Guia Digital Espaço Miguel Torga

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O guia digital do Espaço Miguel Torga foi concebido para que os visitantes retirem o máximo proveito da visita virtualmente. Uma vez que não é possivel a visita fisicamente, disfrute da informação sobre o que este espaço cultural tem para oferecer.


sala de exposição permanente

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Painel Um Reino Maravilhoso 27 Paineis Vida e Obra Painel Retrato Painel O Chão e O Verbo



UM REINO MARAVILHOSO (TRÁS-OS-MONTES)

Vou falar-lhes dum Reino Maravilhoso. Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade, e o coração, depois, não hesite. Ora, o que pretendo mostrar, meu e de todos os que queiram merecê-lo, não só existe, como é dos mais belos que se possam imaginar. Começa logo porque fica no cimo de Portugal, como os ninhos ficam no cimo das árvores para que a distância os torne mais impossíveis e apetecidos. E quem namora ninhos cá de baixo, se realmente é rapaz e não tem medo das alturas, depois de trepar e atingir a crista do sonho, contempla a própria bem-aventurança. Vê-se primeiro um mar de pedras. Vagas e vagas sideradas, hirtas e hostis, contidas na sua força desmedida pela mão inexorável dum Deus criador e dominador. Tudo parado e mudo. Apenas se move e se faz ouvir o coração no peito, inquieto, a anunciar o começo duma grande hora. De repente, rasga a crosta do silêncio uma voz de franqueza desembainhada: - Para cá do Marão, mandam os que cá estão!... Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós? Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico, porque o nume invisível ordena: - Entre! A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso. Portugal (1950)



1907 Adolfo Correia Rocha nasce em 12 de Agosto em S. Martinho de Anta, concelho de Sabrosa, distrito de Vila Real. S. Martinho de Anta, 13 de Março de 1962

- Que paz, figurar no livro de assentos de qualquer localidade do mundo! Aos 12 do mês de Agosto de 1907, nasceu … E pronto. Não há forças humanas ou desumanas que possam desmentir o facto, invalidar a certidão, revogar o édito, que outorga iguais regalias a ricos e pobres, a obscuros e nomeados. Suceda o que suceder, nunca perdemos o privilégio, nunca somos hóspedes ou intrusos no perímetro da letra do registo. […] (Diário, IX, 1964) S. Martinho de Anta, 29 de Outubro de 1955

- […] Foi desta realidade que parti, e é a esta realidade que regresso sempre, por mais voltas que dê nos caminhos da vida. (Diário, VIII, 1959)

1913 Inicia os estudos primários na escola de S. Martinho de Anta. 1913 Conclui o exame da instrução primária realizado na escola de Sabrosa. 1918 Com uma recomendação do padre de S. Martinho de Anta, vai estudar para o Seminário de Lamego, onde permanece um ano. Tendo perdido a fé, ao fim desse primeiro ano, recusa-se a continuar no Seminário. Esta passagem por Lamego, como dirá mais tarde do Diário, foi decisiva; aí passou “um dos anos cruciais” da sua “vida de menino”.

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Os pais e a irmã de Miguel Torga. Miguel Torga, estudante no Seminário de Lamego, 1918. Assento de baptismo de Miguel Torga. Escola Primária em S. Martinho de Anta.


1920 Adolfo Rocha emigra para o Brasil para onde os pais o enviam. Irá trabalhar durante cinco anos na fazendo de um tiro paterno, a Fazenda de Santa Cruz, no Estado de Minas Gerais. Um relato impressivo deste período Pode ler-se nas páginas de “O Segundo Dia” de A Criação do Mundo.

“Começava a ficar homem. No meio daquela pujança tropical, crescia também. Mas enquanto que o corpo se desenvolvia em tamanho – todos os dias tinha a impressão de não caber na roupa -, a alma apenas medrava em amargura. Amargura de me sentir injustamente odiado por minha tia, de ser como um estranho para meu tio, de viver aperreado no seio da liberdade.” 1924 Matricula-se no Ginásio Leopoldinense, em Leopoldina, Minas Gerais, no dia 20 de Fevereiro. É por esta altura que começa a escrever os seus primeiros versos, imitando o poeta brasileiro Casimiro de Abreu. Sobre o significado da sua adolescência passada numa fazenda, no Brasil, anotará em 1938, no primeiro volume do Diário:

“Foi um fermentar que nunca mais acabou, pois continua a lavrar no meu corpo, dos ossos ao coração. Nada que se possa traduzir em palavras, porque não tem expressão condigna a quentura deste lume que recebi de uma terra incendiada de vida, de força e de liberdade.”

1 A Fazenda de Santa Cruz.


1925 Adolfo Rocha regressa do Brasil. O tio decide recompensá-lo pelos cinco anos de trabalho na fazenda, pagando-lhe os estudos em Coimbra. Instala-se num colégio e em dois anos apenas completa os primeiros cinco do curso geral dos liceus. Sai do colégio e passa a frequentar o Liceu José Falcão. Conclui num só ano os dois últimos do curso liceal. 1928 Inicia os estudos de Medicina na Universidade de Coimbra. Passa a morar na república de estudantes “Estrela do Norte”, no n.º 6 da Ladeira do Seminário. Adolfo Rocha publica o seu primeiro livro, Ansiedade, uma colectânea de poemas cujo título se revelará emblemático face ao que virá a ser o percurso literário do autor. O livro jamais será reeditado.

1 e 3 Miguel Torga, estudante da Universidade de Coimbra - 1928. 2 Cartão de estudante da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.


1929 Adolfo Rocha começa a frequentar a tertúlia literária do café Central e inicia a sua colaboração na Presença, revista fundada por Branquinho da Fonseca, João Gaspar Simões e José Régio. O contacto com o grupo presencista é decisivo para a formação estético-literária do poeta. 1930 Publica Rampa. Adolfo Rocha, Edmundo Bettencourt e Branquinho da Fonseca enviam uma “Carta a José Régio e João Gaspar Simões, directores da Presença”, a participar o afastamento do grupo. A carta, difundida sob a forma de folheto volante, provoca primeira cisão dentro da Presença. Perante o desalento de Branquinho da Fonseca, na sequência da ruptura com a Presença, Adolfo Rocha escreve ao amigo assumindo a responsabilidade pela dissidência. Com este amigo, funda a revista Sinal, que terá vida efémera. Fernando Pessoa escreve uma carta a Adolfo Rocha, agradecendo o exemplar de Rampa que lhe havia sido enviado, e apresentando alguns conselhos em torno do modo de prespectivar a sensibilidade e a inteligência na arte poética. Adolfo Rocha responde em termos contundentes, discordando de Pessoa e expondo o seu ponto de vista. Pessoa escreverá de novo uma extensa carta desenvolvendo as suas ideias estéticas.

1 Miguel Torga e Branquinho da Fonseca, em 8 de Agosto de 1943 2 Rascunho da carta de dissidência enviada aos diretores da Presença, a 16 de Junho de 1930, assinada por Adolfo Rocha, Edmundo Bettencourt e Branquinho da Fonseca. 3 Poemas de Miguel Torga publicados no número 24 da revista Presença, 1930.


1931 Publica o seu terceiro livro de poesia, Tributo. Estreia-se também na ficção narrativa com o livro de contos Pão Ázimo. Estas obras não serão reeditadas. 1932 Publica o livro de poesia Abismo. 1933 Adolfo Rocha conclui a licenciatura em Medicina. Coimbra, 8 de Dezembro de 1933

- Médico. Conforme a tradição, mal o bedel disse que sim, que os lentes consentiam que eu receitasse clisteres à humanidade, conhecidos e desconhecidos rasgaram-me da cabeça aos pés. Só deixaram a capa. E aí vim eu pelas ruas forma o mais chegado possível à minha própria realidade: um homem nu, envolto em três metros de negrura, varado de lado a lado por um terror fundo que não diz donde vem nem para onde vai. (Diário, I, 1941)

Regressa a S. Martinho de Anta para aí exercer clínica.

1 Negrilho em S. Martinho de Anta.


1934 Publica a novela A Terceira Voz. É com este livro que adopta o nome literário Miguel Torga. No prefácio, a despedida do nome civil assinada por Adolfo Rocha:

Com um ósculo vo-lo entrego. Chama-se Miguel Torga. Somos irmãos e temos a mesma riqueza. Mas há dias reparámos nesta coisa simples: para que os vossos olhos um de nós surgisse Cristo, necessariamente o outro tinha de fazer de Judas. E eu sacrifiquei-me. […] Ficas tu, Miguel Torga, mas não me chames Judas, porque só para efeitos legais (já que o auto tem de abrir com todas as cerimónias do estilo) eu me resigno a ser aquele que, cheio de remorsos, se enforcou numa figueira e, dela pendente, jaz, ad aeternum morto, comido dos bichos e com a língua de fora … Adolpho Rocha

O nome “Torga” é a designação da urze da montanha e o nome “Miguel” É assumido como uma homenagem a Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno, dois vultos maiores da cultura Ibérica. Deixa S. Martinho de Anta e muda-se para Vila Nova, freguesia do Concelho de Miranda do Corvo, no distrito de Coimbra, onde passará a exercer as funções de médico clínico geral.


1935 Rende homenagem a Fernando Pessoa, numa nota do Diário, quando da morte do poeta: Vila Nova, 3 de Dezembro de 1935

- Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era. (Diário, I, 1941)

1936 Publica O Outro Livro de Job, livro de poesia, que se impõe no meio literário português, e onde se afirma a imanência humanista da poética torguiana. Funda, com o crítico Albano Nogueira, a revista Manifesto. Contrariamente à tendência psicologista e estetizante da Presença, esta revista pretende-se atenta à intervenção do escritor na sociedade, e propõe uma arte enraizada no real, como afirma Torga n’ “O Terceiro Dia” de A Criação do Mundo:

“Queríamos uma arte rebelde, enraizada no circunstancial. A Vanguarda [criptónimo da Presença] nunca valorizara suficientemente a realidade. O velho mundo burguês, abalado nas estruturas, estrebuchava nas vascas da agonia, desenhavam-se além-fronteiras os primeiros sinais doutra aventura humana, e ela alheada no seu subjectivismo macerador. Essa pertinaz atitude introspectiva diminuía o alcance do esforço renovador que empreendera, de que sentia legítimo orgulho, mas só esteticamente dera frutos positivos”.

1 Poema “R.7”, de Miguel Torga, publicado em Manifesto, n.º 3.


1937 Publica “Os Dois primeiros Dias” o primeiro volume do romance autobiográfico A Criação do Mundo. Em Dezembro deste ano viaja para a Europa, regressando em Janeiro do ano seguinte. Marselha, 25 de Dezembro de 1937

- […] Viajar, num sentido profundo, é morrer. É deixar de ser manjerico à janela do seu quarto e desfazer-se em espanto, em desilusão, em saudade, em cansaço, em movimento, pelo mundo além. Atravessa a Espanha franquista, em plena guerra civil, e viaja por França, Itália, Suíça e Bélgica. Passa a colaborar com regularidade na Revista de Portugal, dirigida por Vitorina Nemésio, cujo número inaugural sai neste ano. 1938 Publica “O Terceiro Dia” de A Criação do Mundo. Obtém a especialidade de otorrinolaringologista pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Devido a algumas dificuldades com a Censura, sai no mês de Julho o quinto e último número da revista Manifesto. A partir daqui, o seu percurso literário afirmar-se-á com um notável espírito de independência. Continuará a publicar a sua obra sempre em edições de Autor, recusando-se a enviar os livros à Censura prévia. Conhece Andrée Crabbé, sua futura mulher, em casa de Vitorino Nemésio, em Coimbra.

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Miguel Torga e Andréé Crabbé – 1939. Miguel Torga e Andréé Crabbé na Figueira da Foz. Miguel Torga e Andréé Crabbé em Coimbra. Rascunho da carta de Miguel Torga a Vitorino Nemésio, de 25 de Setembro de 1954. Circular da Censura sobre a publicação de Manifesto.


1939 No mês de Junho, estabelece-se como médico otorrinolaringologista em Leiria. Continua a ir a Coimbra nos fins-de-semana para se encontrar com um grupo de amigos escritores e intelectuais (António de Sousa, Paulo Quintela, Vitorino Nemésio, Afonso Duarte, Martins de Carvalho…). A passagem por Leiria será marcante. Quarenta anos depois de ter saído da cidade, escreverá no Diário: 20 de Novembro de 1980

“Esta terra foi a grande encruzilhada do meu destino. Aqui identifiquei e escolhi os caminhos da poesia, da liberdade e do amor, sem dar ouvidos às vozes avisadas da prudência, que pressagiavam o pior. Aqui, portanto, arrisquei tudo por tudo, fazendo das fraquezas forças, das dúvidas certezas, do desespero esperança”. (Diário, XII)

Publica “O Quarto Dia” de A Criação do Mundo. Esta narrativa, ao Apresentar o testemunho de uma viagem a Itália e da travessia de Espanha, em plena Guerra Civil, faz uma clara denúncia do Franquismo e do fascismo de Mussolini. Os serviços secretos da PIDE apreendem o livro “O Quarto Dia” de A Criação do Mundo. Miguel Torga é preso pela PSP de Leiria. Passa pela sede da PIDE, em Lisboa, antes de ser encaminhado para a prisão de Aljube. Na prisão, escreve um dos seus mais célebres poemas de resistência, “Ariane”, incluíndo no volume I do Diário.

1 Miguel Torga com António de Sousa, Afonso Duarte, Paulo Quintela e Vitorino Nemésio em Coimbra, no parque da cidade. 2 Cédula profissional de Adolfo Rocha, passada pela Ordem dos Médicos, 1939. 3 Manuscrito o poema “Ariane”, escrito na cadeia do Aljube, em Janeiro de 1940, e publicado no vol. I do Diário. 4 Documento da PVDE alusivo à apreensão do livro “O Quarto Dia” de A Criação do Mundo.


1940 Miguel Torga é libertado a 2 de Fevereiro. Casa, em Coimbra, com Andrée Crabbé no dia 27 de Julho. Foram testemunhas os amigos Paulo Quintela e Martins de Carvalho. Publica Bichos, um dos livros de contos mais originais da literatura portuguesa, que se afirmará como o maior êxito literário do autor. 1941 Publica o volume I de Diário. Publica o volume de teatro Terra Firme. Mar. Publica o volume de contos Montanha, que será apreendido pela PIDE. Miguel Torga fará uma edição do livro no Brasil, em 1955, com o título Contos da Montanha. O livro irá circular clandestinamente em Portugal até 1968, ano em que passará a ser novamente editado em Coimbra. Passa a viver na cidade de Coimbra, fixando residência no n.º 32 da Estrada da Beira. Abre o consultório num andar do Largo da Portagem, n.º 45. No Segundo Congresso Transmontano, realizado no casino das Pedras Salgadas, apresenta no dia 11 de Setembro uma Conferência intitulada “Um Reino Maravilhoso”. Este texto sobre Trás-os-Montes viria a ser incluindo posteriormente no livro Portugal.

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Casa da Estrada da Beira, em Coimbra. Certidão de casamento de Miguel Torga e Andrée Crabbé. Manuscrito o conto “Tenório”. Placa do consultório de Adolfo Rocha no Largo da Portagem, em Coimbra. Miguel Torga e Andreé Crabbé Rocha em Tormes. Miguel Torga e Andreé Crabbé Rocha no Gerês. Na entrada da casa da Estrada da Beira, em Coimbra.


1942 Publica o volume de contos Rua. 1943 Publica o volume II do Diário, o livro de poemas Lamentação e a novela O Senhor Ventura. 1944 Publica o livro de poemas Libertação. Neste ano também dá à estampa Novos Contos da Montanha, um dos mais celebrados livros do autor. Dois contos deste livro (“O caçador”, “A caçada”) reenviam explicitamente para a caça, uma das paixões de Torga. No dia 5 de Fevereiro, apresenta uma conferência sobre a cidade do Porto no Clube Fenianos Portuenses. Sophia de Mello Breyner Andresen é apresentada a Miguel Torga pelo amigo comum Fernando Valle Teixeira. A amizade recíproca entre os dois autores perdurará ao longo dos anos, e será a situação de Torga, preso por causa de um livro, que levará Sophia, em 1969, a aderir como sócia fundadora à “Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos”. Pronuncia mais uma conferência (“Eça de Queiroz – um problema de consciência”), na cidade do Porto, no final do ano. S. Martinho, 3 de Outubro de 1949

- Não consegui explicar ainda a causa deste sentimento de segurança que se apodera de mim quando me embrenho pelas serras à caça. É uma paz de preservação, de anonimato, de intangibilidade. […] Mas à solta por estas brenhas, em perfeito equilíbrio de alma e corpo, sinto-me na plenitude do ser normal, casado e harmonizado com o meio. (Diário, V, 1951)

1 Miguel Torga e Fernando Valle Teixeira. 2 Miguel Torga, Margot Dias e Andrée Crabbé Rocha, na Serra Amarela.


1945 Publica Vindima, o seu único romance. A sua mulher, Andrée Crabbé Rocha, ingressa na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde passará a dar aulas. 1946 Publica o livro de poesia Odes e o volume III do Diário. Neste ano, é publicado o poema “Frederico García Lorca” a encabeçar Antologia Poética de Frederico García Lorca (Coimbra Editora). Recebe uma carta da Capitania do Porto da Figueira da Foz a dispensar os serviços prestados pelo Dr. Adolfo Rocha à Casa dos deste despedimento. A carta refere o pagamento do vencimento e a indemnização “por não haver causa justa”. 1947 Publica Sinfonia, poema dramático. A Doutora Andrée Crabbé Rocha é demitida das funções de professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Às razões políticas da sua Demissão não terá sido alheio de ser casada com Miguel Torga.

1 Miguel Torga e Andréé Crabbé Rocha. 2 Miguel Torga e Andréé Crabbé Rocha no Parque da Cidade, em Coimbra. 3 Miguel Torga e Andréé Crabbé Rocha e Eugénio de Andrade.


1948 Publica o livro Nihi Sibi. Morte da mãe. Pretende lançar uma revista mensal com o título Rebate. Estão associados a este projecto Andrée Rocha, Carlos Sinde (pseudónimo de Martins de Carvalho) e Eduardo Lourenço. O projecto não se concretizará. É-lhe impedida a saída do país, como anota no Diário: Coimbra, 24 de Fevereiro de 1948

- Novamente e foi negado o passaporte para sair de Portugal. Prisioneiro! E vejam o absurdo dos zelos policiais! Eles a pensarem que me levavam sombrios Propósitos de minar a ordem, e aqui como quem se confessa o que eu queria era Ver os Velásquez do Prado, e os Memlings de Bruges! (Diário, IV, 1949)

1949 Publica a peça O Paraíso e o volume IV do Diário.

1950 Miguel Torga publica Cântico do Homem.

Participa na campanha da candidatura de general Norton de Matos à Presidência da República.

Sai o volume Portugal, um livro admirável de viagem simbólica ao país e de interpretação da identidade nacional.

Solidariza-se com o amigo Fernando Valle, quando este, eminente figura da oposição ao regime de Salazar, é destituído dos cargos da Subdelegação de Saúde e Médico Municipal, devido ao apoio à candidatura de Norton de Matos à Presidência da República.

Realiza uma longa viagem de carro, durante mais de um mês, por Espanha, Itália e França, na companhia da mulher e do amigo Sebastião Rodrigues. No Teatro da Universidade de Londres, é representada a peça Mar, com encenação de Ruben A., que também faz, neste mesmo ano, uma adaptação do espetáculo para a BBC.

1 Miguel Torga com a mãe. 2 Carta a Fernando Valle. 3 Programa do espectáculo Mar, no King’s College, em Londres. 4, 6, 7, 8 e 10 Aspectos da viagem de Miguel Torga a Espanha e a Itália. 5 Miguel Torga, Eduardo Lourenço, Andrée Crabbé e Fernando Valle. 9 Representação da peça Mar, no King’s College, em Londres.


1951 Publica o volume V do Diário e o livro de contos Pedras Lavradas. Faz-se representar nos “Encontros Europeus de Poesia”, em Knocke, enviando uma Mensagem para aí ser lida. Neste texto, exorta os poetas a um activo comprometimento público em nome da poesia: Coimbra, 24 de Julho de 1951

- […] Congresso, pois, de poetas, até para que seja mais clara em nós a consciência com que podemos e devemos, e a própria palavra nos comprometa como um juramento. Não simples convívio, mas um acto. Um acto de fé na poesia! Um compromisso público de que não a trairemos em nome de nenhuma tirania, de nenhuma urgência, de nenhuma conveniência. […] (Diário, VI, 1953)

1952 Publica Alguns Poemas Ibéricos. 1953 Publica o volume VI do Diário. Visita a Grécia e a Turquia, na companhia de Fernando Valle. Muda de residência na cidade de Coimbra, passando a morar definitivamente na Rua Fernando Pessoa, n.º 3.

1 e 3 Aspectos da viagem de Miguel Torga à Turquia e à Grécia. 2 Artigo com a mensagem enviada por Miguel Torga aos “Encontros Europeus de Poesia”. 4 Cartaz dos “Encontros Europeus de Poesia”. 5 Miguel Torga na casa da Rua Fernando Pessoa, em Coimbra.


1954 Publica o livro de poesia Penas do Purgatório. Em viagem por Espanha, no mês de Junho, visita Trujillo, Guadalupe, Olivença, Granada, Zamora. No início de Agosto, desloca-se ao Brasil, convidado a participar no Congresso Internacional de Escritores, em São Paulo. Apresentou uma comunicação sobre o tema proposto: “A América vista pela Europa”. Proferiu conferências em São Paulo e no Rio de Janeiro sobre os Transmontanos no Brasil, sobre o drama da emigração portuguesa e sobre a Literatura Portuguesa. Esta foi um ocasião para o poeta rever os lugares da sua adolescência - a Fazenda de Santa Cruz e o Colégio Leopoldinense: Banco Verde, 23 de Agosto de 1954

- […] A princípio ainda cuidei que venceria essas fraquezas da emoção. Qual o quê! Á medida que o tempo foi decorrendo, a energia crítica foi diminuindo. E hoje, justamente, creio que chegou ao zero. Pude verificá-lo há pouco , a contemplar o edifício do Ginásio onde o mundo da Cultura me abriu o primeiro postigo, e a pisar, agora, o chão da fazenda que há trinta anos ensopei de lágrimas. […] (Diário, VII, 1956)

- É atribuído a Miguel Torga o Prémio Almeida Garret, do Ateneu Comercial do Porto. Na cerimónia de entrega do prémio o poeta profere um discurso colocando à disposição do Ateneu a quantia que iria receber, propondo que essa importância fosse utilizada na publicação das melhores obras dos poetas jovens concorrentes ao prémio.

1 e 5 Aspectos da viagem a Espanha. 2 e 4 Jornais brasileiros noticiando o Congresso de Escritores em S. Paulo. 3 Passaporte de Miguel Torga, de 1954. 6 Miguel Torga pronunciando uma conferência no Centro Transmontano de S. Paulo. 7 Miguel Torga na Fazenda de Santa Cruz. 8 O colégio Leopoldinense.


1955 Publica Traço de União, um livro de ensaios de temática luso-brasileira, onde reúne as conferências pronunciadas no Brasil, no ano anterior, acrescentando outros textos. 1956 Publica o volume VII do Diário. A Censura apreende o livro Sinfonia, que havia sido editado em 1947. Morte do pai. 1958 Publica o livro de poesia Orfeu Rebelde. Representação da peça Mar pelo Teatro Experimental do Porto, com encenação de António Pedro. No dia 31 de Maio, participa no comício da campanha de Humberto Delgado em Coimbra (Teatro Avenida). Em Maio, no final da comemoração das Bodas de Prata do Curso Médico de 1933, os colegas decidem homenagear Miguel Torga. É então descerrada uma placa na república “Estrela do Norte”. No mês de Junho, faz uma viagem a Espanha, Andorra, França, Bélgica e Holanda. No Porto, grava poema para um disco da etiqueta Orfeu, de Arnaldo Trindade. Coimbra, 31 de Maio de 1958

- […] Surdo à opinião dos governados, o poder nunca aqui ouviu senão a própria voz, auto-embalo que bate nas paredes da auto-suficiência, e se reflecte sem deformação. Mas embora possa ser irrisório e desprovido de acção imediata, um protesto é sempre um protesto. Uma vez feito, desliga espiritualmente o seu autor da canga rotineira a que vai jungido, compromete-o publicamente com a subversão solidariza-o com os demais revoltados, e movimenta a passividade, irmã gémea da conivência. (Diário, VIII, 1959) 1 2 3 4 5 6 7 8

Miguel Torga com a mulher, o pai, a irmã e a filha, em S. Martinho de Anta. Francisco Correia Rocha, pai de Miguel Torga. Programa da representação de Mar, pelo TEP, no Teatro Sá da Bandeira, orto, Abril de 1958. Convocatória da comemoração das Bodas de Prata do Curso Médico de 1933. Rascunho de carta a António Pedro, de 22 de Abril de 1958. Miguel Torga com a filha. Clara Rocha. Descerramento da placa de homenagem a Miguel Torga na república “Estrela do Norte”, Dezembro de 1958. 9 Miguel Torga no comício da campanha de Humberto Delgado (Coimbra, Teatro Avenida, Maio de 1958).


1959 Publica o volume VIII Diário. Representação da peça Mar pelo CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra), com encenação de Paulo Quintela. No final do ano, Jean-Baptiste Aquarone, professor da Universidade Montpellier, com o apoio de um grupo de intelectuais franceses, belgas e italianos, apresenta à Academia Sueca a candidatura de Miguel Torga ao Prémio Nobel da Literatura de 1960. 1960 No início de Janeiro, os jornais portugueses davam conta de duas candidaturas portuguesas ao Prémio Nobel da Literatura. No dia 20 de Fevereiro, os serviços da PIDE procedem à apreensão do Diário VIII. Um grupo de escritores e intelectuais apresenta um abaixo-assinado de protesto contra a apreensão deste livro. A 25 de Fevereiro é levantada a ordem da apreensão do Diário VIII; contudo, a Censura proíbe que na imprensa sejam feitas referências ao livro. Neste ano, faz mais duas das suas “viagens meteóricas” a Espanha.

1 Notícia sobre a proposta da candidatura de Miguel Torga ao Prémio Nobel. 2 Abaixo-assinado contra a apreensão do vol. VIII do Diário, de Miguel Torga.


1962 Publica o livro de poesia Câmara Ardente. 1964 Publica o volume IX do Diário. 1965 Publica Poemas Ibéricos. 1966 Representação da peça Mar pelo Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avillez e cenários de Almada Negreiros. 1967 No dia 12 de Setembro, participa numa celebração do Centenário da Abolição da Pena de Morte em Portugal, realizada na Universidade de Coimbra. Miguel Torga lê na ocasião uma conferência. No dia 15 de Dezembro, subscreve um documento de protesto, enviado ao Presidente da Assembleia Nacional. Pede-se aí a aprovação da Lei de Imprensa, a abolição da censura prévia e a possibilidade de interpor recurso para uma instância judiciária nas situações de apreensão de livros. 1968 Publica o volume X do Diário. Integra a “Comissão de Auxílio ao Dr. Mário Soares”, após a sua deportação para São Tomé.

“Convidado a participar neste colóquio comemorativo da abolição da pena de morte em Portuga, é na dupla condição de poeta e de médico que estou aqui. O poeta representará, como puder, o ardor indignado e fraterno de quantos, de Villon a Victor Hugo, de Gil Vicente a Guerra Junqueiro, protestaram contra o iníquo pesadelo, e contribuíram para a sua extinção ou repulsa na consciência universal; o médico simbolizará, com igual modéstia, a interminável falange daqueles que foram sempre, e são ainda, em todas as sociedades, os inimigos jurados e activos de qualquer forma de aniquilamento humano”. 1 Texto da conferência de Miguel Torga sobre a Abolição da Pena de Morte. 2 Notícias nos jornais relativas à conferência de Torga proferida no âmbito do Centenário da Abolição da Pena de Morte em Portugal. 3 Documentos alusivos à Comissão de Auxílio a Mário Soares. 4 Artigos de David Mourão-Ferreira sobre Miguel Torga, no Diário de Lisboa, 25.01.1968.


1969 Recusa o Prémio Nacional de Literatura, um galardão oficial do regime. No dia 19 de Abril, recebe o Prémio Diário de Notícias. Participa no II Congresso Republicano, que decorre em Aveiro, de 15 a 17 de Maio. Subscreve o manifesto “Dos Escritores ao país” onde se crítica duramente a situação política do país. Este documento não chegou a circular, tendo a sua divulgação sido proibida pela Censura. 1970 Viaja de carro até à Alemanha e a Itália, passando por Espanha e por França. A sua mulher, Andrée Crabbé Rocha, é readmitida na faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 1973 Publica o volume XI do Diário. Em Maio, faz uma viagem a Angola e a Moçambique. Sobre as motivações desta viagem, escreve n’ “O Sexto Dia” de A Criação do Mundo:

“Na convicção dessa mudança inevitável, de consequências imprevisíveis, resolvi aproveitar o interregno para fazer uma viagem às terras onde nos batíamos na defesa absurda de um império que não tínhamos sabido construir na hora própria e teimávamos em conservar na hora imprópria. Maus uma vez a minha ancestralidade calcorreadora vinha à tona. Pisara já o Norte de África, mas de fugida, num longo passeio pelo Mediterrâneo grego. Seria agora a altura de sentir pulsar o seu quente coração austral, a contemplar os cenários das nossas grandezas passadas e das nossas misérias presentes”. A polícia política vigia todos os passos do escritor durantes esta viagem.


1974 Participa nos festejos do 1º de Maio na cidade de Coimbra. Regista no Diário a “explosão gregária de alegria indutiva a desfilar diante das forças de repressão remetias aos quartéis”. Contudo, interroga-se cauteloso cobre o rumo dos ventos da mudança: “Que oculta e avisada abnegação estaria pronta para guiar no caminho da história a cegueira daquela confiança?” Publica O Quinto Dia da Criação do Mundo. Participa no primeiro comício do Partido Socialista, em Coimbra e noutro comício socialista em Sabrosa. No dia 27 de Setembro, profere na rádio uma alocução condenado as execuções de cinco cidadãos bascos perpetradas pelo regime de Franco. Sinde Filipe realiza uma adaptação cinematográfica do conto “O Leproso” (Novos Contos da Montanha). 1975 Participa, como independente, em mais dois comícios do Partido Socialista. Intervém civicamente na imprensa ao publicar uma “Carta Vagante” (saída a 6 de Março, no jornal vespertino A Capital), em que responde a um artigo de Natália Correia intitulado “O silêncio dos melhores é cúmplice do alarido dos piores”. Continua a anotar no seu Diário os acontecimentos marcantes do regime democrático recentemente instaurado: Coimbra, 25 de Abril de 1975

- Eleições sérias, finalmente. E foi nestes cinquenta anos de exílio na pátria a maior consolação cívica que tive. Era comovedor ver a convicção, a compostura, o aprumo, a dignidade assumida pela multidão de eleitores a caminhar para as urnas, cada qual compenetrado de ser portador de uma riqueza preciosa e vulnerável: o seu voto, sua opinião, a sua determinação. Parecia um povo transfigurado, ao mesmo tempo consciente da transcendência do acto que ia praticar e ciente da ambiguidade circunstancial que o permitia. O que faz o aceno da liberdade, e como é angustioso o risco de a perder! 1 Miguel Torga votando nas primeiras eleições após a revolução de Abril de 1974. 2 Dactiloscrito do discurso de abertura do primeiro Comício Socialista realizado em Coimbra, em 1 de Junho de 1974. 3 Dactiloscrito da “Carta Vagante”, publicada no jornal A Capital, em 6 de Março de 1975. 4 Discurso proferido por Miguel Torga, num Comício do Partido Socialista, em Sabrosa, em 30.06.1974, reproduzido nas páginas do Diário Popular.


1976 Participa em comícios socialistas. Publica Fogo Preso, livro que reúne conferências sobre escritores (Eça de Queirós e Teixeira de Pascoaes), mas especialmente textos de intervenção cívica.

Ao fazer-se homem público, o poeta empresta a voz a quem a não tem, e arrisca-se a ficar sem e voz e sem eco. […] acossado pelos problemas do quotidiano pátrio, vinculado pela dignidade e solicitado por mil apelos, também eu roubei às minhas horas autónomas de criador algumas horas de contestação directa. (do “Prefácio”)

Em Dezembro, no dia de Natal, planta árvores no terreiro da Escola de S. Martinho de Anta:

S. Martinho, 25 de Dezembro de 1976

- A velha escola do senhor Botelho finalmente reconstruída e actualizada. Mais sol, mais higiene, menos gramática e menos palmatoadas. Mas faltavam no terreiro à volta as mimosas da minha meninice. E passei a tarde de ferro e pá na mão a plantá-las. Não estarei cá para as ver crescidas como as de outrora. Deixá-lo. O meu propósito não era reflorir o Passado, mas florir o futuro. (Diário, V, 1951)

1977 Publica o volume XII do Diário. No mês de Junho, recebe em Bruxelas o Prémio Internacional de Poesia, da XII Bienal de Knokke-Heist, que lhe fora atribuído em Setembro do ano anterior. No seguimento a ida a Bruxelas, faz uma visita a Londres. Colabora no filme de João Roque Eu, Miguel Torga, um documentário que passará na televisão em 1987. Em Dezembro, participa num Encontro de Poetas, no Solar de Mateus, juntamente com Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade, Alexandre O’Neill, Pedro Tamen, Fernando Guimarães, Vasco Graça Moura e Alberto Pimenta.

1 Notícia no jornal belga, Le Soir, sobre a atribuição a Miguel Torga do prémio Prémio Internacional de Poesia, da XII Bienal de Knokke-Heist. 2 Miguel Torga nos Encontros de Mateus, em 1977. 3 Miguel Torga na atribuição do Prémio Internacional de Poesia, em Bruxelas, e 1977.


1978 É apresentada novamente a candidatura de Miguel Torga ao Prémio Nobel da Literatura. Em 6 de Abril, faz um discurso na Escola de S. Martinho de Anta sobre as condições da saúde no país. No mês de Setembro, participa no seminário “Repensar Portugal”, realizado no Solar de Mateus. Solar de Mateus, 8 de Junho de 1978

- Repensar Portugal. Desde pequeno que o tento de todas as maneiras e em todos os lugares. […] (Diário, XIII, 1983)

Recebe a Medalha de Honra da Associação Internacional de Reitores. No âmbito das comemorações dos cinquenta anos da vida literária de Miguel Torga, realizou-se uma homenagem ao autor na Fundação Calouste Gulbenkian. No final, o poeta leu um discurso de agradecimento:

Sei que não escrevi desses livros paradigmáticos – e nunca essa convicção foi tão cruciante como neste momento, muito embora a vossa grata presença aqui me queira dar essa ilusão. Valha-me a certeza de que o tentei até ao limite das forças, não seduzido pelo aceno de qualquer aplauso, mas na ânsia passional, quase somática, de que eles foram uma emergência expressiva, modesta mas autêntica, do plasma matricial da pátria. Sinde Filipe adapta ao cinema mais um conto de Miguel Torga: “O Milagre” (Novos Contos da Montanha). 1979 A Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra presta uma homenagem a Miguel Torga.

1 Destaque na imprensa portuguesa à homenagem a Torga, na Fundação Gulbenkian, por ocasião da comemoração dos 50 anos de vida literária: a primeira página e artigo no interior do jornal A Capital, 27 de Dezembro de 1978. 2 Miguel Torga fotografado à entrada da antiga república de estudantes “Estrela do Norte”, na Ladeira do Seminário, nº 6, em Coimbra, onde morou enquanto frequentou o curso de medicina.


1980 É atribuído a Miguel Torga o Prémio Morgado de Mateus, ex-aequo com Carlos Drummond de Andrade.

1981 Publica “O Sexto Dia” de A Criação do Mundo.

Solar de Mateus, 08 de Junho de 1980

Recebe o Prémio Montaigne, da Fundação PVS de Hamburgo.

- […] Temperamentalmente avesso a galardões de qualquer natureza, acabei no entanto por aceitar alguns deles. É que não há uniformidade de critério possível perante a surpreendente e paradoxal diversidade da vida. Que poderia eu fazer? Recusá-los por sistema, pura e simplesmente? Assim procedi quando tudo dependia da minha exclusiva vontade. Noutras ocasiões, porém, não era tão fácil a opção. Ao fim e ao cabo, nem a liberdade é livre. […] (Diário, XIII, 1983)

Adaptação televisiva do conto “Natal” (Novos Contos da Montanha).

Neste ano publica também uma Antologia Poética organizada por si próprio.

Lisboa, 10 de Março de 1981

- […] É minha velha convicção de que a cultura universal tem de ser o somatório de todas as culturas nacionais. E eu basta que falte uma parcela na adição para que a conta esteja errada. Foi, de resto, Montaigne que assim no-lo ensinou, redigindo a sua obra monumental no idioma materno, ele que o aprendera só depois de conhecer o latim cosmopolita. (Diário, XIII, 1983)

1982 É publicada em França uma selecção de textos do Diário, com o título En Franchise intérieure. Pages de journal (1933-1977), na tradução de Claire Cayron. Trata-se de início de uma extraordinária recepção crítica da obra de Miguel Torga em França. 1982 Publica o volume XIII do Diário.

1 Miguel Torga, em Trás-os-Montes, com o Presidente da República, António Ramalho Eanes, e a mulher, Manuela Eanes. 2 Miguel Torga discursando na atribuição do Prémio Morgado de Mateus, com Sophia de Mello Breyner Andresen e Pedro Tamen. 3 Miguel Torga e o Presidente de Moçambique, Samorsa Machel, no Palácio de São Marcos, em Coimbra, 1983. 4 Artigo de “L’Actualité Littéraire”, Paris, Março / Maio, 1982, sobre a publicação em França de uma seleção de textos do Diário de Torga, sob o título En Franchise Intérieure.

Encontra-se com Samora Machel, em Coimbra, quando de uma visita oficial do Presidente da República de Moçambique a Portugal. Miguel Torga convida-o a visitar a região do Douro.


1984 Faz uma viagem ao México, na companhia do padre Valentim Marques. Registando no Diário a passagem pelos lugares (Acalpulco, Oaxaca, Chinchen Itza, Uxmal, Mérida, Teotihuacan, cidade do México), reflecte sobre a realidade histórica, social, política e religiosa. Cidade do México, 17 de Março de 1984

- […] Há aqui três dimensões que violentam o meu natural lusitano. A índia, que é uma opressão religiosa, a espanhola, que é uma opressão histórica, e a americana, que é uma opressão económica. E para o entendimento de todas tenho de forçar a compreensão. Não adiro à crueldade da primeira, não justifico o sectarismo da segunda, e maldigo o vampirismo da terceira. […] (Diário, XIV, 1987)

1986 Grava o disco comemorativo, Oitenta Poemas, que irá sair no ano seguinte, por ocasião do octogésimo aniversário. 1986 Publica o volume XIV do Diário. Miguel Torga desloca-se a Macau para proferir uma conferência sobre Camões, no dia 10 de Junho. Visita Hong Kong, Cantão e Goa. 1987 No dia 29 de Outubro, na reunião dos 55 anos do curso, dirige-se aos colegas numa breve e lúcida alocução de despedida. Adaptação televisiva de “O vinho” (Contos da Montanha) com realização de C. J. Michaelis de Vasconcelos e interpretação de Raul Solnado.

1 Miguel Torga no México. 2 Miguel Torga e Ruy Cinatti, em Coimbra. 3 Mário Soares, Miguel Torga e o Andrée Crabbé Rocha, no 80º aniversário do escritor, na Malapota, 1987. 4 Miguel Torga com a filha em 1986.


1989 Recebe o Prémio Camões. O Prémio é entregue em Ponta Delgada, no âmbito das comemorações do 10 de Junho, numa cerimónia presidida pelo Presidente da República, Mário Soares. Ponta Delgada, 10 de Junho de 1989

- Uma vida longa dá para tudo. Para de nascer obscuramente em Trás-os-Montes, mourejar adolescente em terras de Santa Cruz, percorrer, solidário, na idade adulta, os actuais países lusófonos em luta pela independência, visitar, alanceado, na velhice, o que resta do Oriente português, e receber agora, nestes patrícios e paradisíacos Açores, um prémio sob a égide de Camões. Nos intervalos, ser cidadão a tempo inteiro, com profissão tributada e deveres cívicos assumidos, e poeta rebelde, cioso da sua liberdade de criador, numa época atribulada, de guerras tiranias políticas, campos de concentração, terrorismo, bombas atómicas e outros flagelos […] (Diário, XV, 1990)

É-lhe atribuída a condecoração de Oficial na Ordem das Artes e Letras, da República Francesa. 1990 Publica o volume XV da Diário. É homenageado no Goethe Institut de Coimbra e na Academia de Coimbra.

Já um dia afirmei em letra redonda que escrever é o supremo risco que um homem pode correr, pois se constitui réu num tribunal perpétuo, de que são juízes os leitores das sucessivas gerações. Ainda hoje estão sentados no banco judicativo os grandes e pequenos Homeros de todas as civilizações. Deus queira que eu não seja um dos candidatos à condenação final. O grupo de teatro “O Bando” encena uma versão dramática de Bichos (direção de João Brites). 1 Monumento a Miguel Torga em Sabrosa. 2 Notícias alusivas à atribuição do Prémio Camões a Miguel Torga: Páginas do Diário de Notícias, de 20 de Abril de 1989. Capa do Jornal de Letras, 6 a 12 de Junho de 1989.


1992 Recebe durante o ano diversas homenagens: Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores, na sua primeira edição.

Lisboa, 19 de Março de 1992

- […] Expus-me sempre nas montras timidamente, como um culpado contrito, quase a pedir desculpa aos ocasionais leitores do meu atrevimento. Embora ufano da vocação, nada mais pretendi do que cumpri-la, e ser humilde e livremente um fala-só que falasse por muitos. […] E sequei o tinteiro na mira de dar expressão local e universal a essa constante diversificada. […] (Diário, XVI, 1993)

Prémio Figura do Ano, da Associação dos Correspondentes da Imprensa Estrangeira. Prémio Écureil de Literatura Estrangeira, do Salon du Livre de Bordéus:

Este ano é marcado por um acontecimento doloroso: o encerramento do consultório médico de Adolfo Rocha. Nos Estados Unidos realiza-se um Colóquio Internacional sobre Miguel Torga, na Universidade de Massachusetts, Amherst. 1993 Publica o volume XVI do Diário, comovente testemunho e impressionante reflexão do poeta face à doença e à aproximação da morte. 1994 Realiza-se no Porto um Colóquio Internacional sobre Miguel Torga. É transmitido na RTP2 o documentário “Torga” da autoria de Jorge Campos. Recebe o Prémio da Crítica 1993 do Centro Português da Associação Internacional dos Críticos Literários. É agraciado pelo governo do Brasil. Envia uma mensagem para ser lida na primeiro reunião do Parlamento Internacional de Escritores. Homenagem no Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados. 1995 Miguel Torga morre a 17 de Janeiro, às 12h33m, no Instituto de Oncologia, em Coimbra. No dia seguinte, é sepultado em campa rasa no cemitério de S. Martinho de Anta.

Coimbra, 14 de Setembro de 1992

- […] Tive palavras para escrever muitos livros, mas não me ocorre nenhuma que valha a pena em momentos cruciais como este. Tolda-se-me a voz, e só no silêncio fechado do coração consigo pagar a quem devo. É que a vida não cabe num discurso, por mais sincero e pensado. Misteriosa e imprevisível, confunde alógica de qualquer engenho. (Diário, XVI, 1993) 1 Miguel Torga e Jorge Amado, em 1993. 2 Miguel Torga na cerimónia da atribuição do Prémio Vida Literária.


OBRAS DE MIGUEL TORGA POESIA Ansiedade, 1928 Rampa, 1930 Tributo, 1931 Abismo, 1932 O Outro Livro de Job, 1936 Lamentação, 1943 Libertação, 1944 Odes, 1946 Nihil Sibi, 1948 Cântico do Homem, 1950 Alguns Poemas Ibéricos, 1952 Penas do Purgatório, 1954 Orfeu rebelde, 1958 Câmara ardente, 1962 Poemas ibéricos, 1965 Antologia Poética, 1981 PROSA Pão Ázimo, 1931 A Terceira Voz, 1934 A Criação do Mundo Os Dois Primeiros Dias, 1937 O Terceiro Dia da Criação do Mundo, 1938 O Quarto Dia da Criação do Mundo, 1939 Bichos, 1940 Contos da Montanha, 1941 O Senhor Ventura, 1943 Um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes) – Conferência, 1941 Rua, 1942 O Porto – Conferência, 1944 Pedras Lavradas, 1951 Novos Contos da Montanha, 1944 Vindima – Romance, 1945 Traço de União, 1955 O Quinto Dia da Criação do Mundo, 1974 Fogo Preso, 1976 O Sexto Dia da Criação do Mundo, 1981 Edição portuguesa num só volume, 1991

TEATRO Terra Firme, Mar, 1941 Terra Firme, 1947 O Paraíso, 1949 Sinfonia – Poema dramático, 1947 Mar, 1958 POESIA PROSA Diário (1º volume), 1941 Diário (2º volume), 1943 Diário (3º volume), 1946 Diário (4º volume), 1949 Diário (5º volume), 1951 Diário (6º volume), 1953 Diário (7º volume), 1956 Diário (8º volume), 1959 Diário (9º volume), 1964 Diário (10º volume), 1968 Diário (11º volume), 1973 Diário (12º volume), 1977 Diário (13º volume), 1983 Diário (14º volume), 1987 Diário (15º volume), 1990 Diário (16º volume), 1993






foto 2 retrato

Parece que foi um parto fácil, e que ninguém previu que eu saísse poeta. Mas saí. E começaram então as dificuldades. Tentado pelas promessas da imaginação, muito embora a timidez objectasse, e empurrado pelas circunstâncias, a que durante muito tempo chamei destino, saltei o risco da freguesia, larguei vela ao desconhecido, e, quando fui dar conta, estava enredado num matagal de hábitos e contradições de onde nunca mais consegui sair. Diário, XI

SER POETA: UM DESTINO Um poeta não tem biografia. Tem destino. O meu foi talhado no dia longínquo, dum tempo que momentaneamente me pareceu abolido, em que um velho mestre convenceu um calejado pai de que uma pena letrada pesava menos do que a rabiça do arado. Não era verdade. Mas até eu acreditei. E paguei-o caro, como demonstrava aquele estendal de provas que para os demais significava uma glorificação, e para mim era apenas um sudário esfarrapado. Diário, XV


MONOLÍTICO, MAS COMPOSTO DE VASAS DIVERSAS O nascimento faz muito. As graníticas fragas de S. Martinho de Anta certamente que estão sempre presentes em cada acto que pratico. Houve, contudo, outras forças que colaboraram decisivamente na modelação do meu carácter: as forças desgarradas da própria vida, que nunca me deram tréguas. Sou realmente monolítico, mas composto de vasas diversas, de escórias várias, carreadas pelas circunstâncias e por elas conglomeradas. Vasas friáveis separadamente, e que, juntas, acabaram por endurecer à prova de picareta. Diário, XII

NÓ DE CONTRADIÇÕES Morro sem saber nada de mim. Nó cego de contradições, nunca, com nenhum raciocínio, consegui desatá-lo. Há na minha vida uma tal dose de absurdo e uma lógica tão inexorável, que pareço, simultaneamente, uma desordem e uma ordem existenciais. Tudo se passa como se cada acto que pratico fosse ao mesmo tempo imprevisto e programado. […] E chego ao fim perplexo diante do meu próprio enigma. Despeço-me do mundo a contemplar atónito o triste espectáculo de um pobre Adão paradoxal, expulso da inocência sem culpa e sem explicação. Diário, XIV

O que há, pois, de absolutamente invulgar, porventura único, no caso de Miguel Torga, é a circunstância de ele ser, cumulativamente, quer como poeta quer como prosador, um individuo inconfundível, um telúrico padrão e um cívico expoente da própria Pátria, um artístico paradigma da língua em que se exprime, um predestinado legatário de valores culturais em permanente abalo sísmico, um atento receptor e um sensível transmissor dos inúmeros problemas – quantos deles talvez insolúveis – do Homem de todos os quadrantes, ora considerado na moldura dos condicionalismos que o cerceiam, ora ainda mais frequentemente entendido sub specie aeternitais. David Mourão-Ferreira


Sim, sou um nó de contradições. Mas que seria de mim se o desatasse? Se, em vez de uma unidade na diversidade, fosse uma diversidade sem unidade? Diário, XIV

REFLEXÃO, INDAGAÇÃO A minha luta é para encontrar o centro, o núcleo de toda uma infinidade de justificações, que superficialmente parecem satisfazer-me e são, afinal, folhas caducas do meu tronco. Determinar, numa palavra, que causa última me conduz, que força polariza os meus actos. Mas estou longe dessa descoberta. Eliminei o divino, porque era divino e eu sou humano; superei o pecado, porque viver sem pecado era um absurdo moral; e consegui perceber que a vida não é trágica por estar balizada pelo nascimento e pela morte, que são condições de existência e não condenações dela. Contudo, nada resolvi. Continua a escapar-me das mãos a sombra de um fantasma paradoxal. Uma sombra que é uma pura alucinação dos sentidos, que sabem que apenas o real lhes merece crédito, e, sobretudo, da razão, que sabe que a única consciência do mundo é ela própria, princípio e fim de si mesma. Diário, IV


MÁSCARA Não desisto de ser criança. E é o que me vale. Enquanto o sou, esqueço todas as máscaras adultas que me vi forçado a usar pela vida fora. E foram muitas e trágicas. Diário, XV

Torga podia dizer, com razão, que escrevia como quem lavrava a terra. A desconfiança instalada no coração da escrita não lhe seria desconhecida, mas não é ela que subdetermina a sua criação. Para ele, a literatura é a existência sublimada, não envenenada. Da sua apologia da natureza e do natural. Miguel Torga fez uma religião, sem ser um naturalista. Foi a sua maneira de se assumir como individuo, criador e autónomo, diante do criador e, em geral, diante de toda a expressão de transcendência, fosse ela a da sociedade, da História ou da política. Assumiu-se assim, voluntaristicamente, como rebelde ou contestatário, à maneira de Job diante de Deus, e em nome da condição humana, mas não o fez diante da literatura. Na literatura, e através da sua literatura, apostou na autodivinização do Homem. O Homem – em todo o caso, o artista – é o seu próprio criador. Eduardo Lourenço

Quando conseguirei eu tirar de uma vez a minha máscara? Ser eu plenamente? […] Com todas as minhas limitações e todas as dificuldades que encontrei, consegui aguentar-me à tona de enxurrada sem descrer da humanidade e da beleza. O meu coração, e a minha razão nunca se deixaram perverter, nem na cadeia, nem fora dela. Permaneci na minha pureza natural, cidadão livre do mundo e português. Mas não há dúvida que, para a maioria me cerquei de arame farpado. É inegável que fechei muitas portas a quem talvez as devesse abrir, mesmo se quando tentei fazê-lo me entrou por elas um vendaval. Mas só devagar fui aprendendo que a alma não se defende com paliçadas à volta. A alma defende-se abrindo-se de par em par à vista de toda a gente. Mal compreendi isto, comecei a lutar comigo. Infelizmente, tinha mossas de palmo, estava em ferida. O corpo sangrava por todos os lados. Contudo, fiz por compreender, expliquei-me até onde pude, e cá vou continuando na minha redenção. Chegarei ao fim? Conseguirei dar aos outros um retrato fiel e sincero da minha verdadeira pessoa humana? Diário, IV


REPRESENTAÇÃO Não é fácil a minha actuação na farsa quotidiana da vida. Calhou-me em sorte ser o mau da peça, o inconformado, o frontal, o desmancha-prazeres. E lá vou desempenhando o papel com a proficiência possível, a saber que me espera sempre uma pateada no fim de cada cena. Diário, XIV

MUNDO EXTERIOR VS. INTERIORIDADE O mundo lá continua para além dos horizontes, irrespirável, feio e tirânico. É nele que vivo habitual e publicamente, a fingir que sou como pareço e a constar assim nos arquivos. Mas voltei-lhe costas novamente e, íntimo e verdadeiro, acrescento mais algumas páginas caladas à minha biografia secreta. Não por ser inconfessável, mas por ser incomunicável. Diário, XIV


[…] Afinal de contas, que tenho eu feito desde que escrevo senão mostrar-me? Candidamente na juventude, pudicamente na maturidade, e desprendidamente na velhice. Tudo como mandam as leis da natureza. Confiado a princípio, suspicaz depois, e, por fim, já só coberto com o cendal transparente da indiferença. Diário, XV

Coimbra, 12 de Março de 1952

RETRATO O meu perfil é duro como o perfil do mundo. Quem adivinha nele a graça da poesia? Pedra talhada a pico e sofrimento, É um muro hostil à volta do pomar. Lá dentro há frutos, há frescura, há quanto Faz um poema doce e desejado: Mas quem passa na rua Nem sequer sonha que do outro lado A paisagem da vida continua. Diário, VI


CAÇADOR O homem instintivo é mais forte em mim do que o homem mental. Penso com os sentidos, escrevo com o sexo, disparo com os nervos. E é na caça que a minha natureza profunda se encontra: - os olhos com a luz, o ouvido com os sons, o tacto com as coisas, o olfacto com os aromas, o sangue com o sangue.

TELURISMO; SERRAS O pouco que sou devo-o às fragas. Foi a pisá-las que aprendi a conhecer a dureza do mundo e a admirar o ímpeto que se não resigna à lisa sonolência duma paz interior espalmada. A inquietação da terra vê-se nos montes. Sem eles, quem daria aos homens o permanente exemplo de sublevação natural que há no espírito da própria vida?

Diário, XII

Diário, VII


Rodo trezentos e sessenta graus sobre o eixo. E fica-me nos olhos a imagem do que sou: a encarnação humana destas serras inamovíveis, secas e desesperadas, que esperam pelas tempestades de inverno e pelo sol da Primavera com o mesmo inquebrável estoicismo. Diário, IX

MÉDICO E POETA Médico e poeta, em nenhuma das peles me sinto justificado. No rosto de cada doente estou sempre a ver a sombra da morte, de que, no melhor dos casos, adio o triunfo por algum tempo; quanto aos poemas, nem é bom falar do que penso deles. E no fim de cada consulta, ou depois de cada livro, apetece-me correr atrás do cliente ou do leitor e contar-lhes tudo, confessar-lhes que a receita é inútil e os versos inúteis também, porque o destino é maior do que a pobre ciência, e a poesia mais alta do que a minha rasteira inspiração. Diário, VII

Pego na pena com o escrúpulo com que pego no bisturi. O canhestro manuseamento deste pode matar um doente; a má utilização daquela pode perverter o gosto e torcer a consciência do leitor. Diário, VIII


Um poeta operador! Numa pessoa só, um homem que mutila e um homem que cria. Mas, afinal, a mesma graça que colabora com a vida e, se preciso for, a emenda. Diário, V

Na minha já longa vida de médico, só tive uma preocupação: entender o sofrimento alheio mesmo quando ele objectivamente me parecia injustificado. […] Fiz da esperança a grande arma do arsenal terapêutico. Esperança que eu próprio não tinha muitas vezes, mas que, mesmo fingida, fazia milagres. Não há maior crédulo do que um desesperado. Mentir-lhe, iludi-lo, é quase uma obrigação moral. Que outra solidariedade mais benéfica se lhe pode dar? Diário, XV

BALANÇO Corri também, desde a meninice, as sete partidas. Presencial, alanceado, cenas cruentas de guerra, contemplei atónito e envergonhado, os destroços de civilizações criminosamente destruídas, ouvi vociferações de energúmenos a anunciar multidões fanatizadas o aniquilamento de colectividades inteiras, comunguei com naturais doutras raças e culturas no mesmo sonho de um futuro próximo de harmonia humana. E dei, com o engenho que pude e algum risco, testemunho empenhado mas descomprometido dessas andanças. Diário, XVI

Nasci para apóstolo, sem nenhuma verdade para apostolar, a não ser a da minha aflição. E já um dia escrevi que não tenho paz, não dou paz, nem quero paz. Vivo desassossegado a desassossegar quem se aproxima de mim. Diário, XVI

Coimbra, 11 de Novembro de 1968 – Muito gostava eu de escrever um posfácio à vida! Diário, IX






É uma figura paradigmática do português neste século. Para mim, é um monte que olha à volta e domina o panorama. Pedro Tamen

Pela poesia dele sente-se um respeito que não tem nada de social, é o respeito que se sente diante de um rio ou de uma montanha. Alberto Pimenta

Cada qual procura-se onde se sente perdido. Eu perdi-me em Portugal, e procuro-me nele. Diário, XIII

PORTUGAL, OS PORTUGUESES O difícil para cada português não é sê-lo; é compreender-se. Nunca soubemos olhar-nos a frio no espelho da vida. A paixão tolda-nos a vista. Daí a espécie de obscura inocência com que actuamos na História. A poder e a valer, nem sempre temos consciência de que podemos e valemos. Hipertrofiamos provincianamente as capacidades alheias e minimizamos maceradamente as nossas, sem nos lembrarmos sequer de que uma criatura só não presta quando deixou de ser inquieta. E nós somos a própria inquietação encarnada. Foi ela que nos fez transpor todos os limites espaciais e conhecer todas as longitudes humanas. Diário, XV

Pampilhosa da Serra, 25 de Novembro de 1979 – Ao cabo de muitos e afanosos anos a percorrer Portugal – as suas mais recônditas aldeias visitadas, as suas mais secretas intimidades surpreendidas -, chego a esta triste conclusão: de tudo o que fomos, restam-nos apenas a paisagem e a língua. […] O chão e o verbo. Só neles persiste a pátria primordial como latência e vestígio. Diário, XIII

Torga é um poeta em quem um país se diz. Um poeta da pura fidelidade a um povo e a uma terra […] Um poeta que através de uma apaixonada consciência do país natal nos ensina a procurar a verdade universal da nossa habitação humana terrestre. Sophia de Mello Breyner Andresen

S. MARTINHO DE ANTA […] nenhuma hora da minha vida tem significação sem esta referência. S. Martinho é um marco de orientação e segurança que vejo em todas as horas de perplexidade e angústia e de todos os quadrantes do mundo. Diário, XVI

TRÁS-OS-MONTES De todos os mitos de que tenho notícia, é o de Anteu que mais admiro e mais vezes ponho à prova, sem me esquecer, evidentemente, de reduzir o tamanho do gigante à escala humana, e o corpo divino da Terra, olímpica ao chão natural de Trás-os-Montes. E não há dúvida de que os resultados obtidos confirmam a sua veracidade. Sempre que, prestes a sucumbir ao morbo do desalento, toco uma destas fragas, todas as energias perdidas começam de novo a correr-me nas veias. É como se recebesse instantaneamente uma transfusão de selva. Diário, XI


MAR Todos os caminhos transversais de Portugal vêm ter ao mar. Verificá-lo, é avivar na consciência a nossa razão de ser. Que nascemos para embarcar. Ou de imediato, ou na lembrança ou na imaginação. Diário, XVI

VIAGENS “Pareço um doido a correr esta pátria. Do Gerês a Monchique e do Caldeirão a Bornes, não tenho sossego. E sem saber ao certo para que! Não sou geógrafo, tenho um patriotismo suspeito, sou fraco apreciador de petiscos, de modo que nem eu chego a saber por que é tanta peregrinação. Mas continuo, e só não amiúdo os passos por não ter saúde, nem tempo, nem meios. Talvez sem eu ter consciência disso, cultivo-me assim pelos olhos e pelos pés, no alfabetismo íntimo das cousas, expressivas na sua luz, no seu clima e no seu paralelo particular. A terra não é igual em lado nenhum. Aqui encolhe-se, ali espalma-se, acolá afunda-se. Como acontece num grande livro, que tem páginas para lágrimas e páginas para sorrisos, assim a natureza conta uma história alegre em Viana e uma história trágica no cabo de S. Vicente.” Diário, III

DOURO Estas margens do Doiro, na sua específica dureza ossuda, singularidade fisionómica e peculiar significação, perturbam-me sempre o equilíbrio que por toda a parte sinto no convívio com o ambiente físico que me rodeia. Por mais que as objective, não consigo fugir à sensação de estar submetido ao império de não sei que força impressiva, que irradiação encantatória, que espécie de personalidade dominadora. Abruptas e austeras, enrugadas e geios, coroadas de neve e espelhadas num rio que lhes clarifica a pele terrosa, em vez de lados dum sulco gigantesco, lembram-me faces dum ser ao mesmo tempo mítico e real, fabuloso e tangível, vivo e petrificado, que se exprime em sofrimento silencioso, em fecundidade sumarenta e em beleza descarnada. Diário, VII

Sou, na verdade, um geófago insaciável, necessitado diariamente de alguns quilómetros de nutrição. Devoro planícies como se engolisse bolachas de águas e sal, e atiro-me às serranias como à broa da infância. É fisiológico, isto. Comer terra é uma prática velha do homem. Antes que ela o mastigue, vai-a mastigando ele. O mal, no meu caso particular, é que exagero. Empanturro-me de horizontes e de montanhas, e quase que me sinto depois uma província suplementar de Portugal. Uma província ainda mais pobre do que as outras, que apenas produz uns magros e tristes versos… Diário, VIII

De tanto amar esta pátria já nem sei às vezes distinguir nela o grande do pequeno, o belo do feio, as fragas do húmus. Aconchego os olhos num largo panorama de carracos como se os deitasse num leito de feno. E graças a Deus que assim acontece, que do Minho ao Algarve toda a paisagem me sabe bem. Sou dos poucos portugueses que se podem gabar de, sempre que como tal se identificam, o serem de Portugal inteiro. Diário, XVI


NOMADISMO/FIXAÇÃO […] o meu corpo não se adapta a nenhum colchão, nem o meu espírito a nenhum sono. Vivo em vigília deambulatória. Diário, XI

No meu sangue há uma ancestralidade nómada pelo menos tão vigorosa como a atracção dos pólos nativo e adoptivo a que regresso sempre. Diário, XII

AUTOGNOSE Portugal. Foi a procurar entendê-lo que compreendi alguma coisa de mim. As pátrias são espelhos gigantescos onde se reflecte a pequenez dos filhos. À nossa medida, herdamos-lhes a dimensão. E a singularidade. Todos os Alcáceres Quibir e todas as Aljubarrotas estão em mim. Descobri mundos e ando repartido por eles. Tenho também oitocentos anos de idade e pareço uma criança. Diário, XV

IBERISMO Sou um português hispânico. Nasci numa aldeia transmontana, mas respiro todo o ar peninsular. Cioso da minha pátria cívica, da sua independência, da sua História, da sua singularidade cultural, gosto, contudo, de me sentir galego, castelhano, andaluz, catalão, asturiano ou vasconço nas horas complementares do instinto e da mente. E, como à dura condição de existir junto a de escrever, muito papel tenho lavrado a contar as emoções desse convívio físico e espiritual sem fronteiras. Prólogo à tradução castelhana de A Criação do Mundo, 1985


PORTUGAL; TEMPO HISTÓRICO Lisboa, Cadeia do Ajube, 1 de Janeiro de 1940

Ariane Ariane é um navio. Tem mastros, velas e bandeira à proa, E chegou num dia branco, frio, A este rio Tejo de Lisboa.

Dies Irae Apetece cantar, mas ninguém canta. Apetece chorar, mas ninguém chora. Um fantasma levanta A mão do medo sobre a nossa hora.

Carregado de Sonho, fundeou Dentro da claridade destas grades… Cisne de todos, que se foi, voltou Só para os olhos de quem tem saudades…

Apetece gritar, mas ninguém grita. Apetece fugir, mas ninguém foge. Um fantasma limita Todo o futuro a este dia de hoje.

Foram duas fragatas ver quem era Um tal milagre assim: era um navio Que se balança ali à minha espera Entre as gaivotas que se dão no rio.

Apetece morrer, mas ninguém morre. Apetece matar, mas ninguém mata. Um fantasma percorre Os motins onde a alma se arrebata.

Mas eu é que não pude ainda por meus passos Sair desta prisão em corpo inteiro, E levantar âncora, e cair nos braços De Ariane, o veleiro.

Oh! maldição do tempo em que vivemos, Sepultura de grades cinzeladas, Que deixam ver a vida que não temos E as angústias paradas!

Diário, I, 1941

Cântico do Homem, 1950


Chaves, 11 de Setembro de 1975

Lamento Pátria sem rumo, minha voz parada Diante do futuro! Em que rosa-dos-ventos há um caminho Português? Um brumoso caminho De inédita aventura, Que o poeta, adivinho, Veja com nitidez Da gávea da loucura? Ah, Camões, que não sou, afortunado! Também desiludido, mas ainda lembrado da epopeia... Ah, meu povo traído, Mansa colmeia A que ninguém colhe o mel!... Ah, meu pobre corcel Impaciente, Alado E condenado A choutar nesta praia do Ocidente... Diário, XII, 1977


CRIAÇÃO; FALTA DE LIBERDADE Coimbra, 5 de Junho de 1949 – […] Dir-se-ia que nunca se sentiu entre nós, tão clamorosamente patriotas, que é no rio da sua literatura que uma pátria tem o espelho verdadeiro da sua grandeza. Doutro modo, como se compreenderia tanto fanatismo, tanta censura e tanta perseguição? […] Diário, V, 1951

Coimbra, 17 de Maio de 1957 – O hipercriticismo deste tempo e talvez o sintoma mais visível da opressão que nos esmaga. Ao entusiasmo criador das épocas de liberdade corresponde, nos períodos de tirania, um acerado ódio judicativo. Cada consciência falhada volta-se, nessas ocasiões, contra todas as formas de realização, á semelhança daqueles arbustos que, não podendo ser árvores, se enrodilham no tronco das que o são, e as devoram. A PIDE E A CENSURA Coimbra, 27 de Abril de 1961 – Há trinta e cinco anos (Desde que praticamente comecei a ser gente) que vivo vigiado, como, de resto, todos aqui. E há trinta e cinco anos que olho com o mesmo consternado espanto os sujeitos que me vigiam. Nos tempos da Inquisição, ainda se poderia aceitar - com dificuldade, mas enfim … - que o fanatismo da fé levasse certos homens a comportamentos desumanos, embora Deus lhes não encomendasse o sermão. Mas agora nenhuma cega força interior motiva semelhante deformação. Um polícia secreto de hoje procede à margem de qualquer impulso sectário. Actua simplesmente por ofício. E é isso que me penaliza e assombra: que a intolerância possa constituir um modo de vida. Diário, IX, 1964 REVOLUÇÃO Coimbra, 1 de Julho de 1975 – Estamos a viver em pleno absurdo, a escrever no livro da História gatafunhos que nenhuma inteligência poderá decifrar no futuro. Todas as conjecturas têm as mesmas probabilidades de acerto ou desacerto. Jogamos numa roleta de loucos, que tanto anda como desanda. O que apelidamos de revolução é um despautério social a que teimamos em dar esse nome sagrado. Quem faz revoluções não exibe revoluções. Diário, XII, 1977


DEMOCRACIA Albufeira, 1 de Agosto de 1976 – Metade de Portugal atravessando debaixo de um calor escaldante. Beira Litoral, Estremadura, Ribatejo, Alentejo e Algarve. Um microcosmo a arder em febre natural e social, esta última patenteada nos cartazes profusos, na linguagem desbragada, na freima de comícios, no lixo acumulado nas terras por amanhar. Não há dúvida: o país não é o mesmo de há três anos. A revolução que o sacudiu, para se dar altura, teve de conferir altura ao que destruiu. A maneira que encontrou de conseguir projectar a sua imagem, foi acelerar o processo subversivo. «Todo o começo é involuntário» - disse Fernando Pessoa. Entre nós, pelo menos, assim sucedeu. O que principiou por ser uma equívoca reivindicação de privilégios, acabou num desconexo movimento libertário. E os protagonistas do feito, incapazes de assumir a mediocridade real de pessoas, assumiram a grandeza real de personagens. E foi de chorar. O mais curioso é que sendo insinceros, nem por isso são mentirosos. São simplesmente falhados, casa um deles a actuar ao arrepio da sua condição, mistificando e mistificando-se. […] Diário, XII, 1977

RADIOGRAFIA DA PÁTRIA Coimbra, 17 de Dezembro de 1984 – Pátria de sete fôlegos, esta! E é o que lhe vale. No passado, foi o que se sabe; no presente, é o que se vê. Roída de males, desengana pelos doutores, as Cassandras de serviço a agoirar na praça pública e, quando a morte parece o desfecho inevitável, ei-la sempre a rabiar, a fazer pela vida. Dir-se-ia que o seu robusto instinto de conservação nunca se resigna às suas vertentes de perdição e lhe impõe uma continuidade histórica para além de todas as renúncias circunstanciais. Continuidade que o povo e os poetas espelham cristalinamente, ele, lírico, a labutar, e eles, líricos, a cantas, e ambos, nessa perseverança, onde se lê a outra luz a fábula da cigarra e da formiga, a serem os cronistas indefectíveis da sua perenidade. (Diário, XIV, 1967)

LOCALISMO/UNIVERSALISMO Só depois de bem avaliar as suas características particulares e de as caldear a seguir no grande lume universal, pode um qualquer ser ao mesmo tempo cidadão de Trãs-os-Montes e cidadão do mundo. Diário, II

O universal é o local sem paredes. Traço de União


RETRATO Coimbra, 16 de Dezembro de 1968

PORTUGAL Avivo no teu rosto o rosto que me deste, E torno mais real o rosto que te dou. Mostro aos olhos que não te desfigura Quem te desfigurou. Criatura da tua criatura, Serás sempre o que sou. E eu sou a liberdade dum perfil Desenhado no mar. Ondulo e permaneço. Cavo, remo, imagino, E descubro na bruma o meu destino Que de antemão conheço: Teimoso aventureiro da ilusão, Surdo às razões do tempo e da fortuna, Achar sem nunca achar o que procuro, Exilado Na gávea do futuro, Mais alta ainda do que no passado. Diário, X, 1968


O seu estilo, que por vezes quer ter a aparência de uma escultura feita à faca em madeira rija, para imitar a rudeza do granito, é maravilhosamente dúctil, leve, alado, capaz de delicadeza e de grandeza, sem chamar a atenção para si mesmo, feito de propriedade lexical, e sobriedade e certeza rítmica. Por isso, é nas suas páginas que se pode aprender um português que não é pobre nem barroco, nem quotidiano nem literário, e por este lado elas são um modelo, como aquelas em o Pe. Manuel Bernardes conta os seus “exemplos”. António José Saraiva

[…] há em muitas das suas páginas, sobretudo nos Diários, um acentuado amor pelas coisas simples e simplificadas; uma luz doirada, mediterrânica, derrubando sombras; uma capacidade de criar o milagre poético, com as palavras mais comuns, a partir do mais elementar. Poesia onde quase só participa o coração generoso e enamorado duma quotidiana beleza gratuita. A cólera faz-se ternura, a ternura faz-se confidência, a confidência faz-se lirismo. Há agora só lugar para uma fonte que nasce, já fresca e limpa, nos Cancioneiros, e se perpetua. Eugénio de Andrade

Torga, sendo moderno, era muito antigo. Num país de não poucos rouxinóis, ele trazia á língua portuguesa a dureza da pedra e uma escrita de palavras substantivas, necessárias, únicas. Manuel Alegre

É difícil definir o que há de tão especial na sua dicção. Uma dicção densa de concentralidade, uma escrita que não se separa da fala, uma construção que modula a entoação de cada palavra. Uma dicção que mostra beleza da língua que falamos. Sophia de Mello Breyner


A PALAVRA, A TERRA Nasci tão chegado às origens, que até na criação literária sou como as leiras da minha meninice. No fim de cada colheita pareço estéril, maninho, em restolho. Bem teimo. De nada vale. Não me sai um verso. Tenho de deixar vir o tempo das sementeiras. Então, estrumo, lavro, cavo, grado e semeio. E colho depois os frutos do suor. Não os que sonhei, mas os que a terra sáfara consente. (Diário, XIII)

SOBRE O PROCESSO DA CRIAÇÃO Não posso dormir. Estou esgotado, de sucessivas violências a que tenho submetido o corpo, mas não há maneira de fechar os olhos e repousar. Procuro todas as posições, viro-me, faço por encontrar a neutralidade de um morto. Nada. As células doridas recusam-se a qualquer anestesia, e um tumulto de emoções vivas exige expressão. São poemas, contos, cenas, que se atropelam dentro de mim, numa confusão de Babel. Como ondas de um mar tormentoso, chegam à praia da razão serena fragmentos de estrofes, frases, episódios. Tudo incoerente, incompleto, absurdo. Vagas alterosas que se desfazem instantaneamente, em rasteira espuma. Contudo, alguma coisa há de novo e de sério. Quando a natureza desobedece às suas leis, é que tem milagre à vista. Poema, conto, romance? Não sei. Quem no mundo menos sabe dos mistérios da criação é o próprio artista. (Diário, III)

A REVISÃO DOS TEXTOS Pavlov tinha carradas de razão. Recebo o correio, leio num dos embrulhos “Provas tipográficas”, e aí começo eu a babar tinta. E o pior é que o reflexo condicionado só para quando devolvo a solfa ininteligível… (Diário, X)

A REESCRITA Horas a fio a escrever. Ou melhor: a remendar textos velhos. Sou assim: tenho de deixar a prosa e os versos em repouso durante algum tempo para que assentem e possa então ver-lhes claramente os aleijões. Hoje dei conta de muitos e corrigi os que pude. Os outros ficaram à espera. Lá chegará a sua vez. Em matéria literária, o meu desespero nunca desespera. (Diário, XV)


LUTA COM A ESCRITA Rascunho, rascunho. De dia e de noite, com dores e sem dores, a ouvir o silêncio ou gemidos, aí estou eu de caneta em punho a gatafunhar. (Diário, XVI)

Exausto de lutar com um poema. Há não sei quantos dias a fugir às suas negaças, tolhido por não sei que covardia, lá consegui hoje enfrentá-lo cara a cara. E foi terrível. Quanto mais eu porfiava, mais ele resistia a deixar-se prender na malha das palavras. Agora, encontrados finalmente os dois últimos versos, quase que o releio com ressentimento. Ainda me parece uma provocação. (Diário, XIII) Coimbra, 4 de Outubro de 1945

Eternidade A vida passa lá fora, Ou na pressa de uma roda, Ou na altura de uma asa, Ou na paz de uma cantiga; E vem guardar-se num verso Que eu talvez amanhã diga. (Diário, III) Vila Nova, 4 de Abril de 1936

Imagem Este é o poema duma macieira. Quem quiser lê-lo, Quem quiser vê-lo, Venha olhá-lo daqui a tarde inteira. Floriu assim pela primeira vez. Deu-lhe um sol de noivado, E toda a virgindade se desfez Neste lirismo fecundado. São dois braços abertos de brancura; Mas em redor Não há coisa mais pura Nem promessa maior. (Diário, I)


POÉTICA «A pedra de toque de uma arte é a sua precisão», O conforto intelectual que Ezra Pound me deu há pouco, quando li esta afirmação num dos seus ensaios! Foi como se ele, com a sua autoridade de mestre de poesia, me tivesse passado um atestado de bom comportamento. (Diário, XIII)

Os versos que escrevo […] são eles o gráfico da minha vida. O traçado das horas justificadas e injustificadas que vou passando no mundo. (Diário, XV)

[…] Só quando insubmissos, e por isso dignos do seu nome, os poetas serão capazes de cumprir a sua missão divinatória por conta de todo o sofrimento humano. […] Corvos fugidos da arca onde navegava o medo e a passividade, terão de enfrentar a fúria do dilúvio e descobrir o rochedo onde não cheguem as vagas de nenhuma tirania. (Diário, VI)


Orfeu Rebelde Orfeu rebelde, canto como sou: Canto como um possesso Que na casca do tempo, a canivete, Gravasse a fúria de cada momento; Canto, a ver se o meu canto compromete A eternidade do meu sofrimento. Outros, felizes, sejam os rouxinóis... Eu ergo a voz assim, num desafio: Que o céu e a terra, pedras conjugadas Do moinho cruel que me tritura, Saibam que há gritos como há nortadas, Violências famintas de ternura. Bicho instintivo que adivinha a morte No corpo dum poeta que a recusa, Canto como quem usa Os versos em legítima defesa. Canto, sem perguntar à Musa Se o canto é de terror ou de beleza. (Orfeu Rebelde)

SOBRE A CRIAÇÃO DO MUNDO Repara no título do volume. Significa que se trata de uma obra que conta a génese progressiva numa consciência da imagem da realidade circunstancial. Nenhum de nós sente e reage da mesma maneira. Cada facto, cada fenómeno, cada estímulo tem ressonâncias especificas em casa criatura. E todos chegamos ao último dia com a visão de um mundo criado à nossa medida, original e único. O meu é este. Um espaço de tenacidade, ilusão, lucidez e angústia, agitado por mil tormentas e convulsões, e povoado de seres reais que o tempo foi transformando em fantasmas. (Prólogo à edição castelhana de A Criação do Mundo, 1985)


SOBRE NOVOS CONTOS DA MONTANHA Corre por estes montes um vento desolador de miséria que não deixa florir as urzes nem pastar os rebanhos. O social juntou-se ao natural, e a lei anda de mãos dadas com o suão a acabar de secar os olhos e as fontes. Crestados e encarquilhado, os rostos dos velhos parecem pergaminhos milenários onde uma pena cruel traçou fundas e trágicas legendas. Na cara lisa dos novos pouca mais esperança há. (Prefácio à 2ª edição de Novos Contos da Montanha, 1945)

SOBRE BICHOS Coimbra, 4 de Novembro de 1974

Emissão radiofónica de Vicente, o conto dos Bichos. Meia hora de sofrimento e de perplexidade, a sentir o texto como que erguido contra mim, autónomo, poderoso na sua independência. Aquele corvo que eu quis concebido à imagem e semelhança da minha rebeldia, de tal, modo se ergueu contra o princípio da autoridade que, coerentemente, acabou por dizer não ao próprio autor. (Diário XIII)

SOBRE A VINDIMA Cingido à realidade humana do momento, romanceei um Doiro atribulado, de classes, injustiças, suor e miséria. E esse Doiro, felizmente, está em vias de mudar. Não tanto como o querem fazer acreditar certas más consciências, mas, enfim, em muitos aspectos, é sensivelmente diferente do que descrevi. Desapareceram os patrões tirânicos, as cardenhas degradantes, os salários de fome. As rogas descem da Montanha de camioneta, a alimentação melhorou, o trabalho é menos duro. Também o rio já não tem cachões, afogados em albufeiras de calmaria. (Prefácio tradução inglesa de Vindima, 1988)

A PROPÓSITO DE UMA REPRESENTAÇÃO DE MAR Todas as experiências são necessárias e úteis, até a de assistir à representação de uma peça nossa. Tem-se pelo menos a visão objectiva da impotência quimicamente pura. Nada se pode contra a debilidade dum texto a que estamos amarrados, contra a interpretação que o revela, e contra a opinião dum público que é livre nas suas reacções, sempre imprevisíveis e, na maior parte dos casos, arbitrárias. Torce-se a gente no lugar como uma sardanisca partida ao meio, a cabeça para um lado, lucida de mutilação, mas impossibilitada de reintegrar a outra metade, a obra, que rabeia sozinha no desespero de uma solidão sem comando. (Diário VIII)


SOBRE PORTUGAL Uma bela edição francesa do Portugal. E comovi-me quando a recebi. Com a versão doutras obras não tem acontecido o mesmo. Se não fico indiferente, também não estremeço. Mas Portugal é um livro de peito, é a pátria vista e decifrada pelos olhos do corpo e da alma. E senti não sei que alegria e que pânico misturados diante da prova concreta de que as minhas vivências já não eram só minhas e dos meus. Comunhão física e metafisica, quem, longe do altar, a vai entender assim? Mas que bênção, se o for! (Diário XV)

SOBRE O DIÁRIO Porque sempre considerei os géneros literários camisas-de-força complacentes que cada possesso alarga à sua medida, nunca me senti apertado em nenhum deles. Este diário que o diga. Do prado bucólico a campo de fogo, tem sido tudo.. (Diário IX)

SOBRE A LÍNGUA PORTUGUESA Convencido e possuído dessa verdade estimulante e responsabilizadora, de que muito cedo tive a percepção, nunca escrevi um texto que não sentisse ao mesmo tempo dentro e fora do torrão nativo. É que sabia, por experiência de antigo emigrante, que manejava uma língua dúctil, maleável, de virtualidades infindas, que em todas as latitudes e longitudes se dá bem […]. Moldável, proteica, subtil, nenhuma clausura gramatical a detém, nenhum purismo lhe toque a aptidão planetária. E é esse polimorfismo, que reflete o do próprio povo que a segregou, que faz dela um dos grandes instrumentos de comunicação do mundo. (Diário XV)



livraria/loja



sala de estudos/ biblioteca



cafetaria/bar



auditรณrio



sala de exposições temporárias




























































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