Escrita Criativa nº21

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Mês Março nº 21

Uma história sobre escolhas de vida e sobre as atitudes a ter Uma história sobre as súbitas mudanças de vida

O som de uma reflexão de vida

Um poema que reflete sobre as mudanças da vida


Índice e destaques

Índice Editorial………………………….……...3 As Nossas Sugestões………….…..5 Pequenas Histórias Rose……….…..……………………...9  As Chaves..……….…..…….......36  O Revirar de um sorriso……..38 Lirismos Pensas que me podes negar o amor?............................………….46  Entrelinhas….…………………......48 Metamorfose…………………….…49

Críticas e Maldizeres

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Destaques Histórias Narrativas  O Revirar de um sorriso - mais que uma história que reflete sobre nas alturas de crise e as suas súbitas mudanças.

Histórias Poéticas  Entrelinhas– Um poema sobre os implícitos e as perspectivas de cada pessoa.  Pensas que me podes negar o amor? - Poema profundo sobre as emoções numa relação

Críticas e Maldizeres  Vida – Uma reflexão sobre a vida de hoje em dia

 Vida……………………….………….50

Regras para Trabalhos Enviados………………………………….52

Ficha Técnica: Mês de Março 2012 n.º21 via internet – ebook Editora e Proprietária: Marta Sousa Revisora: Patrícia Lopes Redacção: Marta Sousa, Carmo Gouveia, Adoa Coelho, Ana Caio, Manuel Feliciano, Ana Maria Teixeira Grafismo: Paula Salgado (logótipo), Marta Sousa Interdita a reprodução para fins lucrativos ou comerciais dos textos e interdita a outros que não o autor e a reprodução sem a indicação do Escrita respectivo nome do autor.Criativa


Editorial

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No mês de Março começa a Primavera, e por este motivo, resolvemos colocar uma capa que traz um pouco de primavera a todos os nossos leitores, esperemos que gostem! Uma mudança de estação é mais uma mudança das muitas que acontecem ao longo vidas de todos nós e isso reflecte-se na Revista Escrita Criativa deste mês . Contamos com uma Revista recheada de participações e mais uma vez apresentamos novas sugestões de livro muito interessantes com a parceria da Editora Universus, que sem dúvida, vale a pena ver. A rubrica Pequenas Histórias começa com Rose, uma história sobre escolhas em busca da felicidade e a importância de enfrentar os problemas, segue-se As Chaves uma história sobre os sons que nos fazem reflectir sobre a nossa vida, depois temos um história Revirar de um Sorriso sobre o tema de mudanças súbitas na vida comum e a forma de as ultrapassar.

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4 Na rubrica dos Lirismos temos o poema muito profundo e interessante de Manuel Feliciano, Entrelinhas de Ana Maria Teixeira que nos faz reflectir sobre os sub-entendidos e o silêncio como objectos de interrogação e de várias interpretações, e por fim, no poema Metamorfose que reflecte sobre as mudanças constantes na vida. Nas Críticas e Maldizeres temos uma reflexão sobre a vida de hoje em dia. Agradecemos o apoio e divulgação dos nossos participantes e leitores e aguardamos as vossas opiniões no Facebook e no nosso blog. Podem também enviar as vossas opiniões e participações para asnossahistorias@hotmail.com .

Marta Sousa

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As Nossas Sugestões 72 Horas para Morrer De Ricardo Ragazzo Sinopse: Pior do que conhecer um Serial Killer, é um Serial Killer conhecer você! “O Carro pertence à sua namorada.” Com essas palavras, Júlio Fontana, delegado da pacata cidade de Novo Salto, tem a vida transformada em um inferno. Pessoas próximas começam a ser brutalmente assassinadas, como parte de uma fria e sórdida vingança contra ele. Agora, Júlio terá que descobrir a identidade do responsável por esses crimes bárbaros, antes que sua única filha se torne o próximo nome riscado da lista. 72 Horas para Morrer é uma corrida frenética contra o tempo, que prenderá o leitor do início ao fim. Escrita Criativa

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Autor: RICARDO RAGAZZO nasceu e cresceu na maior metrópole da América Latina. em 1995, aos 20anos de idade, mudou-se para São Francisco, Califórnia, onde estudou inglês e trabalhou por quase um ano. Lá teve contato pela primeira vez com o jogo de RPG (Role-Playing Games). Ao voltar ao Brasil, aprofundou-se no assunto criando histórias para serem jogadas sempre pelo mesmo grupo de amigos. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, trocou de ramo antes mesmo de se formar, vivendo hoje como administrador de empresas. Em 2008 decidiu criar um blog onde pudesse despejar todas as histórias que habitavam sua cabeça e, menos de um ano depois, já auto-publicava um livro de contos a.C/d.C (antes destes Contos – depois desses Contos) pela Editora Baraúna. Fã incondicional de Stephen King, teve clara influência do Mestre-Autor em muitos dos seus contos (Xeque-Mate). Em 2009 conheceu um outro Mestre, pouco visto pelas pessoas, mas responsável direto por transformá-lo em um escritor profissional. Graças ao árduo trabalho com o consultor literário internacional James McSill, escreveu seu primeiro thriller de suspense entitulado “72 Horas para Morrer” publicado pela Editora Novo Século. Vê a obra de J.R.R. Tolkien, O Senhor dos Anéis, como sendo a história mais completa e cativante já escrita por uma pessoa.

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Inter Lapidem De João Madeira Sinopse:

Se algo sagrado existe nesta vida, por ele peço perdão por aquilo que vão ler. Nunca as minhas mãos folhearam páginas intermináveis de romances, estórias ou outras banalidades que mais não fazem do que reter o precioso tempo na estagnação absurda de nada fazer.

Autor:

João J. A. Madeira nasceu na aldeia de Ferro, concelho de Covilhâ em Novembro de 1956. A reboque dos pais que à semelhança de muita gente procurava vida melhor, rumou a Lisboa onde, no característico bairro da Ajuda, viveu a infância, juventude e deu os primeiros passos de vida adulta. O fascínio pela escrita já lá estava e as imagens bairristas já lhe enchiam cadernos apreciados pelos professores.

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8 Depois, veio o trabalho de que necessitava para comer. Vendedor ambulante, moço de recados, vendedor de pintura que não entendia, de enciclopédias que não podia comprar, empregado de escritório, informático na banca. Um pouco de tudo fez sem nunca perder o gosto de contar histórias. Que escrevia e rasgava ou se perdiam em cada mudança de casa. Um dia, decidiu levar a sério o que nunca tinha levado a brincar: escrever mais ainda. Venceu um concurso de contos do SBSI; frequentou um curso de escrita criativa com Inês Pedrosa que o incentivou a não parar; compilou vários contos em "Num Qualquer Ponto Desta Cidade"; atreveu-se no romance com "Onde Morrem os Pássaros?"; Seguiu-se "Tratado Moderno de Como Acender Lareiras em Apartamentos" a despertar o interesse da Editora Magna; "Os Sapatos Novos do Morto"; "O Jardim da Dona Clara" adaptado ao Teatro e representado nos Açores com agradecimento escrito do respectivo conservatório; "Inter Lapidem", fantasia realista unanimemente apreciada; "O Rio que Corre na Calçada" num gesto de retribuir ao bairro da Ajuda os ensinamentos de uma vida, na absorção da riqueza das pessoas vulgares. Sente nas veias a congenuidade da escrita e, por isso, continua a fazê-lo.

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Pequenas Histórias

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Rose Paro quando a minha consciência o determina, e a minha consciência é o conselho de administração desta empresa que sou eu, a minha pessoa.

Assim, pensava Roger Whitman

Roger não tinha muito sentido prático, segundo a mãe e a mulher. Gostava de parar, e deixar-se ficar, assim parado a olhar algo que lhe retivesse o olhar ou o chamasse a atenção.

A mulher, ao contrário de Roger, era uma mulher mandona, obesa e bonacheirona, e estava sempre a dizer-lhe, anos a fio, “Oh, Homem sai desse espanto, terás na morte tempo para espantar ” e ria-se como se tivesse dito a verdade mais acertada que a sua boca lhe permitia.

Roger não tinha o preconceito da mulher ser assim, mas habituava-se mal a tanta estupidez da boca a quem beijava às vezes, e sempre na

Rose

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10 condição de a ter lavado e desinfectado com um poderoso elixir antes de dormir. Portanto, os beijos da mulher, estavam-lhe destinados à noite, antes de dormir e pouco mais. Os beijinhos eram todos reservados à sua filha rebelde mas doce Rose, como dizia. LilyMae desvairava ao ouvir estas palavras. E claro, não podia deixar de evitar o ciúme latente da pequena ruiva.

A mãe de Roger era pujante e faladora que nem o pai a suportava ouvir, talvez por isso, deixou-se morrer surdo. Então, mãe e nora vaticinavam que o “espantado do filho”, contava, desde criança era assim, e estava o diagnóstico feito e declarado. Nunca foi ao médico. Era assim, e estava tudo dito. Doença não seria concerteza.

Roger na adolescência saía com amigos, jogava bilhar, um exímio jogador, aliás. Namoradas, pouco lhe interessavam. O que era intrigante para a sua mãe sempre atenta a que o seu espantado arranjasse uma namorada a ver se lhe passava a cisma de vez. Um dia chegou a casa com uma mulher jovem, com uma cintura de fazer inveja a um lutador de Sumo. Uma provocação declarada à mãe. Anunciou que iam casar. Muito bem, assim o fizeram. 3 anos posteriores têm a sua primeira filha, Rose. O nome não podia ser mais apropriado. Um botãozinho de rosa, vermelha e bela em tudo.

Rose

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Nos anos de casado com Lily-Mae, ganha o antigo vício do jogo, sai de noite quando Rose já dorme, depois da história que sempre lhe cabe e com gosto contar. Quanto a Lily, esta finge não importar-se e deixa-o ir-se. Depois com o tempo habituou-se, mas as primeiras vezes choramingava, barafustava que ele não a desejava como antes e logo adormecia, e ele saía sereno para a luz da lua quando a havia.

Pensar estratégias de ganhar o jogo é tudo o que lhe interessa na noite, umas cervejas e umas fumaças e sair daqui com um maço de dinheiro no mínimo. Só depois vai para casa dormitar um pouco, no sofá, e seguir depois para o trabalho na fábrica de Automóveis. Passou a ser a sua rotina.

Entre as irritantes manifestações respiratórias sonoras da mulher, bebe outra cerveja, porque simplesmente já não suporta estes roncos que se ouvem por toda a casa. Veste-se e sai de casa. Vai arejar a cabeça na corrente da cidade e talvez fumar um cigarro.

A mulher entretanto acorda, e não vê Roger, faz o café, bebe-o, veste-se e vai procurá-lo, não o encontra, volta rapidamente para Rose. A criança dorme tranquila.

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Roger volta de manhã cedo, o sol desponta já, toma banho, deixa Rose com um beijinho, toma café e vai para o trabalho, não fala com Lily, apesar das suas perguntas. Deixa-lhe dinheiro para o que ela necessite.

Lily choraminga a ver Roger a afastar-se, bebe café, acorda Rose, mais tarde cada uma vai para os seus afazeres. Lily é empregada de mesa, sente-se distraída e contente por ali estar com os seus clientes habituais, que a tratam carinhosamente pela florzinha da casa. Lily gosta de rir, alto e estridentemente e necessariamente contagia todos em seu redor. É engraçada apesar do seu interesse exagerado pela fofoquice, especialmente sobre as novas vizinhas.

Roger e os colegas combinam uma jogada logo à noite… Roger nunca recusa! Mas, desta não aparece!

Pede ao supervisor que o deixe sair mais cedo, pois, terminou o trabalho que tinha em mãos. Passa na escola de Rose e trá-la mais cedo, passa pelo supermercado, compra o necessário e uns docinhos para a sua menina. Leva-a para casa, enquanto brinca, faz o jantar, dá-o a ela, depois banho e leva-a para a caminha e conta-lhe uma

Rose

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13 história a seu gosto. Amanhã será um novo dia. E um beijo de boas noites.

Entretanto, os ponteiros do relógio pressagiam quase nove horas. Lily está a chegar. Está na hora…

Sai de casa, aproveita para deitar o lixo fora…

Ao longe, vigia que horas a mulher chega a casa. De facto, impreterivelmente às 21.15 está a entrar em casa, desajeitada, sem interesse, obesa e quase sem respirar. Estranha ver tudo tão quieto, não vê Roger, vai ver Rose, que dorme como um anjo. Mas, e Roger, onde se meteu…? O jantar feito… e a mesa posta! E um bilhete que ela ainda não reparou! Aguarda quieto o seu olhar.

Liga a televisão, passa canais, mas só pensa no marido. Vai à rua! Não o encontra no bar do costume. Volta para casa. Pensa que já não fazem amor meses a fio, apesar das ameaças, dos choros e dos lamentos. Pensa em ligar para alguém. Mas receia. Ele pode chegar a qualquer momento.

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14 Finalmente, a fome chega, senta-se na mesa posta e come compulsivamente com as mãos de fúria. Quando finalmente repara … olha um papel dobrado, ponta com ponta, para ser deitado fora. E lá, a curiosidade foi maior, abriu o papel e leu:

“Adeus Lily – Mae. Deixo-vos. Parto para o meu destino. Enviarei o que necessitam para que não lhe falte nada. Cuida bem da minha Rose. O meu bem mais querido. O único que recebi de ti, e a quem amo profundamente.”

Lily – Mae vomita-se ao mesmo tempo que chora … ela sabia que algo estranho estava a acontecer. Roger, desta surpreendeu-a. Não contava que o marido fosse tão metódico e calculista. Odeia-o ao mesmo tempo que lhe caem novamente as lágrimas dos olhos. Ela não esperava isto.

Chora Lily-mae. Chora. Roger já não voltará.

Roger, já não regressa, nem tem intenção de o fazer, já vai longe no autocarro das 22:30. Olha ao fundo do autocarro através do vidro, e não sente remorsos. Não conhece ninguém ali no autocarro. Está só. Não sabe bem o seu destino. Sente a falta da filha. Mas não volta a

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15 trás. O amor paternal é quase todo afecto, e um pouco de sangue. Espero que me perdoe algum dia. Os seus cabelos ruivos, e a sua carinha branca, como uma, tela, ponteada de pequenos sinais como estrelas numa noite de lua cheia.

Roger observa ao longe um bar de bilhar, e dá sinal de paragem, e sai, vai até ao bar toma uma cerveja e começa a jogar, logo outros se aproximam. Já era tarde quando dali saiu com um maço de notas apetecíveis.

Procura um sítio para dormir o dia, barato, entre outros critérios que se contam pouco pó, e poucas prostitutas por perto.

Roger anda errante pelo mundo, não encontra trabalho, e vive das apostas chorudas no bilhar.

Joga à noite, toma o pequeno-almoço no lugar de sempre e vai para casa dormir. Começa a ter dificuldade em dormir, mas adormece sempre a pensar em Rose, a sua filha. Até que um dia tem um sonho em que esta já adolescente a pedir-lhe que volte, a mãe sofre. Acorda com calafrios.

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16 Acorda, toma café, e sai, já passaram anos e nada sabe da família. No entanto continua sozinho, perdeu o interesse em mulheres. É dono do bar onde começou a jogar Bilhar e a fama propagou-se, carro de alta cilindrada. Enfim… o brinquedo de qualquer dono de uma casa nocturna que se preze! Mas, a sua fama não é de playboy, é de alguém suficientemente inteligente para merecer aquela vida, que mérito à parte soube tirar partido da situação. Passou a ser um bar de Luxo, a celebridade da cidade, e a ser inclusive frequentado por celebridades do desporto, depois de remodelado. Geralmente as mulheres que não o conhecem, tentam a sua sorte.

Sentado a tomar o seu Martini. A ver a sua clientela. Discretamente.

A fama não chegou do bar, começou na verdade, com a sua destreza ao jogo e as elevadas somas que conseguia em cada noite. Até ser procurado por jovens que queriam os ensinamentos do coucher do Bilhar.

Esqueceu a família, o ódio que o consumia esfumou-se, só o amor a Rose permanece. Não fala do passado, quero-o longe, e onde está, no passado. Morto. Quieto.

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17 Mudou de nome, com dinheiro tudo é tão facilitado, que o irrita sobremaneira. Passou a chamar-se Mr. Dan Carter. Solteiro.

Apresenta-se como um distinto senhor, grisalho, e muito bem cuidado com a imagem. Tornou-se entretanto dono de todo o quarteirão, e o provedor do salário de muitas famílias locais. Paga sempre no mesmo dia, certo, e sempre antes que termine o mês. E tem o cuidado de saber como está a família de a,b ou c…Faz doações a instituições de caridade para crianças órfãs, ou idosos ou doenças raras. É um assíduo acompanhante das associações locais de cultura. Patrocina artistas em início de carreira. Enfim, um homem a quem não se lhe pode apontar um dedo, ou levantar uma pedra.

Ainda assim, ninguém estranha que aquele homem parece não ter passado, não fala dele, ninguém sabe de onde veio, como surgiu ali do nada, e por que obra conseguiu transformar aquele quarteirão numa zona residencial respeitável. Não dá entrevistas, não permite fotografias, não aparece nos eventos que patrocina, e no entanto a fama e o mito expandem-se a olhos vistos. Toda a cidade fala do mestre. A admiração por aquele jogador exímio, que nunca deixa passar uma nesga de ego no seu discurso simples e sem dizer muito. Já foi convidado para a política, e recusa -a. Criam-se histórias e

Rose

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18 mitos em seu redor. Enfim, ri-se dessas loucuras, quando as pessoas não encontram factos, contentam-se com as fofoquices e lendas. Quanto a mim, nada contra. Já fui. Agora, sou outro. Isso, até joga a meu favor. Enquanto for mito, não pensam em factos.

Continua a viver solitário na rua 66 que cruza com a 67. Numa grande casa.

Uma tarde, Roger resolve ir passear, lá está, sozinho, para reflectir, no parque da cidade, senta-se num banco a olhar os patos e cisnes lentos a arrastarem-se pelas águas cálidas.

Volta para casa. Faz as malas e liga ao advogado. Manda procurar a filha. Rose. Põe tudo em seu nome. Sabe que ela está numa instituição para órfãos. O advogado tem a missão de acompanhar todo o seu percurso, tirá-la da instituição, e colocá-la num colégio em internato, e aos 21 anos terá tudo a que tem direito. E, vão falando por telefone. Ele dará todas as indicações.

Pede ao advogado para procurar a mãe.

Rose

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19 Lily-Mae está numa instituição para doentes mentais. Sofre de obesidade mórbida, come compulsivamente, e sofre de depressão profunda. Já tentou suicidar-se várias vezes, mesmo em frente da filha. E só diz, que o marido só gostava da filha, por isso odeia essa ruiva irlandesa como chama à filha. Não quer ver a filha. Não a quer por perto. Diz que ela é a culpada por ele ter ído.

Ouve atentamente o advogado. E dá-lhe um cheque chorudo para pagar todas as despesas do hospital.

E parte. Para outra vez para o desconhecido.

Comprou um bilhete de ída para o Japão.

Descansa uns dias, e depois procura emprego na indústria automóvel japonesa. Tal como sempre admirou. Especializa-se em motores híbridos.

Passados dois anos, abre a sua própria empresa exportadora de componentes para automóveis híbridos. Deixa o jogo. Ali ninguém quer saber de bilhares.

Rose

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20 Um dia, um dos seus clientes mais conservadores convida-o a ir a uma festa tradicional japonesa. Ele desconhece tudo, e o Homem também não parece importar-se muito com isso. É estrangeiro e está tudo dito. Encontra as mulheres mais bonitas da cidade, entre gueixas que continuam a dar vida aos antigos rituais e inesperadamente deixa-se encantar toda a noite por uma delas. Embebedam-se. Amam-se. Silenciosamente. Num daqueles quartos com um simples colchão no chão. Portas de correr. Sendo a sua primeira

noite

de

sexo,

desde

que

casou

com

Lily,

e

verdadeiramente, sentiu prazer. Via na cara da companheira o prazer que ela

sentia quando a penetrava suave e lentamente para

preparar o seu corpo magro e quase sem formas, mas belo. Até que o animal em si se manifestasse.

Num daqueles acasos fortuitos da vida repara na sua funcionária e sente-se atraído por ela. Convida-a a sair. Não aceita. Mas, até ao dia em que Yung Zu acede tomar um chá. Pede-lhe em casamento e ela responde que sim, timidamente. Casam-se numa típica cerimónia japonesa. Ela está esplendorosa. Aqueles cabelos negros longos e soltos que quase lhe cobriam o corpo até o dia anterior, foram presos em correntes de flores e folhas e natureza.

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Quanto ao seu passado continua sem se saber, além do seu sucesso material. Nem a mulher. Ninguém. Mas, visto que o seu comportamento é exemplar, sem mancha, nem a mulher questiona. Isso de questionar tudo, todos e qualquer coisa é uma inovação do ocidente. Os orientais vêm com o coração e analisam as pessoas desta forma. A mulher ama-o, quando lhe pergunta alguma coisa ele simplesmente responde: - Já te disse. Nasci numa família pobre. Cresci pobre. Saí da escola cedo. Fiz-me à vida cedo. Trabalhei em oficinas. Li muito e tudo o que havia de mecânica, física, matemáticas e também literatura. Donde extraí todo o conhecimento de hoje. Joguei bilhar como profissional. Fiz-me empresário. Vim para o Japão refrescar a cabeça. Gostei desta vida. Comecei a trabalhar. Abri uma nova empresa. Conheci-te e aceitaste casar comigo. Quando o meu sonho, apesar de tudo, era ser rico. Mas, a vida ofereceu-me mais do que eu pedi. E sou feliz contigo e a nossa família.

Yung Zu conheceu o marido quando trabalhava como contabilista na empresa dele. Ela trabalhava disciplinada, obediente e muito, outras mulheres já teriam deixado a empresa por excesso de trabalho.

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22 Depois do casamento, vão de lua-de-mel para as Filipinas, conhecer os animais e a floresta selvagem. Ficam num resort na selva, onde dali Mr. Dan Carter podia cismar com as delícias da natureza exótica. Fica horas seguidas perto das lagoas a admirar sozinho tanta beleza.

Passado algum tempo volta para a mulher, que o espera obediente no quarto, a beber algo, acolhe-o nos seus braços e amam-se outras horas tantas. Talvez seja esta capacidade de entregar-se ao outro sem questionar directamente, mas intuir, o outro. Uma compreensão alargada das necessidades do outro e o respeito por elas… fazem que ele se sinta tão preso a ela, e se prenda infinitamente ao Japão. Ela é o Japão.

No regresso, ela já sabe da sua condição, está grávida. Intuição. Escuta atenta o seu corpo. Nove meses volvidos nascem dois gémeos. Do sexo masculino. Ambos parecidos à mãe. Pouco ruidosos. Com pouco do físico do pai. Jon e Tier. Assim, se chamam. A felicidade é comum a toda a família. E, Roger, nunca se sentiu tão feliz em toda a sua vida. Na sua nova vida, a de Mr. Dan Carter. Rico. Bem parecido. Uma bela mulher, jovem e filhos. Uma família. A sua. Roger está radiante. Feliz como nunca esteve. Até mesmo quando

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23 Rose nasceu, nem se deu conta que estava feliz com o seu nascimento, mas estava, todavia algo o impedia de expressar a sua felicidade. A ex-mulher reagia em tudo por ele. Agora, sente que tudo se completa na sua cabeça. Mas, sente a falta de Rose. No seu interior celebra também Rose. O seu nascimento. A sua vida.

A sua menina que deixou com a mãe. Geralmente, não cabe ao pai levar os filhos. Isso seria a mais alta heresia a que a sociedade o iria condenar. Por isso, pela forma absurda em que se construiu as sociedades, a criança ficou com a mãe. Supondo que isso seja o melhor para ela. Mas, dói ainda a Roger as saudades da filha. As saudades daqueles cabelos rebeldes que ela sempre soprava para os lados. Os seus desenhos. Os seus gritinhos quando não queria comer. E ele, contava-lhe uma história até que vencia a sua falta de apetite.

Roger afasta-se, vai à casa de banho do hospital, e chora, pela primeira vez em tantos anos. Chora pela sua menina. Chora porque sempre acreditou que os laços de sangue são inúteis, quando os afectivos não existem ou estão longe. Chora não pelo que fez. O que fez foi afastar-se para ter espaço para pensar de forma clara e lúcida. O conselho de administração interior indicou-lhe que o caminho não

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24 era morrer lentamente. Mesmo que isso, significasse o sacrifício de alguém. Rose. (Pensa).

Na casa-de-banho é interpelado por outro homem. Olha-o. Fixa-o com o olhar. Fala-lhe em japonês. – Essas lágrimas são de culpa, não de felicidade. Está a ser injusto consigo e com eles. Vi-o à pouco com a sua família. A culpa não vai salva-lo do que quer que tenha feito. Já o fez. Certamente com consciência. As atitudes podem fazer muito mais. Tenha um bom dia. E, saiu. Roger, não disse nada. Ouviu simplesmente. Sem reflectir, no entanto, na altura.

Yung Zu volta a trabalhar, mas desta cumpre o sonho de abrir uma loja de arranjos florais. A arte que aprendeu com a sua avó, que era Gueixa. O marido apoia-a, embora lhe pareça cedo demais, considerando que os gémeos ainda só têm dois anos. Ela acha que chegou à altura de voltar a trabalhar. As crianças terão sempre o suficiente para a sua vida. E ela cuidará também de que isso aconteça.

Deseja fazê-la feliz, pelo menos, pela primeira vez consegue fazer uma mulher feliz a seu lado, quando chega tarde a casa…, admira-lhe os longos cabelos negros espalhados pela cama a ocuparem o seu

Rose

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25 lugar vazio. Afasta-os como se tecesse os fios de um grande tear. Não consegue adormecer, vai à biblioteca e toma saqué. As crianças dormem tranquilamente. Logo se junta à mulher.

O telefone toca, um número desconhecido, uma voz desconhecida. Um sotaque familiar, no entanto. De quem? Boa noite, Roger. Soube que vive no Japão e casou-se com uma japonesa, e tem filhos orientais. Deixou o jogo? Queria felicitá-lo. Não me conhece Roger? A voz com sotaque calou-se. A pessoa desligou! Um homem. Talvez perto da sua idade. Dan Carter mantém-se sem se assustar. Não disse palavra. Só ouviu. Aguarda. Outros seguir-se-ão. Mas, não nessa noite.

Nessa noite, preparou-se para o dia seguinte.

Marcou a viagem ao passado, e escreveu o testamento junto com o seu advogado. Avisou o outro que voltaria por uns dias e que o queria ver. Avisou a mulher que ía de viagem de negócios. Talvez demorasse mais que pretendia. Mas, voltaria, logo. Falou-lhe do testamento. Ela chorou. Sentia-a tão feliz até aquele instante. Mas, aquiesceu, vai, faz o que tens a fazer, eu espero-te aqui. Nós esperamos-te.

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Partiu cedo. Todos dormiam ainda.

Contínua a pensar no homem do telefone, e no homem com quem se cruzou na casa de banho do hospital quando os seus filhos nasceram. Talvez tenham algum vínculo.

O homem do telefone voltou a ligar, mas Roger já não estava em casa. Atendeu a mulher no seu melhor inglês. E o homem contou-lhe que a pessoa com quem tinha casado chama-se na verdade Roger Whitman, e já tivera uma outra família a quem abandonou, tem uma filha Rose, a mãe falecera à pouco. E, avisou-a que iria fazer o mesmo com ela. Yung Zu, conteve-se o mais que pode. Desligou o telefone. Começou a chorar. Como nunca. Mas, manteve a sua rotina. Intuiu que o marido estivesse a tratar desse assunto. E prometeu apoiá-lo nas decisões que a sua consciência lhe ditaria.

Roger volta ao número 33 da sua antiga residência. Tocou. Ninguém atendeu. Ninguém o reconheceu, nem ele reconheceu alguém.

Mais tarde encontra-se com o advogado que o informa de Rose. E todos os acontecimentos da sua antiga família.

Rose

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Roger dirige-se até uma cabine e liga à mulher. Ela, por poucas palavras, como é seu costume, diz-lhe, que tem saudades, e espera o seu regresso impaciente. As crianças querem que leias as histórias de adormecer. Beijo. Desligaram. Roger não notou diferença nenhuma, ou esta conversa foi demasiado sintética para se aperceber de alguma coisa. Ele sabe que o homem_do_telefone iria voltar a ligar. Mas, sabendo ele tantos detalhes, certamente também saberá onde está.

Vai ao hospital falar com o médico que tratou Lily – Mae, ele reconheceu Roger, embora esteja muito mudado. Roger, faz muito tempo que não o vejo, disse o médico. - Mas viu o dinheiro ou não? Inquiriu Roger. - Creio que a polícia já deve tê-lo informado de Lily. Morreu. Com inúmeras doenças. Obesidade, enfarte do Miocárdio, e depressão crónica. Foi internada. Deixou de poder tratar da filha Rose. Desconheço o seu paradeiro, se está à sua procura. - Eu já sei da minha filha, vim saber de Lily.

Roger agradeceu ao médico, e saiu.

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28 Já no carro, chorou. Não conseguia pensar. Estava confuso. Tinha sido um filho da mãe egoísta, disso, não tem dúvidas. Deixou-as sozinhas no barco, e fugiu de bote.

- Como Rose vai alguma vez perdoar-me?

Entretanto a vergonha consome o seu espírito da sua malvadez. O dinheiro para que serviu? Médicos, instituições, comprimidos, o funeral de Lily, o colégio, o advogado.

Como permiti que o meu egoísmo e desespero superassem as necessidades da minha família? Terá sido necessário afastar-me e criar uma nova, para entender o significado de família? Cuidar uns dos outros. É isso o que significa. Se eu tivesse trazido Rose comigo. Lily teria se suicidado, caso isso acontecesse. Porque, não disse simplesmente que precisava afastar-me, e resolvíamos o assunto em tribunal, a custódia, etc… etc…. Nada, eu não fiz nada disso, eu percorri o caminho mais tortuoso para não ter de enfrentar Lily-Mae e dizer-lhe o que na verdade me ía consumindo pouco a pouco a energia vital ela, a vida em comum, as lamurias por não fazer amor com ela, por não conseguir sentir prazer com ela, por não a beijar normalmente, a minha irritação por ela não se cuidar.

Rose

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Envergonhava-me daquela mulher com quem casei, e fui miseravelmente infeliz desde o início. Era divertida! E uma lição à minha velha mãe que era tão parecida com a nora. Com o passar do tempo fui perdendo todo o ânimo de viver. Ela passou a viver com o meu ar, com a minha energia, com a minha força. Era tudo para ela e para a criança. Embora, isso não me retire a culpa, nem ela merecia a ingratidão que eu lhe fiz passar. Ela sucumbiu à força, que afinal não tinha, era outra coisa que a sustinha, eu não estava ali para que ela se sentisse força. Era uma mulher com as mesmas necessidades que outra qualquer. Mas, eu não conseguia ver isso.

Como a distância clareia a mente das coisas confusas! Eu não iria saber pensar, nem dizer estas palavras se nunca me tivesse ido embora.

Agora, que sou feliz, tenho o que quero, uma nova família de verdade, consegui tanto, apesar da dor, apesar de tudo, e agora choro este desfecho infeliz de Lily-Mae. CULPA. Como me envergonho do que fiz.

Rose

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30 - Eu não tenho sentimentos. Eu odiei Lily-Mae. Não conseguia ver nada de positivo nela. Com o tempo esses sentimentos cresceram. Olhá-la já me transtornava. Daí o bilhar. E as noites a jogar. Nunca a traí. Porque ela fazia - me perder o desejo por qualquer outra mulher.

- Como encararei a Yung Zu? Como lhe vou contar isto?

Ao fim da tarde, vai passear ao parque para aliviar a tensão.

Tenho a morada de Rose, é médica, administrou bem o dinheiro que lhe mandei, mas ter ganho uma bolsa de estudos sem precisar do meu dinheiro foi o seu maior trunfo. Estou certo disso. Ela é parecida a mim. Joga de forma calculista e a limpo.

Não precisa de nada que eu tenho em testamento para ela. Não o quererá. O seu êxito é a sua forma de mostrar que é melhor que eu em tudo. Até o facto de ser médica, e não outra profissão, é para mostrar-me que temos de vencer o nosso egoísmo porque existem pessoas que precisam de nós. E, temos o dever de apoiá-las. Independentemente do que sentimos. Mas acima de tudo temos que

Rose

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31 ser tão sinceros connosco, como para os outros. Mesmo que isso doa. E, dói.

Roger manda o advogado ir ao seu encontro.

Ela está ocupada. Mas, manda-o esperar no seu gabinete. Ela chega, passados 10 minutos. Alta, magra, muito ruiva e sardenta. Bonita, por sinal. Senta-se e acende um cigarro.

- Em que posso ajudá-lo, mr….? - Charles Bouvier Este nome é-lhe familiar. Os cheques eram assinados neste nome. Faz-se desentendida. Bluff. - Venho em nome do seu pai, Roger Whitman, porque há coisas que lhe são devidas. Por favor, leia. Ela riu-se estridentemente. Então, não morreu ainda? De forma nervosa. Leu o papel. Assinou. Rasgou-o em seguida. - Não quero, não preciso de nada. Vá-se embora. Ou o segurança o fará sair. - Não precisa, eu saio.

Rose olha pela janela, e vê o advogado partir.

Rose

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Pensa que até na riqueza o pai continua um cobarde, não a enfrenta, tal como foi mais fácil fugir do que enfrentar Lily-Mae. Eu não sou a minha mãe. Aquela louca, com ciúme meus, por causa do carinho do pai. (Ri-se). Para não matar-me, tentou suicidar-se vezes sem conta. De ciúme. Tantas outras à minha frente. De propósito para magoar-me profundamente. Mas, eu respirava com o meu próprio oxigénio. Eu tinha vida, para além dela. Mas, não a odeio. Só, não foi uma boa mãe. Tenho que compreender isso. Não posso consumir-me com problemas que não são meus. E os que herdei, acabei de os rasgar para sempre.

Terminou o turno da noite, foi para casa.

No dia seguinte acordou tarde. Os filhos tinham ido já para a escola com o pai. A mesa continuava posta com o pequeno-almoço.

Ressoa o telefone. Ela atende. …………… um longo silêncio segue-se. - Sou eu, Roger Whitman, o teu pai. Vi que não aceitaste nada do que te pertence. Ao menos, aceita que te veja… por favor! - ………………………………………………….

Rose

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33 - Eu quero conhecer a minha Rose. - Essa Rose já não existe. - Mais uma razão para conhecer uma desconhecida. - Pai, eu, compreendo-te. Mas, já passou muito tempo. Nunca me visitaste. Deixaste-me sozinha. Com dinheiro. Mas com estranhos. Chorei tantas vezes a tua omnipresença. Sabia que estavas algures, que te preocupavas comigo. No entanto, deixaste-me toda a vida sozinha. Porquê isso? Passaste a contar as minhas histórias a outra pessoa? Enquanto eu era obrigada, como um soldado, a ler as passagens da bíblia e a estudar. Fui tantas vezes castigada por ler as histórias que me contavas. Ninguém percebia que isso era a forma de estar próxima de ti. Do pai ausente. Mas, nunca deixei de as ler. Castigassem o que quisessem. Para mim, isso foi todo o conforto que tive ao longo destes anos. Apareces agora, da cartola. Sabes porquê? Porque eu contratei alguém para te encontrar e a ligar-te sob ameaça. A tua mulher já sabe uma parte do que aconteceu. A japonesa. Eu procurei-te todos estes anos. -Tu observavas-me ao longe, tanto quanto eu te segui. - És uma jogadora inata! Choram os dois ao telefone. - Adeus pai. Fico feliz que te encontres bem. Eu também estou. Tu, contribuíste mais do que imaginas para isso. Os meus filhos lêem as

Rose

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34 tuas histórias. Não lhes ocultei nada do nosso passado. Mas, por favor, vamos continuar assim, cada um com as suas vidas. Deixar o passado onde ele está. No cemitério.

Roger continua a chorar. Rose sente-o ofegante.

- Vai pai para junto dos teus, e dá-lhes o que não pudeste dar-me a mim. Não te sintas culpado. Eu nunca te culpei. Senti a tua falta só. Aceito que também tenhas os teus defeitos. Perdoei-os há muito tempo.

Despedem-se e desligam o telefone.

Roger mantém o testamento a deixar o que conseguiu ali para a sua filha Rose. Volta para o Japão. - Conta a Yung Zu o sucedido. - Pára. Eu não preciso saber mais. - Eu já sei o suficiente. Rose ligou-me. Disse-me que te perdoava. Do coração. Desejou-nos as maiores felicidades.

Yung Zu, com toda a compreensão do mundo abraça-o e aceita-o. Os filhos ficam radiantes com a chegada do pai. Notou que cresceram

Rose

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35 entretanto uns centímetros na sua ausência. Abraçou-os. Levou-os de seguida a passear, a ver a natureza como é maravilhosa. Disse-lhes o quanto os amava, e à mãe que os acompanhava nesta conversa de homens.

Carmo Gouveia

Rose

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As Chaves Tilintam. Sabem ao que vão. Soam ansiosas. Os olhos confirmam o caminho. As chaves também. Tilintam. Preparam-se. Cada passo tling, depois tlang. Depois tic, depois tac. Irritantemente metal. Depois o coração, a pouco e pouco, comuta o marca-passos. A respiração acompanha. Pesa nas escadas, em cada degrau. Tic, tac. Tling, tlang. Automático. Irritantemente frio. Não há voltar atrás. São as chaves que o dizem. São as mestras que ditam onde estou, onde vou. A cabeça ficou no ontem. Recusa-se a avançar. A aceitar o ali, aqui. Quer voltar e não pode. - Não é possível. Fizeste uma escolha! Tling, tlang... tic, tac As pontas dos dedos lembram-se, ao percorrer cada chave, qual a que vai selar o futuro próximo. Os dias e meses próximos. - Não há outra maneira? - Para já não.

As Chaves

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37 O diálogo surdo da mente continua, cego às escadas. Tic, tac Irritantemente real. As chaves caem. Os dedos na última tentativa de resistir à realidade... Tic, depois tac... Tic, tac O tling e tlang atados nos dedos. Sabem que de seguida se soltarão. Não têm que fazer nada. Há uma rotina. Uma chave apenas que avança. Polegar e indicador conhecem-na. Apontam-na. Ah! Espada ingrata. Vais directa à fechadura. Não entres! Não! A ferida aceita a espada. E não é ela que sangra... A porta abre-se. As chaves tilintam mais uma vez agora abandonadas no seu crime... Entro. Os rostos reencontram-se. Os olhos reconhecem-se. Um sorriso forma-se em cada lábio para se encontrarem. Tic... O tempo não pára. Param os desejos que ficam por atrás da porta. Lá fora. E dentro, fica a realidade. Assim. Tac... Adoa Coelho

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O Revirar de um Sorriso O cheiro quente a torradas acordou a Ana. O Bernardo entrava pelo quarto com uma bandeja recheada com o pequenoalmoço para os dois. Beijou-a suavemente e sentou-se na cama ao seu lado. Saborearam o pequeno-almoço entre palavras excitadas sobre os planos para aquela terça-feira. O casamento aproximava-se e havia tanto para preparar, dois meses passam a correr. Hoje era dia de irem provar o vestido e o fato, de forma a melhorar e acertar todos os retoques. Depois de se preparem, afogaram-se num longo beijo à porta de casa e cada um foi para seu lado. A Ana estava ansiosa e olhava para o seu dia com o seu sorriso característico salpicado pelo sinal por cima do canto direito do lábio. Chegou à loja dos vestidos e logo a Dona Graça se apressou a recebê-la. O vestido era de um branco pérola, comprido e no tronco tinha umas pequenas flores bordadas que lhe davam uma certa delicadeza. Primava pela simplicidade e beleza. Quando a Ana se viu ao espelho, nem queria acreditar, sentia-se a mulher mais linda à face do planeta. Não via a hora de se poder mostrar ao Bernardo. A irmã da Ana, a Teresa, brincava ao dizer que lhe ia roubar o vestido, de tão lindo que era. As gargalhadas de felicidade enchiam a sala de provas.

O Revirar de um Sorriso

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39 Do outro lado da cidade, o Bernardo ia no automóvel a caminha da prova do fato – estava um trânsito impossível. As buzinas soavam mesmo por cima das notas ecoadas pela auto-rádio. O sinal vermelho passou a verde e calmamente o Bernardo arrancou no cruzamento. De súbito apareceu um carro desgovernado que passou o sinal vermelho e com uma força bruta, embateu no automóvel do Bernardo. O veículo capotou vezes sem conta até parar todo amolgado contra um poste eléctrico. O Bernardo ficou sem sentidos, alagado num mar vermelho do seu sangue. O telefone toca e no meio de tanto alvoroço, só a Teresa o ouviu e atendeu. O seu semblante começou a ficar cada vez mais sério e a sua tez morena esvaneceu-se em segundos. Não conseguiu falar, apenas entregou o telefone à Ana. Do outro lado da linha, uma voz informava que o senhor Bernardo Matos tinha tido um acidente e que tinha dado entrada no Hospital São José. O telefone simplesmente caiu ao chão. A Ana ficou sem forças e desapareceu no meio de tanta seda. As lágrimas escorriam sem pedir licença. Um surto de lucidez fê-la despir o vestido, vestir a sua roupa, pegar no carro e dirigir-se para o hospital o mais depressa possível. Pelo caminho, a Teresa avisara os pais do Bernardo e os seus também. Quando chegaram ao hospital, todos eles já os esperavam. A Ana correu ao encontro deles:

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40 - Então? Sabem o que se passou? Onde está o Bernardo? – disse ela ofegante, quase não deixando tempo para o ar entrar e sair. - O Bernardo está na sala de operações. No acidente sofreu várias fracturas e convulsões que o deixaram inconsciente. – explicou a Dona Sara, mãe do Bernardo, lavada em lágrimas. - Mas ele vai ficar bem, certo? É por isso que o estão a operar! - Neste momento nada é certo, apenas temos que esperar. As horas foram passando e os seis iam fazendo turnos para comer e descansar sem saírem do hospital, pois a qualquer momento se aguardavam notícias. Eram nove horas da noite quando os dois médicos se aproximaram deles com caras bem sérias, anunciando más notícias. Durante a operação, o Bernardo sofrera outra convulsão que o deixara em coma. O cérebro já não comandava o seu corpo. Estava agora ligado às máquinas de suporte de vida. Naquele momento o mundo desabou sob os ombros da Ana. “O quê? Não…. Não pode ser!” Enquanto pensava isto, Ana perdeu os sentidos e desmaiou com a emoção. Todos os planos que os dois tinham feito se desmoronavam como um castelo de cartas. Naquela noite, apesar do cansaço se apoderar do seu corpo, Ana lutava contra ele e contra o sono na esperança que os olhos do Bernardo se abrissem.

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41 O Bernardo estava estendido sob um emaranhado de tubos e fios que lhe saíam de todos os orifícios do seu corpo. A tez da sua pele e as suas sardas perderam a cor como se tivessem sido esfregadas vezes sem conta. Os dias foram passando, a Ana ia desvanecendo juntamente com o cheiro corpulento a remédios e a falta de vida que se fazia sentir naquele quarto de hospital. Os médicos eram frios, já não havia esperança… essa apenas abraçava a Ana com muita força. Amanhecia o dia e a Ana sentiu um calafrio quando agarrou a mão do Bernardo, como fazia todas as manhãs desde que ali estavam. De rompante, a porta abre-se e um arsenal de médicos entrou pelo quarto dentro. Aqueles semblantes carregados eram já conhecidos da Ana, mas hoje transbordavam um rio negro das notícias. As palavras e conversas trocadas já tinham sido bastante claras, havia que deixar o Bernardo partir. Ali jazia apenas um corpo sem alma, um corpo sem ser. Os médicos trouxeram uma espécie de ultimato, a Ana como parente mais próxima (esposa no civil, no papel já constavam as duas assinaturas) tinha que decidir desligar as máquinas de suporte de vida. Uma força enorme apoderou-se da Ana naquele momento. Já havia pensado tantas vezes naquela situação, que por se deparar

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42 diante dela, nem sabia que reagir. Por outro lado, a decisão estava tomada, era apenas difícil exprimi-la. Mas letra a letra, como punhais a espetarem-se no coração, a Ana foi lentamente soprando baixinho a resposta: - Façam o que têm que fazer! Desliguem tudo. – disse Ana com uma convicção dissimulada. - Dona Ana, precisamos da sua assinatura nesta declaração e dar-lhe-emos tempo para proceder às despedidas. Nada do que se passava fazia sentido, as palavras que a Ana havia dito jamais iriam ser arrancadas do seu peito. A família toda inconformada, saboreava as lágrimas à volta da cama do Bernardo até que o som ininterrupto da máquina de suporte de vida lhes deu a certeza que tudo terminava ali. Os dias que se seguiram foram carregados de cinzento. O funeral, a burocracia e todas as palavras obrigatórias como o “sinto muito” fizeram da Ana uma pessoa completamente insensível. Nada havia no seu dia-a-dia nada que lhe desse valor. Apenas quando chegava a casa e trancava a porta é que realmente se libertava. A dor de ter deixado o Bernardo partir era insuportável. Sentia uma corda bem apertada na garganta sempre que pensava nisso. Não sabia explicar como tinha conseguido encontrar a coragem para aceitar tal facto com tanta frieza. Sozinha afundava-se nas suas mágoas e

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43 tristezas, mergulhava nas suas lágrimas e voava pelas boas memórias que tinha do Bernardo. Na mesinha de cabeceira estava junto ao rádio despertador uma fotografia dos dois quando estiveram em Nova Iorque. O sorriso do Bernardo ouvia-se quando se olhava para o porta-retratos. A Ana conseguia cheirá-lo em todo o lado, ele fazia e fará sempre parte de um todo universo só deles os dois. Passaram-se semanas e a Ana conseguiu regressar muito lentamente ao universo paralelo chamado “vida normal”. Aqui, a Ana deparou-se com uma série de decisões que nunca tinha sonhado ter que tomar. Havia que cancelar o casamento, igreja, padre, copo de água, etc. A Teresa, neste momento difícil, agarrou as rédeas e tratou de

se

encarregar

desses

cancelamentos,

prevenindo

mais

constrangimentos à irmã. Num solarengo sábado de manhã, a Ana acordou com a campainha a tocar. Era a Teresa e trazia um grande saco na mão. O vestido de noiva da Ana. Ainda meia adormecida e com a cara toda enrugada da roupa da cama, perguntou a Ana: - Mas agora só me faltava esta! Que vamos nós fazer com isto? Não eras tu que o querias? Podes ficar com ele, sempre lhe darás mais uso que eu.

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44 - Estás parva? Achas que vou ficar com o teu vestido? É teu, tem as tuas lembranças. Não estás à espera que te as atire à cara quando o vestisse, pois não? – resmungou a Teresa, sabendo que a sugestão da irmã era apenas um desabafo e não um desejo legítimo. - Se tu não o queres, eu não vou ficar com isto aqui comigo. É muito lindo, sim senhor! Mas a mim não me serve de nada. E se o vendesse? Sempre se tirava algum proveito. - Tens a certeza? Era o teu vestido de noiva, que te fica na perfeição. E se o remodelasses e criasses outro vestido? Ao menos sempre trazias contigo uns pedaços de lembranças. - Oh Teresa, eu não quero mais lembranças, eu própria sou um mundo repleto de lembranças a toda a hora. Quero mas é desfazer-me disto. – disse a Ana já com um tom de voz elevado, demonstrando irritação com tanta insistência. - Pronto! Não se fala mais disso. Vendemos então. Levamo-lo à loja onde o compramos e vemos quanto nos dão por ele. Afinal nunca foi usado, está novo, com o design sueco que tem, nem sequer deve ter desvalorizado. - Nada disso, pomos um anúncio no jornal. Um para o meu vestido e outro para o fato do Bernardo. - Eu já nem sei o que te diga. Se é assim que tu queres, assim o terás.

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45 E dito isto, a Teresa guardou o saco do vestido junto ao saco do fato do Bernardo que estava na primeira porta do guarda-vestidos no quarto das visitas. Tentou convencer a Ana a ir almoçar com ela, mas ela não quis. Só lhe apetecia estar no seu cantinho, a voar, ao som da música, para os braços do Bernardo. Cada vez que ganhava coragem e saía de casa, era sempre bombardeada com perguntas sobre o Bernardo que eram socos destrutivos no estômago. Por isso preferia ficar em casa e evitar perguntas e olhares recriminatórios como se tivesse sido ela própria a matar o Bernardo. Só ela sabia a angústia que lhe pesava nos ombros. O nó que sentia nos pulmões quando a ex futura sogra a ia visitar e lhe lançava uns olhares melancólicos mesmo sem querer. O mundo tinha desabado e caído mesmo por cima dela. O mal-estar da Ana era de tal forma que até enjoos ela tinha. Conseguia comer qualquer coisa mas pouco lhe ficava no estômago. Algo se passava. A Ana não era de vomitar com tanta regularidade. Mais uma manhã, mais um enjoo. Estava decidido, a Ana vestiu-se, pegou nas chaves e saiu. Passados dez minutos, regressou com uma saca pequena na mão. Enfiou-se na casa de banho e saiu de lá embrulhada em lágrimas de felicidade. Era verdade, o teste confirmava. A Ana esperava um filho do Bernardo. Ana Caio

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Lirismos

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Pensas que me podes negar o amor? Pensas que me podes negar o amor? Pensarás tu que é um olhar que o justifica Um pássaro de fogo na garganta

Ah se o amor fosse Tu quereres ou não quereres Também o sol não dobraria o escuro Nem a neve perdoaria ao sol De a lamber tão de mansinho

Porque enquanto queres e não queres Eu beijo-te loucamente Como o luar as uvas E não me condeno

Porque o amor inunda-me Dos arrozais dos teus seios Sem que os canais dos teu braços me reguem Pensas que me podes negar o amor?

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Ah quantas vezes os beijos Os abraços E as palavras São céus que não chegam a ser céus E mares despidos do azul das línguas

Ah tudo o que te quero falar é amor Planta que não conhece a terra Sempre maravilhosamente só Com todas as estrelas gemendo Em nossas bocas tão juntas

E porque não tenho carne Revisto-me da tua carne e não espero Enquanto os meus olhos vazios são os teus cabelos.

Manuel Feliciano

Pensas que me podes negar o amor?

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Entrelinhas Como ĂŠ difĂ­cil entender Aquilo que fica por dizer Porque certas atitudes Magoam mais que as palavras Mesmo quando nos saem erradas.

O que nĂŁo se diz tem muitas leituras Porque nos parecem censuras. Dificilmente vemos virtudes No olhar anoitecido Ou no discurso subentendido.

Nas palavras da lua Nosso pensamento flutua Vagueando em vicissitudes Procurando a melhor forma de entender Nas entrelinhas, o que fica por dizer.

Ana Maria Teixeira

Entrelinhas

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Metamorfose Tudo muda com tanta facilidade, O que hoje é mentira Amanhã pode ser verdade. Mudamos de pensamento Com a mesma agilidade Com que muda o vento.

Tudo muda com tanta facilidade, O que hoje é alegria Amanhã será saudade… Mudamos os nossos sentimentos Com a mesma mobilidade Com que mudam os tempos.

Tudo muda com tanta facilidade, O que hoje é juventude Amanhã não terá idade E não podemos fugir desta realidade Porque é apenas esta a imutável verdade.

Ana Maria Teixeira

Metamorfose

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Críticas e Maldizeres Vida Perdido ou achado, Encantado ou angustiado Vamos todos acreditar na felicidade Ou na falsa alegria, Vamos todos andar Muito rápido Fingir que estamos a correr, Mas sem correr para não perder a compostura, Que é de mau tom.

Vamos todos celebrar rápido, Viver rápido, Que não há tempo a perder, a vida é curta, Deixar as pequenas coisas que nos deixam felizes de lado, Vamos viver os sorrisos rápidos, E os choros longos. Não repares nas coisas, não percas tempo com isso, anda.

Vida

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51 N達o importa como andes, anda. Anda como corresses mas n達o corras. Vive como n達o estivesses vivo, Morre a desejar ter vivido mais.

Marta Sousa

Vida

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Regras para Trabalhos Enviados

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- A Escrita Criativa não se responsabiliza pelo conteúdo que é publicado a responsabilidade é única e exclusivamente dos seus autores. - A Escrita Criativa publica os trabalhos dos autores tendo como o limite a capacidade da revista, caso haja demasiados trabalhos enviados alguns poderão não ser publicados ou poderão ser publicados no número seguinte. - O limite de tamanho dos trabalhos recebidos é de vinte páginas A5 com letra a tamanho 11, se os trabalhos não respeitarem estas indicações poderão não ser aceites. - A Escrita Criativa não aceita trabalhos com conteúdo sexual explícito. - Por norma só será publicado um trabalho por pessoa em cada número, podendo haver excepções por falta de trabalhos. - A Escrita Criativa não corrige erros ortográficos nem faz alterações às obras enviadas, se for enviado algum trabalho com erros ortográficos poderá ser enviado de volta para correcção ou não ser aceite. - A Escrita Criativa só aceita trabalhos escritos em português.

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- Trabalhos com expressões noutras línguas deverão ter uma nota no fim a dizer o seu significado, caso isto não aconteça poderão não ser aceites. - Trabalhos com direitos de autor registados na Sociedade Portuguesa de Autores deverão informar a SPA antes de enviar os seus textos para a Revista Escrita Criativa. A Revista Escrita Criativa publica somente textos autorizados pelos autores.

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