Os vícios de Cícero

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ÍNDICE Seu pedido é uma ordem E o tempo fechou O espinho daquela flor Não é o que parece Quando a esmola é alta Esquenta e amacia o couro Cara pintada e lombo ardido Ai si dedi pipou Traga mais um trago Menino mimado



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Eu

poderia começar contando

essa história de várias maneiras. Seja falando de um problema que já me colocou em várias encrencas, seja falando das coisas que perdi ou da dor de cabeça que causei em todos a minha volta; mas antes que vocês entendam o meu problema, é preciso saber quem são meus pais, afinal, eles me fizeram assim. Eu acho!

Minha mãe era uma comediante

nata, mas desperdiçou todo o talento contando piadas entre o preparo das refeições e a lavagem das roupas. Mamãe adorava lavar roupa. Só usava OMO. Ela achava que usando esse produto seria igual às mulheres dos anúncios: aquelas mulheres que usavam pérolas no pescoço, tinham unhas feitas e um belo sorriso no rosto enquanto esfregavam e estendiam as roupas no varal.

Meu pai era um ranzinza treinado

pelo exército. Tinha sempre uma frase pronta para qualquer tipo de situação.

Enquanto minha mãe torcia as

roupas e estendia no varal, meu pai torcia meu pescoço tentando introduzir algum conhecimento válido em minha cabeça.

Minha infância foi marcada pelas

piadas de mamãe e pelas bordoadas do papai. Mamãe queria meu cabelo grande; papai, curto igual aos dos “milicos”. Por algum motivo, as vontades de mamãe 7


sempre prevaleciam. Para o meu total desespero.

O que mamãe não sabia é que os

meus cabelos crespos serviam de piadas para os “coleguinhas” da escola. A cada epidemia de piolho, adivinhem quem era o principal culpado? Era cabelo de Bombril pra cá, cabeça de microfone para lá, um verdadeiro tormento na minha vida; mas essa história não é mais um caso de bullyng, onde a criança cresce e resolve criar um manifesto contra os atos sofridos.

Essa história é sobre uma manhã

que marcou minha infância. Eu adorava assistir

a

televisão,

principalmente

aos reclames do plim-plim. Enquanto as pessoas normais aproveitavam os comerciais para ir ao banheiro e fazer algumas tarefas, eu fazia o oposto, naquele momento eu fixava os olhos na TV e curtia tudo o que era criado para vender produtos ou serviços.

Naquele dia, pela primeira vez,

estava sendo exibida uma campanha, ou melhor, uma lavagem cerebral para todas as crianças da época que dizia: “não esqueça a minha Caloi”. Eu fiquei maluco com aquilo, a campanha ensinava passo a passo como fazer com que seu pai lhe desse uma Caloi, e era simples: pegar um papel, anotar “não esqueça minha Caloi” e espalhar por todos os lugares da casa. 8


Assim me ensinaram e assim eu fiz.

Comecei

tímido:

pregando

na

geladeira, na televisão, na porta do armário. De alguma maneira meu pai não notava nem dava a devida atenção. Comecei a colocar no bolso da calça, no verso do boletim da escola e acima das estrelinhas que ganhava da professora por ter feito a lição de casa. Nada! Meu pai não cedia a meus esforços.

Pensei! Vou falar com a mamãe,

ela sempre convence o papai a fazer as coisas que ele não quer. Mamãe não me ajudou, mas me deu uma dica valiosa:

- Filho, quando você crescer irá

entender que nós, mulheres, ganhamos os homens pela boca.

Foi quando entendi o porquê da

minha mãe passar tanto tempo cozinhando.

Voilá! Meu próximo bilhete será

especial. Quero ver se desta vez ele esquece minha Caloi.

Acordei mais cedo para preparar

o bilhetinho, desci as escadas correndo e sentei-me a mesa para tomar café. Era uma questão de tempo até minha mãe dar o famoso grito de guerra com um pote de margarina em mãos: Ok, pessoal, pode vir que está na mesa.

Papai sentou-se, pegou o pão que

minha mãe acabara de preparar com sua manteiga preferida e foi com toda vontade 9


do mundo morder aquela iguaria. De repente, ele cospe o pão e tira da boca um pedaço de papel - era o meu bilhete. Ele se levantou e saiu da mesa dizendo:

-Se é uma bicicleta que você quer, é

uma bicicleta que você terá.

Fiquei orgulhoso de mim naquele

momento: consegui algo do meu pai pela boca, do jeito que mamãe havia me dito. Naquele momento me veio à mente o tanto de coisas que eu poderia ganhar se as colocasse no pão pelas manhãs.

Fui

correndo

chamar

meus

amiguinhos para reuni-los na garagem de casa, afinal, eu seria o primeiro a ganhar uma Caloi na minha rua. Tratei de tomar um banho para me arrumar e esperar meu pai com o presente. Na verdade, nessa idade, quem me arrumava e escolhia minhas roupas não era eu, então mamãe separou um conjuntinho jeans e passou um pente no meu black power.

Depois de horas de espera, meu

pai apontara na rua com uma caixa enorme nas costas; foram momentos de dúvida e alegria, pois não sabia se corria ao encontro do meu pai ou esperava ele entrar em casa. O que eu tinha certeza era que meus amigos morreriam de inveja de mim quando me vissem desembrulhando aquela caixa enorme com uma Caloi novinha 10

dentro.

Quando

avancei

no


embrulho, papai mal tinha atravessado o portão, tomei pelos braços meu presente e...

Lembro-me como se fosse hoje as

primeiras palavras que disse ao ver minha Caloi:

-Rosa? Buzina? Cestinha?

vDesse dia em diante fiquei mais

conhecido como o microfone da Xuxa. Com minhas longas madeixas e minha bicicleta rosa.

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Eu odiava estudar, mas que fique claro, nunca odiei a escola. Afinal, foi lá que aprendi e sofri o que hoje vocês conhecem como bullyng, foi lá que aprendi o significado da palavra não. Principalmente nas horas em que eu suplicava às meninas por um primeiro beijo. Foi lá que aprendi como é ruim ficar de joelhos no milho e que a palmatória não educa ninguém, mas pode ser bem dolorosa. No fundo, eu nunca fui um mau aluno. Após as 7h os portões eram fechados e muitas vezes eu pulava o muro para não perder as aulas (as faltas no boletim eram convertidas em surras do papai).

Meus

pais

eram

atuantes

e

participativos em minha vida acadêmica; semanalmente

eles

eram

convidados

para uma conversa com os diretores e professores, para que juntos pudessem debater sobre o meu comportamento conturbado dentro e fora da sala de aula. Mamãe, anjo protetor, sempre me defendia e não podia ver ninguém falando mal do filhinho dela. Papai, o carrasco, tinha como hobbie me encher de bordoada.

Eu gostava tanto de ir à escola, que

bastavam algumas semanas de férias para que eu sentisse falta e começasse a desejar à volta as aulas. Mas foi em uma dessas férias, no intervalo de algum programa de TV, que ouvi pela primeira vez uma linda 13


canção: “numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo, e com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo...”. Fiquei encantado! Naquele momento eu tive a certeza de que todos os meus lápis de cores do ano letivo tinham que ser Faber-Castell e conseguilos não seria difícil: papai nunca negou nada relacionado à área acadêmica ou qualquer outra coisa que me fizesse virar um grande homem.

Como de costume, no início do

ano letivo fomos às compras. Era algo tão religioso quanto ir à missa na noite de Natal. Só que desta vez tinha algo mágico rolando no ar... Era aquela vontade louca de pôr as mãos nos meus novos e modernos lápis de cores feitos com madeira reciclada da Faber-Castell. Compramos cadernos, cartolinas,

apontador,

tesoura,

cola,

purpurina, papel higiênico (isso mesmo, eles pediam papel higiênico), e, assim, papai sempre ironizava nessa hora:

- Eu sempre digo. Esses meninos

só tem merda na cabeça.

Enfim chegamos aos tão sonhados

lápis de cores. Eram tantos e tão coloridos que eu não entendia como pude viver tanto tempo sem eles...

Assim que começaram as aulas

eu já estava sedento por uma folha em branco. Algo que eu pudesse colorir, transformar, deixar mais vívido. Então eu 14


comecei a pintar tudo o que via pela frente: as tarefas proposta pela professora, o caderno dos coleguinhas, as paredes e portas dos banheiros da escola, mesas e carteiras. Eu era a reencarnação de Picasso. Foi nessas idas e vindas como pintor que minha professora foi me tratando de forma diferente dos demais coleguinhas de classe, do dia para a noite ela foi ficando cada vez mais atenciosa, carinhosa e eu podia fazer o que fosse que não levava bronca. Pensei que ela via em mim um grande talento, um futuro brilhante pela frente. Eu finalmente havia sido reconhecido.

No momento em que eu acreditava

estar tudo bem, meus pais foram mais uma vez convocados a conversar com a junta disciplinar da escola (a surra era uma questão de tempo), mas desta vez havia psicólogos, pedagogas e a “porra” toda. Eu já conseguia sentir as dores que o cinto iriam causar na minha pele, as ordens do meu pai me mandando tomar banho gelado (eu nunca entendi porque eu tinha que tomar banho gelado depois de uma surra), e as tardes de domingo onde era possível ver meus amiguinhos jogando bola enquanto eu cumpria o castigo. Nada disso aconteceu!

No outro dia eu estava frequentando

uma psicóloga que me perguntava sobre 15


tudo o que eu fazia, o que pensava ou o que sentia. Todos falavam baixo comigo, eram amorosos e eu comecei a gostar... Aos olhos de todos, eu simplesmente estava ficando louco, tudo que eu fazia havia

respaldo,

perdão. Aquela

vida

cheia de regras havia chegado ao fim. Eu era o dono do mundo e, seja lá o que estivessem pensando a meu respeito, eu simplesmente não ligava. Desde que as coisas permanecessem daquele jeito.

Continuei a colorir e coloria cada vez

mais, nas paredes de casa não havia mais onde rabiscar, mamãe chegou a pintar as paredes do meu quarto como quem me entregasse uma nova tela em branco para colorir e continuar extravasando toda a arte guardada em meu peito.

Papai, proibido de me bater ou gritar

comigo, perdeu completamente o juízo ao chegar a casa e notar que sua farda estava toda rabiscada (eu só queria deixa-la camuflada). A verdade é que papai nunca foi ligado a arte. Pela primeira vez eu não apanhei, pelo contrário, fui convocado para uma conversa de homem para homem.

- Filho, estamos todos preocupados

com você, mas parece que nada está adiantando, nem os psicólogos estão conseguindo decifrar o que está se passando em sua cabeça. Você deve se perguntar o porquê das visitas ao 16


psicólogo, o cuidado excessivo que sua mãe e eu estamos tendo com você, né?

Eu permaneci calado. - Eu não

queria saber o por quê, só sabia que era bom para mim.)

- Há alguns meses, a professora

Donêmia nos chamou para mostrar os seus desenhos e ficamos perplexos com o que vimos.

Claro! Papai jamais aceitaria um

artista dentro de casa, artistas eram como vagabundos em sua visão militar.

- Vimos o céu na cor roxa,

flores negras, pessoas esculpidas com sangue, nuvens lilás, tudo muito sombrio. Assustador até para o seu pai que já viu a morte de perto na guerra. Por que você não usa cores alegres?

- Papai, um dia eu saí para o recreio,

e esqueci minha mochila aberta. Alguém roubou meus lápis de cores e só deixaram aqueles. Eu não pedi outros com medo de levar uma surra.

Naquele momento ele se levantou e

me bateu por ter colorido sua farda.

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Enfim...

Consegui meu primeiro

emprego, minha mãe nem acreditou quando contei a notícia, lembro-me de cada palavra que disse:

- Meu filho, eu não aguentava

mais mandar você arrumar um emprego, já havia até aceitado o fato de que você jamais iria fazê-lo.

Naquele momento pensei em dizer

que era tudo mentira e pedir demissão antes mesmo de começar no novo emprego. Essa é a verdade: eu não gosto da ideia de ter que trabalhar, cresci ouvindo meu pai entrar em casa resmungando após o trabalho: - “aquilo é o inferno!”. Eu simplesmente aprendi que trabalhar era ruim, muito ruim. Quando ele me disse que eu precisava arrumar um emprego, senti logo a chama deste mesmo inferno queimando as minhas costas... Mesmo assim sai em busca de emprego, acabei encontrando muito trabalho. Logo no primeiro dia, ganhei um crachá com a minha foto, nome e o cargo importante que eu iria executar dentro da empresa: Office Boy.

Eu tinha tanto orgulho que não

tirava o crachá do pescoço nem quando saia da empresa. Lembro que as mulheres começaram a notar minha existência, principalmente a Dona Rosa, que do nome havia herdado o perfume de todas as rosas, 19


de todos os campos, de todo o mundo. Como ela era linda, beleza intocável, sorriso cativante e uma boca carnuda que eu adorava observar toda vez que ela pronunciava meu nome. Seu único defeito era ser esposa do dono da empresa, talvez seja por isso que eu demorei tanto para me tocar que ela estava dando em cima de mim, mas essa é uma longa história que eu termino depois...

Como

eu

havia

acabado

de

começar em meu primeiro emprego, meu pai resolveu presentear-me com algumas camisetas US. TOP. Sim, meus caros amigos, aquelas que no comercial diziam: - “bonita camisa, Fernandinho”. Então, comecei a usá-las para ir ao trabalho, mas ao contrário do que dizia a propaganda, pouquíssimas pessoas percebiam que eu usava as famosas camisas US TOP, já que, na verdade, todos os homens do escritório também usavam as camisas do Fernandinho. Mas, dona Rosa sempre me elogiava, passava a mão em meu ombro e se aproximava de mim nas horas do cafezinho - coisa que eu nunca gostei de tomar, mas como sabia que dona Rosa sempre se aproximava nessas horas, eu não resistia e acabava encarando aquela bebida horrorosa só para ter momentos de diálogo com ela.

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As camisas novas fizeram minha

autoestima ir às alturas, mesmo com uma quantidade incrível de espinhas em meu rosto. O lado bom das espinhas é que elas serviam de desculpas para passar mais tempo no banho, eu sempre gritava de dentro do banheiro:

-

Estou

espremendo

minhas

malditas espinhas!

Ao passo que meu pai dizia...

- Mulher, (minha mãe) quanto mais

você incomodar, mais ele vai demorar nesse banheiro, acredite!

Até o dia em que minha mãe

adentrou no banheiro e me pegou lavando minhas partes íntimas. Mas eu fui logo explicando à mamãe:

- O pinto é meu. Lavo na velocidade

que eu quiser.

Ops... De volta ao trabalho e à

maravilhosa dona Rosa, que por sinal era o motivo dos banhos demorados e a minha total falta de preocupação com questões relacionadas à sustentabilidade, economia do lar dentre outras cositas más. Em um dia normal de trabalho, acabei ficando até mais tarde no escritório separando algumas cartas que os Correios entregaram um pouco mais tarde que o habitual. Quando me dei conta estavam no escritório apenas dona Rosa e eu. De repente, ouço aquela suave voz a me chamar e prontamente 21


corro até sua sala.

Ela olhou fixo em meus olhos,

levantou-se da cadeira e andou em minha direção dizendo:

- Filho, você tem namorada?

- Não senhora.

- Já teve alguma?

Eu me sentia pressionado a ponto

das minhas espinhas estourarem:

- Não senhora.

- Gostou do vestido que eu estou

usando?

- Ah... Sim senhora, é muito bonito.

Dona Rosa subitamente começou a tirar a roupa, segurou o vestido com uma das mãos e, com um leve sorriso no rosto, me disse:

- Pega, ele é seu.

Nesse momento, preciso confessar,

eu estava em transe, numa dúvida cruel entre desmaiar ou ejacular ali mesmo, antes mesmo que ela me tocasse.

- O vestido é todo seu, segure-o! Ela

exclamou mais uma vez e emendou a fala antes que eu pudesse raciocinar sobre o que estava acontecendo ali naquela sala: E eu também sou toda sua!

Era do conhecimento de quase

todos que dona Rosa não era nenhuma flor que se cheirasse, em pouco tempo eu havia descoberto uma meia dúzia de casos extraconjugais dela. Na Rosa 22


haviam espinhos, mas quem ousaria negar o fogo e o desejo que ela transbordava pelos quatro cantos do escritório com suas pernas torneadas, seus cabelos negros e compridos, seios fartos capazes de alimentar uma grande família. Desculpemme a depravação, mas ela tinha o poder de me deixar assim. Quando dei por mim, estava em seus braços e, naquela noite, tivemos nossos cinco ou seis minutos de prazer, minutos esses que eu jamais esquecerei em minha vida.

Durante meses alimentamos um

relacionamento, que a essa altura já poderia ser classificado como longo em tempo e bem curto em ato, devido a minha velocidade sexual e minha juventude.

Em um dia comum de hora extra,

cometemos uma grande falha. Uma das faxineiras ainda não havia deixado o prédio e a porta da sala de Rosinha (pois eu já tinha intimidade o suficiente para deixar o dona de fora) havia ficado entreaberta. Que erro! Dona Raimunda (com quem eu jamais gostaria de ter intimidade para chamá-la de Raimundinha) era a “puxasaco” do chefe e no outro dia delatou tudo o que havia visto. Para a minha surpresa, dona Raimunda havia visto apenas um homem vestindo uma camisa xadrez, igual a do comercial U.S TOP. Amigo, naquela época todo mundo tinha uma camisa 23


xadrez daquela. Eu arrisco dizer que a camisa do comercial do Fernandinho jamais me promoveu dentro de uma empresa, mas com toda certeza salvou minha vida e consequentemente, o meu emprego.

24

Obrigado papai, adorei o presente.


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Estava

lá no meu armário, a

vista de qualquer um... A princípio eu tentei negar dizendo que não era meu, que alguém estava tentando me sabotar. Nada iria adiantar! Tudo o que eu falasse em minha defesa só faria minha situação piorar. O sutiã estava lá e eu não tinha o que fazer a não ser aceitar o fato de que mais uma vez as pessoas iriam fazer chacota de mim, acabar com a pouca reputação que

eu

dispunha

e,

provavelmente,

eu teria que mudar de escola, trocar de amigos e começar uma nova vida com a ajuda do serviço de proteção a testemunhas do governo. Naquela época o homossexualismo era visto de forma bem pior da que vemos hoje.

Uma roda estava aberta ao meu

redor e as risadas chegavam a ser ensurdecedoras, as pessoas gritavam nomes que não valem a pena serem repetidas aqui nem em qualquer outro lugar. Até que a Dani, a menina mais cobiçada da escola, a mais bonita e inteligente de todas, segura em minha mão, beija o meu rosto e grita:

meu!

Estamos

namorando.

Obrigado, amor. Agora pode me devolver.

As gargalhadas deram espaço para

o espanto e o horror, afinal as pessoas não conseguiam entender como poderíamos estar namorando já que nossa última e 26


única conversa tinha sido bem diferente daquele momento em que ela me defendia. Ainda me lembro do dia em que cruzei com ela no corredor, quando ela me chamou e eu, trêmulo, fui ao seu encontro... Aquela voz meiga e charmosa disse:

- Oi, você estava na aula de

Educação Física?

-Nã... Nã...Não! Por quê?

- Você está fedendo!

E deu as costas dando risadas com

outras duas amigas. De repente, ela volta dizendo:

- Estava brincando com você, mas

agora é sério. Estou trabalhando numa empresa de turismo e queria saber se você tem interesse em viajar nas férias?

- Pra onde?

- Marte ou qualquer outro lugar de

gente esquisita.

Novamente deu as costas com

as amigas dando gargalhadas e falando como eu poderia ser tão idiota.

Devido a essa única conversa, era

do senso comum esperar alguma piada de mau gosto que iria piorar ainda mais a minha situação, mas nada aconteceu, ela me tirou daquele lugar e eu era grato. Com o passar do tempo começamos a conversar sobre tudo, eu me tornara seu confidente e melhor amigo. Ela dizia que as antigas amizades estavam estragando-a, 27


e eu não tinha como não concordar. Ela estava muito mudada. Nossa amizade estava se transformando num verdadeiro amor, a gente sorria e chorava juntos, ouvia músicas, falava mal dos outros e caminhava pela escola abraçado. Tudo era perfeito quando estávamos juntos.

Um dia fomos fazer um trabalho

sobre sexualidade e ela preferiu fazer em sua casa, já que os pais passavam o dia todo fora e isso nos daria mais liberdade para realizarmos o trabalho. As coisas conspiravam a meu favor, ela queria o mesmo que eu: tornar verdadeiro o nosso relacionamento falso. Assim que cheguei à sua casa fomos direto para o quarto:

- Estou usando aquele sutiã, quer

ver?

Tirou a blusa e eu me aproximei

para ver de perto aquela beleza. Seios pequenininhos, ainda em formação, lindos e intocados:

- Pega neles, estão crescendo!

Eu peguei, passei a mão em seu

rosto, acariciei sua nuca e beijei sua boca. Ela me empurrou, gritou, xingou, ficou tão furiosa com o beijo que eu não podia acreditar em tamanho nervosismo da parte dela, eu não entendia o que estava acontecendo:

- Nós somos amigos. Como você

tem coragem de ir contra os seus instintos? 28


Você não precisa me provar nada, gosto de você do jeito que é.

Eu estava justamente seguindo

meus instintos quando a beijei. Ela continuou...

- Ser homossexual não é nenhuma

vergonha. Eu me sinto bem ao seu lado, você é diferente dos outros que só se aproximavam de mim com segundas intenções. Vou fingir que isso nunca aconteceu pelo bem da nossa amizade.

Eu estava disposto a explicar que o

sutiã que estava em meu armário não era meu e sim da Rosinha, mulher do meu chefe que, após a primeira de muitas vezes que fizemos sexo, havia me dado de presente. Mas preferi deixar que ela continuasse acreditando no meu eu homossexual. Era melhor assim do que viver longe dela.

Como dizia o comercial da Valisere,

“O primeiro sutiã a gente nunca esquece”. Ainda mais aquele branco, que havia se tornado um pesadelo em minha vida.

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Sandra

Amorim, ou Sandrinha

caso prefiram, era uma loira daquelas de parar o trânsito. Eu diria que parar o trânsito é pouco para resumir tamanha beleza, já que nos tempos de hoje, com o respeito às faixas de pedestres, qualquer pessoa pode parar o trânsito. Sandrinha era pau de dar em doido, cassetete de Policial Militar em dias de manifestos, que castigam e deixam marcas espalhadas pelo corpo. A principal qualidade de Sandrinha era sua charmosa nádega que desfilava por todo quarteirão. Seu maior defeito? Aquele corpinho tinha dono: Roberto, um cara gente fina e boa praça, todos na redondeza gostavam do cara, ele vivia no bar do Pereira, em dia de pagamento a primeira rodada sempre era dele, na roda de samba ele puxava no cavaco e na gafieira era o primeiro. Carregava como apelido Roberto Brahma, pois não aceitava outra bebida. Talvez seja por isso que ninguém no bairro ousava mexer com Sandrinha, ao contrário, todos respeitavam; mas confesso que no fundo ninguém conseguia não olhar para aquela formosura que Deus resolveu colocar no mundo para adoçar a boca do Roberto Brahma e colorir os olhos de todos os homens do bairro.

Certo dia, Sandrinha se

aborreceu, pois não aguentava mais ser trocada por outra, que também era loira, 31


e resolveu terminar tudo. Sandrinha queria mais atenção, mais amor, mas Roberto Brahma já tinha sua número 1. No dia em que ela terminou, lá se foi Roberto chorar no bar do Pereira com sua loira preferida. Todos no bairro diziam que Sandrinha aguentara mais do que qualquer outra mulher seria capaz.

Vocês devem estar se perguntando

onde eu entro nessa história? Sandrinha me usou para fazer ciúmes no Roberto Brahma. A principio, eu gostava. Tinha ao meu lado uma mulher de causar inveja a qualquer um, mas ao contrário do respeito que tinham com Roberto, eu não desfrutava dessa mesma paz que ele tinha - eu era franzino, baixinho e, na medida do possível, um cara fora dos padrões normais da sociedade... Eu era feio! Andava ao lado dela de mãos dadas e nada. Todos mexiam, carros buzinavam, minha estima estava indo à lona e minha macheza estava se perdendo, definhando com o passar do tempo. Comecei a fazer luta, mas logo percebi que seria impossível bater em todos que mexiam e desejavam Sandrinha. Percebi que aquele cara certinho, educado por militar, estava se perdendo por conta de um amor louco que não era correspondido. Eu sentia que ela até tinha um carinho por mim, mas não o mesmo amor que alimentava por Roberto 32


Brahma.

Um dia, já cabisbaixo e derrotado,

fiz o que nunca havia feito em toda a minha curta vida: fui ao bar. Sentei e comecei a beber. Sandrinha foi me buscar e não me lembro de nada ou quase nada, pois ainda conseguia ouvir os gritos e assobios que ela ouvia enquanto me carregava. No outro dia, a cena se repetiu, e assim por vários dias, até que Sandrinha chega, em uma dessas vezes, no bar para me buscar e me flagra bebendo, fumando (eu explico depois esse lance de fumar.) e dando boas gargalhadas na mesma mesa de Roberto Brahma. Estávamos nós dois conversando e dando risadas dos defeitos e qualidades de Sandrinha. Aquilo foi a gota d’ água para ela. Terminar comigo foi mais fácil do que terminar com o Roberto, e ela o fez ali mesmo, na frente de todo mundo.

Tempos depois fiquei sabendo que

Sandrinha, aquela maravilha de mulher pecadora, havia entrado para um convento próximo de onde morávamos, Robertinho e eu continuamos amigos, o cara era gente fina mesmo. Sandrinha simplesmente aceitou e compreendeu que nem ela, com toda a sua beleza, poderia ser mais importante na vida de um homem do que a numero 1 do Brasil. A Brahma nossa de cada dia.

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Eu já disse que mamãe sempre sonhou em ter uma menina? Alguém com quem conversar, desabafar, ensinar a cozinhar e poder, através da filha, realizar os sonhos que ela não pode realizar por ter tido uma infância de poucos recursos.

Mamãe já havia traçado um plano

de uma vida inteira da criança que ela já amava sem nunca ter visto. Pintou o quarto de rosa, comprou enxoval, bonecas e tudo que uma linda princesa deveria ter. Até que um dia, numa consulta rotineira o médico lhe disse.

– Parabéns mãe, é menino. – Ele

estava falando de mim.

O médico com a notícia e papai com

as mudanças. Acabaram em poucas horas todos os sonhos e planos que mamãe havia traçado para a pequena Izabela, com z de princesa Izabel. Papai jogou tinta azul nas paredes, comprou uniforme de time de futebol, trocou o enxoval, comprou bonecos e carrinhos. Mamãe fingiu que estava tudo bem, mas todos podiam notar sua decepção em ter um filho homem. Verdade seja dita: ela sempre me deu todo o amor e carinho do mundo, mas sempre viveu com a sombra de um sonho que não havia realizado. Mais um.

Um dia mamãe pareceu perceber

que era possível realizar seus sonhos por meio de um filho homem. Traçou cada 35


passo da minha infância e começou a sugar minha juventude, mamãe me ensinou a tomar chá das cinco, me levava para as reuniões das mulheres, fazia minhas unhas, permanente nas madeixas e me proibia de brincar com os outros meninos porque achava a rua um lugar muito perigoso, eu jogava bola de gude no tapete de casa, soltava pipa no ventilador, participava do coral da igreja, recitava poesias, tocava trompete e tinha aulas de canto lírico. Meu fim só não foi terrível porque papai, sem saber, contrabalanceava as atividades de mamãe me levando para pescar piranha no rio, caçar veados na floresta e paquerar as meninas.

Eu cheguei ao fundo do poço ainda

jovem, quando ouvi mamãe conversando com dona Claudite e dizendo que não via a hora do meu aniversário de quinze anos chegar. Ela já podia visualizar como seria meu baile de debutante, com direito a valsa e tudo mais. Morri naquele momento, mas rapidamente tracei um plano para mostrar a mamãe quem era o homem da casa nas tardes em que papai estava trabalhando no quartel.

Eu precisava fazer alguma coisa,

e fiz! Descobri muito cedo como irritar as mulheres, comecei “mijando” na tampa da privada (era bom ouvir os gritos da mamãe: - levanta a tampa, infeliz!), em seguida, 36


largava as toalhas molhadas sobre a cama, retirava o papel higiênico e deixava ela gritando por vários minutos em busca de um pedacinho de papel para se limpar e usava todos os seus cremes e shampoos. Fiquei muito bom em irritar mamãe, e a cada dia eu gostava mais de pentelhar e retribuir todos os anos que passei sobre as rédeas dela.

Só que em um dia eu fui longe

demais... Mamãe, após o banho adorava passar no corpo Seiva de Alfazema, aquele que era passado de mãe para filha, aquele liquido, para ela, era mais que precioso, era o grande segredo de sua vida, o responsável por deixar sua pele macia e cheirosa durante todo o dia já que nem as várias horas na cozinha eram capazes de extrair aquele cheiro da sua pele. Em alguns segundos eu desperdicei um pote que durava semanas. Foi sair do banho quente e ela já havia sentido o cheiro do produto e o mal que eu tinha feito a ela. Naquela tarde, o que esquentou e amacio minha pele não foi à água quente do chuveiro, tampouco o óleo que eu havia passado em meu corpo e, sim, uma tarde inteira de boas e belas lapadas de cinto nas costas.

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Eu aprendi muita coisa com meu pai e a mais importante delas foi nunca perguntar quanto alguém ganha pelo seu trabalho. Papai tinha uma maneira muito lúdica de me ensinar as coisas. Certo dia ele estava sentado no sofá e eu inocentemente perguntei:

- Pai, quanto o Senhor recebe por

mês?

-

Está

faltando

alguma

coisa

em casa? Se estiver, me diga que eu providencio.

Grosso como uma porta, mas um

sábio dos tempos modernos. A verdade é que estava faltando alguma coisa, mas de qualquer forma não adiantaria falar, ele jamais iria me dar.

Apesar

de

crescer

com

os

ensinamentos de um militar durão, aprendi que a escola consegue estragar qualquer criação que você venha a dar para um filho; e, foi assim que eu comecei a me envolver com politica e com a democracia. Esta última que ia contra os pensamentos de um militar que apoiava uma ditadura pesada e sofrida. Se meu pai ao menos sonhasse que eu estava me envolvendo com politicagem, manifestos e protestos que tumultuavam a cidade em busca de um País melhor, meu pai me mataria. Para ele, um Brasil bom era um Brasil governado pelo exército. 39


Eu era apenas um em meio à uma

multidão de caras pintadas, empunhando faixas e gritando frases ensaiadas contra o governo e a favor da democracia. Difícil era explicar e esconder as marcas de cassetetes nas costas - eu vivia dizendo que havia caído de bicicleta e meu pai balançava a cabeça resmungando:

- Não serviu de nada comprar uma

bicicleta pra esse moleque enquanto ele ainda era novo. (Lembram-se da minha Caloi rosa?)

Quando

eu

chegava

a

casa

molhado, dizia que tinha pegado chuva do outro lado da cidade, que tinha me molhado na mangueira na casa de um amigo ou ficava na rua até me secar com o vento gelado da grande cidade. Minhas roupas duravam pouco ou quase nada, sempre eram rasgadas nos inúmeros protestos que eu participava. Também! Nós éramos arrastados pelas blusas, calças ou cabelos, tomávamos banho de mangueira e recebíamos porradas com cassetetes. O melhor era a noite, em casa, já que assistíamos ao jornal enquanto jantávamos. Eu ainda podia sentir a dor das bordoadas que havia levado de tarde ao mesmo tempo que o noticiário informava à população que, enquanto eles levavam suas “vidinhas”, inúmeros jovens saiam as ruas para lutar por um Brasil melhor; 40


esse mesmo Brasil que faria bem à vida de todos. Meu pai balançava a cabeça e esbravejava indignado:

-

Esses

moleques!

Se

ainda

estivéssemos na ditadura, eu mesmo teria o maior prazer de arrebentar um por um. Bando de sem ter o que fazer, deveriam estar na escola estudando, aprendendo algo que não seja gritar e quebrar toda a cidade. Acho pouco! Apanhar é um bem que os policias fazem a eles.

Mal sabia ele que a policia, segundo

seu ponto de vista, também estava me fazendo um bem. E que bem. Ai... Quanta dor!

Ele continuava dizendo:

- Se um dia você se meter com

esses imbecis, eu acabo com a sua vida, bebo o seu sangue.

Às

vezes,

ele

conseguia

ser

ameaçador, mas no fundo era um homem que falava mais do que fazia, um cara acostumado a dar ordens no exército sem ser contestado. Coitado do papai. Seus dias como mandão haviam chegado ao fim junto com a aposentadoria e a dor nas costas por conta de duas hérnias de disco.

Tudo

ia

bem.

Aos

poucos,

conseguíamos mudar algo aqui, algo ali, até o dia em que eu fiquei em destaque; sem perceber, eu me tornara o líder daquele movimento, as câmeras flagraram 41


o momento em que eu dava as costas e rebolava frente a uma linha de policiais que vinham com tudo para cima da gente. Claro! Eu virei o principal alvo, qualquer policial gostaria de meter a mão no vagabundo que mostrou a bunda para eles.

Mesmo que eu não fosse pego,

nada iria resolver a minha situação: eu era capa dos principais jornais do dia seguinte, meu pai finalmente iria por as mãos em mim, e isso ia doer mais do que qualquer porrada que eu já havia levado na rua. Mas os jornais não foram necessários para que ele descobrisse minha dupla jornada, dividida entre ser filho de “milico” e líder de manifestações politicas. Ainda bem que, quando meu pai foi até a delegacia me buscar, eu já tinha apanhado o suficiente, restando ao meu pai apenas o diálogo...

Lembro-me de cada palavra que ele

me disse:

- Eu te dei tudo, você não podia

ter feito isso comigo, eu fui um bom pai, te dei uma boa educação, você sempre frequentou as melhores escolas. Me diz aonde foi que eu errei?

Fiquei realmente chocado com todas

as palavras do meu pai, aquele homem durão não estava ali, havia deixado o lado pai prevalecer, eu conseguia ver os olhos dele mareados de emoção. Ele continuou 42


dizendo:

- Você precisa mesmo ficar na rua

levando porrada de estranho, jatos d’água na cara, sendo arrastado pelas roupas e fugindo de policia como se fosse um bandido?

Eu expliquei ao meu pai todas as

minhas ideologias, tudo o que realmente importava para mim. Disse a ele que gostaria de fazer parte da história como uma das pessoas que fizeram desse País, um lugar melhor para viver. Ele simplesmente não entendeu, não me deu razão e ainda me olhou com aquele ar de desprezo que eu odiava. Eu levantei e tive a atitude mais louca e rebelde de toda a minha vida:

- Eu uso calças sem processo

especial de lavagem, não são resistentes e não tem um bom caimento. Isso mesmo pai! Eu quero usar Staroup. Por isso eu protesto.

Lembrei da mamãe que adorava

fazer piada...

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44


Eu

ouço passos de pessoas

mortas... Depois de muitos anos consigo dizer isso sem entrar em pânico, sem ter vontade de me cobrir com o edredom mesmo nas noites mais quentes de verão (ao menos coberto eu me sentia protegido). Eu não podia, simplesmente, contar a um militar de alta patente que eu ouvia passos pela casa, ele jamais aceitaria um filho insano e medroso. Mamãe, com todo o seu catolicismo não entenderia e ficaria o resto da vida preocupada comigo. Então, eu resolvi enfrentar tudo sozinho, mas foi ficando cada vez mais difícil.

Começou numa noite em que eu,

deitado no meu quarto assistindo a TV, quase que sem som - o que facilitou- pude ouvir os passos descendo as escadas pela primeira vez. Foi horrível. Passo a passo ele transitava pelos corredores, passava em frente ao meu quarto e eu só queria poder gritar; passei noites e mais noites em claro, durante o dia eu parecia um zumbi (essa foi mais ou menos a época em que queriam me internar por conta dos meus lápis de cores). Eu simplesmente não aguentava mais ouvir aqueles passos, não poder contar para ninguém, me sentindo um completo louco lunático que havia trocado o dia pela noite (sim, de dia eu conseguia dormir), até que um dia resolvi peitar o problema como um homem. Bom, 45


eu não sei se um homem se rastejaria no chão para olhar pela fresta da porta e assim conseguir descobrir do que tratavam aqueles passos. Então, mais ou menos no mesmo horário de sempre começaram os passos, quando eles vinham em direção ao meu quarto, para passar em frente a minha porta, lá estava eu como um gato, na espreita para dar o bote e por um fim à minha angústia. De repente eu vejo um sapato preto, bonito, diferente de tudo que eu havia imaginado. Naquela noite fui dormir encucado com os sapatos bonitos e limpos que tinha visto, mas, pela primeira vez, dormi aliviado; seja lá qual fosse o tipo de fantasma não mais me parecia assustador como antes.

Na manhã seguinte, bem na hora

do café, eu escuto o mesmo som daqueles sapatos: era meu pai descendo para se juntar a nós. Não restavam dúvidas. Era o mesmo sapato, o mesmo que eu já havia visto em um comercial de TV. Um legítimo 752 da Vulcabras. Além de ser uma beleza de sapato, era também uma senhora de uma centena. Aquilo me deixou perplexo. Minhas dúvidas chegaram ao fim quando eu descobri que meu pai saia todas as noites, cheiroso e perfumado para se encontrar com outra mulher. Sabia que mamãe não desconfiava pois tinha o sono pesado e todos os dias eu a via amorosa 46


com papai.

Naquele dia eu preferi viver com a

ideia de que ouvia gente morta do que com a dúvida e a tristeza de não saber o que fazer com aquela informação: se conto para a mamãe, eles se separam, papai iria me odiar e mamãe sofreria o resto da vida; se não conto, estaria eu, o filho amado, enganando a própria mãe. Depois de meses, ainda era possível ouvir os passos nas escadas. Resolvi fazer diferente. Fingi acordar em pânico, corri até o quarto da mamãe e pulei em sua cama. Ela acordou assustada e, depois de me acalmar, eu pude notar que ela não havia reparado que papai não estava ao seu lado, então eu tive que perguntar:

- Cadê o papai?

- Saiu meu filho!

Fiz-me

de

rogado

e

emendei

dizendo:

- Ah... Então são os passos do papai

que escuto todas as noites?

Ela emudeceu naquele momento,

percebi em seus olhos a força do seu constrangimento. Pronto! Ela está pronta para me contar que papai tem outra família, outros filhos e leva uma vida dupla enquanto ela, por amor, aceita tudo calada. Talvez nós sejamos a outra família.

- Filho, acho que você já está

grandinho

para

saber...

Seu

pai

é 47


viciado em jogo. Para que você nunca desconfiasse, ele sai todas as noites para jogar, com horário marcado para ir e voltar. O maior medo dele é que você siga esse péssimo exemplo.

Aquilo me fez bem de várias

maneiras. Descobri que papai era humano e também cometia erros como qualquer um de nós.

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O amor é o caminho mais curto para o álcool... Eu descobri isso quando a Claudinha me deixou e acabou indo parar no convento. Eu virei o melhor amigo do exnamorado dela, o Roberto Brahma, mas, nesse dia, ele não pôde se encontrar no bar comigo; estava em um encontro (não tão secreto, pois eu havia descoberto que Claudinha e ele estavam se encontrando dentro do convento). Um pecado mortal que eu também cometeria por aquela mulher. Perdão meu Deus!

Sentei-me no bar pouco prevenido

para a quantidade que eu gostaria de beber, mas mesmo assim “sentei o pau” de “chamar o velho” e ele vinha. Vinha com força, descia suave e a cada gole eu me sentia melhor, mais forte e, mesmo assim, as lagrimas não cessavam. Eu estava deprimido quando Pereira deu a volta no balcão e disse:

- Vou chamar o velho!

- Traga que eu estou com sede.

- Estou me referindo ao seu velho!

- Traga, que ele me paga um trago.

- Não! Vou chamá-lo para que ele te

leve a casa.

- Só vou para casa se o velho for

comigo.

-

Ele

virá

te

buscar

consequentemente, voltará com você!

50

e,


- Então, traga-o!

- Seu pai ou o velho?

- Traga o velho que irá pagar e outro

velho para beber.

- Você não está em condições de

beber!

- Então não estou em condições de

pagar.

- Por isso vou buscar o velho.

- O velho que irá aumentar minha

divida ou o velho que irá saná-la?

- O velho que irá sanar a divida e

salvá-lo dessa bebedeira.

- Então deixe de conversa e vá

buscá-lo que eu estou sem dinheiro e com sede.

Naquele momento, pouca coisa

passava em minha mente a não ser o amor que sentia por uma freira pecadora que se encontrava às escondidas com meu melhor amigo. Sabia que meu pai, assim que chegasse ao bar, ficaria decepcionado; acho que ele nunca imaginou que um dia teria que buscar o filho embriagado no bar, iria me humilhar e ficar um mês inteirinho sem me dirigir a palavra.

Meu pai chegou e sentou-se a mesa,

chamou o Velho Barreiro e, pela primeira vez na vida, bebeu comigo. Conversamos sobre tudo, jamais havia conversado com meu pai daquela maneira - falamos sobre amor, futebol, esperanças e ele me disse o 51


orgulho que sentia do homem que eu havia me tornado, que beber por amor não vai trazê-la de volta, dedicação, talvez, sim. Mas que, independente dela voltar ou não, o que realmente eu precisava saber é que outros amores virão e que eu precisava aprender a viver com a dor de perdê-los até que eu encontrasse a mulher da minha vida, como ele encontrou minha mãe. As lagrimas continuaram a cair, só que dessa vez por um motivo muito melhor.

Descobri que o amor é o caminho

mais curto para o álcool... Mas também é capaz de encurtar o relacionamento entre pai e filho. Papai disse coisas que me fizeram pensar, mesmo estando em estado alcoólico elevado. Papai nunca havia bebido, mas naquele dia resolveu juntar-se a mim e ao Velho Barreiro.

Eu precisava de um amigo e meu

pai mostrou que, apesar da distância que havia entre nós, eu sempre poderia contar com ele. Lembrei na hora de um anúncio da Gelol que dizia: “não basta ser pai, tem que participar.” Naquele dia ele participou!

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Mulherzinha insuportável.

Nós

éramos

amigos

desde

a

infância. Pedro foi quem me apelidou de microfone da Xuxa na época que eu usava black power e andava com uma Caloi rosa. Ele arrumou meu primeiro emprego, onde conheci Rosinha. Pedro era como um irmão. Mas, do dia para a noite, eu simplesmente não o reconhecia mais. Em uma dessas festas aonde íamos, ele a conheceu. A mulher que iria mudar nossas vidas e acabar com a nossa amizade.

Começou devagarzinho, servindo o

prato na hora do almoço e levando para ele no sofá; servindo comida em sua boca e limpando com guardanapo; buscando e deixando em casa pra que ele não tivesse que pegar ônibus; fazendo massagens nos pés depois das peladas na praça. Até então todos elogiavam dizendo que Pedro havia tirado a sorte grande, toda a comunidade comentava a presteza daquela mulher.

Amélia existia e estava bem ali,

estragando e distanciando de mim um dos meus melhores amigos.

Pedro não precisava mais escolher

entre suco ou refrigerante, ela servia os dois. Carne ou frango, jogar bola ou ir ao cinema, café ou copo d’água. Ela realizava todos os desejos e pedidos que Pedro fazia e isso acabou afetando a cabeça dele. 54


Do dia para a noite ele começou a

se sentir melhor que todo mundo, nada estava bom o suficiente para ele, aquele menino brincalhão e simples havia dado espaço para um moleque boçal.

Tudo dele era do bom e do melhor.

Eu não tinha inveja, pelo contrário, estava feliz com sua realização. Ele ia ao shopping e podia comprar tudo: videogame último lançamento, tênis da moda, discman...

Minha preocupação era que Pedro

não estava trabalhando. Como ele iria pagar todas aquelas coisas? Minha preocupação vendo o Pedro se afundar em dívidas, fez com que eu procurasse saber de onde vinha tanto dinheiro. Será que a nova namorada de Pedro era rica e, além de fazer todas as suas vontades, ainda estava dando dinheiro a ele?

Sem que ela percebesse, consegui

segui-la até o trabalho. Um banco onde ela era a gerente. Estava explicado o cartão de crédito que Pedro ostentava para cima e para baixo, contando todas as suas vantagens e benefícios. Foi nesse dia que descobri que aquela Lucia Helena do UNIBANCO mimava demais meu examigo.

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