Mademoiselle Zaira

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PRÓLOGO

Em sua efêmera juventude, nossa involuntária união transforma a vida dela em um mar de angústia e revolta. Por isso, a aprisionaram nas muralhas da fé, distante de sua terra natal e sem que entendesse a nódoa que acabou com sua dignidade, deixando o desespero tomar conta dela a ponto de aumentar a dimensão de seu problema: eu, que estou nessa redoma líquida tal como uma sentinela do conflito, sobrevivendo às suas fracassadas tentativas de abortar nossa insólita jornada. Sinto sua raiva homérica, porém não entendo essa voz plangente que assombra minha alma e não aceito entregá-la sem qualquer resistência, à mercê do destino, pois ainda há um sopro de esperança no fino fio de vida que nos une. Tento me aninhar nesse ambiente angustiante, onde às vezes me confundo em pensamentos, quando frio e calor se misturam em uma estranha sensação e todo movimento soa aterrorizante, ligando o sinal de alerta que por duas vezes nos fez despertar de um grande pesadelo. No primeiro deles, quando era um embrião e ela nem me sentia; tudo aconteceu tão rápido que só reagi minutos depois. Na rotina de nosso alimento, absorvi o fel de sua ira em uma transfusão barulhenta de vários movimentos que, naquele momento, imaginei monstros navegando em um mar amargo de ideias alucinantes, seres que criavam asas, abriam-se presas e fumegavam nos olhos um fogo que incendiava o âmago da existência. Então me revirei em protestos e tentei dar chutes, gritava sem parar e, em um ímpeto de susto, arregalei os olhos marejados de medo. Por sorte, um anjo da guarda surgiu e os movimentos bruscos cessaram; acalmei-me ao ouvir uma voz abafada confortando mamãe. Nesse instante, deixei-me levar pela sublime harmonia. Não bastasse essa desesperada tentativa de ela dar fim à própria vida, dias depois, era eu quem testava os limites da sobrevivência. Tomado por um sentimento estranho, quis brincar com minha insignificante existência de apenas quatro meses imaginando que pudesse acabar com o sofrimento em nosso elo vital. Foi quando imaginei aquele cordão que nos unia, dançando à minha frente, feito uma serpente venenosa e, sem um pingo de medo, criei coragem para enfrentá-lo. Apertei-o com minhas minúsculas mãos, na ânsia de cessar a passagem de oxigênio e mergulhar em um sono eterno, até que me dei conta do livre-arbítrio e escolhi seguir em frente, mesmo sem saber o que o destino reservaria para nós. Nossa vida foi demasiadamente conturbada, principalmente porque mamãe foi internada em um convento da capital, a mando de sua abastada família da cidade de Sollares, largando para trás o belo litoral de sua adolescência perdida. Apesar de todo o dilema que se formava, sobrevivi absorvendo qualquer tipo de sentimento em seu imaculado ventre, o qual um dia fora manchado pela força bruta e pela covardia humana.


Foi assim durante oito meses e, além das tentativas forçadas de romper nosso cordão umbilical, depois, quando nasci, nossa vida ficou ainda mais tortuosa, serpenteando pela inércia do destino em caminhos paralelos por longos dezoito anos.


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