"Promessa ao amanhecer", de Romain Gary

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Desde a adolescência, a literatura ocupa o espaço mais importante na vida de Gary. Durante a guerra, entre uma missão e outra, escreve Éducation européenne, traduzido para 27 idiomas e que ganhou o prêmio da Crítica em 1945. Les racines du ciel é premiado com o Goncourt em 1956. Romain Gary se suicidou em 2 de dezembro de 1980. Alguns meses depois, foi revelado que era também o autor de quatro romances assinados por Émile Ajar, inclusive La vie devant soi, que obteve sob pseudônimo o prêmio Goncourt em 1975, o que faz de Gary o único autor a ganhá-lo duas vezes (o que o regulamento não permite). O conjunto de sua obra abrange cerca de trinta romances, ensaios e memórias.

Tradução de Mauro Pinheiro

ISBN 978-85-7448-149-4

9 788574 481494

Romain Gary

uniu-se às forças da França Livre. Capitão de esquadrilha, tomou parte da Batalha da Inglaterra e em campanhas na África, Abissínia, Líbia e Normandia, de 1940 a 1944. Recebeu a Legião de Honra e a Comenda da Libertação. Ingressou no Minis­tério do Exterior em 1945, como secretário e conselheiro da embaixada, em Sofia, Berna e, depois, na Seção Européia deste ministério. Porta voz na ONU de 1952 a 1956, foi em seguida nomea­do para a embaixada na Bolívia e Cônsul Geral em Los Angeles. Deixando a carreira diplomá­ tica em 1961, percorreu o mundo durante dez anos trabalhando para publicações americanas e realizou dois filmes, Les Oiseaux vont mourrir au Pérou (1968) e Kill (1972). Foi casado com a atriz americana Jean Seberg de 1962 a 1970.

rio na base aérea de Hartford Bridge não eram boas. Fazia muito frio. Eu escrevia à noite, dentro da cabana de telha metálica ondulada, que eu dividia com três camaradas; colocava meu casaco de vôo e minhas botas forradas, me instalava no leito e escrevia até de madrugada; meus dedos ficavam entorpecidos; meu hálito deixava sua marca vaporosa no ar gelado; não tive dificuldade alguma para reconstituir a atmosfera das planícies nevadas da Polônia, onde se passa o romance. Lá pelas três, quatro horas da manhã, largava minha caneta, montava na minha bicicleta e ia beber uma xícara de chá na cantina; embarcava depois no meu avião e partia para uma nova missão no amanhecer cinzento, contra alvos poderosamente protegidos.

Promessa ao amanhecer

Ingresso na aviação em 1938, foi instrutor de tiro na Escola de Aeronáutica de Salon. Em junho de 1940,

As condições para o trabalho literáJacques Robert / Gallimard

Nascido na Rússia em 1914, tendo chegado na França aos quatorze anos, Romain Gary fez seus estudos secundários em Nice e se formou em direito em Paris.

Romain Gary

Promessa ao amanhecer

Sobre Promessa ao amanhecer, há certa unanimidade em se dizer que é uma das mais belas narrativas sentimentais da literatura moderna, além de ser um pequeno épico de bravura, solidariedade e camaradagem. Ao mesmo tempo, constitui um recorte dos vários dramas superpostos a assolar a Europa na primeira parte do século XX. O protagonista-narrador, na verdade o próprio Romain Gary, é sujeito de uma história de vida única, atirado pelos ventos do destino entre meia dúzia de países. Relato autobiográfico, romance de amor, livro de guerra e narrativa de viagens, essa convergência de estilos com cru­ za­mento temático nos verte uma obra de singela riqueza e fascinante leitura. Instalado em seu refúgio da costa californiana, Gary debruça -se na idade madura sobre suas lembranças da infância na Lituânia à época russa, sua juventude numa Varsóvia de destino incerto, sua chegada na França em companhia de uma mãe tão memorável quanto quixotesca, sua carreira na aviação militar. Aí os relatos são pungentes, como quando seu avião é forçado a pousar sem piloto, pois este perdeu a vista ao ser atingido. Então não apenas tudo se inicia e termina com certa promessa feita ao amanhecer, como perde-se o fôlego com suas conseqüências. Promessa ao amanhecer talvez seja a obra mais afamada de Romain Gary devido a sua filmagem por Jules Dassin, com Gary sendo interpretado por vários atores e tendo Melina Mercouri como a mãe. O autor, paralelamente a seus jogos de identidades múltiplas e despistes, resquícios tanto de uma infância de mutações quanto de seus anos de combate, se destacou em toda sua obra como um sagaz polemista que atira, inclusive literalmente, contra toda e qualquer ignomínia política, literária ou cultural, reivindicando para si a linhagem do romance picaresco, em contraposição ao nouveau roman tão em voga à época.



Promessa ao amanhecer



R omain G ary

Promessa ao amanhecer

Tradução de

Mauro Pinheiro


Título original: La promesse de l’aube Copyright © Éditions Gallimard, 1960 Copyright © Editora Estação Liberdade, 2008, para esta tradução

Preparação Bruno Zeni e Isabella Marcatti

Composição Johannes C. Bergmann / Estação Liberdade

Capa Natanael Longo de Oliveira

Editores Angel Bojadsen e Edilberto Verza

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ G229p Gary, Romain, 1914-1980 Promessa ao amanhecer/ Romain Gary; tradução de Mauro Pinheiro. – São Paulo : Estação Liberdade, 2008 Tradução de: La promesse de l’aube ISBN 978-85-7448-149-4 1. Romance francês. I. Pinheiro, Mauro. 1957-. II. Título. 08-4125.

CDD 843 CDU 821.133.1-3

este livro, publicado no âmbito do programa de participação à publicação, contou com o apoio do ministério francês das relações exteriores

Todos os direitos reservados à Editora Estação Liberdade Ltda. Rua Dona Elisa, 116  |  01155-030  |  São Paulo-SP Tel.: (11) 3661 2881  |  Fax: (11) 3825 4239 www.estacaoliberdade.com.br


Sumรกrio

Primeira Parte

11

Segunda Parte

133

Terceira Parte

239



A RenĂŠ e Sylvia Agid



PRIMEIRA PARTE



I

Acabou. A praia de Big Sur está vazia, e eu permaneço deitado na areia, no mesmo lugar onde caí. A bruma marinha suaviza as coisas; no horizonte, sequer um mastro; sobre um rochedo, à minha frente, milhares de pássaros; em cima de outro, uma família de focas: o pai, reluzente e dedicado, emerge incansavelmente da água com um peixe na boca. As andorinhas do mar aterrissam às vezes tão perto que prendo a respiração e minha antiga necessidade volta a se agitar dentro de mim: um pouco mais e elas vão pousar sobre meu rosto, se abrigar no meu pescoço e dentro de meus braços, me cobrir por inteiro... Quarenta e quatro anos e eu ainda sonho com algumas carícias essenciais. Faz tanto tempo que estou estirado e imóvel na praia que os pelicanos e os alcatrazes acabaram formando um círculo ao meu redor e, ainda há pouco, uma foca se deixou levar pelas ondas até meus pés. Ali ficou por um bom tempo, me observando, depois voltou para o oceano. Eu lhe sorri, mas ela manteve seu ar grave, meio triste, como se soubesse.

Minha mãe tinha feito uma viagem de cinco horas de táxi para vir me dizer adeus no dia da convocação, em Salonde-Provence, onde então eu era sargento-instrutor na Escola da Aeronáutica. O táxi era um velho Renault em péssimo estado. Nós tivemos, durante algum tempo, uma participação de cinqüenta e, depois, de vinte e cinco por cento na exploração comercial 13


do veículo. Havia anos, agora, que o carro havia se tornado propriedade exclusiva de seu ex-associado, o motorista Rinaldi. Minha mãe, porém, tendia a crer que mantinha algum direito moral sobre o carro e, como Rinaldi era de índole dócil, tímida e impressionável, abusava um pouco da boa vontade dele. Assim sendo, o motorista a conduziu de Nice até Salon-de-Provence — trezentos quilômetros — sem cobrar, é claro, e, muito tempo após a guerra, o bom Rinaldi, coçando a cabeça, que ficara toda grisalha, lembrava-se ainda com uma espécie de rancor admirativo como minha mãe fora capaz de o “convocar”. — Ela entrou no táxi e depois simplesmente me disse: “Vamos para Salon-de-Provence, quero me despedir de meu filho.” Eu tentei argumentar: era uma corrida de dez horas, ida e volta. Ela foi logo me tratando de mau francês e amea­ çou chamar a polícia para que me prendessem, pois havia a mobilização militar e eu estava tentando escapar. Ela se acomodou dentro do táxi, com todos os embrulhos para você, salame, fiambre, potes de geléia... e repetia que o filho dela era um herói, que queria abraçá-lo mais uma vez e que eu não devia discutir. Depois chorou um pouco. Sua velha mãe sempre chorou como criança e, quando a vi dentro do meu táxi, depois de tanto tempo que nos conhecíamos, chorando em silêncio, com seu ar de cão maltratado — me descul­pe, senhor Romain, mas o senhor sabe como ela era —, não pude recusar. Eu não tinha filhos, estava dando tudo errado de qualquer maneira, uma corrida a mais de táxi, mesmo que fosse de quinhentos quilômetros, não faria diferença. Eu disse: “Pois bem, vamos, mas a senhora paga a gasolina”, questão de princípio. Ela sempre considerou que mantinha algum direito sobre o táxi, só porque tivéramos uma sociedade, sete anos antes. Deixa para lá, o senhor pode dizer que ela o amava, era capaz de fazer qualquer coisa por sua causa... Eu a vi saltar do táxi, diante do refeitório, de bengala na mão, um Gauloise entre os lábios, e, sob o olhar galhofeiro dos recrutas, minha mãe abriu os braços, num gesto teatral, 14


esperando que o filho se atirasse neles, como mandava a boa tradição. Dirigi-me a ela com desenvoltura, balançando um pouco os ombros, o quepe sobre os olhos, as mãos nos bolsos daquele casaco de couro que tanto contribuiu para que os jovens entrassem na força aérea, irritado e constrangido por aquela incursão inadmissível de uma mãe no universo viril onde eu desfrutava de uma reputação arduamente conquistada de “durão”, “autêntico” e “tatuado”. Eu a abracei com uma frieza simpática, até onde fui capaz, e tentei em vão fazer com que ela se colocasse atrás do táxi, a fim de evitar aqueles olhares, mas ela simplesmente deu um passo atrás, para me admirar melhor e, com expressão radiante, os olhos embevecidos, a mão sobre o coração, respirando sofregamente pelo nariz, que no seu caso era um sinal de intensa satisfação, exclamou para que todo mundo ouvisse, com seu forte sotaque russo: — Guynemer!* Você será um novo Guynemer! Você vai ver, sua mãe sempre tem razão! O sangue me subiu às faces, ouvi risadas atrás de mim, e, com um gesto ameaçador da bengala em direção aos soldados que se divertiam em frente ao bar, ela proclamava, cheia de inspiração: — Você será um herói, será general, Gabriele D’Annunzio**, embaixador da França, esses pilantras não te conhecem! Acho que filho algum odiou tanto sua mãe quanto eu naquele momento. Mas então, ao tentar lhe explicar, num sussurro colérico, que ela estava me comprometendo irremediavelmente aos olhos da Força Aérea, tentando fazer com que entrasse novamente no táxi, então seu rosto assumiu uma expressão desamparada, seus lábios começaram a tremer e * Georges Guynemer, comandante da Força Aérea francesa durante a Primeira Guerra Mundial. [N.T.] ** Gabriele D’Annunzio, escritor italiano que criou para si um personagem de dandy e herói durante a Primeira Guerra. [N.T.]

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ouvi mais uma vez aquela fórmula intolerável, que há muito tempo tornara-se clássica em nosso relacionamento: — Então, está com vergonha da sua velha mãe? De uma só vez, todos os ouropéis de falsa virilidade, vaidade e aspereza com os quais eu me ornamentava tão laboriosamente caíram a meus pés. Envolvi seus ombros com meu braço, enquanto minha mão livre esboçava em direção de meus camaradas aquele gesto expressivo, o dedo médio sustentado pelo polegar num movimento de vai-e-vem, para cima e para baixo, cujo sentido, eu soube mais tarde, era conhecido pelos soldados de todo o mundo, ainda que, na Inglaterra, sejam dois dedos no lugar de um só como ocorre nos países latinos — uma questão de temperamento. Eu não ouvia mais os risos, não via mais as expressões de escárnio, abracei-a e pensei em todas as batalhas que enfrentaria por ela, na promessa que eu fizera a mim mesmo, no amanhecer da minha vida, de lhe fazer justiça, dar um sentido a seu sacrifício e voltar para casa um dia, depois de ter lutado vitoriosamente pela conquista do mundo contra aqueles cujos poder e crueldade conheci desde muito cedo. Ainda hoje, depois de mais de vinte anos, agora que tudo já foi dito e continuo deitado sobre as pedras, na praia de Big Sur, à margem do oceano e só as focas se fazem ouvir no meio da vasta solidão marinha em que as baleias passam às vezes esguichando seu minúsculo e irrisório jato d’água no mar imenso, ainda hoje, quando tudo parece vazio, me basta erguer o olhar para ver o bando de inimigos que se curva sobre mim em busca de algum sinal de derrota ou de submissão. Eu era criança quando a minha mãe me informou pela primeira vez sobre a existência deles; antes da Branca de Neve, antes do Gato de Botas, antes dos Sete Anões e da Fada Cara­bosse, eles vieram se pôr ao meu lado e não me deixaram mais; minha mãe apontava um a um, sussurrando seus nomes, enquanto apertava-me contra o peito; eu ainda não entendia, mas já pressentia que um dia, por ela, eu os desafiaria; a cada ano que passava, melhor eu distinguia suas 16


feições; a cada golpe que desferiam contra nós, sentia crescer em mim a vocação de insubmisso; hoje, tendo vivido tanto, ao fim da minha caminhada, ainda os vejo claramente, no crepúsculo de Big Sur e ouço suas vozes, apesar do bramido do oceano; seus nomes ocorrem sem esforço aos meus lábios e meus olhos de homem envelhecido reencontram, para enfrentá-los, o olhar de meus oito anos. Para começar, tem Totoche, o deus da estupidez, com seu traseiro vermelho de macaco, sua cabeça de intelectual primário, seu amor extremado pelas abstrações. Em 1940, ele era o queridinho e o doutrinário dos alemães. Hoje, ele se refugia cada vez mais na ciência pura, e com freqüência podemos vê-lo inclinado sobre os ombros de nossos sábios. A cada explosão nuclear, sua sombra se ergue um pouco mais sobre a Terra. Sua artimanha preferida consiste em dar à estupidez uma forma genial e recrutar entre nós os melhores homens para garantir nossa própria destruição. Há também Merzavka. O deus das verdades absolutas, uma espécie de cossaco em pé sobre uma pilha de cadáveres, a chibata na mão, gorro de pele sobre os olhos e uma expressão hilária; este é o nosso mais idoso senhor e mestre. Já faz tanto tempo que preside nosso destino que se tornou rico e honrado. Cada vez que ele mata, tortura e oprime em nome das verdades absolutas, religiosas, políticas ou morais, a metade da humanidade lambe suas botas com ternura. Isso o diverte muito, pois sabe que as verdades absolutas não existem, que são apenas um meio de nos reduzir à servidão e agora, neste exato momento, no ar opalino de Big Sur, acima dos latidos das focas e dos gritos dos alcatrazes, o eco de seu riso triunfante chega até mim, vindo de muito longe, e nem a voz do meu irmão, o oceano, é capaz de dominá-lo. E há também Filoche, o deus da mesquinharia, dos preconceitos, do desprezo, do ódio — inclinado para fora de seu posto na portaria, na entrada do mundo habitado, berrando “americano sujo, árabe sujo, judeu sujo, russo sujo, chinês 17


sujo, negro sujo” —, esplêndido organizador de movimentos de massa, de guerras, de linchamentos, de perseguição, dialético hábil, pai de todas as formações ideológicas, grande inquisidor e amante das guerras santas, apesar de sua pelagem sarnenta, sua cabeça de hiena e suas patinhas tortas, é um dos deuses mais poderosos e mais ouvidos, com o qual nos deparamos por todo lado, um dos mais zelosos guardiães de nossa Terra, cuja posse ele disputa conosco com o máximo de astúcia e habilidade. Existem outros deuses, mais misteriosos e mais ambíguos, mais insidiosos e dissimulados, difíceis de identificar. Suas tropas são numerosas e numerosos são seus cúmplices entre nós. Minha mãe os conhecia bem. No meu quarto de criança, ela vinha me falar deles com freqüência, apoiando minha cabeça contra seu peito e baixando a voz. Pouco a pouco, esses sátrapas que cavalgam o mundo se tornaram para mim mais reais e mais visíveis que os objetos mais familiares, e suas sombras gigantescas continuaram inclinadas sobre mim até hoje. Quando eu levanto a cabeça, tenho a impressão de ver suas couraças cintilantes, e em cada raio do céu suas lanças parecem apontadas contra mim. Hoje, somos velhos inimigos, e é sobre a minha luta contra eles que pretendo falar aqui. Minha mãe foi um de seus brinquedos favoritos. Desde minha tenra idade, prometi a mim mesmo libertá-la dessa servidão; cresci à espera do dia em que poderia enfim estender minha mão na direção do véu que ofuscava o universo e descobrir, repentinamente, um rosto de sabedoria e de piedade; quis disputar, com esses deuses absurdos e ébrios de poder, a posse do mundo e devolver a Terra àqueles que a povoam com sua coragem e seu amor.

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II

Eu tinha treze anos, acho, quando tive pela primeira vez o pressentimento da minha vocação. Eu estava na sétima série no liceu de Nice, e minha mãe tinha, no Hotel Negresco, uma dessas “vitrines” de corredor onde expunha os artigos que as lojas luxuosas lhe davam em consignação; cada echarpe, cada cinto, cada blusa vendida lhe conferia dez por cento de comissão. Às vezes, ela praticava um pequeno aumento ilícito de preço e embolsava a diferença. O dia todo, ela espreitava os eventuais clientes, fumando nervosamente inúmeros Gauloises, pois nosso pão de cada dia dependia então inteiramente desse comércio incerto. Sozinha havia treze anos, sem marido, sem amante, ela lutava corajosamente a fim de ganhar, todos os meses, o que precisávamos para viver, para pagar a manteiga, os sapatos, o aluguel, as roupas, o bife do meio-dia — aquele bife que ela colocava todo dia no prato à minha frente, um tanto sole­nemente, como um marco de sua vitória sobre a adversidade. Eu voltava da escola e me sentava à mesa diante de meu prato. Minha mãe, em pé, me observava comer, com o ar sossegado das cadelas que amamentam seus filhotes. Ela se recusava a comer, me garantindo que só gostava de legumes, e que as carnes e as gorduras eram-lhe estritamente proibidas. Um dia, saindo da mesa, fui à cozinha beber água. Minha mãe estava sentada num banco; sobre os joelhos, ela tinha a frigideira em que havia preparado meu bife. Ela raspava cuidadosamente a gordura do fundo com pedaços 19


de pão, que em seguida comia com avidez, e, apesar de seu gesto apressado para esconder a frigideira sob o pano de prato, descobri de pronto toda a verdade sobre os motivos reais de seu regime vegetariano. Fiquei ali um momento, imóvel, petrificado, olhando com pavor a frigideira mal escondida sob o pano de prato e o sorriso inquieto, culpado, de minha mãe; depois comecei a soluçar e fugi chorando. No final da avenida Shakespeare, onde morávamos na época, havia um aterro quase vertical que dava sobre a estrada de ferro, e foi para lá que corri me esconder. A idéia de me jogar debaixo de um trem, e assim me livrar da minha vergo­nha e da minha impotência, me passou pela cabeça, mas, quase imediatamente, uma resolução indomável de retificar o mundo e o colocar aos pés da minha mãe, feliz, justo, digno dela, enfim, me mordeu o coração como se o queimasse, e meu sangue carregaria esse fogo até o fim. Rosto escondido entre os braços, eu me deixei levar pela dor, mas minhas lágrimas, que me foram com freqüência clementes, desta vez não trouxeram consolo algum. Um sentimento intolerável de privação, de emasculação, quase de enfermidade, se apoderou de mim. À medida que eu ia crescendo, minha frustração de criança e minha confusa aspiração, em vez de sumirem, cresceram comigo e se transformaram pouco a pouco numa necessidade que, nem as mulheres, tampouco a arte, jamais conseguiram abrandar. Eu chorava deitado na grama, quando vi minha mãe aparecer no alto do declive. Não sei como ela descobriu aquele lugar: ninguém vinha até ali. Eu a vi se abaixar para passar sob a cerca de arame e, depois, descer em minha direção, seus cabelos grisalhos cheios de luz e de céu. Veio sentar-se a meu lado, seu eterno Gauloise entre os dedos. — Não chore. — Me deixe. — Não chore. Eu te peço perdão. Você já é um homem. Eu te magoei. 20


— Me deixe, já disse! Um trem passou sobre os trilhos. Pareceu-me repentinamente que era meu sofrimento que fazia todo aquele barulho. — Não vou mais fazer isso. Senti-me mais calmo. Estávamos os dois sentados no aterro, os braços apoiados sobre os joelhos, olhando para o outro lado dos trilhos. Havia uma cabra amarrada a uma árvore, uma mimosa. A árvore estava em flor; o céu, muito azul; e o sol, a toda força. Me ocorreu de repente que o mundo sabia enganar muito bem. Foi o primeiro pensamento adulto que me lembro de ter tido. Minha mãe me estendeu o maço de Gauloises. — Quer um cigarro? — Não. Ela tentava me tratar como um homem. Talvez tivesse pressa. Já tinha 51 anos. Uma idade difícil quando só se dispõe de uma criança como amparo na vida. — Você já escreveu hoje? Fazia mais de um ano que “eu escrevia”. Já tinha preen­ chido vários cadernos escolares com meus poemas. Para me dar a ilusão de estar publicado, eu copiava letra por letra, em letras de fôrma. — Já. Comecei um grande poema filosófico sobre a reencarnação e a migração das almas. Ela aprovou com um gesto de cabeça. — E na escola? — Tirei zero em matemática. Minha mãe ficou pensativa. — Eles não te entendem — disse ela. Eu bem que concordava com ela. A obstinação com que meus professores de ciências me davam zeros causava em mim a impressão de uma ignorância crassa da parte deles. — Eles ainda vão se arrepender — disse minha mãe. — Vão ficar aturdidos. Um dia seu nome será gravado em letras douradas nos muros da escola. Amanhã vou falar com eles... 21


Estremeci. — Mamãe, eu te proíbo! Você não vai me ridicularizar de novo. — Vou ler para eles seus últimos poemas. Eu já fui uma grande atriz, sei recitar versos. Você será D’Annunzio! Você será Victor Hugo, Prêmio Nobel! — Mamãe, eu te proíbo de ir falar com eles. Ela não me ouvia. Seu olhar se perdeu no espaço e um sorriso feliz veio-lhe aos lábios, ingênuo e confiante ao mesmo tempo, como se seus olhos, transpondo a neblina do futuro, tivessem de repente visto seu filho, já homem, subindo os degraus do Panteão1, vestido a rigor, coberto de glória, sucesso e honrarias. — Você terá todas as mulheres a seus pés — concluiu ela categoricamente, varrendo o céu com seu cigarro. O trem de meio-dia e cinqüenta de Ventimiglia passou numa nuvem de fumaça. Nas janelas, os viajantes deviam se perguntar o que aquela mulher de cabelos grisalhos e aquele menino triste, que enxugava ainda suas lágrimas, observavam no céu com tanta atenção. Minha mãe pareceu ter ficado preocupada. — É preciso achar um pseudônimo — disse ela com firmeza. — Um grande escritor francês não pode ter sobrenome russo. Se você fosse um violinista talentoso, seria ótimo, mas para um titã da literatura francesa, não serve... O “titã da literatura francesa”, dessa vez, aprovou inteiramente. Havia seis meses, eu passava longas horas do dia a “experimentar” pseudônimos. Eu os escrevia com tinta vermelha num caderno especial. Naquela mesma manhã, tinha decidido por “Hubert de la Vallée”, mas, meia hora depois, cedi ao charme nostálgico de “Romain de Roncevaux”. Meu nome verdadeiro, Romain, pareceu-me bastante satisfatório. Mas, infelizmente, já havia um Romain Rolland, e eu não estava disposto a dividir minha glória com ninguém. Aquilo 1

Sim, eu sei. [N.A.]

22


tudo era muito complicado. O problema com os pseudônimos é que eles nunca conseguem exprimir tudo o que você sente. Eu quase cheguei a concluir que um pseudônimo não bastava, como meio de expressão literária, e que era preciso também escrever livros. — Se você fosse um talentoso violinista, o sobrenome Kacew seria ótimo — repetiu minha mãe, suspirando. Essa história de “talentoso violinista” tinha sido uma grande decepção, e eu me sentia culpado. Havia ali um equívoco com o destino que minha mãe não conseguia entender. Esperando tudo de mim e procurando um atalho maravilhoso que nos levasse os dois “à glória e à adulação do povo” — ela nunca hesitava diante de um clichê, o que se devia menos a um vocabulário banal do que a uma espécie de submissão à sociedade de sua época, a seus valores, a seus padrões-ouro (existe, entre os clichês, as fórmulas feitas e a ordem social em vigor, um acordo de aceitação e de conformismo que ultrapassa a linguagem) —, ela tinha inicialmente alimentado a esperança de que eu seria um menino prodígio, uma mistura de Jascha Heifetz e Yehudi Menuhin, que estavam então no apogeu de sua glória juvenil. Minha mãe sempre sonhou ser uma grande artista. Eu tinha apenas sete anos, quando ela comprou um violino de segunda mão numa loja de Wilno, na Polônia oriental, onde estávamos de passagem, e eu fui solenemente levado até um homem cansado, vestido de preto e de cabelos compridos, a quem minha mãe, num tom respeitoso, chamava de “maestro”. E àquela casa eu passei a ir sozinho, corajosamente, duas vezes por semana, com o violino dentro de um estojo de cor ocre, forrado de veludo violeta. Do “maes­tro” lembro apenas que era um homem que se espantava profundamente cada vez que eu empunhava meu arco, e o grito de “Ai! Ai! Ai!” que ele soltava então, levando as mãos aos ouvidos, ainda está presente na minha alma. Creio que era um ser que sofria infinitamente com a fal­ta de harmonia universal neste mundo ordinário, uma ausência de harmonia na qual eu tive que desempenhar, ao 23


longo das três semanas que duraram minhas lições, um papel de destaque. No final da terceira semana, ele me retirou energicamente o arco e o violino das mãos, disse que falaria com minha mãe e me mandou embora. O que ele disse a minha mãe, eu nunca soube, mas ela passou vários dias suspirando e me olhando com ar de censura, abraçando-me contra seu corpo, às vezes, num impulso de piedade. Um grande sonho se foi.

24


III

Minha mãe, naquela época, fazia chapéus sob medida para uma clientela que ela angariava, no início, por correspondência. Todos os anúncios eram escritos à mão e informavam que, “para se distrair, em seus momentos de lazer, a antiga diretora de uma grande maison de alta costura parisiense aceitava modelar chapéus a domicílio para uma clientela restrita e selecionada”. Ela tentou retomar a mesma ocupação alguns anos depois, logo após a nossa chegada a Nice, em 1928, num quarto e sala da avenida Shakespeare e, como o negócio custava a engrenar — na verdade, não engrenaria nunca — minha mãe realizava tratamentos de beleza nos fundos de um salão de cabeleireiro. De tarde, fazia o mesmo com os cães de luxo num canil da avenida da Victoire. Mais tarde, foi a vez das vitrines nos hotéis, das jóias oferecidas de porta em porta, nos palacetes, em troca de comissão, da sociedade numa banca de legumes no mercado da Buffa, da venda de imóveis, da hotelaria — enfim, nunca me faltava nada, o bife estava sempre à minha frente, ao meio-dia, e ninguém em Nice jamais me viu com os sapatos gastos ou mal vestido. Eu me censurava terrivelmente por ter deixado minha mãe na mão, devido à minha completa falta de talento musical e, até hoje, não posso ouvir o nome de Menuhin ou de Heifetz sem que o remorso comece a agitar meu coração. Uns trinta anos mais tarde, quando eu era cônsul-geral da França em Los Angeles, quis o destino que eu condecorasse, com a Grande-Cruz da Legião de Honra, o próprio Jascha Heifetz, que vivia na minha circunscrição. Após ter espetado a cruz no peito do violinista e pronunciado 25


Desde a adolescência, a literatura ocupa o espaço mais importante na vida de Gary. Durante a guerra, entre uma missão e outra, escreve Éducation européenne, traduzido para 27 idiomas e que ganhou o prêmio da Crítica em 1945. Les racines du ciel é premiado com o Goncourt em 1956. Romain Gary se suicidou em 2 de dezembro de 1980. Alguns meses depois, foi revelado que era também o autor de quatro romances assinados por Émile Ajar, inclusive La vie devant soi, que obteve sob pseudônimo o prêmio Goncourt em 1975, o que faz de Gary o único autor a ganhá-lo duas vezes (o que o regulamento não permite). O conjunto de sua obra abrange cerca de trinta romances, ensaios e memórias.

Tradução de Mauro Pinheiro

ISBN 978-85-7448-149-4

9 788574 481494

Romain Gary

uniu-se às forças da França Livre. Capitão de esquadrilha, tomou parte da Batalha da Inglaterra e em campanhas na África, Abissínia, Líbia e Normandia, de 1940 a 1944. Recebeu a Legião de Honra e a Comenda da Libertação. Ingressou no Minis­tério do Exterior em 1945, como secretário e conselheiro da embaixada, em Sofia, Berna e, depois, na Seção Européia deste ministério. Porta voz na ONU de 1952 a 1956, foi em seguida nomea­do para a embaixada na Bolívia e Cônsul Geral em Los Angeles. Deixando a carreira diplomá­ tica em 1961, percorreu o mundo durante dez anos trabalhando para publicações americanas e realizou dois filmes, Les Oiseaux vont mourrir au Pérou (1968) e Kill (1972). Foi casado com a atriz americana Jean Seberg de 1962 a 1970.

rio na base aérea de Hartford Bridge não eram boas. Fazia muito frio. Eu escrevia à noite, dentro da cabana de telha metálica ondulada, que eu dividia com três camaradas; colocava meu casaco de vôo e minhas botas forradas, me instalava no leito e escrevia até de madrugada; meus dedos ficavam entorpecidos; meu hálito deixava sua marca vaporosa no ar gelado; não tive dificuldade alguma para reconstituir a atmosfera das planícies nevadas da Polônia, onde se passa o romance. Lá pelas três, quatro horas da manhã, largava minha caneta, montava na minha bicicleta e ia beber uma xícara de chá na cantina; embarcava depois no meu avião e partia para uma nova missão no amanhecer cinzento, contra alvos poderosamente protegidos.

Promessa ao amanhecer

Ingresso na aviação em 1938, foi instrutor de tiro na Escola de Aeronáutica de Salon. Em junho de 1940,

As condições para o trabalho literáJacques Robert / Gallimard

Nascido na Rússia em 1914, tendo chegado na França aos quatorze anos, Romain Gary fez seus estudos secundários em Nice e se formou em direito em Paris.

Romain Gary

Promessa ao amanhecer

Sobre Promessa ao amanhecer, há certa unanimidade em se dizer que é uma das mais belas narrativas sentimentais da literatura moderna, além de ser um pequeno épico de bravura, solidariedade e camaradagem. Ao mesmo tempo, constitui um recorte dos vários dramas superpostos a assolar a Europa na primeira parte do século XX. O protagonista-narrador, na verdade o próprio Romain Gary, é sujeito de uma história de vida única, atirado pelos ventos do destino entre meia dúzia de países. Relato autobiográfico, romance de amor, livro de guerra e narrativa de viagens, essa convergência de estilos com cru­ za­mento temático nos verte uma obra de singela riqueza e fascinante leitura. Instalado em seu refúgio da costa californiana, Gary debruça -se na idade madura sobre suas lembranças da infância na Lituânia à época russa, sua juventude numa Varsóvia de destino incerto, sua chegada na França em companhia de uma mãe tão memorável quanto quixotesca, sua carreira na aviação militar. Aí os relatos são pungentes, como quando seu avião é forçado a pousar sem piloto, pois este perdeu a vista ao ser atingido. Então não apenas tudo se inicia e termina com certa promessa feita ao amanhecer, como perde-se o fôlego com suas conseqüências. Promessa ao amanhecer talvez seja a obra mais afamada de Romain Gary devido a sua filmagem por Jules Dassin, com Gary sendo interpretado por vários atores e tendo Melina Mercouri como a mãe. O autor, paralelamente a seus jogos de identidades múltiplas e despistes, resquícios tanto de uma infância de mutações quanto de seus anos de combate, se destacou em toda sua obra como um sagaz polemista que atira, inclusive literalmente, contra toda e qualquer ignomínia política, literária ou cultural, reivindicando para si a linhagem do romance picaresco, em contraposição ao nouveau roman tão em voga à época.


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