez que vai a Tóquio, você ainda não viu o Mon‑ te Fuji, não é? Podemos vê­‑lo agora, dê uma olhada. É a coisa mais famosa do Japão. Não há nada mais de que possamos nos vangloriar. Por outro lado, o Fuji é uma paisagem natural, que existe há tempos por si só. Não é algo que construímos — e riu outra vez. Sanshiro não achou que fosse possível encontrar um homem desses após a guerra contra a Rússia. Por mais que o rapaz refletisse, o homem não lhe parecia japonês. 25

sanshiro 1ª ed.indd 25

26/11/2013 12:29:35


— Entretanto, daqui em diante o Japão também vai progredir pouco a pouco — advogou Sanshiro. O companheiro retorquiu, fleumático: — O Japão vai é ruir. Se alguém dissesse uma coisa dessas em Kumamoto, apanha‑ ria na hora. Caso levassem pelo lado ruim, seria ainda taxado de inimigo da nação. Sanshiro criou­‑se em um ambiente que não per‑ mitia o menor espaço para que alguém nutrisse uma ideia similar nem no recôndito mais remoto do pensamento. Por isso chegou a cogitar que o homem estava troçando dele, aproveitando­‑se de sua pouca idade. O bigodudo ria com seus botões, como antes. Não obstante, tinha o tom da voz composto ao extremo. Sem conseguir compreender, Sanshiro desistiu de entreter a conversa e se calou. Sem demora, o homem prosseguiu: — Tóquio é maior do que Kumamoto. E o Japão é maior do que Tóquio. E maior do que o Japão... — neste ponto interrompeu­‑se brevemente para averiguar a expressão de Sanshiro e confirmou que o jovem lhe dava ouvidos. — Maior do que o Japão é o interior de nossas cabeças — concluiu. — Jamais permita que tolham sua liber‑ dade. Por mais que sinta estar fazendo algo pelo Japão, lembre que dedicação em demasia se torna somente um desfavor. Ouvindo tais palavras, Sanshiro sentiu que havia de fato saído de Kumamoto. Ao mesmo tempo, percebeu enfim que, quando esta‑ va em sua terra, tinha sido um completo covarde. Naquela noite Sanshiro chegou a Tóquio. Quando se separou do companheiro de viagem, ainda desconhecia sua identidade. Acre‑ ditando que, por estar em Tóquio, encontraria pessoas como aquela a cada esquina, não lhe perguntou o nome.

26

sanshiro 1ª ed.indd 26

26/11/2013 12:29:35


Deveria ter ido um pouco mais longe. Mas tivera medo. Espantou-se quando, ao se despedirem, teve de ouvir que “não era lá uma pessoa muito corajosa”. Sentiu como se o ponto fraco de seus 23 anos houvesse sido exposto de um golpe só. Tradução de Fernando Garcia

Natsume Soseki

Sanshiro ISBN 978-85-7448-214-9

9 788574 482149

cpa sanshiro 1ªed.indd 2

Natsume Soseki

Sanshiro

Soseki nasceu em Tóquio em 5 de janeiro de 1867. Teve infância difícil e soli­ tária. Foi entregue pelos pais a outra família com apenas dois anos de idade, retornando a casa aos nove. Torna-se órfão de mãe aos quatorze anos, e sofre rejeição por parte do pai. Estuda literatura tradicional chinesa desde a infância. Ingressa, aos 23 anos, na Universidade Imperial (atual Universidade de Tóquio), para cursar litera­ tura inglesa. Leciona inglês na Escola Especializada de Tóquio (hoje, Universidade Waseda). Crises nervosas o fazem abandonar Tóquio e o prestigioso cargo que possuía. Estabelece-se em Ehime (Shikoku) e passa a dar aulas numa escola secundária. Em 1900, viaja à Inglaterra como bolsista para estudar literatura e ensino da língua inglesa. Não se adapta à cultura ocidental, entra novamente em depressão e regressa ao Japão em 1903, retomando o magistério. A vida doméstica entra em crise, e afasta-se da família. Estreia com Eu sou um gato em 1905, obtendo notável recepção de crítica e público. Abandona o en­ sino dois anos depois, dedicando-se a partir de então unicamente à literatura. Torna-se escritor exclusivo do diário Asahi Shimbun. Em 1910 é acometido por uma primeira crise de úl­cera. Pouco depois, recusa o título de doutor. Falece em 9 de dezembro de 1916, de sequelas de sua enfermidade. Marcou época opondo-se à voga naturalista reinante na Era Meiji, pregando um maior individualismo. O que o levaria também à introdução precoce de aspectos psicológicos na construção de seus personagens. Outras de suas principais obras são Botchan (1906), E depois (1909) e O portal (1910). Destacou-se em todos os tipos de escrita, assinando também importante e inovadora obra de teoria literária. Se de um lado foi marcado pela influência ocidental, de outro apregoou a valorização da cultura tradicional nipônica. Soseki permanece até hoje um dos escritores mais populares e lidos do Japão.

Sanshiro Ogawa (lê-se “sanchirô”) sai do interior do Japão rumo à deslumbrante capital para estudar literatura, mas a transição à vida adulta não será como ele imagina. Aqui, na primeira parte da trilogia informal de Natsume Soseki composta ainda por E depois e O portal, o verdadeiro aprendizado do protagonista se dá mais na contemplação das formosas nuvens do céu azul de Tóquio do que nas supostamente edificantes aulas da universidade. Neste romance de formação, ambientado na virada do século XIX para o XX, o ingênuo personagem-título atravessa as ruínas de um sistema de ensino caduco, formado por alunos que fingem que estudam e por falsos “mestres” cuja fachada intelectual não resiste a um olhar mais atento. Assim, no ir e vir de nosso pacato calouro, desvendamos, por exemplo, o soberbo professor Hirota, que passa seu tempo expelindo “fumaça filosófica” pelo nariz, ou ainda o artista Haraguchi, retratista de pincelada e constituição robustas, partidário das modernas tendências europeias. Perto deles, no entanto, Sanshiro não passa de um xucro, sobretudo no plano pessoal, ao evidenciar seu embaraço e sua pouca habilidade com o sexo oposto a partir da afeição que passa a nutrir pela instigante Mineko. A trama de Sanshiro foi serializada em setembro de 1908 no Asahi Shimbun, e Soseki considerou ainda para a obra os títulos “O jovem”, “Leste e oeste” e “Plana planície”, por medo de o jornal não julgar o nome do protagonista atraente o suficiente para o leitor – leitor esse que, seja no Japão da era Meiji ou no Ocidente pós-moderno, acompanha, deliciado, as atitudes e o comportamento de nosso jovem herói em busca de sua epifania.

25/11/2013 16:56:50


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.