Revista Advocatus 09

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ARTIGO

se vai mais tornando uma base do pensamento ocidental, procurar quais as implicações para o Direito, que possam representar o fundamento deste. A pessoa não é mero conceito formal. Não se reduz a um eleitor, a um transeunte, a um elemento estatístico, a um consumidor... Dela derivam exigências reais em relação às instituições coletivas. Ela é a justificação destas. Na frase de Hermogeniano, que contém uma intuição que vai muito além do que poderia exprimir na sua época, omne ius propter hominum constitutum est. O pensamento moderno ganhou, nos seus pontos mais elevados, consciência do significado da pessoa e da sua real dignidade. Quando encontramos na primeira frase da Constituição Federal alemã: Die Würde des Menschen ist unantastbar (A dignidade da pessoa é intocável), temos uma manifestação do verdadeiro sentido da Pessoa, com a sua dignidade, que está na origem de toda a organização civil: é porque é Pessoa que não pode tolerar-se que seja violada ou ofendida. Assim sendo, a Pessoa, na sua substância, é a âncora da fundamentação da ordem jurídica. Dá a legitimação do Direito: quer na incidência direta sobre as pessoas em si, quer na incidência sobre o enquadramento social que lhes cabe. Dela derivarão os grandes traços da expressão jurídica das pessoas e do lugar que ocupam na sociedade. Por outro lado, como o homem vive necessariamente com os outros (e “através dos outros”), permite ainda orientar as bases das instituições sociais e políticas correspondentes. Aquilo que se possa retirar da consideração da Pessoa para a construção do Direito global da sociedade é sempre um mínimo. Há que aceitar a diversidade dos entendimentos e a pluralidade das opções legítimas. O que se afirma como imposto pela natureza da Pessoa também está sujeito ao erro e à diversidade de entendimentos: é a condição humana. Mas isto não impede a necessidade da busca afincada, do debate honesto de posições e da abertura a consensos na realização do possível. Como orientação geral, impor-se-ia a substituição gradual da cultura formalista dos direitos pela cultura substancial da pessoa. Seria um enriquecimento da raiz, que poderia sanar o muito de fátuo a que assistimos na nossa situação contemporânea. Sabendo que nunca se encontra sociedade definitivamente reconciliada; e que o homem é chamado repetidamente a bater-se por objetivos e nunca a deliciar-se com os frutos da felicidade conquistada. Há melhor e pior: bom e definitivo nunca se encontra13 .

prescindir da noção de dignidade da pessoa, há que lhe restituir o sentido” 12 . Insiste-se pois na pergunta fundamental: por que é que a pessoa é digna? E a resposta traz a justificação: é digna porque é pessoa. Há que aprofundar este caminho, para uma sólida fundamentação do Direito. Juntemos então as duas pontas da nossa análise – a do Direito Natural e a da dignidade da pessoa – para encontrar o critério dessa fundamentação.

6. A pessoa, como o fundamento bastante do Direito Vimos as críticas que um Direito Natural, como modelo objetivo de ordenação social, suscitava e como o pensamento moderno aceita mal a pretensão de um corpo de regras que se apresentasse como uma prefiguração, mínima que fosse, das instituições jurídicas. Mas por outro lado, vimos que a fundamentação na “eminente dignidade da pessoa humana” é uma solução aparente, porque deixa justamente por explicar a causa da dignidade, que está na própria pessoa. Procuremos então dar um passo em frente. Não nos movem pressupostos de escola jurídica-filosófica, que procuramos quanto possível que nos não condicionem, mas a preocupação de evitar fraturas escusadas. A falta de atrativo do Direito Natural como corpo pré-figurado de regras explica-se de certa maneira, não só pelo confronto com manifestações menos felizes passadas, como pelo desfazer sucessivo do gregarismo social, que inicialmente anotamos. Ele contribuiu fortemente, mesmo quando não houve disso consciência, para o declínio de construções que assentavam antes de mais na estruturação do grupo. A atenção generalizada passou pelo contrário a recair sobre os membros do grupo, colocando-os em primeiro plano. Isto se viu nos últimos séculos, os da “Idade Contemporânea”, pela vitória social do individualismo. Mas vimos também que concomitantemente a sensibilidade em relação à pessoa se foi acentuando, embora no meio de grandes dilacerações sociais. Isto poderia ter representado então uma alternativa. Mas esta alternativa foi desperdiçada, permita-senos dizê-lo assim, no refúgio fácil e oco numa “dignidade” da pessoa que se não aprofundava. Então, há um caminho possível: é o de colocar em primeiro plano a pessoa, no seu significado ontológico, e não como mera manifestação individual do gênero humano. E à luz desta imagem orientadora, que progressivamente

13. Ou só o haverá em A Paz Perpétua de Kant, que Goethe considerou mais próprio para lápide funerária... Revista Advocatus

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