"Aqui de dentro", de Sam Shepard

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Aqui de dentro

Os cheiros de bolinho, vapor, pão na chapa e café se espalhavam pelo pátio detonado e se perdiam no imenso deserto escuro. Uns sujeitos calados suspendiam caixonas enormes com roldanas de ferro de uma ponta a outra do cascalho. De vez em quando, um dos vultos resmungava ou acenava a cabeça, mas o mundo continuava enigmático, velado e indescritível. Sonha com o pai, o homenzinho minúsculo que nem era tão minúsculo assim. Descreve os detalhes desses sonhos re‑ correntes com uma jovialidade pungente, que faz lembrar os mangás japoneses. Tenta fugir, se afastar do pai e de todas as suas indiscrições, mas está condenado a repeti-las. O tempo dá a moldura; os rostos femininos se fundem uns nos outros. A mocinha namorada do pai, Felicity, e a mãe faladora num casaco cor-de-rosa. A Garota Chantagem, muito novinha, ambiciosa, esquiva. A esposa indo embora depois de trinta anos de casamento. Vêm, vão, voltam. Depois de um tempo, passamos a conhecê-las, as imagens densamente entretecidas numa prosa rápida, pródigas pitadas de poesia, monólogo e diálogo. Linguagem visceral de filme caseiro tremido. Ama a esposa, mas não conseguem ficar juntos. Está fas‑ cinado pela Garota Chantagem que tem algo dele próprio, tes‑ tando e avaliando as reações. Voltando em círculos no tempo, colide consigo mesmo quando era mais jovem, ingenuamente enlaçado com a Felicity do pai, figura trágica que parece um caramelo puxa-puxa, oscilando entre inocência e desejo. Abriu a boca e vi bichinhos minúsculos fugindo: bichinhos presos dentro dela esse tempo todo. Fugiam como se algo fosse 14

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