"A invenção de Paris" de Eric Hazan

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cobertas: a trama cerrada dos bairros parisienses organiza este grande passeio ilustrado proposto aos flanadores de ruas e de livros. Eric Hazan nos revela os mil e um segredos da capital francesa, sempre pronta para a próxima ruptura. Ora mergulhamos nos inesquecíveis cenários de Doisneau ou de Atget. Ora blasfema-se contra Haussmann, assassino da velha Paris. Alhures, sonhamos em companhia de Zola à sombra do Paraíso das Damas ou lamentamos as Ilusões perdidas de Balzac. E o deleite se impõe como evidência. Não resta dúvida: o passeio é uma arte.

Eric Hazan

Praças reais e faubourgs insubmissos, muralhas, barricadas e passagens

Eric Hazan nasceu em Paris em 1936. É historiador, editor e escritor. Dirige as edições La Fabrique, que fundou em 1998.

Eric Hazan

A invenção de Paris

A invenção de Paris

A cada passo uma descoberta

Tradução

Mauro Pinheiro

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Fotos: Germaine Krull (capa); Charles Marville, Charles Delius, anônimo e Robert Doisneau (4a capa). Ver à p. 4

ISBN 978-85-7448-213-2

9 788574 482132

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Eric Hazan

A invenção de Paris A cada passo uma descoberta

Tradução

Mauro Pinheiro

Estação Liberdade

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Título original: L'invention de Paris: il n'y a pas de pas perdus © Éditions du Seuil, 2012 © Editora Estação Liberdade, 2017, para a presente edição

Coordenação geral e revisão de tradução Angel Bojadsen | Produção Edilberto F. Verza |Revisão Huendel Viana e Juliana Pondian | Assistência editorial Fábio Fujita, Gabriel Joppert e Letícia Howes | Diagramação Miguel Simon Edição original (França) Edição de arte e projeto gráfico Alexandre Mouawad e Jérôme Saint-Loubert Bié Produção Alexandre Mouawad | Pesquisa iconográfica Livia De Volpinis | Índice Lucille Besombes | Digitalização Quadrilaser Imagens de capa © Germaine Krull, 1927 (capa); 4ª capa, acima: © Charles Marville/Musée Carnavalet, 1865 (Roger-Viollet); Charles Delius, © Delius, ca. 1930 (Leemage); abaixo: anônimo, © Musée Carnavalet, 1971 (Roger­ ‑Viollet); © Robert Doisneau, 1945 (Rapho) Mapas das guardas Matthäus Merian: Plan de Mérian (mapa de Paris em perspectiva), 1615; Alexandre Vuillemin/ Librairie Hachette: Plan de Paris, ca. 1890

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ H718i

Hazan, Eric, 1936-

A invenção de Paris : a cada passo uma descoberta / Eric Hazan ; tradução Mauro Pinheiro. - 1. ed. - São Paulo : Estação Liberdade, 2017.

448 p. : il. ; 27 cm.

Tradução de: L’invention de paris: il n’y a pas de pas perdus

Inclui índice

ISBN 978-85-7448-213-2

1. Paris (França) - História. 2. Paris (França) - Usos e costumes. I. Pinheiro, Mauro. II. Título. 17-44146

CDD: 914.436

CDU: 913(443.61)

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Todos os direitos reservados à Editora Estação Liberdade. Nenhuma parte da obra pode ser reproduzida, adaptada, multiplicada ou divulgada de nenhuma forma (em particular por meios de reprografia ou processos digitais) sem autorização expressa da editora, e em virtude da legislação em vigor. Esta publicação segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, Decreto no 6.583, de 29 de setembro de 2008.

Editora Estação Liberdade Ltda. Rua Dona Elisa, 116 | Barra Funda | 01155­‑030 | São Paulo­‑SP Tel.: (11) 3660 3180 wwww.estacaoliberdade.com.br

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Sumário

PRIMEIRA PARTE

Adarves — 9

Psicogeografia do limite................................. 17 A Antiga Paris, os bairros.............................. 31 M argem direita: Palais-Royal, 33 — Carrousel, 41 — TuileriesSaint-Honoré, 46 — Bourse, 48 — Halles, 57 — Sentier, 64 — Marais, 77 — Grands Boulevards, 98. M argem esquerda: Quartier Latin, 102 — Odéon, 109 — Saint­ ‑Sulpice, 110 — Saint-Germain-des-Prés, 111 — Faubourg Saint-Germain, 114.

A Nova Paris — I. Os faubourgs.................. 121 M argem direita: Champs-Élysées, 127 — Faubourg Saint-Honoré, 132 — Faubourg Saint-Antoine, 133 — Popincourt e Faubourg du Temple, 138 — Faubourgs Saint-Martin e Saint­ ‑Denis, 146 — Faubourgs Poissonnière e Montmartre, 153 — Saint-Georges e Nouvelle-Athènes, 157 — Europe, 158 — Planície Monceau, 163. M argem esquerda: Faubourg Saint-Marcel, 166 — Faubourg Saint-Jacques, 174 — Montparnasse, 176.

A Nova Paris — II. As aldeias..................... 189 M argem esquerda: Vaugirard e Grenelle, 197 — Plaisance, 202 — Denfert-Rochereau e o 14o arrondissement, 205 — O 13o, Butte-aux-Cailles, bairro Italie, 206. M argem direita: Passy e Auteuil, 209 — Batignolles, 214 — Clichy, 215 — Montmartre, 216 — Clignancourt, 220 — Goutte-d’Or, 221 — La Chapelle e La Villette, 223 — Buttes­‑Chaumont, 228 — Belleville, 231 — Ménilmontant, 239 — Charonne, 242 — Bercy, 245.

SEGUNDA PARTE

A Paris Vermelha — 251 TERCEIRA PARTE

Atravessando o quadro fervilhante de Paris.... — 353 Os flanadores............................................... 361 As belas imagens.......................................... 385 Índice............................................................ 441

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Jean-Christophe Bailly, Dominique Eddé e Stéphanie Grégoire tiveram a paciência de mergulhar neste texto ao longo de diversas etapas do manuscrito. O encorajamento e as sugestões que me deram muito ajudaram para que este encontrasse sua forma definitiva. Sophie Wahnich e Jean-Christophe Bailly encontraram em três minutos o título e o subtítulo que eu procurava havia meses. Os autores de livros sobre Paris que eu publiquei na Editora Hazan (Jean-Pierre Babelon, Laure Beaumont, Maurice Culot, François Loyer, Pierre Pinon, Marie de Thézy) poderão reconhecer todos os empréstimos que foram feitos. Finalmente, agradeço ao meu editor, Denis Roche, que me concedeu sua confiança imediata e, além disso, acolheu o livro em sua própria coleção, algo que ainda me deixa surpreso. E.H.

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Passos em vão? Isso não existe. André Breton, Nadja

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PRIMEIRA PARTE Adarves

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Páginas precedentes: Fachada da passagem du Caire, place du Caire. Clichê de Eugène Atget, Paris, Museu Carnavalet, detalhe. seguida de Teatro de Belleville. Cartão-postal, Paris, BnF, detalhe. seguida de Obras de construção da Opéra. Clichê anônimo. Paris, BnF, detalhe.

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Psicogeografia do limite A cidade só é homogênea aparentemente. Até mesmo seu nome ganha uma entonação diferente conforme os lugares onde nos encontramos. Em nenhum outro lugar — exceto nos sonhos —, é possível se ter uma experiência do fenômeno do limite tão original quanto nas cidades. Conhecê-las é saber onde passam as linhas de demarcação, ao longo dos viadutos, através dos imóveis, no coração do parque, à margem do rio; isso significa conhecer esses limites, assim como os enclaves de diferentes domínios. O limite atravessa as ruas; é um limiar; entra-se num novo feudo dando um passo no vazio, como se transpuséssemos um degrau que não vemos. Walter Benjamin, Le Livre des passages1

1. Le Livre des passages, trad. fr. de Jean Lacoste, Paris, Éditions du Cerf, 1989 [Ed. bras.: Passagens, trad. de Irene Aron e Cleonice P. B. Mourão, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2006].

Quem atravessa o Boulevard Beaumarchais e desce na direção da rue Amelot sabe que deixa para trás o Marais para entrar no bairro da Bastilha. Quem passar pela estátua de Danton e seguir ao longo do muro posterior da École de Médecine, sabe que está deixando para trás Saint-Germain-des-Prés para penetrar no Quartier Latin. Com frequência, as fronteiras entre os bairros de Paris são delineadas com essa precisão cirúrgica. As referências são por vezes os monumentos — a rotunda da Villette, o leão de Denfert-Rochereau, a porta Saint­ ‑Denis — outras, os acidentes de terreno —, a fratura da colina de Chaillott sobre a planície de Auteuil, a lacuna das estradas para a Alemanha e Flandres entre a Goutte-d’Or e as Buttes­ ‑Chaumont — outras ainda são as grandes artérias das quais os boulevards de Rochechouart e de Clichy são um exemplo extremo, formando entre Montmartre e a Nouvelle-Athènes uma demarcação tão marcada que, dos dois lados, não são dois bairros que se observam, mas dois mundos. As fronteiras em Paris não são todas formadas de linhas sem espessura. Para passar de um bairro a outro às vezes é necessário atravessar zonas francas, microbairros de transição. Não

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“A belíssima e inútil porta Saint-Denis”, ilustração para Nadja, de André Breton. Paris Biblioteca Literária Jacques Doucet.

é raro que eles tenham a forma de cunhas introduzidas na cidade: o triângulo do Arsenal, entre o Boulevard Henri-IV e o Boulevard Bourdon — ali onde começa, sobre um banco, num calor de 33 graus, Bouvard e Pécuchet — cuja ponta adelgaçada se acha na Bastilha e que separa o bairro Saint-Paul dos arredores da Gare de Lyon; as Épinettes, na disjunção das avenidas de Saint-Ouen e de Clichy, que servem de passagem entre Sentier e o Marais, o triângulo retangular de Arts-et-Métiers, cujo ângulo reto é a porta Saint-Martin e a hipotenusa, rue de Turbigo, assinalando o centro da cidade com o campanário de Saint­ ‑Nicolas-des-Champs. As transições podem ser limites mais vagos, como essa região das missões e dos conventos concentrados na rue de Sèvres, que é preciso transpor para passar do Faubourg Saint-Germain a Montparnasse, e que os antigos taxistas chamam de o Vaticano. Ou as ruas que, além do [Jardim de] Luxembourg, atulham o espaço entre o Quartier Latin e Montparnasse, entre o Val-de­ ‑Grâce e a Grande-Chaumière, entre a alegoria da Quinine, rue de l’Abbé-de-l’Épée, e a efígie heroica do marechal Ney, diante da Closerie des Lilas. Aliás, ao final de Ferragus, quando o antigo chefe dos Devoradores passa ali seus dias observando em silêncio os jogadores de bocha, emprestando-lhes às vezes sua bengala para medir as distâncias, Balzac nota que “o espaço fechado entre o portão Sul do [Jardim de] Luxembourg e o portão Norte do Observatoire [é um] espaço sem gênero, espaço neutro em Paris. De fato, ali, Paris não existe mais; e ali ainda é Paris. Esse local tem ao mesmo tempo um pouco de praça, rua, boulevard, fortificação, jardim, avenida, estrada, província, capital; certamente, há de tudo isso um pouco; mas não é nada disso: é um deserto.”1

1. Victor Hugo talvez tenha se lembrado desta passagem quando, em Os miseráveis, ele descreve as vizinhanças de La Salpêtrière: “Não era solitário, havia transeuntes; não era o campo, havia casas e ruas; não era uma cidade, as ruas possuíam valas laterais como as grandes estradas, e a grama crescia ali; não era uma aldeia, as casas eram bem altas. O que era então? Era um local habitado onde não havia ninguém, era um local deserto onde havia alguém; era um boulevard da grande cidade, uma rua de Paris, mais selvagem à noite do que uma floresta, mais sombria de dia do que um cemitério.”

Como o fundo neutro de certas fotomontagens dadaístas, em que se entrechocam fragmentos fotográficos de cidades, as transições mais banais são aquelas que administram os choques mais surpreendentes. Saindo da atmosfera grisalha da Gare de l’Est e seguindo ao longo do antigo convento dos Récollets, o que pode haver de mais inusitado do que se encontrar bruscamente diante da superfície aquática cintilante do canal Saint-Martin, da comporta da Grange-aux-Belles, da ponte giratória, da passarela dissimulada entre as castanheiras, tendo ao fundo a ardósia dos telhados pontiagudos do Hôpital Saint-Louis? E, na outra extremidade de Paris, que contraste entre a algazarra da Avenue d’Italie e, apenas contornada a manufatura dos Gobelins, a pracinha umbrosa no fundo da qual corre o rio Bièvre e onde começa o bairro de La Glacière. Alguns bairros, ainda que estejam entre os mais antigos e os mais bem definidos, podem conservar uma parte indecisa dentro de seus limites. Para o bem dos parisienses, o Quartier Latin termina no alto da montanha Sainte-Geneviève, como no tempo de Abelardo. Balzac situa a pensão Vauquer à rue Neuve­ ‑Sainte-Geneviève [Tournefort] “entre o Quartier Latin e o

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Faubourg Saint-Marceau.... naquelas ruas apertadas entre a cúpula de Val-de-Grâce e a cúpula do Panthéon, dois monumentos que mudam as condições atmosféricas ao lançar tonalidades amareladas e sombreando tudo com as nuances severas projetadas pelas suas abóbodas.”1 Mas hoje em dia, sobre a encosta Sul da Montagne, a École Normale Supérieure, os institutos de pesquisa e os alojamentos estudantis, os laboratórios históricos Pasteur e Curie, a Universidade de Censier, talvez justifiquem que se estenda o Quartier Latin até os Gobelins.

1. O pai Goriot, 1835. 2. Louis Chevalier, Montmartre du plaisir et du crime, Paris, Robert Lafont, 1980. 3. Passagens, op. cit. Todas as citações de Benjamin que se seguem, exceto menção contrária, são extraídas desse livro.

As divergências sobre os limites podem ser bem mais graves, a ponto de recolocarem em questão a própria identidade do bairro em apreciação. Quando nos afastamos do centro, seguindo rumo ao Norte, onde começa Montmartre? A história — os limites da aldeia antes de ser anexada a Paris — concorda com o sentimento comum para responder que entramos em Montmartre transpondo o traçado da linha de metrô número 2, cujas estações de Barbès-Rochechouart, Anvers, Pigalle, Blanche, Clichy, balizam exatamente a curva do antigo muro dos Fermiers Généraux [muro dos Feitores Gerais]. Mas Louis Chevalier, em Montmartre du plaisir et du crime, esta obra-prima2, fixa para Montmartre um limite bem mais baixo, nos Grands Boulevards, tanto que inclui no tópico do livro a Chaussée-d’Antin, o bairro Saint-Georges, o Cassino de Paris e o Faubourg Poissonnière. Mesmo fora do prazer e do crime, a geografia física é a favor de tal traçado, pois as ladeiras de Montmartre começam bem abaixo dos boulevards de Rochechouart e de Clichy. O terreno sobe a partir do antigo braço morto do Sena, algumas dezenas de metros após os Grands Boulevards. Walter Benjamin, pedestre incomparável de Paris, percebera: “Ele [o flanador] está diante de Notre-Dame-de-Lorette e as solas de seus sapatos lhe recordam que é ali o local onde, outrora, se atrelava o ‘cavalo de reforço’ ao ônibus que subia a rue des Martyrs em direção a Montmartre.”3 É possível argumentar que Montmartre é um caso à parte, que não se trata mais de um bairro como os outros, que é ao mesmo tempo uma região no mapa de Paris e um mito histórico-cultural, com uma fronteira diferente para cada uma de suas acepções. Mas será esta ambiguidade a marca distintiva dos bairros de identidade forte? E sem identidade forte é possível realmente falar de bairro? Essas questões levam, vê-se logo, a uma interrogação mais geral: o que é, no fundo, um bairro parisiense? A subdivisão oficial — oitenta bairros, quatro em cada região administrativa (arrondissement) — traz um início de resposta a contrario: uma lista assim, de unidades não hierarquizadas, um enquadramento tão abstrato só faz sentido para o erário e a polícia. Mas não é certo que procedimentos mais sutis possam definir uma unidade urbana básica para Paris, onde o termo “bairro”, apesar de sua antiguidade na língua e sua simplicidade

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aparente, está longe de ocultar o homogêneo e o comparável. Por exemplo, Saint-Germain-des-Prés, a planície Monceau e o Évangile são todos bairros parisienses: cada um tem sua história, seus limites, seu traçado, sua arquitetura, sua população, suas atividades. O primeiro, organizado ao longo de séculos sobre o terreno da grande abadia, reunindo ruas bem antigas em torno da cruz “moderna” do Boulevard Saint-Germain e da rue de Rennes, nada conservou dos anos de pós-guerra que fizeram sua glória mundial, e ele sofreu desde então um processo de completa “museificação”. O segundo, dividido em lotes no meio do século XIX pelos irmãos Pereire, “bairro de luxo crescendo no meio de terrenos baldios da antiga planície Monceau”, é aquele de Nana, em sua mansão “de estilo renascentista, com ares de palácio”. Marcado pelas lembranças dos artistas grandiloquentes, que estiveram entre seus primeiros habitantes — Meissonier, Rochegrosse, Boldini, Carrier-Belleuse —, é o bairro residencial típico, e os sucessores da burguesia mecantil do Segundo Império ocupam ainda hoje seus palacetes neogóticos e neopalladianos. O Évangile, no fim do mundo, entre os trilhos da via férrea do Norte e os do Leste, é construído num canto da antiga aldeia de La Chapelle, onde os empreendedores encarregados de remover a lama de Paris vinham esvaziar suas coletas (“As carroças removem as lamas e as imundices; descarregam-nas nos campos próximos: coitado de quem é vizinho desses depósitos infectos”, escreve Sébastien Mercier)1. Ali não se veem mais os grandes gasômetros, aqueles monstros enfileirados na rue de l’Évangile, mas o calvário fotografado por Atget ainda se encontra de pé e o mercado coberto da Chapelle é um dos mais coloridos de Paris. Para dar conta dessa diversidade, as oposições habituais — Leste/Oeste, margem direita/margem esquerda, centro/periferia — são simplistas e às vezes caducas. É preciso buscar em outra parte, e em particular nesse modelo de crescimento da cidade. Em todo o Ocidente, nenhuma capital de desenvolveu como Paris, de maneira assim descontinuada, num ritmo tão irregular. E o que impulsionou esse ritmo foi a sucessão centrífuga das muralhas da cidade. As aglomerações urbanas sem muralhas — exceto aquelas que um gradeamento ortogonal organiza estritamente, como a Lisboa do marquês de Pombal, Turim ou Manhattan — crescem de qualquer maneira, como um polvo expandindo seus tentáculos, como uma cepa bacteriana se multiplica em seu meio. Em Londres, Berlim, Los Angeles, os limites urbanos, as formas dos bairros são vagos e variáveis. 1. Louis Sébastien Mercier, Tableau de Paris, 1781. 2. Yoshinobu Ashihara, L’Ordre caché. Tokyo, La ville du XXI e siècle?, Paris, Hazan, 1994.

“A proliferação rastejante da imensa megalópole de Tóquio faz pensar em um bicho da seda comendo uma folha de amoreira.... A forma de uma cidade assim é instável, sua fronteira é uma zona ambígua em perpétuo movimento.... É um espaço incoerente que se expande sem ordem e sem demarcações, com limites mal definidos.”2

Paris, ao contrário, tantas vezes ameaçada, sitiada, invadida é submetida desde a noite dos tempos às restrições de suas

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Página dupla precedente: Os grandes gasômetros e o calvário do bairro de l’Évangile. Clichê de René-Jacques.

1. Por exemplo, um decreto de 1548 (citado em Pierre Lavedan, Histoire de l’urbanisme à Paris, Paris, Association pour la publication d’une histoire de Paris, 1975) prescreve: “Doravante, não serão mais edificados ou erguidos novos prédios nos faubourgs, por ninguém de qualquer condição que seja, sob pena de confisco dos fundos e do imóvel, que será imediatamente demolido.” Ao final do século XVIII, Mercier escreveu: “A circunferência de Paris é de 10 mil toesas, foi tentado várias vezes limitar sua superfície; as edificações transpuseram os limites; os pântanos desapareceram e os campos recuam dia a dia diante dos martelos e dos esquadros.” 2. Victor Hugo, Notre-Dame de Paris, “Paris pelo alto”, 1832. Para os cortes nas citações, no lugar do tradicional e pesado [...], eu utilizei o sinal .... (quatro pontos).

delimitações. Por isso, ela sempre teve uma forma regular, aparentada a um círculo e não pôde se expandir senão por estratos sucessivos, densos e concêntricos. Da muralha de Felipe Augusto ao boulevard periférico, seis delimitações se sucederam em oito séculos — sem contar os retoques, os reforços, as retificações parciais do traçado. O roteiro é sempre o mesmo. Uma nova delimitação acaba de ser construída, as dimensões são amplas, e se reserva espaço livre em torno da estrutura existente. Mas, rapidamente, esse espaço se cobre de construções. O terreno disponível no interior dos muros se torna cada vez mais raro, as habitações se apertam, se sobrepõem, os fragmentos se acumulam, a densidade crescente torna a vida difícil. Durante esse tempo, no exterior dos muros, apesar da interdição — constante, não importa o século e o regime político, e nunca respeitada (é a zona non aedificandi, que os parisienses pouco familiarizados com o latim logo abreviaram para zona, palavra cuja fortuna ainda perdura1) —, constroem-se casas com jardins e o ar fresco, dentro dos faubourgs. Quando a concentração intramuros se torna intolerável, as delimitações são destruídas e outras fixadas mais adiante, os faubourgs são absorvidos pela cidade e o ciclo recomeça. “Felipe Augusto.... aprisiona Paris dentro de uma cadeia circular de imensas torres, altas e sólidas. Durante mais de um século, as casas se apertam, se acumulam e elevam seu nível nessa bacia como a água de um reservatório. Elas começam a se aprofundar, erguendo andares sobre andares, subindo umas sobre as outras, jorrando em altura como toda seiva comprimida, e cada um tenta superar a residência vizinha para conseguir um pouco mais de ar. A rua se afunda cada vez mais e se encurta; todas as praças se atulham e desaparecem. As casas, enfim, saltam sobre os muros de Felipe Augusto e se espalham alegremente pela planície, sem ordem e enviesadas, como se fugissem. Ali elas se empertigam e constroem seus jardins nos campos, se acomodam. Desde 1367, a cidade se expande tanto nos faubourgs que é preciso cercá-la novamente, sobretudo à margem direita. Carlos V a construiu. Mas uma cidade como Paris está em crescimento perpétuo.... Os limites traçados por Carlos V têm assim a mesma sorte que aqueles de Felipe Augusto. Desde o final do século XV, ela se prolonga, se ultrapassa e o faubourg se distancia.” 2

Como a marca dos anos no tronco de uma árvore, os bairros entre as duas muralhas são contemporâneos, ainda que seu preenchimento não se faça na mesma velocidade em toda a circunferência — sempre atrasado a Oeste e à margem esquerda. Mesma época e, assim, mesma concepção da cidade, eis porque existem vários pontos em comum entre Belleville e Passy, inclusos no mesmo estrato, tardiamente anexados a Paris, e que guardaram ambos os traços de aldeias da Île-de-France — a grande rua comercial, a igreja e o cemitério, o teatro que hoje se diria municipal, a praça central animada onde se compram doces aos domingos. Tais analogias podem ser encontradas nos

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As muralhas de Paris. Do centro à periferia, as muralhas de Felipe Augusto, Carlos V, Luís XIV (“a muralha guarnecida com bastiões”), Luís XVI (“o muro ‘dos Fazendeiros gerais’ ”). Luís Felipe (“as fortificações de Thiers”). Plano de 1913.

1. Houve muralhas anteriores ao século XIII, mas estas se perdem na noite dos tempos.

faubourgs assim como nos núcleos mais centrais da cidade, mas como os deslocamentos em Paris se fazem com maior frequência em conformidade aos raios do que em conformidade aos arcos de círculo, eles demonstram melhor a diversidade diacrônica do que o parentesco entre os bairros contemporâneos. Das duas muralhas medievais de Paris1, a mais antiga, construída sob Felipe Augusto por volta de 1200, deixou vestígios mais nítidos na margem esquerda, onde, sobre a encosta Norte da montanha Sainte-Geneviève, ela circunscrevia “a Université” (os vestígios não significam aqui as velhas pedras, os rastos arqueológicos — aliás existentes nas duas margens —, mas as consequências urbanas ainda manifestas, legíveis num mapa ou sensíveis ao caminhar). Essa muralha partia do Sena até a torre de Nesle, no local onde se acha atualmente o Institut. Seu caminho de contraescarpa seguia o traçado da rue Mazarine de nossos dias (antigamente “Fossés-Saint-Germain”) indo até a porta de Buci, pela qual Paris se abria na direção

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cobertas: a trama cerrada dos bairros parisienses organiza este grande passeio ilustrado proposto aos flanadores de ruas e de livros. Eric Hazan nos revela os mil e um segredos da capital francesa, sempre pronta para a próxima ruptura. Ora mergulhamos nos inesquecíveis cenários de Doisneau ou de Atget. Ora blasfema-se contra Haussmann, assassino da velha Paris. Alhures, sonhamos em companhia de Zola à sombra do Paraíso das Damas ou lamentamos as Ilusões perdidas de Balzac. E o deleite se impõe como evidência. Não resta dúvida: o passeio é uma arte.

Eric Hazan

Praças reais e faubourgs insubmissos, muralhas, barricadas e passagens

Eric Hazan nasceu em Paris em 1936. É historiador, editor e escritor. Dirige as edições La Fabrique, que fundou em 1998.

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A invenção de Paris

A invenção de Paris

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Tradução

Mauro Pinheiro

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Fotos: Germaine Krull (capa); Charles Marville, Charles Delius, anônimo e Robert Doisneau (4a capa). Ver à p. 4

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