Stylus 22

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escola de psicanรกlise dos fรณruns do campo lacaniano - brasil

Stylus revista de psicanรกlise

Stylus

Rio de Janeiro

nยบ22

p.1-180

maio 2011


© 2011, Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (AFCL/EPFCL-Brasil) Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito.

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FICHA CATALOGRÁFICA

STYLUS: revista de psicanálise, n. 22, maio de 2011

Rio de Janeiro: Associação Fóruns do Campo Lacaniano Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil - 17x24 cm Resumos em português e em inglês em todos os artigos. Periodicidade semestral. ISSN 1676-157X 1. Psicanálise. 2. Psicanalistas – Formação. 3. Psiquiatria social. 4. Psicanálise lacaniana. Psicanálise e arte. Psicanálise e literatura. Psicanálise e política. CDD: 50.195

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sumário 07 editorial: Silvana Pessoa

ensaios 13 25

Joan Salinas-Rosés: A introdução da “pedra da loucura” Gabriel Lombardi: A fronteira entre o delírio e o laço social: a mediação do impossível

trabalho crítico com os conceitos 55 69 81

Colette Soler: O discurso capitalista Marcelo Amorim Checchia: O inconsciente é a política? Ronaldo Torres: Uma operação para a política do sinthoma

direção do tratamento 91 101 109

Dominique Fingermann: A política do sintoma na direção da cura Andréa Hortélio Fernandes: O real do sintoma: sua política na clínica Lia Carneiro Silveira: O que Marcélio sabia: desejo e gozo na constituição do sintoma

thesaurus: política 125

Marcelo Amorim Checchia, Renata Martins Constancio e Michele Borges Parola

resenha 161 169

Ida Freitas: Resenha do livro: “Psicanálise, lingüística, linguisteria” de Sonia Borges Alba Abreu: Resenha do livro: “Alteridade Feminina” de Carmen Gallano

Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 1-180 maio 2011

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contents 07 editorial: Silvana Pessoa

essays 13 25

Joan Salinas-Rosés: The introduction to “The madness stone” Gabriel Lombardi: The border between delirium and social bond: the mediation of the impossible

critical papers with concepts 55 69 81

Colette Soler: The capitalist discourse Marcelo Amorim Checchia: Is the unconscious politics? Ronaldo Torres: An operation for the sinthome politics

direction of the treatment 91 101 109

Dominique Fingermann: The symptom politics towards the cure Andréa Hortélio Fernandes: The real of the symptom: it’s politics in the clinic Lia Carneiro Silveira: What Marcélio knew: desire and jouissance in the symptom constitution

thesaurus: politics 125

Marcelo Amorim Checchia, Renata Martins Constancio and Michele Borges Parola

reviews 161 169

Ida Freitas: Review of the book: “Psicanálise, linguística, linguisteria”, by Sonia Borges Alba Abreu: Review of the book: “Alteridade Feminina”, by Carmen Gallano

Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 1-180 maio 2011

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Editorial O sintoma não é um tema novo para a psicanálise. Entretanto, a sua relação com a política não é evidente, o que justificou a pesquisa sobre o tema “O sintoma: sua política, sua clínica”, organizada pela Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil durante o ano de 2010, e a publicação de artigos sobre esse tema nesta e na próxima edição da Revista Stylus e que me faz, no momento, introduzir esta questão. O sintoma está na origem da invenção da psicanálise e, muito antes dela, com Marx, responsável pela noção de mais-valia, equivalente para a psicanálise ao termo mais-de-gozar. No seu âmago – o amor: ele é um problema de amor ou, dizendo de outra forma, da realidade sexual do inconsciente. Freud sabia disso e jamais deixou de implicar Eros na tentativa de manter o sujeito no laço social.1 O sintoma traz essa marca de compromisso e de uma renúncia pulsional. O Eros freudiano não está longe da função de amarrar, enodar os três registros – simbólico, real e imaginário – presentes na noção de sintoma nos seminários tardios de Lacan. A política, tema antigo também, presente desde a origem das cidades, tem no seu âmago um sistema de regras. Na tarefa de associação de pessoas numa comunidade, na procura pelo parceiro ideal ou na tentativa de corresponder aos ideais da cultura, o falasser encontra o desencontro, a não-relação, a falta-a-ser. A política possível para a psicanálise2 comporta essa dimensão da falta. Por isso, podemos dizer que o inconsciente é a política.3 Tratar o sintoma por esta política aponta para a incompletude na direção do tratamento, e, por mais paradoxal que isso possa parecer, esse é o seu poder. O problema é quando as armadilhas da contemporaneidade tentam camuflar essa fragilidade e a impotência com promessas de felicidade.4 O discurso do capitalista, trabalhado rigorosamente por Colette Soler em um dos artigos desta revista, tenta tomar a demanda pelo desejo. Engano neurótico que faz do sujeito um usuário do seu produto e não exige a renúncia pulsional, mas, ao contrário, instiga a pulsão, impondo ao sujeito determinadas relações com a demanda. Sem se dar conta, sustenta, sobretudo, a pulsão de morte. Esta tal máquina de gozo instalada por esse discurso na cultura está longe de ser desejante. Para essa ausência de saída do discurso capitalista, Lacan propõe o discurso do psicanalista. A clínica psicanalítica, que trata do mistério do corpo falante, é uma prática de falação que pode ter efeitos sobre o corpo e sobre os sintomas nos tempos atuais. Ela tenta restaurar o lugar do desejo, reinstaurar a verdade do sujeito, a Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 7-10 maio 2011

1 Freud, (1930) Mal-estar na cultura. In : Obras Completas da Standard Edition. Rio de Janeiro: Imago 1974. p. 121.

2 Lacan, (1958) A direção do tratamento e os princípios do seu poder. In : Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

3 Lacan,

Le Séminaire: La

logique du fantasme (19661967, p. 236). In : Thesaurus. Stylus 22. Rio de Janeiro : Associação Fóruns do Campo Lacaniano, 2011.

4 Lacan,. O seminário – livro 7: A Ética da psicanálise (1959-60) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. pp. 342-3.

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5 Lacan, (1974) Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, p. 34.

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castração, ou seja, o mal-estar na cultura, mas que “não constituirá num progresso se for somente para alguns”.5 Como fazer com que esta clínica não seja apenas para alguns? Responder a esta indagação implica uma política orientada por uma ética: a do bem dizer. Esta é a aposta da psicanálise: quanto mais e melhor muitos puderem falar daquilo que lhes causa, da sua falta-a-ser, dos seus sintomas, mais possibilidades de transformações neste modo de gozar do inconsciente e maiores possibilidades de ocupar novas posições no laço social, o que justifica investigar e justificar – ainda neste século – como os sintomas, que implicam diretamente o corpo, são tratados e muitas vezes, modificados por essa clínica da fala. A presente edição da Revista Stylus e a próxima são o resultado desta indagação. Agrupamos na edição número 22 – advertidos dos limites desta separação – os artigos que tratam prioritariamente do termo política, e na edição 23 o termo sintoma. Essa divisão justificou neste número a publicação de um Thesaurus, tomado aqui por uma licença poética, na sua acepção latina de tesouro. Nele, o leitor encontrará a maioria das referências à política na obra de Lacan. Esperamos que ele possa servir como fonte valiosa para futuras pesquisas dos que estudam a cultura e/ou tratam dessa questão na clínica. Neste número também estão vários outros artigos que merecem ser estudados pelo rigor com que tratam esta questão. Abre a revista o ensaio de Joan Salinas-Rosés, que articula de forma bastante interessante o que na Idade Média foi a “extração da pedra da loucura”, retratada num quadro de Bosch, ao que ele chama “introdução da pedra da loucura” na contemporaneidade, ou seja, a introdução discursiva no sujeito de significações únicas, imperativas do “direito próprio”, que têm como consequência o “genocídio da subjetividade”, a exacerbação do narcisismo e da Eucracia, como dizia Lacan. O ensaio seguinte, de autoria de Gabriel Lombardi, trata de um tema bastante importante para a política do sintoma na psicose. Ele define, de forma precisa, as principais características do delírio e do discurso, interrogando as relações mútuas entre eles e sustentando algumas distinções clínicas básicas para a psicanálise. Esse texto, originado de um curso, merece ser estudado, pois ensina sobre a clínica sutil do sintoma na psicose e a forma com que o homem delirante se exila do social e sobre a decisão política e a responsabilidade do homem social ao entrar nos discursos. Na seção “Trabalho crítico com conceitos”, além do trabalho de Colette Soler, já citado, contamos com o trabalho de Marcelo Checchia, responsável pela pesquisa do conceito de política na obra de Lacan, contemplada na seção Thesaurus. Esse autor nos brinda, de forma lúcida e bem articulada, com um artigo que discute a Editorial


afirmação de Lacan “O inconsciente é a política”. Trazendo uma articulação entre significante Um, falo e poder, ele fornece algumas chaves para entendermos o estatuto de política na obra de Lacan na sua dimensão simbólica e real. Ainda nessa seção também contamos com o rigoroso texto do Ronaldo Torres, que pensa a articulação entre sintoma e a política pela verleugnung, não pela vertente da constituição do sujeito perverso, mas pela relação do sujeito com o semblante. Ele propõe, com a sua leitura dos últimos seminários de Lacan, um resgate da tensão e da contradição que a verleugnung expressa entre o saber da castração e o “saber se virar” com isso. Defende que essa seja uma forma possível de fazer laço social ao final de uma análise – política do sintoma afeita ao que Lacan denominou discurso do analista. Vale a pena acompanhá-lo nessa instigante elaboração. A seção “Direção do tratamento” tem por texto de abertura “A política do sintoma na direção da cura”, de Dominique Fingermann. Nele, estão articulados, de forma inteligente e poética, os três tempos da cena psicanalítica orientada por uma política: a de saber lidar com a falta-a-ser e o mal-estar, “estrangeiridades” que assombram as luzes da pólis, mas que os psicanalistas sabem, são inerentes aos sintomas e à civilização. A psicanálise, afirma a autora, “não é uma operação de guerra contra o discurso capitalista, mas é uma partida acirrada na qual estratégia, tática e política contribuem para devolver ao sintoma seu alcance político, seu ‘efeito revolucionário’”. Essa política depende do seu operador: ato, desejo, discurso, função de analista, o que justifica uma leitura cuidadosa desse artigo por aqueles que ocupam esse lugar e estão nessa função na direção da cura: uma opção ética com consequências políticas. Verificaremos algumas dessas consequências políticas no artigo de Andréa Fernandes que, na sequência, aborda a mudança nas crenças do sujeito que procura uma análise e os efeitos clínicos disso na psicose e na neurose. Para o psicótico, haveria uma possibilidade de civilizar o gozo, favorecendo algum tipo de laço social, e para o neurótico a visada clínica seria poder deixar de acreditar no sentido do sintoma e de esperar a sua tradução. A autora afirma com muita propriedade que aquele que procura uma análise o faz por acreditar no sintoma, por atribuir-lhe sentido e por colocar o analista na posição de sujeito suposto saber disso. Entretanto, é sabendo da articulação do sintoma com o real, com o sem-sentido que o analista, colocando em pauta a destituição subjetiva desde o início da análise, recusando-se a aceitar um tom tranquilizador do inconsciente, pode provocar mudanças nas crenças de um sujeito em análise. Para finalizar essa seção, contamos com o artigo de Lia Silveira, Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 7-10 maio 2011

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que além de tecer comentários sobre o processo de alfabetização, momento de aquisição da linguagem escrita, traz considerações importantes sobre um sintoma comum na cultura: o “problema de aprendizagem”, e as respostas possíveis que a psicanálise e os psicanalistas podem dar a essa questão. Ela parte do exame da questão pelo discurso da ciência, do saber do especialista, que trata a questão como um problema de desenvolvimento ou como interferência de algum aspecto “psicossocial”. Prossegue analisando o estatuto do sintoma para a psicanálise, como índice do sujeito e das tensões que revelam entre este e seu desejo inconsciente, e conclui apresentando uma interessante vinheta clínica para articular brilhantemente os conceitos anteriormente apresentados e demonstrar a estratégia analítica na direção da cura. Na última parte desta revista contamos com a colaboração de Ida Freitas e Alba Abreu, que fizeram respectivamente as resenhas dos livros “Psicanálise, linguística e linguisteria”, de Sonia Borges, que se refere ao produto de uma vasta e rigorosa pesquisa teórica e prática sobre o tema; e o livro “Alteridade feminina”, de Carmen Gallano, decorrente das intervenções feitas na Universidade e no Fórum do Campo Lacaniano de Medellín, no ano de 1998. Ambas teceram comentários elogiosos ao rigor e ao estilo de escrita das autoras, recomendando fortemente a leitura. Para concluir, deixamos a promessa da publicação no próximo número da conferência de Colette Soler em Fortaleza, sobre “Repetição e sintoma”; os ensaios da Ana Laura Prates Pacheco, Silvia Amoedo e Elisabeth Rocha Miranda; os artigos de Jairo Gerbase, Sidi Askofaré e Silvana Pessoa na seção “Trabalho crítico com conceitos”; e os textos sobre a direção da cura, por Maria Vitória Bittencourt, Conrado Ramos, Lenita Duarte, Heloísa Ramires e Tatiana Assadi. Esperamos que gostem do resultado de nosso primeiro trabalho como Equipe responsável pela publicação da Revista de Psicanálise Stylus (2011-12), que façam bom proveito da leitura desta revista, contemplando cada um destes instigantes artigos, e que possam aguardar com boa expectativa o volume II, ainda por vir no segundo semestre! Silvana Pessoa

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Editorial


ensaios

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A introdução da “pedra da loucura”1 Joan Salinas-Rosés A experiência analítica tem sua “essência na função do mais-degozar”,2 na medida em que o “a” ocupa o lugar de agente. Essa função do mais-de-gozar também é encontrada nos outros discursos, mas é no discurso do mestre e no discurso do capitalista que o objeto a ocupa o lugar de produção, ou seja, produz-se um mais-de-gozar. Nós, lacanianos, que ainda nos propomos em decifrar as consequências do potencial subversivo do ensino de Lacan − talvez por já estarmos muito acostumados a uma certa rotina que nos faz dizer coisas que implicam graves consequências − não extraímos, em algumas ocasiões, efeitos bastante óbvios. Dizendo de maneira simples e como introdução: se vivemos em uma sociedade na qual esses dois discursos comandam as ações que todo sujeito exerce no social, no público − e por que não também no privado − e se somos coerentes com as teses de Lacan, a conclusão imediata não é efêmera, mas sim produtiva em seu desenvolvimento: sob a égide do discurso dominante não fazemos mais do que produzir grandes quantidades de mais-de-gozar, que em seguida nós mesmos nos encarregamos − nem sempre pacificamente − de consumir, de ingerir e não necessariamente por meio da oralidade. A isso podemos acrescentar: esse mais-de-gozar, que não é mais do que diversos objetos a, a que finalidade serve? De maneira mais precisa: a quem serve esse mais-de-gozar que produzimos em nosso existir? Respondo parcialmente: não serve senão a nós mesmos em nossa face moebiana de produtores/consumidores e, se por um lado, isso satisfaz os mandatos de nosso mestre moderno, o grave, o mais grave é que também parece satisfazer − é evidente! − aos sujeitos de nossa época. É certo que, embora de diversas formas, sempre foi assim; na modernidade existem particularidades de complacência a respeito dos efeitos do discurso do mestre que merecem ser especificadas. É certo também que, em contrapartida, afortunadamente temos o discurso do analista, no qual o mesmo objeto a ocupa o lugar de agente e determina toda a lógica do discurso. Dizendo de maneira rápida: não lhes parece que A subversão do sujeito e a dialética do desejo − escrito por Lacan em 19603 − já nos dá, naquele momento, antes da formulação do conceito de discurso, Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 13-23 maio 2011

1 Artigo estabelecido a partir de uma conferência proferida nas Jornadas de la Federación Foros Campo Lacaniano F-7. Espanha, Valência, 28 de fevereiro de 2009.

2 Lacan, O seminário, livro 16: De um Outro ao outro. (1968-69/2008, p. 17).

3 Lacan,

Subversão do

sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1960/ 1998, pp. 807-842).

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uma possível saída do que fazer com os gozos dos diversos objetos? Considero que estaremos de acordo que ao situar esse a no lugar de agente no discurso do analista, além de condição princeps para que a psicanálise exista como prática, implica uma autêntica subversão o que encontramos nos discursos do mestre e do capitalista: trata-se muito particularmente daquilo (o objeto a) que nesses dois discursos (Figura 1) aparece como “produção” da extração da maisvalia/mais-de-gozar; é precisamente o mesmo objeto que ocupa o lugar de agente no discurso do analista, isto é, aquele que ao se situar como agente determina e comanda esse mesmo discurso. S1 S

S2 a

Figura 1: Discurso do Mestre

4 Lacan, O seminário, livro 16: De um Outro ao outro. (1968-69/2008, p. 19).

5 Ibid., p. 14.

6 Ibid., p. 21.

7 Ibid., p. 22. 16

S S1

S2 a

Discurso do Capitalista

Podemos observar que a diferença entre eles consiste em que os lugares do agente e da verdade mudam entre o S1 e o $, enquanto que os lugares do Outro e da produção se mantêm o mesmo em ambos os discursos. Não há outra produção que não seja um mais-de-gozar. A implicação entre discurso e mais-de-gozar torna-se clara: “o mais-de-gozar é a função da renúncia ao gozo sob os efeitos do discurso”.4 É isso que dá seu lugar e função ao a na medida em que é um semblante do objeto perdido, e a fortiori “a essência da teoria psicanalítica é a função do discurso.”5 A partir dessa articulação entre discurso e mais-de-gozar e da determinação que o discurso exerce, pode-se estabelecer o vínculo entre a mais-valia marxista e o mais-de-gozar lacaniano. Isto permite diversos desenvolvimentos a partir da correlação entre o campo e o mercado dos produtos fabricados por um lado, e por outro o campo do Outro, que possui também o seu “mercado”, o mercado oferecido pelos diversos a que aparecem nas construções de todos os fantasmas do sujeito. A correlação: se um sujeito é o que está representado por um significante diante de outro significante no campo do Outro, no campo da produção capitalista “o sujeito do valor de troca é representado perante o valor de uso”.6 Do mesmo modo que por esta articulação se produz mais-valia, no campo do sujeito produz mais-de-gozar. O que há em comum nos dois casos é o que podemos chamar de “perda”. O proletário perde/deixa de ganhar a diferença entre o valor de produção e o valor de venda dos produtos por ele fabricados, e o sujeito perde seus objetos primordiais de gozo. Dizendo de maneira mais explícita: se os objetos a são “fabricações do discurso da renúncia ao gozo... é em torno delas que se produz o mais-de-gozar”,7 isto é, por um lado “nada pode produzirA introdução da “pedra da loucura”


se sem a perda de um objeto, mas por outro − e gostaria de enfatizar isso − é o discurso que maneja/determina (detient) os meios de gozar que implicam o sujeito. Do mesmo modo que o mercado define como mercadoria um objeto que existe por causa do trabalho humano e esse objeto traz consigo sua mais-valia, o mais-de-gozar é o que permite isolar a função do a no discurso. O mais-de-gozar sustenta modos de enunciação, é produzido pelo discurso e aparece como um de seus efeitos. Aparece por meio dos objetos nos mercados desse campo do Outro que “totaliza os méritos, os valores, que assegura a organização das escolhas, das preferências”8 e que implica uma organização que é a do fantasma. “Não haveria nenhuma razão para o sujeito se não houvesse no mercado do Outro um mais-de-gozar que se estabelece como seu correlativo.”9 Considerando esta relação entre discurso mais-de-gozar e seus objetos, gostaria de me referir ao que é revelado pelo discurso do mestre moderno, não mais na exploração da mais-valia, mas nas formas modernas de exploração do mais-de-gozar no capitalismo e considerar algumas de suas consequências. No seminário O avesso da psicanálise,10 Lacan retoma a questão; e ainda que estivesse em 1970, já se refere aos efeitos da Eu-cracia e a uma das particularidades de nosso tempo: acrescentar à exploração do mais-de-gozar a oferta de objetos fabricados pela indústria, objetos de gozo substitutivos aos que foram extraídos. A sociedade de consumidores adquire seu sentido quando ao elemento, entre aspas, que se qualifica de humano se dá o equivalente homogêneo de um mais-de-gozar qualquer, que é o produto de nossa indústria, um mais-de-gozar − para dizer de uma vez − forjado. Além do mais, isso pode pegar. Pode-se bancar o mais-de-gozar, isso ainda atrai muita gente.11

E efetivamente verificamos que isso ocorre. Já não se trata somente da oferta de produtos criados “ad hoc” para um gozo que aparece como oferecido e “reconhecido”, mas de funcionamentos subjetivos nos quais a ideia consciente e a vontade que lhe correspondem seriam o equivalente a um “tudo é permitido”. Lacan se refere a isso quando cita Dostoievski e repete a frase de Ivan, filho do pai, Karamazov: “Se Deus está morto, então tudo é permitido”,12 afirmando em seguida justamente o contrário, que podemos extrair da experiência de análise: se Deus está morto, então é aí que nada é permitido... A esse respeito Lacan é freudiano ao relacionar a figura de Deus Pai com o pai simbólico, pai morto e, por isso, suporte da lei. Recordemos o mito de Totem e Tabu, a horda primitiva, o assassinato Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 13-23 maio 2011

8 Ibid., p. 17-8. 9 Ibid., p. 18.

10 Lacan, O seminário. Livro 17: O avesso da psicanálise. (1969-70/ 1992).

11 Ibid., p. 76.

12 Ibid., p. 113.

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13 Regnault, Dieu est inconscient. Paris, Seuil, 1985.

14 Lacan, Função e campo da fala e da linguagem, (1953/ 1998, p. 322): “Que antes renuncie a isso, portanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”.

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do pai e a instauração do supereu. A propósito de nossa modernidade e de suas novas patologias, muito já se falou do declínio da função paterna e, em consequência, dos defeitos da função simbólica do pai, do significante Nome-doPai e de seus efeitos no que concerne à lei e ao gozo. Assim, o que foi dito sobre a “morte de Deus” ou sobre “Deus não existe” nos remete à função do pai simbólico, e é por isso que o “Deus está morto”, de Nietzsche, não seria a fórmula de um ateísmo, mas a de uma consistência. Pelo contrário, poderia ser a tese de François Regnault,13 “Deus é inconsciente”, aquela que poderia sustentar uma posição subjetiva ateia. Tentando me aproximar do horizonte da “subjetividade da época”,14 a nossa funciona apropriando-se da ideia consciente de que nada está proibido, pois existem poucas referências simbólicas à interdição, sobretudo no que se refere ao gozo, uma vez que se sustenta neste “Deus está morto”. Esta é a ideia do falso ateísmo moderno que “crê” na morte de Deus e no “Nada está proibido”, embora inconscientemente ainda continue acreditando nele. A consequência é a ferocidade do supereu e a proibição de gozar, ao mesmo tempo em que fazê-lo hedonisticamente transforma-se não mais em um direito, mas em um dever imperativo, que funciona paralelamente ao que o sujeito extrai do saber de que “nada está permitido”: daí as catástrofes subjetivas. Ao “Deus está morto e então nada é permitido”, como interpreta Lacan e que eu situo como correlato aos déficits da função simbólica do pai, corresponde um inconsciente como lugar da proibição. Trata-se de um aparente paradoxo que estava mais claro na época do Classicismo crente e que na atualidade toma a forma que ainda que eu me considere um ateu ou como não aceitador ou “desconhecedor” da função simbólica do pai, devo obedecer às proibições de meu inconsciente, que impedem severamente o gozo que espero obter. É a ficção real de um sujeito que se imagina senhor de si mesmo, mas que é súdito dentro da Eu-cracia e de suas “livres” escolhas, sujeito no qual o reprimido não é tanto o desejo e o gozo de antes, em que o reprimido é a interdição: o proibido é o reprimido. Se existe repressão do proibido, então tudo está permitido, o que retorna dessa repressão é evidentemente uma proibição maior, aquela que Lacan interpreta como “nada está permitido”. Reprimir a ideia de que existe uma figura/instância da proibição não pode senão engendrar, em seus retornos e efeitos, novas e mais fortes proibições que se opõem à vontade e ao direito de gozar. Trata-se do sujeito de uma falsa escolha e, portanto, de uma escolha muito forçada. Por trás dessa “escolha” o que existe é uma verdadeira obrigação de fazer algo de acordo com uma suposta deA introdução da “pedra da loucura”


cisão própria. Essa verdadeira obrigação contrasta com o mandato superegoico que substitui alguns dos possíveis gozos do sujeito pelo gozo que o supereu ordena e autoriza. Esta é uma forma muito precisa de exploração, não mais da mais-valia clássica, mas desse mais-de-gozar ao qual me referia antes por meio do discurso do mestre moderno e também ao que fazia referência Lacan na citação relativa aos objetos substitutos fabricados pela indústria e/ou pelos discursos em circulação. Avançando para além da denúncia do uso desses “mais-de-gozar de imitação”, Slavoj Zizek se refere diretamente ao uso da Coisa, ao “das Ding” freudiano em sua dimensão real. Se se acredita que tudo está permitido uma vez que Deus está morto, o acesso a qualquer prazer por pouco perigoso que seja deve ser esvaziado de sua substância gozante para evitar o perigo; além disso, qualquer prazer é “uma traição ao prazer incondicional” ao que se aspira, e por isso deve ser proibido/recusado ou apresentado por um substituto. Trata-se de alcançar diretamente a “substância gozante”, a Coisa.15 Em outra vertente e em referência ao “não existe relação sexual”, o Mestre sabe de sua inexistência. É precisamente por isso que em seu discurso não cessa de tratar de fazê-la existir e insistir para que os sujeitos tratem de encontrá-la (na busca desse impossível estrutural da relação sexual) e por isso deve ser buscada e considerada acessível. Quando Lacan se refere ao assassinato de Moisés a partir do texto de Freud, o relaciona precisamente com o fato de que o povo hebreu vivia na crença de sua existência.16 Muito brevemente apresento as chaves que Lacan utiliza e que lhe servem para sua interpretação do assassinato de Moisés na versão de Freud. Lacan recupera a palavra hebraica znunim, traduzida por prostituição, para dar conta do fato de que o povo judeu tratava de fazer existir a relação sexual por meio dessa prática e foi precisamente o não querer renunciar, nem à prática nem à ideia de que a relação sexual existia, que estaria na origem do assassinato de Moisés. Tese interessante para se ler em “lacaniano”, o que Freud escreveu sobre o vínculo entre o Pai e a lei. Para terminar, faço uma referência ao título. Correlaciono a “introdução” da pedra da loucura com seu inverso, ou seja, com “a extração da pedra da loucura”, tema clássico na pintura medieval e que tem várias representações no Classicismo. Por exemplo: “A extração da pedra da loucura”, quadro de Bosch exposto no Museu do Prado em Madrid, que representa de modo irônico e cético a prática da trepanação na Idade Média, segundo os saberes e discursos da época. Sem me estender, farei algumas considerações das que poderíamos extrair não só sobre certas referências às “origens” de certa psiquiatria, como também referências aos sujeitos que aparecem no quadro. (Figura 2). Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 13-23 maio 2011

15 Zizek, L’Homo sacer comme object du discours de l’Universite. (2003, p. 28).

16 Lacan, O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise, pp.125 e ss. – em particular as referências a Sellin e Oseas.

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Figura 2: BOSCH, J. Extração da pedra da loucura. (1490).

O médico, que em lugar de um gorro traz um funil invertido na cabeça, a quem relacionamos com a estupidez, procede a extração da pedra da loucura, que de fato é um bulbo de tulipa. A pedra é extraída de um sujeito de quem se diz, escrito no quadro, “meu nome é tonto” − (myne name is lubbert das). Acompanham a cena um frade embriagado com sua jarra de vinho e uma freira com um livro fechado sobre a cabeça ou seja, a ignorância daquele que nem um livro abre... mas a tudo se atreve. A correlação entre um tonto que não é um “louco” e a estupidez do praticante que pratica em nome da ciência é aquela que utilizarei para falar sobre certas formas de subjetividade, algumas delas bastante “tontas”, e o que a ciência moderna faz com elas. A partir disso dou um passo a mais em minha hipótese, que é o eixo deste texto: a extração clássica, seja a da mais-valia, seja a do mais-de-gozar tem um correlato na atualidade moderna; é o que chamo de “introdução” da pedra da loucura. Entendam-na não só como uma metáfora da “introdução” de algumas formas contemporâneas de subjetividade, mas também como efeitos de discurso que dificultariam − passando para a topologia − um enodamento borromeano. Isso teria como possível efeito que a estrutura de certos sujeitos, na representação de um nó borromea20

A introdução da “pedra da loucura”


no de quatro, com o Nome-do-Pai como quarto nó, fosse efetuada não pelo Nome-do-Pai, mas por uma suplência dele, na forma em que Lacan os generaliza quando deles fala no plural: “Os Nomesdo-Pai” e mais concretamente quando se refere ao Sinthoma como quarto nó. Lembremos a série que estabelece Lacan: o pai como um Saint Homme, como um sintoma, ergo, como um Sinthoma. Resumindo, Lacan utiliza o Nome-do-Pai como quarto nó para dar conta do Édipo. Simbólico, Imaginário e Real seriam enodados pelo Nome-do-Pai, em uma versão que topologizaria a fórmula da metáfora paterna. O fracasso de tal metáfora, a forclusão do Nome-do-Pai ou formas deficitárias de sua função simbólica, dariam lugar, isso é sabido, à psicose ou a formas de perversão. Não tenho a intenção de sustentar que o capitalismo moderno seja a causa de novas estruturas clínicas ou produza mais ou menos casos de psicose, desencadeados ou não. Diferencio estrutura e sintoma, e por isso novos sintomas aparecem na atualidade, qualquer que seja a estrutura do sujeito ao qual nos referimos. O que sustento, e por isso o afirmo, é que as formas do discurso capitalista atual oferecem dificuldades suficientes para que figuras de autoridade com referentes simbólicos de estrutura sejam reconhecidas e possam efetuar a função de manter enodados os três registros: função que corresponderia ao Nome-do-Pai.17 Isso tem como efeito, cito os mais evidentes, as exacerbadas manifestações do narcisismo, o “fazer o nome” no discurso social com vínculos em que a prevalência do Imaginário é prioritária, ou as diversas formas de tratar/maltratar o próprio corpo, entre outras mais. O que proponho como hipótese é que como efeitos do discurso capitalista moderno, basicamente no que se refere às relações com o Outro, encontramos dificuldades para que a palavra e o significante estabeleçam um enodamento com base no Nome-do-Pai, ainda que ao mesmo tempo favoreça diversas formas de suplência para evitar uma psicose: formas de suplência do Nome-do-Pai ou também o Sinthoma em sua versão de enodamento dos três registros. Sem entrar nas diferentes referências que podemos encontrar em Lacan a respeito do Sinthoma, pode-se dizer que por um lado podemos colocar como um de seus efeitos aquilo que Freud chama de “realidade psíquica” e fantasia; e por outro, em Lacan, podemos situá-lo, além disso, como efeitos que o gozo tem sobre o corpo a partir do significante, do veiculado pelo discurso. Enfatizo com isso os efeitos de discurso que são o eixo no qual me apoio. O Sinthoma enodando os três registros estabeleceria uma certa regulação do vínculo existente entre o gozo do corpo e o significante, com o corpo que goza por causa do significante, estabelecendo assim uma relação do inconsciente com o corpo. O que seria então a “introdução da pedra da loucura”? Seria, Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 13-23 maio 2011

17 Diferencio a noção de autoridade da de poder. A dissimetria entre elas é atualmente mais radical. São muitas as figuras/pessoas vinculadas ao poder e o exercendo, mas isso não as conota como relacionadas a uma autoridade, o que ocorre é justamente seu contrário. É comum que o poder ainda que, no melhor dos casos, legitimamente/ democraticamente obtido, poucas vezes vem acompanhado de uma referência à autoridade. A autoridade é sempre algo outorgado pelo Outro, é uma referência a um reconhecimento que os sujeitos efetuam a respeito de determinado personagem ou função, e portanto tem sua raiz no simbólico do reconhecimento. O poder, ao contrário, é algo que se exerce e cada vez mais em uma forma alienada no que diz respeito ao sujeito que o detém. Em nossa contemporaneidade o poder tende mais a ser a-subjetivo sem por isso deixar de ser exercido. Algo impossível em relação à autoridade que está ancorada em uma dimensão simbólica e por isso vinculada a um sujeito que a representa.

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como metáfora, a introdução no sujeito de efeitos de discursos correlativos à extração do mais-de-gozar, da subjetividade como efeito de discurso e a oferta de gozos de imitação? Isso é o correlativo a déficits na função simbólica que corresponde ao Nome-do-Pai em nossa teoria clássica. A oferta de “ser” um sujeito sem falta trata de tamponar a condição do Eros freudiano, unido à promessa da “relação sexual”. Introduz-se assim o modelo de um mercado que explora a estrutura desejante para fazer crer que se pode conseguir o que falta a cada um: do registro do desejo se passa ao da necessidade, ao mesmo tempo que a eliminação de formas e vínculos de alteridade é cada vez mais generalizada. O rechaço ao inconsciente e aos seus efeitos não vem apenas pelo lado dos ataques que a psicanálise recebe de forma direta, mas também é consequência da desvalorização dos efeitos da palavra no sujeito. Neste contexto não é somente a psicanálise que é posta em questão, no momento em que se tenta regulamentá-la a ponto de tornar impossível sua prática, mas todas as práticas que se baseiam nos efeitos da palavra e que escapam de qualquer mensuração. Para dizê-lo de maneira breve: é a noção e efeitos da subjetividade, em qualquer nível, que são desvalorizados e entram na via da marginalidade. Há pouco utilizei aqui, de maneira deliberadamente exagerada no Seminário de Textos de Valência, a expressão “genocídio da subjetividade” para me referir a esse efeito perverso do capitalismo moderno que simplesmente funciona com sujeitos o mais alienados possível, de qualquer dimensão subjetiva e dos efeitos de verdade da palavra. Não é tanto a oposição objetividade versus subjetividade a que estaria em primeiro plano, que seria o da intenção de eliminação da excentricidade existente entre sujeito e indivíduo, com o privilégio do segundo e recusa do primeiro. Ao recusar a dimensão do sujeito tal como a entendemos, efetivamente se introduz uma forma moderna do que denominei “a pedra da loucura”. A extração do mais-de-gozar unido à oferta de bens gozáveis que prometem outros gozos com direito e sem renúncia, em outra “subversão”, oposta à subversão do sujeito, atestam uma nova imaginária. Na Eu-cracia atual, a antiga figura do cego que sustenta em seus ombros o aleijado e ambos andam, dando assim a função de um corpo unificado a dois fragmentos que juntos formam um Eu, é substituída pelos personagens de um surdo que só enxerga e se fascina e de um cego que apenas ouve e se satisfaz com as significações pré-determinadas, muitas vezes, com a intenção da redução do significante a signo ou a univocidade. O que antes foi a extração da “pedra da loucura” é hoje, pelo contrário, a introdução discursiva no sujeito de significações úni22

A introdução da “pedra da loucura”


cas, que repelem qualquer metáfora ou substituição objetal. São imperativos de “ direito próprio”: trata-se mais da cisão do que do forçamento que o sujeito efetua em uma Spaltüng, sempre à sua custa − recordemos a Ichspaltüng freudiana no processo de defesa, a chamada cisão do eu – de aceitar e discernir entre aquilo que lhe é imposto e aquilo que supostamente decide segundo seu modelo de considerar-se “em liberdade”.18 A stultifera navis, a nau dos loucos de que fala Foucault, hoje está ancorada e forma nossas cidades; e seus cidadãos não reclamam, mas sim exigem a satisfação de seus direitos, pois se trata de que a necessidade substitua o desejo.

18 O escrito quase póstumo de Freud A cisão do eu nos processos de defesa (1938) merece uma releitura. A constituição do fetiche por meio do desmentido (Verleugnung), que estaria na base da cisão do Eu, pode correlacionar-se com os “fetiches” contemporâneos em relação aos “mais-de-gozar de imitação” fabricados pelo

Tradução: Luis Guilherme Coelho Mola Revisão: Silvana Pessoa

Referências bibliográficas

mercado industrial, servidos no mercado do Outro e não externo às modernas formas de cisão/divisão.

BOSCH, J. (1450-1516) Extracción de la piedra de locura Museo National del Prado, Madrid. Disponível em: http://www.museodelprado.es/coleccion/galeria-on-line/galeria-on-line/obra/ extraccion-de-la-piedra-de-locura

LACAN, J. O seminário, livro 16: De um Outro ao outro. (1968-69) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. LACAN, J. O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise (196970) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. LACAN, J. (1958) Função e campo da fala e da linguagem, In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. LACAN, J. (1960) Subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. REGNAULT, F. Dieu est inconscient. Paris: Seuil, 1985. ZIZEK, S. L’Homo sacer comme object du discours de l’Universite. In: Revista Cités, No 16, Jacques Lacan: Psychanalyse et politique. Paris: PUF, 2003.

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Resumo O autor parte da tese lacaniana que equipara o mais-degozar e a perda dos objetos “a” com a extração mais-valia marxista. Essas formas clássicas de extração/expoliação se relacionam ao que se chama “a introdução da pedra da loucura” como resposta contemporânea – em oposição – ao que foi a “extração da pedra da loucura na Idade Média. A particularidade do mestre moderno se especifica tanto no que o sujeito/escravo recebe da oferta de “objetos de gozo de imitação produzidos pela indústria”, já assinalado por Lacan em 1970, como também no “direito” de gozar, que se converte num imperativo “de direito próprio”: de onde estão as novas formas de gozo na modernidade e a “nova” clínica que se depreende do retorno do reprimido no inconsciente. Diversas formas de “sinthoma”, como um quarto nó, suprem as faltas de um nó borromeano com três elos.

Palavras-chave Discurso do mestre, extração do mais-de-gozar, objeto a, subjetividade contemporânea, recusa do inconsciente, sinthoma, sujeito “sem falta”, cisão do Eu.

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Abstract The author departs from the lacanian thesis which equates the surplus- jouissance and the loss of the objects “a” with the Marxist surplus-value extraction. These classical forms of extraction/spoliation are related to the so-called “introduction to the madness stone” as the contemporary answer – contrary to – what it was the “extraction of the madness stone” in the Middle Age. The particularity of the modern master is specified in what the subject/ slave receives, the “fake objects of jouissance provided by the industry”, already pointed out by Lacan in 1970, as well as the “right” to jouissance, which is converted into an imperative of “own right”: where the new forms of jouissance in modernity reside and the “new” clinic which is deduced from the return of the repressed in the unconscious. Several forms of “sinthome”, as a fourth ring, fill up for the absences of a Borromean knot with three rings.

Keywords Discourse of the master, surplus-value extraction, object a, contemporary subjectivity, refusal of the unconscious, sinthome, “without lack” subject, self splitting

Recebido 10/02/2011

Aprovado 11/03/2011

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A fronteira entre delírio e laço social – a mediação do impossível Gabriel Lombardi “O fato é que ninguém pensa seriamente em aplicar o termo misticismo às manifestações clássicas das grandes religiões. De minha parte, não tenho intenção de empregar uma terminologia que obscurece as diferenças reais, por todos reconhecida, e desse modo afasta ainda mais a possibilidade de chegar à raiz do problema.” Gershom Scholem1

1 Scholem. Major Trends in jewish mysticism.

O discurso psicanalítico modifica as referências. Altera-as, subverte-as, multiplica-as, depois as reduz. Após um longo caminho frequentado pela vertigem, deixa uma, mais sólida do que parecia ao iniciar a experiência: o dizer. Isso faz da psicanálise uma experiência única e apaixonante, que me permite descobrir que o que faço, o que tenho, o que sou, encontram uma coordenada real... não no fato de dizer, mas no dizer como ato, ato que me funda e me torna responsável – até pelo que sonho. Há mais de uma forma de dizer. Delírio, discurso e debilidade são três modos diferentes de tomar uma posição em relação ao dizer. Conhecemos intimamente essas formas, já que passamos de uma a outra com maior frequência do que parece à primeira vista. Podem diferenciar-se. Entre elas guardam relações surpreendentes que, entretanto, não são secretas. Sabemos, por exemplo, que um discurso excessivamente amparado pelo fechamento dialético que gera, confina no delírio ou na debilidade. Isto costuma ser visto na cantilena docente do discurso universitário – na qual o professor alcança uma certeza que surge do hábito –, ou na profunda, paradigmática debilidade de tantas “pesquisas” nas quais exercita inibida e burocraticamente a curiosidade que lhe resta de sua infância. Mas também no discurso analítico: especialmente quando o saber é ali suposto além da conta, quando isso mesmo debilita todo esforço por dar conta, reddere rationem, em uma elaboração clínica da experiência. O interesse do curso sobre “Delírio, discurso e debilidade”, ditado em 1995 na Seção Clínica de Buenos Aires foi, creio eu, o de Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 25-51 maio 2011

(1941/1995).

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explorar com certo detalhe essas posições. Dedicarei estas páginas a interrogar as relações mútuas entre o discurso e o delírio.

Epimênides em 2000

2 Karl Popper relata em vários de seus livros o artigo que foi sua pesquisa da tese freudiana do sonho como realização de desejo, o que lhe permitiu estabelecer sua linha de demarcação entre ciência e pseudociência, ficando a psicanálise não apenas deste lado, mas irremediavelmente deste lado. Cf. especialmente Realismo y el objetivo de la ciência (Post scriptum La lógica de la investigación científica, 1985).

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Popper chegou a seu reiterativo critério sobre o que é ciência, analisando um texto de Freud, A interpretação dos sonhos. Ele mesmo relata que foi assim. Concluiu que a psicanálise não é uma ciência e, afirmando-o, assentou as bases da epistemologia do século XX2: só pode haver alguma certeza a partir do que não se move, do que se refuta. Lacan estava de acordo com ele: a psicanálise não é uma ciência, é uma prática que se aparta do discurso científico, isso se é que aspira chegar a tornar-se ciência. A sobredeterminação de seus enunciados os torna irrefutáveis, não científicos, livres de uma “base empírica” que os ancore, se não em uma realidade, ao menos em uma cientificidade. Por outro lado, ninguém pode afirmar seriamente que a ciência permite conhecer o real. Popper se abstém de fazê-lo, exceto quando ele mesmo anuncia que saiu do duro terreno da ciência e entrou no céu da metafísica – onde os objetos se ocultam à empiria humana, deixam-se atravessar como anjos e fantasmas. Apesar de a ciência não conhecer o real, seguramente o toca, o altera, o destroça, às vezes o estiliza. Opera sobre ele. E demonstra isto pelo absurdo, desmesurado, quase inumano crescimento de seus feitos. A psicanálise, ao contrário, parece condenada a optar entre o delírio e a revisão permanente do alcance e os meios de sua eficácia. Lacan, cujos Escritos se alardeavam em 1966 de continuar o debate das luzes, afirmava onze anos depois que a psicanálise não é uma ciência, mas um delírio. Ele, que havia ensinado como entrar na subjetividade do delírio, como encontrar o sujeito no reino obscuro da fantasia, como levantar uma subversão que permitisse deter o efeito forclusivo da ciência sobre o sujeito, declara que naquela época já não encontra maneira de sair do labirinto do delírio onde entrou em busca da subjetividade perdida. E, mais radicalmente ainda, que não espera que a psicanálise tire alguém daí. “Só podemos escolher entre a loucura e a debilidade mental”, sentenciou em 1977, sob a irônica influência de sua leitura de Joyce. É a sua uma forma específica, psicanalítica, de pós-modernismo, ou seja, de aggiornamento a estes tempos em que ninguém se assusta com a ideia de que a realidade seja inventada, ou socialmente construída, em que tampouco é novidade a ideia assombrosa de um real que prefere o acaso e o caos à determinação e à ordem com que o discurso do homem tentou desde sempre dominá-lo, ou ao menos maquiá-lo? A fronteira entre delírio e laço social – a mediação do impossível


Também sabemos que em nossos dias cada um pode delirar a piacere, sem risco algum de ser levado à fogueira. As penas da época são, no pior dos casos, cotidianas e estatisticamente frequentes: a indiferença, a desocupação, o esquecimento (o que não impede ninguém de merecer em seu pequeno espaço transicional o moderado inferno dos pensamentos). O tempo é propício para as afirmações do estilo “todo mundo delira”, porque é evidente que, menos circunstancialmente, o mesmo material com que dizemos e afirmamos, a linguagem, se presta docilmente ao delírio – ou seja, um dizer que não tem necessidade lógica nem epistêmica nem ética de se apoiar em referências exteriores à sua própria articulação. De uma certa perspectiva nem sequer a ciência se salva. A última epistemologia das disciplinas duras desconfia da base empírica que permitiria a corroboração das teorias e, finalmente, a distinção entre o que é ciência e o que é sem razão, ou “metafísica” – como Popper gostava de dizer. Nem ao menos a ciência requer a hipótese do realismo que Popper defende como questão secundária, de gosto pessoal, reconhecida por ele como não verdadeiramente científica.3 O renovado pragmatismo dos filósofos norte-americanos, que já não reconhece a existência de diferenças epistemológicas decisivas entre as matrizes de disciplinas como a física teórica e a crítica literária, situa a investigação como recontextualização, ou seja, uma atividade difícil de distinguir em vários de seus aspectos formais do trabalho do delírio {Wahnbildungsarbeit} do qual falava Freud sobre a paranoia.4 Mas a ciência se faz forte, dizíamos, a partir de sua eficácia. Não por sua interpretação do real, mas pelo que lhe acrescenta. Lacan, que dava muita importância a seu critério para a demarcação e localização das psicoses – a ponto de considerá-lo preliminar a todo tratamento possível –, falou, entretanto, do delírio e da psicose em termos também muito amplos: diagnosticou a “psicose social” da qual também participa a subjetividade científica,5 recomendou ao analista delirar e qualificou a si mesmo como psicótico no sentido de haver tentado ser sempre rigoroso etc. Entusiasmado por esse espírito permissivo, J. A. Miller postulou uma napoleônica “clínica universal do delírio”, que admitiria neuróticos, perversos e psicóticos enquanto deliram para “se defenderem do real”.6 Quando, desde as ondas já um tanto amortiguadas da pós-modernidade toda posição subjetiva merece a qualificação de delirante, surge por necessidade lógica a pergunta sobre se existe algo que não o seja. A partir de onde se poderia qualificar como delirante uma articulação de saber ou uma posição subjetiva? Como evitar o paradoxo de Epimênides atualizado no enunciado “todos deliram”? Talvez pareçam perguntas antiquadas, riddles muitíssimo gastos nesta época em que os critérios de realidade foram substituídos pelos Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 25-51 maio 2011

3 Lemos em Against Method (1975), de um dos epistemólogos mais conhecidos das últimas décadas, Paul Feyerabend: “As ideias que hoje em dia constituem a própria base da ciência existem apenas porque houve tais coisas como o preconceito, o engano e a paixão; porque estas coisas se opuseram à razão; e porque lhe foi permitido seguir seu caminho. Perde a ciência, a razão não pode ser universal, e não se pode excluir a (des) razão”.

4 Rorty, Objectivisme, reativisme et vérité (1994).

5 Lacan, De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1958).

6 Miller, Ironía. (1993).

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7 Recanati, Intervention au séminaire du docteur Lacan. (1973)

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do marketing: o mais real é o que melhor se integra ao mercado, o outro “não existe”. No que se refere à “realidade interior”, cada um pode pensar o que quiser, enquanto isso lhe sirva para – ou ao menos não o impeça – ter do quê viver no sentido que quiser dessa expressão. Entretanto, se não queremos reduzir a dignidade do sujeito à do cliente (como pragmaticamente fazem os terapeutas americanos), e se, pelo contrário, queremos sustentar algumas distinções clínicas básicas para a psicanálise, quiçá convenha manter a pergunta. É bem conhecido que mesmo os autores relativistas devem manter um ponto de exterioridade como necessário para que sua posição de enunciação não seja autorrefutante: Rorty talvez o encontre na “solidariedade”; Popper e Feyerabend, no funcionamento livre ou anárquico da sociedade em que faz a elaboração e a defesa das teorias. É o ponto fraco do relativismo, mas também o dos que afirmam “todos deliram”: qual é a posição da enunciação de quem afirma “todos deliram”? O que é delirar? Desde onde poderia eu enunciar uma resposta não delirante a estas perguntas? E o que podemos opor ao delírio? Há um preconceito etimologicamente conservado no termo delírio de nossas línguas românicas. Lira é o canal onde se semeia – para combater a esterilidade ou o capricho dos campos. Delirar é sair do sulco, é perder o caminho da retidão, a razão. Esse preconceito medieval nos diz que há um caminho pelo qual se deve seguir para não delirar. Não é um critério válido em nossos dias, em que quase ninguém crê na existência de um caminho único, e em que não há consenso sobre o que seria um caminho de retidão. Para uma primeira aproximação me parece mais interessante uma observação resgatada por F. Recanati, do esquecimento em que descansam os Essai sur l’origine des connaissances humaines.7 Condillac notou que o que caracteriza o delirante não é tanto seu afastamento de uma ordem quanto seu apego excessivo a ela (o infeliz rigor do paranoico do qual falou Lacan depois). O característico do entendimento, diz Condillac, é a ordem, o laço que une as ideias, os signos, as necessidades. O homem pode prender-se à ordem, viver nela, também se afastar dela. Os animais só entram ou saem dela por uma força exterior. E entre os homens e as bestas, diz, estão os imbecis e os loucos. Os primeiros não chegam a se enganchar na ordem, os outros não conseguem se desprender dela. É uma ideia. O que caracteriza o homem não é seu apego à ordem, ao sistema, mas sua possibilidade de entrar ou sair dela. O paranoico não tem essa plasticidade, e é isso o que o torna delirante. Não parece evidente que segue um caminho demasiado reto, do qual não pode sair, ir e vir seguindo esses movimentos especificamente humanos que são os da dialética? Não é que o paranoico não possa habitar um discurso no sentido lacaniano – uma forma estáA fronteira entre delírio e laço social – a mediação do impossível


vel de enlace social, de discorrer, de refletir, também um lugar (social) para viver. Schreber, como tantos outros psicóticos, se alojou, sem maiores complicações, no discurso universitário. Muitos deles fazem seu primeiro surto depois de graduar-se na Universidade, e não durante a “formação” que os retém nela. Se cada discurso implica uma ordem, uma ordem de discurso, não é tanto que o delirante não possa aderir a ele, mas que lhe falta esse molejo dialético que permite entrar e sair, e mesmo mudar de discurso. O caso limite seria o do psicótico que faz um uso puramente alienado da ordem lógica do discurso, como uma máquina de Turing. Mas o próprio Schreber considerou que tal rigor é “inconciliável com a natureza humana”.

O homem aristotélico Muito tempo antes, Aristóteles havia afirmado em várias de suas obras que o homem é social por natureza. Em sua Política, julgava evidente a razão pela qual o homem é social, mais que qualquer abelha e que qualquer animal gregário: tem a palavra. Não é o mesmo que pastar no mesmo prado e trocar palavras e pensamentos. O grego, que é o homem ocidental e a condição de possibilidade do sujeito lacaniano, é social “por natureza”. Traduzimos assim imprecisamente o termo fisei, que não diz exatamente isso em grego. Diz mais, e aqui somente podemos extrapolar que assim se manifesta o que o homem tem de mais real – a fisis é mais isso, não é a natureza nem o que hoje entendemos como físico, mas o que do real se manifesta. Esta tradução se corrobora pelo fato de que para Aristóteles “o antissocial é um ser inferior ou um ser superior ao homem”,8 como aquele ancestral de nosso herói Martín Fierro a quem Homero alojou em um verso depreciativo: sem tribo, sem lei, sem lar. O antissocial não é um homem, é homem quem expõe e lança seu ser no social, na cidade, na pólis. “Aquele que não pode viver em comunidade ou que não precisa de nada por sua autossuficiência, não é membro da cidade (polítes), mas uma besta ou um deus”, acrescenta enfaticamente Aristóteles. Desde tal perspectiva pode-se considerar o Ocidente como o triunfo do helenismo político sobre as formas tirânicas de governo (preferidas pelos estoicos, os católicos, os neuróticos obsessivos, e mais, em geral, por aqueles que sustentam que o homem é livre em seu interior, que não precisa do laço social para alcançar a plenitude de seu ser no exercício dessa liberdade). A grande invenção grega é o polítes “livre”, o que quer dizer: o cidadão socialmente responsável por si e por seus filhos ante os outros cidadãos, e não simples instruStylus Rio de Janeiro nº 22 p. 25-51 maio 2011

8 Aristóteles, Política. (1988, p. 50).

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9 Levantei algumas questões sobre o aristotelismo do sujeito Lacaniano em “Aristóteles, inventor de lo real”, publicado em El caldero de la Escuela (1996).

10 Lacan, O Seminário, livro 14: A lógica da fantasia (inédito), aula de 10 de maio de 1967.

11 Lacan, A ciência e a verdade (1966).

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mento do capricho do amo único. Neste ponto o sujeito lacaniano é aristotélico – também neste ponto.9 Para Lacan, não basta dizer: o sujeito do inconsciente é o sujeito estruturado por uma linguagem. Porque nesta perspectiva o sujeito do inconsciente é o sujeito estruturado no discurso, o discurso que o constitui como ser social. “O inconsciente é a política”, resumiu Lacan.10 Entrar em um discurso é “uma decisão política”, como se dizia nos anos 70; mesmo depois, com o tempo, as pessoas se habituam e se esquecem. Não se pode pensar de outra forma na psicanálise, que para se sustentar como discurso precisa fazer valer como um de seus princípios (o mais exigente): que de nossas posições subjetivas11 somos sempre responsáveis. Esta aproximação de Lacan a Aristóteles nos fica ainda mais clara mesmo quando recordamos que para o primeiro o discurso do inconsciente é o discurso do mestre antigo, que subsiste reprimido desde a abolição da escravidão. Por seu lado, Aristóteles, no mesmo texto da Política, explica que a relação de domínio é a base do social. O mestre manda no escravo, na mulher, no filho, e também... em seu próprio corpo! Manda no escravo, que é quem pode ser de outro “por natureza” – e por isso, precisamente, é de outro, acrescenta Aristóteles com certo humor. Novamente encontramos o termo fisei: escravo por como se manifesta; e como se manifesta? Nos mesmos laços que estruturam seu ser como social. O escravo, continua, participa da razão para percebê-la, mas não para possuí-la; o que produz uma distribuição assimétrica no saber: “o mestre deve saber somente mandar e o escravo deve saber fazer”. Lacan retoma exatamente essa distribuição, em uma apreensão que herda e extremiza a racionalidade aristotélica, e que implica o achado do fisei, do que se manifesta do real estruturado nas relações constitutivas do ser como social, abrindo um tipo de fenomenologia do real. Esse vínculo do mestre com o escravo é denominado por Aristóteles como relação heril ou senhoril {despotiqué}. Apesar de tal relação de poder se encontrar também na base do laço social entre o homem e a mulher, o inventor da lógica formal adverte que nesse caso falar da relação conjugal {gamiqué} não expressa o que há de domínio do homem sobre a mulher. Nesse plano adverte que “a união do homem e da mulher carece de nome”. E o mesmo ocorre com a relação patriqué, do pai com o filho. Depois do advento da ciência moderna, Freud apontará como impossível o que para Aristóteles era somente, em alguns casos particulares, sem-nome. Também lemos na Política que o homem em si mesmo está constituído por alma {psique} e corpo {soma}, “dos quais um ordena e o outro obedece”, o que implica já introduzir o corpo no social (o Outro é o corpo, insistirá Lacan, sem conseguir que nesse ponto A fronteira entre delírio e laço social – a mediação do impossível


prestem-lhe muita atenção).12 Estabelecer com o corpo uma relação de possessão – como poderia se fazer com Outro, um estrangeiro, por exemplo – é admitir a mediação do discurso em toda relação do sujeito com o corpo. Por isso na linguagem usual dizemos “meu corpo”. Ter um corpo, único e próprio, é já um efeito das relações de poder, é um fato social, o que permite Lacan situar a esquizofrenia com grande economia conceitual, por exclusão.13 Esse fato social, a apropriação do corpo, implica um custo que em psicanálise se chama castração. Em que consiste? Na separação do gozo e do corpo. É lógico que nem todos admitem pagar esse preço – que implica atravessar um abismo de angústia para reter do gozo apenas um plus. Alguém, um pai real, por exemplo, tem que nos haver tentado e animar desde a Outra borda. Lacan chama de esquizofrênico o sujeito que não aceita essa configuração discursiva que o real introduz entre a demanda imperativa S1 e o corpo S2 que fica no lugar do Outro, separado do gozo. O esquizofrênico enquanto tal rechaça a socialização das pulsões, abomina a exigência que o laço social impõe ao gozo de condescender ao desejo do Outro. O significante, substância gozante, não se articula então com o Outro, mas está, melhor dizendo, solto, desamarrado, navegando no real. Se fica fora do social, então delira? Não, não necessariamente. Em um sentido assinalado por J. A. Miller, o esquizofrênico é o sujeito que não delira. Em seu sintoma, o esquizofrênico encontra a evidência indubitável do significante no real, mas disso não deduz nada. Em alguns casos é bem claro que não tem o gosto do paranoico pelo encadeamento dos significantes e a elaboração de um sistema.

12 O Seminário, livro 14: A lógica da fantasia (op. cit., aula de 10 de maio de 1967).

13 Lacan, O aturdito (1973).

Lasègue e Falret: isolamento social de dois Há delírios que parecem caracterizar um certo tipo de laço social. São chamados de delírios coletivos, e sua forma mais frequente e característica é o delírio a dois. Entretanto, os casos clínicos rapidamente nos informam que não participam exatamente da textura do social, que os delírios compartilhados não têm estrutura discursiva. E isso se pode ver nas finas descrições clínicas dos clássicos da psiquiatria que se ocuparam do tema. O texto mais conhecido, La folie à deux ou Folie communiquée, data de 1877. É de ágil leitura, agradável, reúne o talento clínico com o literário. Seus autores, dois célebres psiquiatras, Ch. Lasègue e J. Falret, não demoram em levantar a questão que nos interessa: a relação do delírio com o social.14 O delirante, escrevem, “vive alheio à opinião dos outros; sua crença se impõe com uma autoridade irresistível, alguém queira Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 25-51 maio 2011

14 Lasègue e Falret, La folie à deux ou Folie communiquée (1987, pp. 21-55).

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ou não segui-lo”. Essa posição em relação ao Outro (do que não necessita do reconhecimento nem o consentimento para sustentar sua posição subjetiva) leva os autores a esta notável consequência, evidente nas apresentações do enfermo:

15

16

Ibid.

Lacan, O seminário,

livro 14: A lógica da fantasia (op. cit.).

17

Lacan, O seminário, livro

3: As psicoses (1955)

34

O alienado é relativamente fácil de examinar; ele tem o gosto, o apetite até para enunciar as ideias que o obsessionam, quando não se decide a um mutismo que não é menos significativo. Uma vez que alguém penetrou em seu espaço, ele é tanto mais fácil de explorar quanto menos aberto esteja... [à intervenção dos outros].15

É permitido dizer então que a loucura a dois não reúne dois delirantes em tal sentido. Se há nela um delirante, as posições e as aptidões do outro integrante do par – cúmplice, aderente ou seguidor – diferem necessariamente das do primeiro. Tomou emprestado o tema delirante “de modo involuntário e inconsciente”, e mesmo que depois pareça, muitas vezes, ser o elemento ativo da dupla e principalmente o que realiza o maior esforço reflexivo para tornar verossímeis às ideias para os demais, sua convicção não resiste usualmente à separação física do primeiro, não sustenta por si só o sistema inquebrável do verdadeiro delirante – que não precisa de ninguém para assegurá-lo. Lasègue e Falret enfatizam essa assimetria entre o delirante e seu seguidor, assimetria que se corrobora no fato de que o delirante confirmado não é permeável ao sistema do outro, “nunca tem essas docilidades, e permanece mestre absoluto de seu delírio”. Esta expressão de mestre absoluto que empregam os autores é excelente, e nos permite medir a distância que separa o delirante do laço social aristotélico: o mestre da Política não é absoluto, precisa de um escravo que, ao relacionar-se com ele, precisamente, o relativiza. O mestre absoluto [etimologicamente: desligado] é, pelo contrário, o mestre sem escravo, sem Outro que responda no social. É o que permite a Lacan afirmar que na cidade do discurso o psicótico é o mestre.16 Refere-se, sem dúvida, à cidade atual, onde a posição do mestre antigo é socialmente insustentável. Nossos autores idealizam o delirante ao tomar como modelo um paradigma de delírio inquebrável? Não o creio. Mesmo que para os outros esse delírio avance no sentido da contextualização e da verossimilhança, não se deve esquecer da penetrante indicação de Lacan: por mais estendido que esteja, o delírio continua participando da estrutura do fenômeno elementar.17 É sempre incrível, porque não tem a estrutura dupla e partida do que pode ser acreditado. Sobre essa base pode-se interpretar a decidida afirmação dos autores: se estabelece assim uma linha de demarcação absoluta que não admite compromissos. Entre o verdadeiro A fronteira entre delírio e laço social – a mediação do impossível


delirante, “louco no sentido médico e social da palavra”, e seu aderente há uma linha de demarcação que não pode ser atravessada. O primeiro mentiria se afirmasse renunciar a suas convicções. O segundo sabe-se dominado por opiniões absurdas, mente, portanto, ao afirmá-las. Essa demarcação antecipa então a que Lacan estabelecerá18 entre a crença comum e o Unglauben freudiano19 da paranoia, mas antes repercute em outros autores. Karl Jaspers, por exemplo, afirmou em 1913 que a convicção da perda comum encontra suas raízes no que todos creem.20 Portanto, essa convicção se corrige, acrescenta, mais que com razões por transformação da época – Jaspers se revela kuhniano antes de Kuhn. A perda delirante é, pelo contrário, um isolamento radical do que todos creem, do que “se” crê. Por isso o verdadeiro delírio é, para Jaspers, incorrigível e infalível no verdadeiro sentido (que não pode cair), já que uma “correção” teria que se dar como demolição da própria existência. E o homem não pode crer no que suprimiria sua existência, conclui. Lacan também defende em sua Tese que o social se opõe ao verdadeiro delírio; nesse ponto, faz eco das palavras de Bowman: (...) se se pode defender um déficit no sentido do real nos paranoicos [o itálico é de Lacan, 1932], é porque esses enfermos desconhecem em primeiro lugar a impossibilidade de alcançar os objetivos que se levantam a partir da posição, especialmente social, que ocupam.21

18 Lacan, O seminário, livro 11: Os quarto conceitos fundamentais da Psicanálise (1964a)

19 Freud, Rascunho K (1896/1987)

20 Jaspers, Psicopatología general (1913)

21 Lacan,

Da psicose

paranóica e suas relações com a

Não é que o paranoico não acesse um bout de réel em seu sintoma, e mais diretamente que qualquer um, mas que desconhece o modo em que o real se apresenta na cidade do discurso: como obstáculo sutil, porém sem salvação, impossível de superar, o mesmo que faz com que não se possa habitual e legalmente acrescentar três ou quatro inofensivos zeros à conta bancária sem entregar o equivalente em notas coloridas ou outras espécies. Por oposição ao laço social, que requer que em alguma parte esteja essa mediação do impossível para se sustentar, já na Tese o delírio a dois é considerado “isolamento social de dois”. A justa demarcação de Lasègue e Falret também encontra este corolário que Lacan agrega em nota de rodapé. “Este isolamento social do psiquismo dos alienados faz com que sua reunião nos asilos não conduza, jamais, nem mesmo a um esboço de grupo”:22 Preso, sem saída, por exemplo, a emotiva ficção de Milos Forman de inspiração antipsiquiátrica, desconhece a fronteira traçada por Lasègue e Falret. O gesto de Espártaco não interessa ao psicótico. Lacan reforçaria, oitenta anos depois, o critério que a intuição clínica de Lasègue e de Falret havia estabelecido com escassos recursos conceituais. Apesar de seus exercícios de inconsistência, Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 25-51 maio 2011

personalidade (1932)

22 Ibid., p. 286

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destinados a combater os efeitos de excesso doutrinário de tão prolongado ensinamento sobre seus seguidores, não parece que Lacan abandonou seriamente essa linha de demarcação. Esse ensino, cujas torções argumentativas e conceitos ensaboados nem sempre evidenciam o fio de aço sobre o qual deslizam, preserva algumas referências que nos permitem situar as diferenças entre o Outro do delírio e o Outro do discurso.

Dar-se um estado civil

23 Lacan, O aturdito (op. cit., p. 475).

24 Lacan, O seminário, livro 14: A lógica da fantasia (op. cit.).

25 Lacan chega a essa concepção “realizativa” do dizer em seu Seminário, livro 19, intitulado... Ou pire (inédito).

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Ainda se ouve dizer que a psicanálise é do indivíduo, que diferente de outras terapias, não se ocupa do social, da interação etc. Essa apreciação, completamente externa à psicanálise, perde toda a vigência a partir da operação de Lacan sobre o discurso psicanalítico que, a esse respeito, é duplo. Por um lado desmonta a noção de indivíduo, cuja textura imaginária evidencia a partir de sua teoria do estádio do espelho, propondo em seu lugar a noção contrária de um sujeito tomado em sua divisão constitutiva. Por outro, seu ensino avança a uma revisão profunda da psicanálise em função do laço social. Lemos em O aturdito: “Tenho a tarefa de desbravar o estatuto de um discurso ali onde situo que há... discurso: e eu o situo pelo laço social a que se submetem os corpos que abitaño [labitent] esse discurso”. É justo nessa meia página, talvez a mais citada deste texto, onde define o esquizofrênico por estar tomado pela linguagem sem o auxílio de nenhum discurso estabelecido.23 Cada vez é mais claro nesse ensino que o sujeito lacaniano também é social “por natureza”, físei. Correlativamente, a teoria lacaniana do ato se desloca a partir de uma concepção heroica, trágica, apoiada no paradigma da passagem ao ato (pelo qual o sujeito se exclui do social), até uma redução do ato ao dizer. O ato é “o que quer dizer” – l’acte est ce qui veut dire é a fórmula que propõe na síntese de seu seminário sobre a lógica do fantasma.24 E o que é dizer? É a referência do discurso psicanalítico, aquilo mais real ao que por ele tenhamos acesso, esse real em que o sujeito se funda como ser social. Ou seja, é laço, o discurso em si, em ato.25 Desde aquela primeira época, a que promoveu a leitura autointitulada “cínica” que escutamos há alguns anos – dizia-se: o ato é sem Outro –, Lacan passa então a uma concepção de sujeito que implica que o ato, de dizer, exige uma intersecção com o Outro; inevitável enquanto se trata do que dizer conjuga: de uma pulsão (invocante) e de uma intersecção de desejos. O paradoxo que estabelece essa intersecção é sua essência mesma, já que o que por ele nos enlaça ao Outro, socialmente, é o mais sutil, o menos material, o mais angustiante e ao mesmo tempo o mais etéreo: a sobreposição do que me falta com o que o Outro A fronteira entre delírio e laço social – a mediação do impossível


não tem. Intersecção vazia, sim, mas tão fundamental como o lugar vazio na escritura para a constituição da ciência. Por essa intersecção oca o Outro não existe, mas sim ex-siste, ali onde me é inacessível. O ato assim concebido recebe em Posição do inconsciente o curioso nome de separação, e é situado como a operação pela qual o sujeito completa sua constituição no social.26 É um parirse, etimologicamente entendido como “procurar-se um estado civil”. É passar a fazer parte – dizemos em espanhol – do que nos interessa na civitas: o desejo do Outro que, por ser inacessível ao reconhecimento, nos concerne, entretanto, mais intimamente tanto quanto se possa imaginar, nos concerne “pulsionalmente”. Assim exposto, pode-se entender que não me anime tanto um desejo “próprio”, já que o desejo não é algo muito apropriável nem compatível com o discurso da propriedade – o do mestre –, e que, pelo contrário, o desejo do Outro, experimentado na “extimidade” de meu ser, me incite eficazmente, me decida pulsionalmente. A sedução do alheio costuma ser o que convoca mais diretamente a parte decisiva de minha vontade: minha vontade inconsciente. É a estrutura secreta da invocação. Como isto repercute na posição do delirante? É interessante aproximar uma resposta a partir de algumas referências lacanianas. No seminário A lógica do fantasma lemos que, pelo contrário, é a alienação, primeiro passo na constituição do sujeito, o nível em que o sujeito é “sem Outro”, em que também o ato é sem Outro porque nesse nível da alienação é passagem ao ato. A homonímia proposta por Lacan entre esse momento estrutural do sujeito e a designação clássica da loucura não é, então, uma anfibologia. Na alienação lacaniana se acomoda bem o alienado de Condillac, que tem a “paixão da ligação”. Essa paixão elimina efetivamente o Outro, já que força o S2 a entrar integralmente na ordem (na ordem) do S1, à moda da holófrase. Em seu seminário Le sinthome, Lacan retorna veladamente sobre essa eliminação quando define a paranoia como um posicionamento em continuidade do real, do simbólico e do imaginário como efeito do enodamento de uma única consistência sobre si (as outras se desprenderam, o que não deixa chances à exsistência do Outro).27 Bem antes, na Questão Preliminar, destacava os “traços negativos que fazem aparecer a relação de Schreber com Deus mais como mistura do que como união do ser com o ser”. Esses traços “fundam a ausência surpreendente, nessa relação, do tu que é o significante do Outro na palavra”.28 O sujeito da psicose se basta então com um Outro “prévio” (assim o chama Lacan em Subversão do sujeito).29 Mas é necessário restituir o corolário irônico que acarreta semelhante afirmação: o sujeito da psicose se basta com um Outro que não é Outro, um outro que se fala a si mesmo, que devolve a si sua própria mensagem sob uma forma invertida. O Outro da alienação, que é também o Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 25-51 maio 2011

26 Lacan, Posição do inconsciente (1964b).

27 “O imaginário, o simbólico e o real são uma única e mesma consistência, e é nisso que constitui a psicose paranóica.” O seminário, livro 23: O sinthoma, (1975-76 p. 52)

28 Lacan em Post scriptum de sua “Cuestión preliminar...” opõe essa mistura schreberiana do sujeito com Deus (que exclui o você) à experiência mística: “O delírio nada mostra da Presença e da Alegria que iluminam a experiência mística”. Presença e Alegria evidentes nos testemunhos sublimes de São João da Cruz, na dureza literária de sua mestra Santa Teresa, e mesmo nessa expressão mínima do poema que nos comovia desde a escola primária: “Não me move, meu Deus, para querer-te / o céu que me hás prometido / nem me move ao inferno tão temido...”. A experiência do místico, enquanto faz exsistir o Outro in praesentia, se aproxima (mesmo que de um modo extraordinário e singular) ao laço social. Em todo caso se aproxima infinitamente mais que o delírio, que com a mescla destrói, do Outro, alteridade, presença e existência. 29 Lacan, Subversão do sujeito e dialética do desejo (1960).

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30 Gödel, ¿Qué es el problema del contínuo de Cantor? (1947).

31 Freud, S. Obras completas (Amorrortu, Bs. As.), vol. 19, p. 249 y vol. 23, p. 296.

32 Posição do inconsciente (op. cit., p. 857).

33 Ibid., p. 857

do delírio, não é um Outro verdadeiro. A ironia é essa: que esse Outro prévio que toma a iniciativa na psicose não é respeitado nem respeitoso na alteridade, mas retorna no real intrusivamente, descomposto, como sugerem as Memórias de Schreber, no um disjunto do significante. E nem sequer o trabalho de adesão mais elaborado do delírio logra devolver-lhe a alteridade eliminada: o Outro fica coagido a retornar no elemento do um, do um multiplicado no um mais um. E nenhuma hipérbole, nenhuma lilote aritmética do um bastará jamais para fazer Outro... salvo que se o admita como inacessível. Isso é a essência lacaniana (e cantoriana) da alienação, que leva Gödel a definir o dois como fortemente inacessível.30 Se a alienação é eliminação do Outro, separação quer dizer, pelo contrário, que algo, uma impossibilidade milagrosa, irrompe na anexação do S1 e S2: algo que faz da solda, intervalo; da ligadura, laço social, e permite um retorno do Outro descartado no estádio prévio. Isto não se dá, evidentemente, sem uma certa “desordem”, na qual o falho do ato toma a iniciativa, na qual os governos, as educações e as análises não são absolutos, porque estão marcados pela impossibilidade assinalada por Freud,31 na qual os infinitos transcendem o enumerável, na qual a incitação sexual rompe o rígido postulado da erotomania para tomar a forma sedutora, proteica e comunicável da histeria. Na separação o desejo do Outro desliza no intervalo. É a tentação sem o paraíso, é o gozo sem a relação, o sexo sem cópula. Tal separação permite, principalmente, procurar para si um estado civil. Lacan é contundente nesse ponto: “nada na vida de ninguém desencadeia mais empenho para ser alcançado”.32 Entende-se a situação problemática em relação ao desejo em que ficam as coisas para o psicótico, quem rechaçou a metáfora do pai. É reconhecida desde sempre a influência do pai na posição que toma o filho no social, e Lacan define que a metáfora paterna é “princípio da separação”.33 O psicótico, entretanto, rechaça essa influência de raiz, se exilou do social desde o começo. Sua chegada ao mundo, por ser de fato, mas não de direito, petrifica seu ser em um porvir de inocência e de ostracismo.

O rigor do delírio 34 Kraepelin, La folie systematisée, publicado em volume 30 de Analytica, intitulado Classiques de la paranoïa (1982).

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O reconhecimento ocidental do método na loucura é uma lenta e temerosa aquisição dos últimos séculos. Esse método, ainda que estudado, não foi esclarecido pela psiquiatria. Ela descreveu a certeza delirante que se baseia na evidência imediata, a “atitude racional” com que o louco conecta as ideias com as ideias, mas sempre marcando o déficit nas operações lógicas e a insuficiência na apreensão de uma realidade inquestionável. Lemos em Kraepelin34 que o deliA fronteira entre delírio e laço social – a mediação do impossível


rante, mais racional que razoável, termina sempre escapando de todas as coerções da lógica, é incorrigível por sua “incapacidade total de extrair uma lição da experiência”. Lemos em Guiraud35 que no delírio de interpretação “a função lógica é reduzida a um resíduo: o hábito de expressar nossos pensamentos sob a forma de raciocínio”. É mérito da psicanálise haver evocado esses ditames obscuros mostrando as nuances lógicas do delírio até chegar a reconhecer nele, se não uma elaboração logicamente impecável, ao menos um “ensaio de rigor” mantido, com frequência, em deduções audazes – das quais o neurótico é incapaz –, deduções que derivam das evidências de um empirismo ao qual somente acede o clínico ao “entrar na subjetividade do delírio”. Entrar na subjetividade do delírio, diz Lacan.36 Esse temido ingresso não implica, entretanto, que o analista tenha que delirar com seu paciente – como o entenderam alguns kleinianos nos anos 50 e alguns lacanianos nos anos 80. Lacan não propõe um delírio a dois; explica que a condição de acesso a essa subjetividade é uma crítica preliminar, não da realidade que testemunha o delírio, mas, pelo contrário, da realidade em que se baseia o psiquiatra, vale dizer: do somatório de preconceitos que para este constituem o marco mais ou menos rígido de toda base empírica aceitável, as viseiras que delimitam seu campo visual. A psicanálise admite mais coisas entre o céu e a terra do que as que tolera essa moldura – ao que se dá o nome técnico de fantasma.37 Não é o psiquiatra nem tampouco o analista quem deve distribuir essas coisas entre as que existem e as que não existem. Quando muito, poderá assistir analiticamente o paciente em sua própria classificação, o que“analiticamente” quer dizer: na posição surpreendentemente ativa que resulta de “uma submissão completa às posições propriamente subjetivas do doente”.38 Como uma submissão, a fortiori completa (entière), poderia ser ativa? Não é impensável, se essa submissão leva o clínico a um lugar que cause o desdobramento, sessão após sessão, da elaboração delirante, abrindo-a ao cunho dialético da interrogação. Isso tende a atenuar o impacto imaginário da certeza que acompanha essa elaboração, e torna ocasionalmente possível a crítica – onde antes havia somente essa incorrigibilidade que os psiquiatras condenaram depois de haverem contribuído para criar.39 Se o clínico eleva muralhas entre ele mesmo e o louco, não pode senão contribuir com seu enclausuramento. A psicanálise nasce com o século em que a lógica adverte e prova que o rigor na demonstração não depende da verdade dos enunciados que a compõem, mas que depende somente de: 1. a não contradição entre os axiomas dos quais se parte; e 2. que se respeitem certas regras dedutivas que a partir desses axiomas permitam chegar a outros enunciados que ficam demonstrados por derivar Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 25-51 maio 2011

35 Guiraud, Les formes verbales de l’ interprétation délirante (1921, p. 411).

36 Lacan,

De uma questão

preliminar a todo tratamento possível da psicose (1958).

37 Precisamente em uma extensa nota de rodapé acrescentada em 1966 ao capítulo III de sua De uma questão preliminar..., Lacan propõe situar a realidade a partir do objeto a do fantasma, que a enquadra.

38 De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, (op. cit., p.540).

39 Cf. o Petit discours aux psychiatres que Lacan pronunciou em 10 de novembro de 1967, de cuja gravação publicada possuo uma fotocópia, mas não as referências bibliográficas.

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40 Schreber, Memórias de um doente dos nervos (1903/1985). Aproveito para recomendar a elaborada e rigorosa versão espanhola que nos deixou meu mestre Ramón Alcalde, publicada por Lohlé em 1979. Consta-me que trabalhou nela durante anos, com impressionantes arquivos.

41 Memórias de um doente dos nervos, (op. cit., cap. I, pp. 35-36). Cf. especialmente nota 2.

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corretamente daqueles axiomas. Pode não se avaliar a veracidade de tais axiomas e teoremas, e mesmo assim o processo de demostração ser rigoroso. Mesmo que os axiomas sejam falsos em todos os mundos possíveis, sobre eles pode fundar-se um sistema livre de contradições. Nada mais rigoroso que um sistema que não se refere a nada, ou seja, que encontra sua consistência graças ao fechamento estrito de seu nível dedutivo em certa “ordem”. Dizer que o psicótico é rigoroso é dizer então que se atém ao que se pode deduzir a partir de postulados que em seu sistema se aceitam como válidos, sem avaliar sua veracidade ou falsidade nem sua correspondência com o que existe ou não em algum mundo possível. Mas Schreber é rigoroso? Ao ler suas Memorias40 não nos parece, em alguns momentos, mais incoerente e contraditório? Para responder a estas perguntas, haveria que considerar a quantidade e a devastadora dispersão das evidências do significante no real em sua primeira experiência de psicose desencadeada – da qual testemunha nos capítulos VI e VII, em que relata o que chama a época santificada de sua vida. O mesmo Schreber afirma ali que todas as pessoas que estiveram próximas a ele em sua vida anterior poderiam testemunhar que era “de uma índole serena, muito sensata, cuja aptidão individual se dava mais na linha de uma fria crítica racional do que na da atividade criativa própria de uma imaginação tranquila”. Pelo contrário, a época santificada de sua vida foi repleta de acontecimentos milagrosos que escapam ao que ele poderia explicar a partir das ciências naturais. Vê-se, então, compelido a tentar o impossível: tornar coerente sua caótica vivência do significante no real, eliminar as múltiplas contradições que sua tradicional racionalidade abomina. A tarefa de Schreber é impossível. O método deve, portanto, admitir o paradoxo, tolerar o absurdo. Entretanto, a dignidade e o rigor da tentativa são extraordinários. A empreitada: organizar o caos da experiência em um sistema novo, que por força de lógica se aparta de sua realidade anterior. Como os metafísicos de Tlön, Schreber entende que uma ordem, um sistema, não é outra coisa que a subordinação de todos os aspectos do universo a qualquer um deles. Mas o problema com o que se depara é que a ordem e o cosmos se romperam, que Deus se apartou da ordem porque se viu demasiado envolvido em sua relação com esse ser vivente que é o próprio Schreber, e que já “não há un nervo determinante”41 – não há um significante mestre – senão que cada nervo concentra sobre si a representação do sujeito ao qual todas as coisas se referem. Tenta hipostasiar então as múltiplas vivências em enunciados que se integram em cadeias dedutivas, consistentes com algumas centenas de hipóteses iniciais e com outras ad hoc que subvêm às necesidades da explicação. Assim concebido, o solitário trabalho de elaboração do delírio se eleva em Schreber à epopeia intectual, e sua peculiar loucura, à A fronteira entre delírio e laço social – a mediação do impossível


racionalidade mais rigorosa com que um homem tenha tentado redigir sua experiência do sintoma. Por isso as Memórias se tornaram o texto com o qual nós, psicanalistas, nos introduzimos na psicose e na sua lógica, desde o começo. E sentimos que Freud não exagerou quando reconheceu na elaboração schreberiana uma teoria rival à sua doutrina da libido.42 Ademais, a sua não é uma certeza cega, das que se tomam como A verdade. Declara não se sentir seguro sobre o valor de realidade do que vê, do que escuta etc. Simplesmente testemunha sobre o que se lhe impõe e depois reflete, tenta explicar o que não entende. Sua argumentação admite a conjectura, suas perguntas, a resposta provisória. Schreber sente, por exemplo, que tudo o que acontece se refere a ele.43 Aceita que são os loucos que pensam que tudo se refere a eles mesmos, argumenta que esse não é seu caso, já que é Deus quem pretende e faz com que cada acontecimento se refira a ele. É decisivo então prestar atenção ao que pode nos dizer Schreber sobre seu Deus, na tentativa de rigor de seus ensaios explicativos. “Esse Deus é o Outro”, dizem rapidamente alguns, crendo seguir assim fielmente ao mestre. Mas que Outro? Consultemos Schreber. Escreve um Anexo em suas Memorias cujo título é uma réplica monoteísta de Cícero Sobre a natureza de Deus. Nele, sugere novas hipóteses reconhecendo-as como tais, descarta algumas anteriores, e nos fala da alteridade de Deus, ou seja, o que responderia à pergunta de se Deus é Outro. Mas pode-se notar muito bem em sua resposta que essa alteridade é meramente quantitava. Deus é “a massa total dos raios em repouso”. Isso é um Deus-Outro, ou é mais um Deus-Um, de um monoteísmo que rapidamente se duplica em Ormuzd e Arimán e se multiplica até alcançar um estranho politeísmo de identidades desconexas? Não é o sistema de Schreber, como o de Plotino em suas Enéadas, um sistema em que o um se repete, se reproduz, se multiplica e emana suas hipóstases subalternas recobrindo toda alteridade verdadeira? Essa é a impressão que deixa a leitura das Memórias: um Deus feito da recursão do um que pensa, o um que mortifica, o um que faz o vivente gozar, mas sem lhe fazer nenhum lugar. Então não é Deus quem encarna verdadeiramente o Outro em seu sistema. E se o buscamos no termo feminino, que é a sede “natural” do Outro, do heterogêneo, do diferente? Em tal caso tampouco seria Deus esse Outro, mas o próprio sujeito, quem se sente chamado a restituir o feminino por uma via contrária à sua natureza, em uma feminilidade que ademais se afasta sistematicamente à medida que o presente progride no tempo. Esse Outro é então ele mesmo, e já não é Outro. É futuro, e já não é real. Assim apresentada, essa relação de Schreber com um-Deus que não transcende o plano do um revela a solidão radical do sujeito Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 25-51 maio 2011

42 Depois de comentar as similaridades entre a teoria delirante de Schreber e a sua própria, da libido, Freud escreve, ao fim de sua Nota psicanalítica sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia: “Entretanto, posso trazer o testemunho de um amigo e colega no sentido de que eu desenvolvi a teoria da paranoia antes de me inteirar do conteúdo do livro de Schreber” (p.104)

43 Memórias de um doente dos nervos, (op. cit., cap. XX).

41


44 O Seminário, livro 14: A lógica da fantasia (op. cit., aula de 11 de janeiro de 1967).

45 Lacan, “El problema del estilo y la concepción psiquiátrica de las formas paranoicas de la experiencia”. Publicado no primeiro volume de Minotaure (Paris, 1933). Existe una versão espanhola no volume de Tesis, editada por Siglo XXI.

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ante o significante, e nos permite descartar uma vez mais a anfibologia que marcaria o termo alienação no ensino de Lacan. O que é a alienação, se não é a loucura? Quer dizer fazer-se outro, como sugerem suas ressonâncias etimológicas? É, mais modestamente, a operação que consiste em tomar seu lugar? Em qualquer caso, o resultado que para Lacan está assegurado por esse termo, ao menos desde 1966, é a eliminação do Outro.44 A relação alienada de Schreber com Deus o descarta como Outro, situando-o como implacável máquina significante que não entende os seres viventes, nem suas impossibilidades, nem suas virtudes antialgorítmicas. Encontramos assim uma propriedade lacaniana do significante: é inapto para fabricar ou admitir um Outro que verdadeiramente o seja. Se tento fazer Outro a partir de um (/), isso me dá (//), que não é Outro e sim o mesmo repetido. Se tento outra vez, obtenho (///), ou seja, algo que não sai do terreno do um. No lugar do Outro temos agora a recursão, que é a forma que toma a repetição nas matemáticas. Isto é claro desde que as axiomatizações rigorosas da teoria dos conjuntos permitiram reformular quase todas as matemáticas a partir da escritura de um elemento significante (o conjunto vazio) e sua repetição. Lacan dá a isto uma importância que pode parecer desmesurada, dedica-lhe numerosas aulas dos seminários sobre A lógica do fantasma, De um Outro ao outro e posteriores. Em quê interessa a nós, analistas? É que dada a dependência estrita, propriamente alienada, do sujeito ao significante, estas questões não somente importam ao matemático e ao lógico, mas também àqueles que, como nós, se ocupam do sujeito que o significante enxerta na vida, e da pulsão que substitui o vital do instinto. O que é a pulsão, afinal? É a forma obrigada que tomou a tendência instintiva como efeito do um que se inscreve no corpo. Essa inscrição lhe destina um gozo, satisfaz então a tendência sem necessidade do objeto. Mas não a satisfaz totalmente. A transtorna. Engendra-se a repetição, e o vivente se acomoda como pode à estrutura de conjunto do simbólico. Mas nem sempre o vivente resiste a ela: nem sempre admite que o significante tome corpo englobando seus órgãos. O esquizofrênico costuma rechaçar essa operação de conjunto e testemunhar que nenhum corpo venha conter seus órgãos forjados e dispersados pela linguagem. Há outras formas clínicas da psicose nas quais tal repetição é também evidente, nas quais a existência de um Outro verdadeiro é também questionável. Pensemos na paranoia e nessa experiência frequente que Lacan em sua Tese chamou identificação iterativa do objeto:45 “o delírio revela uma grande fecundidade em fantasmas de repetição cíclica, de multiplicação ubiquista, de periódicos entornos sem fim de mesmos acontecimentos, em duplos e triplos dos A fronteira entre delírio e laço social – a mediação do impossível


mesmos personagens, às vezes em alucinações de desdobramento da pessoa do sujeito”. Essa experiência múltipla e reiterada, fascinante por revelar formas da implicação secreta de cada qual como sujeito da linguagem, é um dos temas clássicos da arte. Abunda na literatura sinistra de Hoffmann e de Poe, se prolonga no romance de Dostoievsky, se reitera nos espelhos de Borges. Também no cinema, em O quarto homem, de Verhoeffen – excelente perspectiva de uma paranoia vista “do lado de dentro” –, e em O inquilino, de Polansky. Todas elas nos transportam a esse confim que na ficção parece arranhar o real e despertar-nos a uma dimensão alienada e desconhecida de nós mesmos.

A exclusão da verdade no delírio O rigor do delírio é facilitado pelo fato linear de que sua estrutura mesma se depreende no nível da alienação. Esse movimento implica, entretanto, um resultado de signo diferente: o psicótico enquanto tal rechaça a verdade. Por quê? Mas antes, o que é a verdade? É a irresponsável pergunta de Pilatos,46 que não se interessa pela resposta de Cristo, que é inocente. O discurso filosófico manipulou essa pergunta com seus conceitos, conjecturou respostas díspares ao longo dos séculos, propôs definições que se contradizem umas às outras. Heidegger rastreou a história dessas respostas parciais e postulou que a primeira, a “originária”, diz que a verdade é desvelamento, é alétheia do que se oculta – para o filósofo é o ser, para o psicanalista, o sexo. A relação do ser com a verdade havia sido anotada para sempre na sentença de Heráclito: físis cruptestai filei {o ser enquanto manifestação ama ocultar-se}. Aristóteles colocou limites a essa propriedade fálica do ser. Definiu-a: verdade é dizer do que é, o que é, e do que não é, que não é. Se não podemos terminar com os disfarces, ao menos os coloquemos em ordem. De qualquer forma, Aristóteles deixou escrito que a verdade é dizer. A filosofia medieval esqueceu essa marca de origem, que a verdade é dizer que descobre; concedeu sua guarda a Deus e seus exegetas na Terra. A verdade se encontra então somente na adequação das coisas à palavra atribuída a Deus, na conformidade do que se diz com o que Ele diz – à ordem se soma a decência. Nessa época algumas histéricas, inadequadas, morriam na fogueira, e também alguns homens da ciência. Como Descartes evitou um destino semelhante? Ele também entregou a Deus a guarda da verdade, não discutamos com ele, não irritemos seus clamores. Mas propôs que a ciência do homem seguisse outro caminho, o de uma demonstração que provisoriamente não pede nenhuma garantia à verdade: inaugurou o caminho Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 25-51 maio 2011

46 João, 18:38.

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47 Lacan,

A ciência e a

verdade. (1966, p.889).

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alienante já comentado, o da demostração pela via do um e do um mais um, mais um, sem Outro. Esse “provisoriamente” deu resultados magníficos. A ciência descobriu o que se pode acrescentar de saber ao real a partir de não perguntar mais nada ao Outro divino que acumula as verdades. O cientista disse aos homens: “agora podem comer o fruto da árvore da ciência, mas com uma única condição: não perguntem sobre o sexo! É o único que seu Deus não toleraria, Ele mesmo nunca definiu seu sexo na Bíblia. Serão como deuses, adquirirão as próteses que faltam para assemelhá-los, mas não esqueçam; poderão manipular o sexo, surprimi-lo, invertê-lo, cloná-lo, infectá-lo com males venéreos ainda desconhecidos, mas nunca indagar verdadeiramente sobre ele”. A psicanálise surgiu como alternativa a essa proibição bíblica que a ciência moderna respeitou. Freud desenhou um lugar relativamente confortável para o sujeito da fogueira, o deixou falar, afrontou o perigo das revelações inesperadas, da verdade e dos amores que ela reanima. Não somente é certo que o ser ama ocultar-se, como também que o que se oculta ama se expressar. E eventualmente te ama, e até demasiado. O ocultamento que aprecia o neurótico, chamado repressão por Freud, pode agora ser interrogado. Aceitou-se que a linguagem dos sintomas fale de sexo, fale do Outro, e mais precisamente de Outra – divina ou não. A psicanálise responde à pergunta de Pilatos? Contundentemente devemos dizer que não. Não a evita, tampouco a responde. Sabe que não pode prescindir dela no tratamento do neurótico, opta então por deixá-la entrar, lhe faz um lugar, que fique cômoda, que fale, que se expie no que diz o paciente, no que acrescenta o analista, que não é pouco. Sabe também que não se pode responder – não há verdade da verdade, sentencia Lacan metapilaticamente –, que qualquer resposta a desloca ou a devolve ao esquecimento, portanto só pode escutar aquele que fala em seu lugar. Em A coisa freudiana encontramos um Lacan que se deixa falar pela verdade, faz sua prosopopeia, como o analisante comum, em primeira pessoa. Não há resposta à pergunta sobre o quê da verdade, mas isso não me impede de dizê-la. Não a digo quando a sei, mas quando não me dou conta, dando lugar em meu dizer a Outra coisa, diferente daquilo em que me reconheço como “eu mesmo” a partir de meus mais limitados cálculos. A verdade é o que no dizer ataca o um estabelecido como um mesmo, perpetuado na constância da repetição do um mais um. E Lacan mostra que todo discurso, para sê-lo, necessita fazer-lhe um lugar, um lugar que permita a abertura a Outra coisa, diferente da recursão do que nele pode se computar. Até mesmo a ciência, que fechada à verdade, “seria uma paranoia bem-sucedida”,47 guarda-lhe, entretanto, seu lugar, admite uma abertura popperiana que A fronteira entre delírio e laço social – a mediação do impossível


oferece suas teorias a falsificações inesperadas, e suas evidências a novas interpretações. Vivemos na época em que está demonstrado que o Outro não existe, reflete Lacan.48 Mas nos deixou um legado, uma herança, a verdade, que é o único que resta daquele Garante eliminado. Podemos reprimi-la, esquecer que fala em nós, porque nós falamos no lugar deixado pelo Outro – substituição sensível na histeria: “já não quero estar com ele, mas não tolero que Outro ocupe meu lugar”. A verdade retorna, mesmo quando a negamos, quando não queremos deixá-la entrar. A partir do momento em que habitamos o discurso, estamos sujeitos à sua indiscreta operatória. E este é o ponto em que a diferença entre o delírio e o discurso é máxima. O psicótico, no delírio, não quer saber nada da verdade, mas não no sentido impostor, e até brincalhão, da repressão, mas no da forclusão: prescreveu o momento em que algum Outro poderia abrir a verdade a respeito do que me acontece. Do Outro eliminado não admite sequer sua herança. “Na fala delirante, o Outro está verdadeiramente excluído, não há verdade atrás, há tão pouca que o próprio sujeito não põe nisso nenhuma verdade” – diz Lacan em seu seminário sobre as psicoses. É pelo que ele “fica em face desse fenômeno, na atitude da perplexidade…” Ao estar o Outro excluído verdadeiramente, o que concerne ao sujeito é dito realmente pelo pequeno outro, por sombras do outro, ou como se expressa Schreber, por “homens feitos às pressas.”49 Isso permite diferenciar claramente entre verdade e certeza, ao mesmo tempo renovar a clínica sutil do sintoma na psicose. O psicótico está na certeza de que isso que ocorre fenomenologicamente e que ele não entende – lhe concerne. Se lhe interessa explicá-lo, coisa que não ocorre em todos os casos, tentará contextualizá-lo, envolvê-lo ou separá-lo em um sistema dedutivo mediante o árduo trabalho do delírio que se elabora no nível iterativo da alienação. Mas nem se interessa nem se joga pela verdade desse fenômeno, não lhe preocupa que isso corresponda ou não a algo que pode se interrogar a partir do lugar do Outro, e nem sequer aposta nessa forma precária da verdade que consiste em fazer coincidir o significante do fenômeno com sua localização em uma realidade qualquer. O louco não crê na realidade de sua alucinação. Nenhuma outra oposição permite ver tão claramente que o laço de quem fala a verdade não é o mesmo de acordo com o ponto em que sustenta seu gozo. Gozar no discurso – que sempre toma a forma concessiva de um plus de gozar – é diferente do gozar no delírio. O discurso implica o enlace social ao menos dois corpos em que um faz lugar ao Outro, é a condição mínima do social. O delírio é, ao contrário, a aglutinação do não mais de um em que se concentra o Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 25-51 maio 2011

48 O seminário, livro 14: A lógica da fantasia (op.cit.)

49 O seminário, livro 3 : As psicoses (op. cit., p. 65)

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50 Lacan, “Presentación de la traducción francesa de las Memorias del Presidente Schreber”. Intervenciones y textos 2 (1988, p. 30).

51 Sierpinski y Tarski, definiram o conceito em seu artigo “Sur une propieté caractéristique des nombres inaccesibles”. Fundamenta Mathematicae, vol. 15 (1930, pp. 292-300).

52 De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (op. cit.)

53 Assim o discutiu J. Lacan em seu seminario: o sinthoma, aula de 16 de dezembro de 1975.

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um mais um mais... inclusive se trata-se de um delírio coletivo que nunca fará lugar ao Outro. O psicótico não admite essa verdade que se encontra entre um e Outro, porque para ele não há verdadeiramente Outro. Lacan define a paranoia como a identificação do gozo no lugar do Outro como tal.50 É preciso não se confundir neste ponto: uma coisa seria o gozo do Outro, se existisse; outra, muito diferente, é a identificação do gozo no lugar do Outro, identificação fantasmática que não costuma ir muito longe no alívio, identificação bem-sucedida apenas na empreitada de extrair o gozo do um que mortifica para remetê-lo metaforicamente ao corpo do Outro amado ou desejado. O Outro schreberiano, feito de discursos infinitos, não é um Outro cujo corpo esteja socialmente enlaçado ao gozo de Schreber, nem Outro corpo cuja presença fosse facilitada por essa hipóstase do real no discurso que é a impossibilidade, necessária para que o Outro seja Outro como tal, e não fique subsumido no um. Impossibilidade que neste caso se beneficia conceitualmente se a especificamos como inacessibilidade.51 Nisso Lacan, depois de sua questão preliminar, nem avança muito nem tampouco se contradiz tanto, consciente de que a metáfora delirante52 não é uma verdadeira metáfora. Quem fez alguma vez a prova da verdade com o paciente psicótico não a esquece jamais. Não conduz a um fim, em seu caso, denunciar o gozo como valorde-gozo, gozo culpado de falsidade, não costuma dar bons resultados. O essencial do gozo não saiu do um, não é, portanto, falso. Para o psicótico, inocente por natureza, no lugar da metáfora está a injúria que ela carrega, e seu sintoma dá conta disso. Se a significação de injúria do significante alcança ali tão diretamente o órgão, engatilha tão facilmente a passagem ao ato, é na medida em que o Outro não foi incorporado. É o que leva Lacan a definir pela última vez a paranoia em 1975, desta vez como o enodamento de uma única consistência sobre si mesma, onde o real, o simbólico e o imaginário estão em continuidade sem que cada um ex-sista a cada Outro.53 O Outro não é ali inacessível, simplesmente não é. Pode-se entrever, então, a oposição de fundo entre rigor e verdade dada pelo funcionamento propriamente lacaniano dos discursos: se pode ser rigoroso seguindo a lógica de um discurso. Mas a verdade é contrária ao rigor, já que ela é o lugar de abertura de um discurso à intrusão de outro discurso. É o hiato que o abre à composição dialética. Neste sentido o psicótico é incorrigível, como diziam Lasègue, Kraepelin e Jaspers. Imaginemos como experimentum mentis que uma paranoia bem-sucedida conseguisse alcançar um estado de laço social. Por exemplo, que un psicótico-mestre enlaçasse “socialmente” um grupo de seguidores de seu rigor, de sua audácia ou de seus ideais (isto já ocorreu). Estaria semelhante “discurso” aberto A fronteira entre delírio e laço social – a mediação do impossível


à crítica, toleraria o escárnio da oposição, as digressões da imprensa, as divergências partidárias que caracterizam a democracia, as etnias alheias que sempre provocam mais ou menos rechaço? Ou buscaria rigorosamente a concentração e o extermínio das diferenças e, se o talento político e o poder militar o permitissem, a solução final em uma depuração algorítmica do sujeito? Este rechaço da verdade na psicose é o que forma a base das dificuldades que encontra o analista em seu tratamento. Trata-se de um sujeito que não se retifica subjetivamente, que em termos de Freud “recusa crer em reprovações” e, portanto, não é culpado, que considera às vezes a verdade uma mentira abominável, que reduz o gozo a um valor, e que não se satisfaz então na interpretação que lhe aponta o analista – nisto é muito diferente do neurótico, que costuma recebê-la com prazer: “eu esperava que o senhor me desse um puxão de orelha”, dizia esta manhã uma insatisfeita analisante ao se despedir. O neurótico admite bem o fato de que quando a verdade se faz ouvir, tudo se subtrai e se abre o deserto. O psicótico, pouco adepto a esse turismo, exige em troca a mais estrita submissão a suas posições propriamente subjetivas como preço para deixar o analista ingressar em sua fortaleza: então talvez queira revelar a textura de seu sintoma no dizer, abrir algumas de suas portas, e eventualmente voltar à pólis – a trabalhar, por exemplo. Mas em qualquer caso, responsavelmente, o psicótico exigirá que se comece por respeitar as pautas do lugar em que deixou resguardado seu ser, que não se entre ali pela janela, nem por uma porta fechada. O analista não considera o psicótico culpado, mas pode, porém, considerá-lo responsável, de se ater à estrutura que assumiu como destino.

Curiosos quiasmas: delírios neuróticos, psicóticos no discurso A divisão contundente que mantemos entre delírio e discurso pode ser interrogada desde dois ângulos diferentes, a partir da existência de neuróticos que deliram e de psicóticos que ao menos durante certos períodos de sua vida habitam discursos estabelecidos. Questionam seriamente a linha demarcatória de Lasègue-Falret-Lacan? Freud falou do delírio do homem dos ratos; Lacan, do delírio reivindicativo de Dora. Entretanto, isso não impediu Freud, o analista, de induzir em ambos os casos, por interpretação, uma rápida mudança na posição subjetiva que teve como efeito dissolver o delírio. Com maior ou menor dificuldade, os delírios puerperais nas obsessivas costumam seguir o mesmo destino, ou as crises delirantes das histéricas surgidas em coordenadas de extrema pressão da Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 25-51 maio 2011

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54 Cf. a resenha que redigiu J. Lacan de seu seminário A logique du fantasme, em Reseñas de enseñanza (Manantial, Bs. As., 1988), e o case de 23 janeiro de 1963, de seu seminário sobre A angústia (1962-1963). Cf. também meu artigo “El acto analítico considerado a la luz de sus infortunios”, em Infortunios del acto analítico (Atuo, Bs. As., 1993).

55 Cf. G. Lombardi. El prepsicótico en la ciudad del discurso. Descartes, vol. 5.

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demanda do Outro – no estilo de Elizabeth von R. O delírio traduz ali a urgência subjetiva, e não tarda muito em se dissipar quando é atendida pelo analista. Em todos esses casos nos encontramos com o fundo discursivo e histérico do sintoma que se comunica, e que enlaça ao Outro de modo tal, que lhe deixa aberta a porta ambígua da verdade, por onde entra a interpretação. Se entendemos o episódio delirante no neurótico como participando da dimensão do acting out – que diz uma verdade sem sujeito – é quase o mesmo caso, já que o acting se cura com a presença do analista, e a solução consiste então em apontar essa presença.54 E não é impensável que os delírios neuróticos participem sempre da dimensão do acting, com seus caracteres de encenação desmotivada, de mostração obscena de uma causa incompreensível para o próprio sujeito. Muito diferente é o caso frequente do pré-psicótico com sintomatologia pseudo-obsesiva (fobias de contato, formas atenuadas da folie de doute, rituais bizarros), ou da paciente psicótica ou prépsicótica que parece falar no discurso histérico. Este problema se pode generalizar do seguinte modo: há uma certa compatibilidade pouco explorada entre psicose não ativa e discurso.55 Especialmente os discursos que não acentuam a impossibilidade; o universitário e o histérico costumam alojar com certa facilidade e duração sujeitos psicóticos: mas não enquanto delirantes, mas enquanto esses discursos os “enlaçam”, ou ao menos não os desencadeiam. O caso mais difícil quanto ao diagnóstico diferencial parece ser o do delírio pseudo-histérico das pacientes psicóticas, que frequentemente são tratadas como histéricas e “interpretadas” como se costuma interpretar o neurótico – com resultados às vezes duvidosos, às vezes lamentáveis. Outro caso que não omitiremos é o do neurótico obsessivo que, delirante ou não, costuma manter seu sintoma à margem do social. Freud postulou, entretanto, que deveria entender-se a neurose obsessiva como um dialeto da histeria. Ainda assim devemos concordar que é um dialeto que não se entende muito bem com o discurso do analista. O obsessivo, muitas vezes, obedece, diz que sim, pode ser um muito bom paciente, mas faz outra coisa, e o discurso do analista é neutralizado, sua eficácia é sugestiva e não analítica, hipnose ao contrário, diria Lacan. Freud o notou, com o homem dos lobos, que algo mudou nesse caso somente quando interveio a ponta histérica, corporal, do sintoma obsessivo. Quando o sujeito-sintoma condescende a se inscrever no corpo, isso o abre de outra maneira à ação analítica, o corpo deixa de ser uma unidade especular, da ordem do um-mesmo, para se fazer Outro. Outro que ao receber o significante do sintoma que representa o sujeito altera o gozo. O sintoma histérico é o sintoma social por excelência, pelo qual o Outro incorpora o saber inconsA fronteira entre delírio e laço social – a mediação do impossível


ciente que subjaz ao sintoma, completando sua mensagem e permitindo a este transferir, ceder, parte de seu núcleo de gozo. Quando Freud se deixa alojar no discurso histérico de Dora, o sintoma se transforma em transferência. O laço analítico, por sua parte, permite apreciar a diferença que há entre a presença de dois corpos e a de um. A demonstração da não relação sexual que realiza uma psicanálise não se pode realizar em condições de autoanálise. Para atender a um sujeito se necessitam dois corpos, nem menos nem mais. Não menos: para abrir o gozo ao efeito de discurso que exige esse mínimo de dois (corpos) para constituir o laço social. Não mais: para evitar o que o efeito de grupo acrescenta de obturação imaginária ao efeito de discurso. Por isso, mesmo que o sintoma separe o obsessivo do social, o isole até da possibilidade de participar cabalmente da experiência analítica – que não é experiência do pensar, mas das incidências somáticas do dizer –, o “núcleo de histeria” que Freud soube discernir na raiz corporal do sintoma abre uma porta de entrada à verdade analítica. Completamente diferente é o caso do sintoma psicótico, seja no nível do fenômeno elementar ou no do delírio em seu conjunto: ali não há mediação discursiva possível entre o sujeito e o Outro, não há verdade que signifique nem dissipe o que ali se diz. Nisso a ordem do delírio, por mais extensa e rigorosa que seja, continua participando da estrutura “uniana” do fenômeno elementar, fechada à verdade e a suas dialéticas. É o que leva Lacan a afirmar, em aparente contradição com outras sequências de seu discurso: “Restituir ao redor disto uma ordem delirante, não se faz como se crê por dedução e construção, mas de um modo que tem relação com o fenômeno primitivo mesmo”.56

56 O seminario, livro 3: As psicoses (op. cit.)

A mediação do impossível “É aventurado pensar que uma coordenação de palavras (outra coisa não são as filosofias) possa se parecer muito ao universo”, escreveu Borges. Galileu advertiu essa dificuldade faz uns quatrocentos anos. Para remediá-la, começou sua indagação científica abandonando os hábitos do filósofo. Mudou o latim, língua culta, mas também sacra, pelo secular italiano, e começou a tratar o real com a linguagem das matemáticas, ou seja, uma coordenação já não de palavras, mas de letras e números sem sentido. Nesses anos, que foram também os de Descartes, liberou-se a ciência da exigência de adequar suas hipóteses à tirania de um texto ou aos ditames do sentido comum. O tratamento matemático do real transformou sua fisionomia: o forçou a se apresentar sob a forma do impossível, que em uma primeira aproximação podemos Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 25-51 maio 2011

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57 Cf., por exemplo, “Los orígenes de la ciencia moderna” e “Galileo y la revolución científica”, em Estudios de historia del pensamiento científico (1977).

58 Freud, S. Mal-estar na civilização (1930, p.133).

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entender como Koyré: inassimilável ao sentido comum. Exemplo, como duas partículas sabem, separadas por milhares de milhões de quilômetros, que podem e devem se atrair mutuamente seguindo a fórmula da gravitação universal que propôs Newton? Nada no sentido comum da época preparava para comprender a eficácia dessa fórmula. E, para dizer a verdade, nada tampouco na nossa teoria geral da relatividade, que nos revele o mistério dessa atração de aterradora exatidão ao distribuí-la nas elegantes curvas do espaço-tempo. Lacan tomou dos textos de Koyré essa concepção do real aplicada às origens da ciência57 e a radicalizou até afirmar que o real, no discurso, só se manifesta sob a forma lógica do impossível, e já não apenas fora do sentido comum, mas também fora de toda forma possível de sentido. O real não tem sentido em nenhum mundo possível. Ou, em nossos termos: em nenhuma realidade, em nenhum marco fantasmático, em nenhuma ficção. Pode-se cobri-lo, velar; pode-se cobrir seus orifícios; pode-se acrescentar-lhe saber, livros e software, mas não se pode dar-lhe sentido, é impossível. Essa ideia permitiu a Lacan discernir com clareza a forma que toma o real em cada um dos discursos, entre o agente e o Outro sobre o qual opera. Localizar ali o impossível é estabelecer no seio do laço social uma curiosa mediação, imprescindível e essencial, entretanto, para qualquer das formas do social. Governar, educar, analisar, fazer desejar (em certos casos, também, investigar), são formas fundamentais do social que incluem sempre no laço com o Outro a mediação do impossível. Formas que evitam a realização direta – condenando-a como passagem ao ato – dessas satisfações mortíferas do ser humano que Freud descreveu em um célebre parágrafo: “O próximo não é somente um possível auxiliar e objeto sexual, mas uma tentação para satisfazer nele a agressão, explorar sua força de trabalho sem ressarci-lo, usá-lo sexualmente sem seu consentimento, despojá-lo de seu patrimônio, humilhá-lo, infligirlhe dores, martirizá-lo e assassiná-lo. Homo homini lupus”.58 Ele tem seu corpo, habet corpore, e precisamente porque me é inacessível se atreve a fazê-lo presente no laço social: ali, enquanto se trate de discurso, é impossível que me apodere dele, que eduque completamente suas pulsões, que analise exaustivamente seus compromissos ideais ou seus elementos de gozo antissocial, que produza o saber sobre o que causa o desejo. Ali, no discurso, tudo isto é, além de protegido, acomodado pela lei do mal-entendido que implica que estas coisas habitualmente não se explicitem, que a verdade permaneça latente ou se diga somente parcialmente que o Outro me entenda apenas se lhe digo outra coisa, que a impossibilidade facilite a separação que nos liga no desejo – em uma cumplicidade usualmente denegada, mas mais íntima que as máscaras com que simulamos a reação entre minha impotência e sua frigidez. A fronteira entre delírio e laço social – a mediação do impossível


O delírio, pelo contrário, ao ser uma colocação em continuidade do real, do simbólico e do imaginário, ao anular então a descontinuidade que o real opera entre simbólico e imaginario, impede sua mediação entre os corpos. No lugar da mediação do impossível, na psicose encontramos um real que retorna na impossibilidade do intervalo, e condena o simbólico à holófrase. O um exercita aí a potência do contínuo, sem que os choques e as objeções de nenhuma realidade tenham efeito sobre sua reincidência circular. O laço social é a criação do intervalo, o delírio é efeito de sua falta. Atentemse às palavras, recomendou Mefistófeles. Então, pela segura porta, entrem no templo da certeza.59

59 GOETHE, J. W. Faust (DTV, München, 1972),

Tradução: Keila Silveira Revisão: Ana Paula Gianesi e Maria Claudia Formigoni

erster Teil, s. 59. “Im ganzen: haltet Euch an Worte! Dann geht Ihr durch die sicher Pforte

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A fronteira entre delírio e laço social – a mediação do impossível


Resumo O artigo propõe uma distinção nítida entre delírio e discurso. Essa distinção é de importância clínica capital, porque permite distinguir entre casos que podem parecer muito similares e que, entretanto, respondem a estruturas e tratamentos diferentes – em uma época em que, até mesmo entre psicanalistas, certas distinções fundamentais logradas por Lacan, recém-adquiridas, começam a se diluir. O texto implica também uma proposta ética, na medida em que propõe interrogar a posição de enunciação de afirmações da moda, no estilo: “tudo é delírio”, ou “o Outro não existe”.

Palavras-chave Delírio, discurso, certeza, impossibilidade, folie à deux, sintoma, política.

Abstract This article proposes a clear distinction between delirium and discourse. From a clinical point of view, this difference is important because it allows a distinction between cases that seem to be alike, but in fact respond to different clinical structures and treatments – in a period where, even among psychoanalystis, some fundamental distinctions made by Lacan, recently acquired, start to dilute. The article also defends an ethical proposal, as it fosters a discussion about the enunciation position towards current assumptions such as: “Everything is delirium”, or “the Other does not exist.”

Keywords Delirium, discourse, certainty, impossibility, folie à deux, symptom, politics

Recebido 16/02/2011

Aprovado 20/03/2011

Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 25-51 maio 2011

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trabalho crĂ­tico com os conceitos

Stylus Rio de Janeiro nÂş 22 p. 1-180 maio 2011

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O discurso capitalista Colette Soler Vamos, então, tentar passar do pathos ao conceito, pois este filme1 que nós assistimos é de fato um “soco no estômago”. Este tema do discurso capitalista nós o devemos a Lacan. E ele nos permite compreender em sua expressão mesma a que ponto a psicanálise, como Lacan a orientou e esclareceu, não se limita, como normalmente se acredita, a ocupar-se dos indivíduos somente um a um — ela se ocupa destes, eletivamente, no tratamento, é claro. Com a noção de discurso, assim como Freud falava da civilização, Lacan tentou introduzir que a partir do discurso analítico se poderia compreender alguma coisa relacionada ao conjunto das coletividades. É daí, da noção mesma do campo lacaniano, que nós retomamos agora, aquilo que nomeia a extensão do campo no qual o discurso analítico tem algo a dizer. A expressão de discurso capitalista é de Lacan e data de 1970. Ela foi produzida em um contexto no qual, evidentemente, não era indiferente, pois foi logo após os eventos de 1968, dois anos depois, o momento concomitante da grande confusão que tomava e sacudia a sociedade francesa. Lacan elabora então a noção dos discursos — discurso do mestre, discurso universitário, discurso da histérica, discurso analítico. O discurso capitalista está a mais em relação aos quatro outros. O que Lacan chama os discursos, como vocês sabem, são os laços sociais. Cada discurso é uma modalidade, um tipo de laço social. O postulado, que eu tomo tal qual, e que eu não vou demonstrar aqui, é que os laços sociais, os laços entre os humanos, com seus corpos e suas falas, são ordenados pela linguagem; só existem por serem ordenados pela linguagem. Pode-se dizer, para ir rápido, pois se conhece bem a famosa fórmula “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, o postulado do campo lacaniano também determina que a realidade — entendendo a realidade dos laços sociais — é estruturada na linguagem e como uma linguagem. Para começar, eu gostaria de chamar a atenção para um paradoxo na noção de discurso capitalista. O paradoxo é que com o discurso capitalista Lacan escreve um discurso que desfaz o laço social, ao invés de enlaçá-lo. É um dos pontos sobre o qual eu gostaria de insistir. Evidentemente, desfazer o laço social quer dizer também desfazer as classes sociais. A segunda observação é sublinhar até que ponto o que ele escreveu do discurso capitalista em 1970, já há trinta anos,2 era premoniStylus Rio de Janeiro nº 22 p. 55-67 maio 2011

1 Conferência proferida por ocasião da sessão de abertura de “A Descoberta freudiana”, em 25 de novembro de 2000, na Universidade de Mirail, em Toulouse, após a projeção do filme Luna Park, de Pavel Lounguine. Ela está publicada na Revista Trèfle no 2, janeiro 2001, pp. 163-176.

2 Diríamos, hoje, “há quarenta anos”, visto que esta conferência foi proferida no ano 2000 e estamos em 2011. Entretanto, as questões abordadas na ocasião são ainda questões de nossa atualidade (N.T.).

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3 Althusser. Pour Marx. Avant propos de Étienne Balibar. (1996).

4 Althusser. Lire Le Capital. (2008).

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tório, e a que ponto o que ele escrevia naquele momento se verifica hoje de modo patente, ainda que não fosse tão legível na época em que ele o elaborou. Eu me deterei um instante sobre a conjectura do momento quando foi produzida esta noção de discurso capitalista. Este momento nos permite ver a característica bastante excepcional daquilo que foi percebido. Evidentemente, o capitalismo não veio de Lacan. Se interrogarmos sobre as condições do capitalismo, pode-se dizer que há duas grandes condições, para não dizer duas grandes tetas, que são, de um lado, a ciência — o capitalismo vem depois da ciência, que permitiu passar os modos de produção artesanal para outros modos de produção — e, de outro lado, a Revolução Francesa, que desfez a ordem do Antigo Regime. Marx, um dos que mais colocaram em causa a Revolução Francesa — que suscitou e continua a suscitar muitos discursos, com sua promoção dos direitos do homem — mostrou que ela também promoveu o regime de exploração capitalista, ou pelo menos que ela abriu o período de desenvolvimento da exploração capitalista. É resumir grosseiramente a tese de Marx sobre a Revolução Francesa. Mas não esqueçamos que em 1970 o mundo não era o que é hoje. Em primeiro lugar, o bloco comunista não havia ainda desmoronado. O muro ainda não tinha caído. A consistência da divisão direita/esquerda não era politicamente o que é hoje. Era, em 1970, um mundo ainda binário, onde se acusavam reciprocamente os dois sistemas. Para resumir rapidamente esta acusação recíproca, tomemos as boas palavras que Lacan cita em alguma parte: “o capitalismo é a exploração do homem pelo homem, o comunismo é o contrário”. Se nos reportamos aos anos 1970, é bem certo que o discurso capitalista era muito menos assumido do que é hoje. Por exemplo, quando, em 1965, Althusser escreveu Pour Marx3 e Lire Le Capital,4 era para dar um sobressalto e uma nova consistência ao pensamento marxista. Não estamos absolutamente mais aqui hoje. Hoje, como se diz habitualmente, é o triunfo total da globalização capitalista; e eu fico surpreendida ao ver que a ideologia que gera o capitalismo não é nada envergonhada como era nos anos 1970. Hoje, a ideologia do lucro não é mais negada, ela é idealizada. Vejam a famosa história dos start-up: inventar novas fontes de lucros fáceis é a melhor prova de inteligência que se crê poder dar. O top do top da astúcia. Podemos multiplicar os exemplos. Houve uma virada na opinião comum. Eu não insisto mais sobre essa virada que mereceria ser estudada mais em detalhe. Eu me pergunto, em primeiro lugar, quando se estava ainda, digamos, na época dos dois blocos, o que Lacan percebeu formulando o discurso capitalista? Em primeiro lugar, eu gostaria de lembrar como Lacan lê Marx, porque, antes de tudo, o desmoronamento do O discurso capitalista


bloco comunista não é o desmoronamento da obra marxista. Marx ainda merece ser lido e estudado. É surpreendente que Lacan, que não era de todo tomado pela ideologia marxista, tivesse Marx em grande conceito e que extraiu dele, parece-me, o que há de mais interessante. O que ele retém de sua leitura de Marx? Ele retém essencialmente a mais-valia e sua teoria. Eu suponho que vocês saibam um pouco o que é a mais-valia de Marx. É, no final das contas, bastante simples. Ela diz que há, no regime de propriedade privada dos meios de produção que define o capitalismo, uma parte do trabalho que não é paga, o trabalho dos trabalhadores. Marx a escreveu no século 19, quando os trabalhadores tinham outra realidade, diversa da de hoje, pois toda a economia repousava sobre o material humano. O desenvolvimento da maquinaria transformou muito isso, bem sabemos, mas a ideia de Marx era que o trabalho surge de seu valor e que uma parte desse valor não era paga. Ele chama mais-valia a parte não paga que se apropria o capitalismo, o proprietário dos meios de produção, parte que vai engordar o capital. Se tivéssemos um quadro, eu o poderia escrever, entre o capitalismo e o proletário — pois é como Marx chama os trabalhadores — a mais-valia, que é subtraída do trabalho proletariado para engordar o capital. Lembremos que o que Marx chama de proletariado é aquele que não tem os meios de produção e que tem somente o corpo para vender. É o que Marx chama sua força de trabalho, a qual ele vende sob a condição de poder restaurá-la cotidianamente. É, então, a ideia de que o proletário é um explorado. Marx percebeu bem que esta mais-valia, para lhes dizer em termos lacanianos, é o objeto visado, apropriado, subtraído pelo capitalismo. E não seria nenhum exagero traduzir alguns textos de Marx da seguinte maneira: a mais-valia é o que incita o objeto causa de desejo do capitalismo. Esta seria a tradução. Donde surge o sonho do homem novo. O que seria o homem novo? Aquele que não está capturado por este desejo, o desejo de mais-valia. Lacan lê isso do seu jeito. Em primeiro lugar, ele legitima o fato de que Marx soube extrair a noção de mais-valia, que ele a construiu para a racionalização desta economia capitalista. Mais-valia que a Revolução Francesa, diz Lacan, teria elevado a folclore. Vocês encontram isto em “Radiofonia”,5 o saber que a Revolução Francesa, com sua promoção dos direitos do homem, conseguiu no momento incipiens mascarar, ou melhor, não conseguiu pensar o que Marx conseguiu pensar: que os direitos do homem e a exploração do homem pelo homem vão muito bem juntos. Lacan felicita Marx, se eu assim posso dizer, por ter sabido extrair a mais-valia e assim construir a estrutura do discurso capitalista. A partir daí, Lacan descola totalmente da leitura marxista. Pois Lacan conclui que ele conseguiu consolidar e concluir o discurStylus Rio de Janeiro nº 22 p. 55-67 maio 2011

5 Lacan. Radiofonia (1970, pp. 400-447).

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so capitalista. Eu levei muito tempo para compreender a tese, e a compreender como Lacan fundamenta essa afirmação. É certo que, quando se constrói a estrutura de um discurso, este se torna mais claro e, de alguma maneira, ele é legitimado. Mas não é apenas isso. É que, eu o compreendo assim, a teoria da mais-valia precipita — é a expressão de Lacan — a consciência de classe. O pensamento marxista conseguiu precipitar uma consciência de classe proletariada sobre este tema de “a mais-valia lhes é subtraída”. De imediato, a consciência da classe proletariada é uma consciência na qual a mais-valia se constitui como objeto perdido, objeto perdido do proletariado — ou melhor, o objeto cotidianamente perdido, mais que perdido, o objeto oculto, objeto roubado. Resultado: o objeto a ser recuperado. Lacan diz então que a mais-valia torna-se, desde a época em que foi formulada, extraída, não do capitalismo como dizia Marx, mas da causa do desejo, da qual toda uma economia faz seu princípio. Causa do desejo para todos, capitalistas e proletariados. Eu não diria “capitalista, proletário juntos em um mesmo combate”, é antes o combate inverso, “capitalista e proletário, mesma causa do desejo”. Um para se apropriar, o outro para recuperar. Temos então o primeiro ponto bem consistente da tese de Lacan sobre o discurso capitalista. Existe um segundo ponto, também muito importante, que consiste em dizer que quando a mais-valia é a causa de desejo de toda uma economia, isso engendra o que ele chama — eu o cito porque gosto muito dessa expressão — “a produção extensiva, logo insaciável, da falta a gozar”. Eis a segunda tese. Produzir e consumir são os dois grandes imperativos da economia capitalista. Produzir para consumir, e consumir para que a produção faça sentido. Produzir e consumir gera a falta a gozar. E, principalmente, não só de um lado. Pois verter a mais-valia na conta do capital não é gozar dele, é por isso que um Max Weber pode considerar que o capitalismo não seria possível sem se enraizar no ceticismo protestante. Lacan diz “sede da falta a gozar”, e ele a atribui a todos os atores da economia capitalista, pois ele fala da “participação patente” dos explorados na sede da falta a gozar, da qual ele faz o motor do capitalismo, pelo fato de que a mais-valia é a causa do desejo. Pode-se achar a tese paradoxal. Porque se pode dizer que o capitalismo goza de seus bens, que o proletário que luta para recuperar direitos, salários etc., goza também um pouco mais no desenvolvimento capitalista, que ele aproveita um pouco mais dos objetos de consumo, que Lacan chamará gadgets, o falso objeto a produzido pelo capitalismo. O que fez Lacan dizer que isso equivale à produção da falta a gozar? Responderei a esta questão ao longo da exposição. Lacan escreveu o discurso capitalista com os quatro termos dos quais ele se serviu para todos os discursos. S1-S2 é um simbolismo 60

O discurso capitalista


para abreviar, digamos, a cadeia da linguagem, a ordem da linguagem. $ designa o sujeito. O quarto termo é o que ele escreve com a letra a, que nós chamamos objeto, e que, ocorrendo aqui, designa a mais-valia, o objeto como mais valia. Nessa escrita do discurso capitalista,6 o importante é que entre os quatro termos, o sujeito, que ele escreve no alto à esquerda, no lugar do agente, a cadeia da linguagem, que ele escreve em diagonal embaixo à esquerda e no alto à direita, e depois no lugar do que é produzido, a, embaixo à direita, Lacan desenha uma flecha contínua, sem ruptura. Enquanto que nos quatro outros discursos existe uma ruptura, uma descontinuidade, que é uma barreira, segundo o termo de Lacan, para designar que entre o gozo que um discurso torna possível e a verdade daquilo que é esperado como gozo, existe sempre um hiato. Na escrita do discurso capitalista não há nenhum hiato. Tendo por resultado que não se pode mais designar o termo que comanda, que define a ordem. Pode-se, evidentemente, dizer: “o sujeito, no alto à esquerda, comanda a cadeia de significante do saber, para produzir o mais-de-gozar, embaixo à direita”, mas vemos muito bem que o objeto produzido comanda o sujeito. Temos, afinal, um circuito fechado, contínuo, sem ruptura, onde se pode afirmar que o sujeito é comandado pelos produtos. Com efeito, constatamos que quanto mais o tempo passa, mais a civilização avança, e mais nós somos instrumentalizados por todos os produtos os quais nós não podemos ficar sem, as ferramentas, os aparelhos, e é suficiente um pequeno defeito para que tudo trave de maneira muito dramática. Não somos somente instrumentalizados pelos produtos, mas ameaçados pelos efeitos da produção. Começamos a tomar consciência da ameaça que pesa sobre o planeta da economia capitalista como sendo condicionada pela ciência. Este discurso capitalista não escreve nenhum laço entre os parceiros humanos. Todos os outros discursos escrevem um laço entre parceiros humanos: o discurso do mestre, entre o mestre e o escravo — ou de outras versões do mestre e do escravo —; o discurso da histérica, que escreve o laço entre a questão do sujeito — histérico — e tudo que pode vir a encarnar o significante-mestre; o discurso da universidade que descreve o laço entre aqueles que detêm o saber e aqueles que são os objetos a serem formados pelo saber; o discurso do analista que escreve um laço entre dois parceiros, um analista, e outro analisante. O discurso do capitalista escreve o laço entre parte alguma, ele escreve somente a relação de cada sujeito com certo objeto mais-valia. Nesse sentido, ele realiza uma forma de fantasia, o laço direto do sujeito com um objeto a, sem se levar em conta que este objeto é coletivamente condicionado por toda a economia. De certa maneira, é surpreendente que hoje se ache legítimo que cada sujeito seja movido pelo gosto do lucro, da acumulação, e Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 55-67 maio 2011

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7 Orwell. Coming up for air. (1969).

8 Orwell. Un peau d’air frais. (1999).

9 Não foi encontrada edição da obra em português (N.T.).

10 Optamos por manter a palavra no original. Segundo o Grande dicionário de Francês/Português, de Domingos de Azevedo, truc pode significar truque; habilidade, jeito; artimanha, astúcia (N.T.).

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de se ver o quanto está orgulhoso disso. A combatividade, a rivalidade, o sucesso, a riqueza se tornaram ideais que estão fluentes no discurso comum cotidiano. Vejam a famosa dupla de ganhadores e perdedores. Se vocês lerem o Time Magazine verão todas as semanas um pequeno quadro com, de um lado, os winners e, de outro, os loosers, com suas fotos. Eu admiro, todas as vezes que a leio, esses dois rostos, ganhador-perdedor sorridentes, e a igualdade vazia de seus dois sorrisos. Foi premonição então Lacan ter escrito isso em 1970, porque nessa época, ainda se podia pensar — talvez devêssemos particularizar, mas alguns ainda continuam a pensar — que o capitalismo era uma variante do discurso do mestre, no qual, onde havia um mestre antigo, veio se colocar o capitalista; e onde havia o escravo antigo, veio o proletário tomar o lugar. E que assim se trataria do laço social entre o corpo dos capitalistas e o corpo dos proletários. É exatamente o que implicou a ideia de luta de classes. A ideia de luta de classes implicou este laço social, com o que isto comportava de comunidade de interesses, comunidade de interesses dos capitalistas, mas também comunidade interesses dos proletários: “Proletários de todos os países, uni-vos”. E com a comunidade de interesses, de valores, valor de solidariedade de classe, valor de devoção interna a uma classe, e também no interior uma riqueza de uma rede de relações humanas. Ora, em 1970, Lacan nos diz que o discurso capitalista desfaz o laço social, desfaz todas as solidariedades sociais e deixa cada um cara a cara com o objeto causa. Trinta anos antes, onde estávamos? O que Lacan disse nos anos 70 se evidenciou. Um grande clamor se elevou de todos os lados para deplorar, primeiramente, a precariedade. De início, a precariedade dos laços, da família, do casal, do emprego, quer dizer dos laços possíveis no trabalho. Hoje, legitima-se e se deplora em alto e bom som, o que Lacan nos anos 1970 anunciava como a fragmentação crescente dos laços sociais. E é verdade que é um dos traços de nossa época, uma consciência de precariedade. Todo mundo tem agora uma consciência de precariedade que não existia trinta ou cinquenta anos atrás. Eu os aconselho de bom grado a lerem um livro de Orwell, escrito em 1933, Coming up for air,7 traduzido em francês por Un peau d’air frais,8 no qual ele descreve a báscula de um personagem entre dois mundos, um mundo onde não há nenhuma ideia de mudança da civilização, e um mundo onde se entra na consciência da precariedade.9 Assim, primeiro ponto, clamor sobre a precariedade. Segundo, ascensão do sentimento do sem sentido (non-sens), que gera apelo a trucs10 reparadores, a sabedorias requintadas do budismo, do taoísmo, religiões das quais Lacan predisse o retorno forçado. O que dizer desse sentimento do sem sentido? Diz-se que O discurso capitalista


os psicanalistas o vivem. Com efeito, muitos sujeitos vêm à análise porque eles têm sintomas precisos, mas muito comumente com o sintoma de estar destruídos pelo sentimento de vazio existencial e do sem sentido de suas vidas. É verdade que a vida não tem sentido, mas o quê é que dá um pouquinho de sentido à vida? Somente uma coisa, é o vetor do desejo. Um desejo em marcha, um desejo que se realiza, é exatamente o que faz com que tenhamos o sentimento que a vida vai em direção a algum lugar. É, na verdade, o que Freud dizia em algum lugar, “é a partir do momento que um sujeito se pergunta sobre o sentido da vida, que ele está doente”. Ele quis dizer doente no nível da libido. É que sua libido (para nós o desejo) recua. O sentimento elevado de sem sentido é verdadeiramente um índice do que os mais-de-gozar, produtos da civilização, todas suas bugigangas, não conseguem estancar a aspiração humana. E não fazem senão aumentar o sentimento de falta a gozar que é, às vezes, devastador. O resultado desse laço social desfeito é um individualismo louco de nosso tempo, e eu diria de bom grado um individualismo forçado. Pois, o que acontece no capitalismo atual é que cada sujeito é responsável por seus laços sociais. Os sujeitos sabem-no, se escuta dizerem: “eu tenho que conseguir construir alguma coisa, um casal duradouro, um família que não se desfaça”. O sujeito hoje toma como tarefa o laço social. Isto nos é muito familiar, mas não foi assim sempre. Houve épocas, pensem no Antigo Regime, em que o problema do sujeito era se perguntar: como escapar das amarras do laço social, de um laço social consistente? Estamos em uma configuração completamente diferente, nosso problema não é sair do laço social, mas adentrá-lo. Eu forjei um termo para designar este individualismo a um só tempo louco e forçado: o narcinismo, que combina o termo narcisismo e o termo cinismo. Narciso, aquele que só tem por causa a si mesmo, que está nele mesmo sua própria causa. Cínico — não é o canalha —, o sujeito que se devota aos seus próprios gozos. O cinismo sempre existiu, mas este é um cinismo novo. Não é, por exemplo, o cinismo de Diógenes, que tinha Alexandre, o mestre, na sua frente, a quem ele disse “mova-se de meu sol”. O cinismo próprio de dissidência, de subversão ideológica. O cinismo atual não tem qualquer alcance de subversão. Atualmente, o que poderia ter algum alcance subversivo seria buscar uma verdadeira causa a defender. Existem sujeitos que a buscam, e que a inventam. Às vezes, elas são irrisórias, mas vemos que eles a buscam. Da mesma maneira o narcisismo varia na história segundo os discursos. Por exemplo, o narcisismo do nascimento das classes nobres do Antigo Regime não tem nada a ver com o narcisismo atual, em que cada um, como disse Lacan a propósito de Joyce, se fait son escabeau.11 O que quer dizer trabalhar sua promoção pessoal. O narcisismo mostra bem Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 55-67 maio 2011

11 Expressão que quer dizer “fazer sua promoção social”, “elevar-se socialmente”. Escabeau, em português, escabelo, quer dizer banco pequeno para descanso dos pés. Comumente usado em poltronas as quais designamos de “cadeira do papai”, pois além de serem grandes e confortáveis, possuem um banco à sua frente justamente para esticar as pernas e descansar os pés (N.T.).

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a situação, uma situação da civilização, a qual os sujeitos não têm diante deles como projeto senão o sucesso pessoal, a promoção pessoal ou a derrota. Poderíamos desenvolver mais isso. Esse discurso que desfaz os laços sociais traz evidentemente a questão dos laços do amor. Lacan, e este é o terceiro ponto, diz do discurso capitalista, em 1972, que é um discurso que exclui as coisas do amor, que as deixa de lado. E ele vai justamente concluir que isso implica uma foraclusão da castração. Poderíamos achar essa última expressão paradoxal, na medida em que produzir extensivamente a falta a gozar poderia muito bem se dizer da seguinte maneira: produção generalizada da castração. Devemos tentar compreender o que Lacan quer dizer. Em todo caso, que esse discurso deixe de lado as coisas do amor parece bastante evidente. Há um tipo, talvez não de completa, mas uma oposição entre tomar a mais-valia como causa do desejo e tomar uma mulher como causa do desejo! Uma mulher, ou um parceiro do mesmo sexo no caso do homossexualismo, no entanto, não é exatamente a mesma coisa. Em todos os lugares — e talvez aqui possamos perceber como o que é rejeitado do discurso volta de outra forma — fala-se do amor, do sexo. Isto se espalha se mostra, se exibe em todas as escalas, do romance barato, filmes eróticos, até as práticas na Internet, que, estas, estão mais para o lado do sexo clivado do amor. O fato de isso se espalhar em imagens, em representações, não implica absolutamente que esteja incluído no discurso propriamente dito. Podemos entender isto, eu acredito, pelo contraste com as outras épocas, quando elas são desenvolvidas em verdadeiros discursos sobre as coisas do amor. Todos os discursos da philia grega, do amor cortês, do teatro clássico do século 17, das Preciosas, mostram como inventamos o amor sob diferentes formas em cada momento, como construímos semblantes, modelos, ao mesmo tempo simbólicos e imaginários, semblantes feitos para canalizar, captar os afetos humanos. Da mesma forma, a estabilidade da família burguesa, que durou, apesar disso, bastante tempo, dava um enquadramento às relações homem-mulher, ao casal legítimo, mas também ao casal ilegítimo. Com o progresso do discurso contemporâneo, não temos mais nada que diga respeito aos semblantes consistentes do amor, das relações sexuadas. Não temos nem mesmo o enquadramento que tenha. O que faz que se veja aflorar hoje a consciência, muito presente para todos os sujeitos, que esse tipo de laço está abandonado ao acaso, e que cada um, como pode, o inventa, tenta inventá-lo. É muito curioso, pois a psicanálise levou um século para fazer passar essa ideia, que no início do século poderia parecer quase uma novidade. Atualmente, isso aflora na consciência comum, na medida justamente em que os semblantes do amor periclitaram com o 64

O discurso capitalista


discurso capitalista. Eu colhi da boca de um analisante isto: meditando sobre os problemas para ficar com uma mulher com quem ele se encontrava no momento, ele percebia que, finalmente, não poderia abandonar a parceira como uma mercadoria. Isso queria dizer para ele uma coisa muito precisa, é que ele não podia se impedir de sonhar com mulheres cujo valor só é fixado pelo mercado do erotismo, e que evidentemente, aquelas que ele encontrava e as “produtos de mercado” do sex appeal, não colavam de forma alguma. Ele tinha então uma fórmula: “finalmente, a parceira também é uma mercadoria”. Então, por que Lacan fala da foraclusão da castração? A expressão foraclusão da castração me interrogou, eu lhes disse porque, e eu a respondo da seguinte maneira: é na medida em que o amor, precisamente entre os parceiros, coloca em jogo a castração. Distingamos bem a falta a gozar universal e colocar em jogo a castração. Não é a mesma coisa, pois a tese, que é a nossa, é que no amor nós servimos nossa castração, colocamo-la quase a serviço do outro, nós a damos, diz Lacan. Nesse sentido, um discurso que exclui as coisas do amor exclui também a castração. Vamos pôr a castração em jogo no amor; é bem verdade que a posição respectiva dos homens e das mulheres em relação ao amor não é de forma alguma a mesma, e que a posição diferencial que diz respeito à castração se repercute diretamente sobre a posição diferencial relacionada ao amor. Eu gostaria de não esquecer de dizer que ao se excluir as coisas do amor, desfazendo o laço social, o discurso capitalista tem um efeito sobre o que chamamos atualmente — não se fala de outra coisa — as violências e as atrocidades. Eu noto isso: não é de hoje que sabemos que “o homem é o lobo do homem”, eu cito aqui uma frase que vem de longe através dos séculos. Mas quando os laços sociais se desfazem, a dissidência das pulsões se manifesta de uma maneira bem diferente. No fundo, quando os discursos entram em ação, o que acontece? Um discurso desenha os lugares ordenados. Os quatro discursos que Lacan distinguiu definem os lugares ordenados, que definem uma ordem. E as ordens que reinaram na história, nós as conhecemos bem. O mestre e o escravo. Homemmulher, é também uma ordem, foi, foi. Pais-filhos, professor-aluno, tudo isso pôde funcionar conforme a ordem do mestre. Igualmente a ordem histérica, a questão dirigida ao mestre que deve responder, sob diversas formas, como a mística e os representantes de Deus, ou então como a neurótica histérica, ou o neurótico histérico e o médico. Portanto, todos os discursos, sob suas formas históricas diversas, sempre implicaram uma disparidade dos lugares — não uma paridade, a qual se sonha hoje, mas uma disparidade, mesmo uma discriminação. A discriminação é a repartição das disparidades, a repartição dos lugares precisos. Visto hoje em dia com os óculos Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 55-67 maio 2011

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12 Lacan, Televisão (1973, pp. 508-543).

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da ideologia igualitária, pode-se dizer, nós dizemos, e isto foi dito, que todos esses discursos eram os discursos da violência instituída. Hoje, nós temos uma violência da qual se deve perguntar como caracterizá-la. Ela não é mais instituída pela ordem dos discursos. Ela é produzida pelo discurso, mas não instituída. Existe certamente uma solidariedade entre o que eu chamo ideologia igualitária, ideologia da paridade — se diz os direitos do homem, e da mulher atualmente, e da criança — e o crescimento do capitalismo. A solidariedade consiste em os dois reduzirem cada um a seu status de indivíduo e lhes deixar como futuro se realizarem como indivíduos, tendo como resultado o que qualificamos com o título preciso de massificação, porque cada um resta só com seus objetivos. Existem todas as formas de desigualdade, não menos, mas há menos hierarquia. Existem menos, digamos, desigualdades — eu não encontro termo melhor — instituídas. Há mais luta de cada um com cada um. A violência não desaparece, acredito também que não é novidade, ela muda de forma. E isto me lembra que ela se repartiu em dois grandes extremos: toda aquela que depende das passagens ao ato individuais, individuais ou de alguns, e outra violência, violência que eu diria não instituída, mas calculada; em todo caso a violência que resulta dos cálculos de mercado. Os cálculos de mercado para o lucro são os cálculos de violências necessárias. E estas se assumem em certas zonas de discurso: “não fazemos omeletes sem antes quebrar os ovos; portanto, não se faz lucro sem algum abuso”. Eu acredito, então, que haja interesse em enfraquecer as figuras da violência, segundo as épocas. Para concluir rapidamente, o que a psicanálise pode dizer, pode fazer? Vemos desde já que, não a psicanálise, mas Lacan, sob a luz daquilo que foi construído da estrutura subjetiva, pode, de uma certa maneira, interpretar o discurso capitalista. Interpretar um discurso quer dizer revelar o mais-de-gozar, ou os modos de gozo próprios a cada discurso. Interpretar suas formações de gozo, se podemos assim dizer. Isto é Lacan. Mas os psicanalistas, hoje, em seu trabalho, o que eles têm a, não vou dizer objetar, mas o que eles têm como contrapeso? Não se pode dizer que haja o laço analítico. Claro, a psicanálise é um discurso que estabelece um laço entre um analista e um analisante, mas supomos da mesma maneira que este não é um laço para a vida, mas um laço provisório, apesar de as análises se prolongarem cada vez mais. Qual é a promessa? Lacan, que não tinha frieza em suas formulações, se eu posso dizer, pôde dizer em Televisão12 que o discurso analítico poderia prometer a saída do discurso capitalista. Como o entendia? É claro que realisticamente somos obrigados a saber que não se trata de reverter o capitalismo, que não é a questão de sonhar com uma revolução psicanalítica pós-Revolução Francesa, pós-revolução de 1917. Lacan O discurso capitalista


falou antes em subversão. No fundo, isto pode ser dito em uma palavra. O que a psicanálise pode objetar do discurso capitalista pode ser dito da seguinte maneira: suscitar um desejo outro, ou sustentar os desejos outros. Visto que a tese é que o discurso capitalista torna causa geral o mais-de-gozar, a mais-valia, forma de desejo que anima essa economia, e, em uma psicanálise, damos ao sujeito a pequena singularidade que é a sua, a pequena parte do desejo que não entra no grande circuito do discurso. A ideia de Lacan sobre uma análise terminada é que esta gera um outro desejo. É nesse sentido que ele pôde comparar o psicanalista ao santo. Ele falava do psicanalista, e não dos psicanalistas, que, no caso de ser santo, só se parecem de muito longe. Sustentar um outro desejo é uma forma não de fazer barra — somos todos presos ao discurso capitalista —, mas de subtrair alguma coisa desse discurso. Tradução: Rosanne Grippi Revisão da Tradução: Olympio Xavier

Referências bibliográficas ALTHUSSER, Louis. Pour Marx. Avant propos de Étienne Balibar. Col. Sciences humaines et sociales. Paris: La Découvert (La Découvert/Poche: 16), 1996. ALTHUSSER, Louis. Lire Le Capital. Col. Quadrige Grands textes edition. Paris: PUF, 2008. AZEVEDO, Domingos de. Grande Dicionário de Francês/Português. 11ª edição. Portugal, Lisboa: Bertrand editora, s/d. LACAN, Jacques. (1970) Radiofonia. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. LACAN, Jacques. (1973) Televisão. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. ORWELL, George. Coming up for air. USA, New York: Harcourt Inc., 1969. ORWELL, George. Un peau d’air frais. Paris: Editions 10/18, 1999.

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Resumo Em novembro de 2000, em Toulouse/França, Colette Soler proferiu esta conferência sobre o discurso capitalista, proposto por Lacan nos anos 1970. “É a noção mesma do campo lacaniano que é retomado aqui, daquilo que nomeia a extensão do campo no qual o discurso analítico tem algo a dizer”. Abrindo assim sua conferência, Soler chama a atenção para um paradoxo na noção de discurso capitalista: Lacan escreveu um discurso que desfaz o laço social, ao invés de enlaçá-lo. Soler também se pergunta até que ponto o que ele escreveu do discurso capitalista em 1970 era premonitório, e a que ponto o que ele escrevia naquele momento se verifica hoje de modo patente, ainda que não fosse tão legível na época em que ele o elaborou. Finaliza sua conferência lançando a pergunta “O que a psicanálise pode dizer, pode fazer?”, a qual será relançada pela IF-EPFCL, em julho de 2012, no Rio de Janeiro, em seu VII Encontro internacional cujo tema é: “O que responde o psicanalista? Ética e clínica”.

Palavras-chave Psicanálise, discurso capitalista, laço social, mais-valia.

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Abstract In November of 2000, in Toulouse (France), Colette Soles gave this lecture about the capitalist discourse, proposed by Lacan in the 1970’s. “It is the same notion of the Lacanian field which is revisited here, from that element which nominates the extension of the field in which the analytical discourse has something to say”. Opening her conference, Soler calls the attention to a paradox in the notion of the capitalist discourse: Lacan conceived a discours which undoes the social bond, instead of tying it. Soler also asks herself to what extent what Lacan wrote about the capitalist discourse was envisioning, and to what extent what he wrote at that time is forcefully verified nowadays, even if it was not as clear when he worked on it. Soler ends the conference by asking the following question: “What can psychoanalysis say and do?” This question will be re-launched by the IF-EPFCL, in July 2012, in Rio de Janeiro, at the VII International Seminar, whose central theme is: “What does the psychoanalyst respond? Ethics and clinic.”

Keywords Psychoanalysis; capitalist discourse; social bond; surplus-value.

Recebido 17/02/2011

Aprovado 24/03/2011

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O inconsciente é a política? Marcelo Checchia “Eu não digo mesmo ‘a política é o inconsciente’, mas simplesmente ‘o inconsciente é a política!’.”1 Como podemos entender essa afirmação de Lacan? Não adianta recorrer ao que ele disse um pouco antes ou um pouco depois dessa lição, a afirmação é passageira e vaga mesmo. E também não basta recorrer apenas às outras articulações de Lacan, mais diretas entre a política e o inconsciente, pois as poucas existentes também não são bem desenvolvidas ou explicadas. Mas ao mesmo tempo, podemos dizer que a obra inteira de Lacan é atravessada por essa relação, o que dificulta muito uma resposta mais sucinta e direta sobre a questão colocada. Dificuldade acrescida pela amplitude do tema da política e pelas diferentes origens de cada termo. Como aproximar palavras de campos distintos, que surgiram em épocas e de maneiras tão diferentes, sem cair em superficialidade ou em transgressões conceituais? A afirmação de Lacan é uma transgressão desse tipo ou ela pode ser válida? Ensaiarei aqui responder brevemente a essas questões levantadas. Como estamos trazendo a palavra política ao campo psicanalítico, comecemos com ela. A política, como todos sabem, tem uma origem muito antiga. Na civilização ocidental, surgiu na Grécia antiga, tendo sido intensamente estudada pelos filósofos. Nessa época, a política se referia mais especificamente à vida na pólis, às instâncias de poder estabelecidas cuja função era a de governar a vida na cidade. Embora tenha havido algumas variações ao longo dos séculos, ainda hoje a política tem esse forte significado na filosofia ou no meio social mais amplo: é tudo aquilo que se relaciona, não exatamente à cidade, mas ao Estado e suas diferentes formas de governá-lo. A filosofia política estuda principalmente essa perspectiva das formas de governo de um Estado: se são formas legítimas ou não; se trata-se de um governo despótico ou democrático; quais são as melhores ou piores formas de governo; quais são as melhores e piores qualidades de um chefe de governo; a natureza e a função da autoridade e da obediência. Em função desse último ponto, a política não pode ser pensada senão em articulação com a noção de poder. O governo implica uma sistematização e hierarquização do poder, no qual alguns comandam e outros obedecem, havendo sempre uma instância máxima de poder, onde Um tem o poder e a responsabilidade da decisão final. O poder político pertence, portanto, à categoria do poder de um homem sobre outro homem para que se Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 69-79 maio 2011

1 Lacan, Le Séminaire: La logique du fantasme (19661967, p. 236). Observação: todos os textos citados no original em francês foram traduzidos livremente.

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alcancem os efeitos desejados. É importante observar que seja qual for a forma de governo de um Estado, sempre há essa instância máxima de poder. É a política do Um, digamos, inspirada no que Lacan diz sobre o significante Um – ponto ao qual tentarei chegar. Mesmo num regime oligárquico ou poligárquico, há uma centralização do poder, há um pequeno grupo que comanda a população. A história da política em nossa civilização nos mostra que há, no mínimo, uma tendência do homem a estabelecer relações de domínio e servidão, não apenas pela criação de um poder isolado na figura do Estado, mas também pelas micro-relações de poder estabelecidas entre os próprios homens, como já bem analisou Foucault. Mas para ilustrar brevemente isso, em vez de remeter ao texto de Foucault, prefiro trazer aqui um pequeno trecho da literatura de Camus, contemporâneo de Foucault, de uma obra que precede os estudos foucaultianos sobre as microrrelações de poder. Encontramos em La Chute:

2 Camus, La chute

Eu sei bem que não podemos nos passar senão de dominadores ou servos. Cada homem tem necessidade de escravos como de ar puro. Comandar é respirar, você sabe disso, não? E mesmo os mais pobres precisam respirar. O último na escala social tem ainda seu cônjuge ou seu filho. Se ele é solteiro, um cachorro. O essencial, em suma, é poder se zangar sem que o outro tenha o direito de resposta.2

(1956/2010, pp. 49-50).

3 Clastres, Troca e poder: filosofia da chefia indígena (1974a/1990).

4 Clastres, O dever de palavra (1974b/1990).

5 Clastres, A questão do poder nas sociedades primitivas (1980/2004).

6 Troca e poder: filosofia da chefia indígena (op. cit., p. 22).

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Poderíamos evocar também outros escritores, como Dostoiévski, ou outros filósofos, como Agamben, mas quero apenas indicar aqui que comandar, ter poder, bem como obedecer, se submeter, são posições presentes praticamente em todas as relações humanas. Alguns poderiam objetar, no entanto, que nem todas as sociedades humanas se organizam a partir dessa política do Um a partir da criação de uma instância máxima de poder. Não deixa de ser uma objeção verdadeira. Há três textos do antropólogo Pierre Clastres – Troca e poder: filosofia da chefia indígena,3 O dever de palavra,4 este publicado numa revista de psicanálise, e A questão do poder nas sociedades primitivas5 – nos quais ele nos mostra como em algumas tribos indígenas sulamericanas o estatuto do poder do chefe dessas sociedades “consiste na ausência quase completa de autoridade”.6 Quase completa, pois apenas nas situações de guerra o chefe é convocado a assumir uma função de poder sobre os demais membros. No restante do tempo, há uma série de mecanismos, que não cabe descrever aqui, que impedem o abuso de poder por parte do chefe. Nessas sociedades não há, portanto, uma instituição social distinta que dá aos seus integrantes o direito de exercer um domínio sobre os demais membros. Trata-se de uma organização política completamente diferente da O inconsciente é a política?


que se encontra na grande maioria das sociedades ocidentais: não há um Estado e não há a divisão entre seres dominantes e outros dominados, nelas “o poder não está separado da sociedade”.7 Sobre isso, Clastres conclui:

7 A questão do poder nas sociedades primitivas, (op. cit.), p. 146.

Essa função política, nas sociedades indígenas, está excluída do grupo, e até mesmo o exclui: é, portanto na relação negativa mantida com o grupo que se enraíza a impotência da função política; a rejeição desta para o exterior da sociedade é o próprio meio de reduzi-la à impotência. (...) Tudo se passa, com efeito, como se essas sociedades constituíssem sua esfera política em função de uma intuição que teria nelas lugar de regra: a saber, que o poder é, em sua essência, coerção.8

8 Troca e poder, (op. cit.), pp. 31-33.

A política própria das sociedades primitivas é, portanto, a da recusa ao poder coercitivo típico do poder político do Estado. Com isso, volto agora ao ponto levantado anteriormente: a objeção de que nem todas as comunidades humanas se organizam a partir da criação de um poder Estatal é pertinente. Não se trata de uma política de eleição do Um, como dito anteriormente, mas de uma política contra o Um. No entanto, de uma forma ou de outra, o Um continua presente. A favor ou contra, o Um é um elemento estrutural da política. Pois bem, e o que a psicanálise pode dizer a respeito disso? Não há como não evocar em primeiro lugar – ainda mais após passarmos pelas observações de Clastres sobre as comunidades tribais – Totem e Tabu,9 texto no qual Freud procura descrever como teria se dado a instituição do Um no nível coletivo e subjetivo ou, em outras palavras, como se origina a Lei. A hipótese levantada por Freud nesse texto, a partir de uma construção mitológica, é de que a aparição da Lei, ao mesmo tempo na cultura e na subjetividade do homem, tem relação intrínseca com o assassinato simbólico do pai. Esse ponto nos remete imediatamente à relação do sujeito com a instância paterna. Freud nos mostrou em seus casos clínicos, bem como em textos mais teóricos, como a neurose se constitui a partir de um intenso conflito entre a criança e seus pais, conflito que coloca em jogo o desejo sexual e a lei da interdição. O complexo de Édipo nada mais é, nesse sentido, do que um conflito com a lei, com a autoridade. Isso é bastante claro, por exemplo, no caso do pequeno Hans: seu desejo de ser mimado pela mãe entrou em conflito com a interdição paterna, levando-o a desejar a morte de seu pai, e que, por sua vez, entrou em conflito com o amor que tinha por ele. Já sabemos a que ponto essa confusão atormentou a mente desse pequeno garoto, vindo a manifestar-se por meio de algumas fobias. Freud também procurou nos explicar como o supereu, tão imStylus Rio de Janeiro nº 22 p. 69-79 maio 2011

9 Freud. Totem e Tabu (1913/1996).

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10 Freud, A dissolução do complexo de Édipo (1924/1996).

11 Freud, Resenha de Hipnotismo, de August Forel (1889/1996, p. 136).

12 Freud, Conferências introdutórias sobre psicanálise (1916-1917/1996, pp. 451452).

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portante para a vida em comunidade, é decorrente da dissolução do complexo de Édipo.10 O supereu, resultado da subjetivação da autoridade paterna, explica a natureza da obediência, um dos fundamentos da política. Mas muito antes de elaborar a segunda tópica e, com ela, tratar da origem do supereu, desde os primórdios da psicanálise Freud se voltou para esse fenômeno do poder que um homem pode exercer sobre outro. Seus escritos pré-psicanalíticos tratam essencialmente desse assunto pela via da sugestão e da hipnose. Chamou a atenção de Freud o fato de o hipnotizador “poder exercer sobre a vida de outra pessoa aquilo que até então tinha sido uma influência inimaginável”, influenciando “todos os fenômenos subjetivos da mente humana”11 sob a via de sugestões. Freud percebeu também, com Breuer, o poder da sugestão sobre os sintomas dos pacientes que eram hipnotizados. Esse poder, no entanto, não era tão potente como o esperado para seu fim, isto é, o de cura dos graves sintomas apresentados pelas histéricas. A sugestão tinha o poder de eliminar os sintomas, mas paliativamente. Vale sublinhar que foi justamente não fazendo uso do poder da sugestão (do poder do Um) que Freud descobriu o funcionamento do inconsciente, isto é, as manifestações do inconsciente só puderam ser escutadas, ganhando um sentido, a partir do abandono do poder autoritário do médico. Freud percebeu a resistência, e principalmente compreendeu o principal mecanismo na neurose: o recalque. Ele deparou-se também com a transferência, e com ela o fio tênue que a separa da sugestão. O fio se refere à relação que existe entre a transferência e o amor e entre o amor e o estado hipnótico, ou seja, o amor é o ponto de articulação entre a transferência e a sugestão. Em função dessa articulação, Freud deu diversos alertas para o perigo de a psicanálise deslizar para o tratamento sugestivo – mesmo em função do desejo de cura do psicanalista (seu furor curandis) –, procurando ao mesmo tempo explicitar a diferença entre o método psicanalítico e o tratamento sugestivo: O tratamento hipnótico procura encobrir e dissimular algo existente na vida mental; o tratamento analítico visa a expor e eliminar algo. O primeiro age como cosmético, o segundo, como cirurgia. O primeiro utiliza-se da sugestão, a fim de proibir os sintomas: fortalece as repressões, mas afora isso, deixa inalterados todos os processos que levaram à formação dos sintomas. O tratamento analítico faz seu impacto mais retrospectivamente, em direção às raízes, onde estão os conflitos que originaram os sintomas, e utiliza a sugestão a fim de modificar o resultado desses conflitos.12 (…) Em qualquer outro tipo de tratamento sugestivo, a transferência é cuidadosamente preservada e mantida intocada; na análise, a O inconsciente é a política?


própria transferência é sujeita a tratamento, e é dissecada em todas as formas sob as quais aparece. Ao final de um tratamento analítico, a transferência deve estar, ela mesma, totalmente resolvida; e se o sucesso então é obtido ou continua, ele não repousa na sugestão, mas sim no fato de, mediante a sugestão, haver-se conseguido superar as resistências internas e de haver-se efetuado uma modificação interna no paciente.13

A psicanálise surgiu, portanto, em função de um outro manejo do poder. No momento em que o psicanalista é instituído como outro Um, ele responde enquanto objeto a. Uma das maneiras de se falar no final do processo analítico é se referindo à queda, à destituição desse Um que surge na transferência: “se a análise introduz alguma coisa, é justamente que esse Um não cola”,14 nos diz Lacan. Eis aí um dos motivos pelos quais cabe falar também numa política na direção da cura: o uso feito do poder num tratamento. Lembro aqui, por exemplo, da afirmação de Lacan de que o primeiro princípio do poder na direção da cura é o de que o psicanalista dirige o tratamento, não o paciente.15 Existem ainda outros argumentos para compreender e justificar o emprego da expressão política da direção da cura, mas o objetivo agora é outro, então voltemos a ele. Vale agora retomar brevemente o que Lacan nos diz sobre a constituição subjetiva em sua relação com o Um. Ao deslocar o complexo edípico para o campo da linguagem, Lacan traz outros esclarecimentos importantes sobre a instituição subjetiva da Lei. O complexo de Édipo, considerado como três tempos lógicos de inscrição do sujeito no campo do Outro, permite enfatizar a função do pai enquanto significante: o pai é “um significante que substitui o primeiro significante introduzido na simbolização, o significante materno”.16 Mas não se trata de um significante qualquer, mas algum que venha a fazer função de falo para o sujeito. A criança identifica o pai como aquele que tem o falo, que tem aquilo que é desejado pela mãe, e aí começa todo o processo de identificação com o pai, tão importante para que o pai venha a ser instituído enquanto autoridade para a criança. Quando a lei da metáfora paterna não é instituída, o discurso do sujeito perde seu ponto de báscula. É desse modo que o psicótico é aquele que conhece bem as consequências da não submissão à Lei paterna. É preciso que haja Um, alguém ou alguma coisa que faça função de lei, para que a neurose seja instituída. O pai, portanto, nesse sentido de que ele desempenha uma função para alguém, é um significante que simboliza a Lei, não exatamente a lei em seu sentido jurídico, mas a lei da linguagem, a de que há um significante que representa o desejo para o sujeito: o falo. O pai da realidade, ou seja lá quem ou o que venha a desempenhar essa função, não é e Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 69-79 maio 2011

13 Ibid., pp. 453-454.

14 Lacan, Le Séminaire, livre XVI: d’un Autre à l’autre (1968-1969/2006, p. 213).

15 Lacan, A direção do tratamento e os princípios de seu poder (1958a/1998).

16 Lacan, O Seminário, livro 5: As formações do inconsciente (1957-1958/1999, p. 180).

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nem possui o falo, mas a criança precisa crer que ele o possui para que a metáfora seja realizada e para que ele se constitua como ser desejante. Nesse sentido, o falo nos dá a ilusão de que existe Um. Tragamos mais um pouco de literatura. Cremos haver, no mesmo texto citado de Camus, uma boa ilustração sobre essa função de autoridade do pai, instituinte da Lei:

17 La chute, (op. cit.), p. 50.

18 Lacan, Subversão do sujeito e dialética do desejo

“Não se responde a seu pai”, você conhece a fórmula? Em um sentido, ela é singular. A quem responderíamos nesse mundo senão àquele que amamos? Em outro sentido, ela é convincente. É preciso que alguém tenha a última palavra. Senão, a toda razão pode se opor uma outra: não terminaria mais. A autoridade, ao contrário, decide tudo.17

Agora é importante esclarecer também que esse significante Um, que Lacan vai escrever como S1, não é exatamente um (1) significante. Se assim o fosse, haveria um único significante que representaria o sujeito, quando sabemos que “um significante é o que representa o sujeito para outro significante”.18 O campo simbólico só é constituído a partir de uma cadeia de significantes:

(1960/1998, p. 833).

19 Le Séminaire, livre XVI:

Para que haja simbólico, é preciso que se conte ao menos 1. Durante muito tempo, acreditamos que contar podia se reduzir ao Um, ao Um de Deus – não há senão um – ao Um do Império (…). Eis porque não há nada de abusivo ao que simbolizamos aqui como campo do simbólico por esse 1. Certamente, o Um não é simples, e todo o progresso consistiu em se perceber que ele funciona como 1 numérico, isto é, que ele engendra uma infinidade de sucessores, com a condição de que haja um zero.19

d’un Autre à l’autre, (op. cit.), pp. 299-300.

20 Lacan, A significação do falo (1958b/1998, p. 697).

Para que haja o zero e se conte ao menos 1, ou seja, para que haja a instituição da série infinita, o falo simbólico tem uma função crucial. O falo é um significante “destinado a designar em seu conjunto os efeitos de significado, na medida em que o significante os condiciona por sua presença de significante”.20 O poder do falo, digamos assim, provém desse efeito de significado produzido por ele, orientando dessa forma o desejo do sujeito. E, ao mesmo tempo, o falo é inapreensível, ele circula e não pode ser representado por um significante. Por isso o sujeito elege alguns S1, também chamados de significantes mestres – lembrando que maître traz também uma conotação de senhor, de patrão, daquele que domina – que governam o sujeito pela via do desejo do Outro, cabendo a ele, portanto, reconhecer esse desejo do Outro para se desalienar, se separar: Que o falo seja um significante impõe que seja no lugar do Outro que o sujeito tenha acesso a ele. Mas, como esse significante só se

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encontra aí velado e como razão do desejo do Outro, é esse desejo do Outro como tal que se impõe ao sujeito reconhecer.21

Por ser o significante que designa os efeitos de significado, um significante velado que dá um sentido para o desejo, o falo é um significante do poder, que governa o desejo do sujeito. E, por ser um significante, o sujeito é então governado por um Outro, instaurando-se aí o conflito eterno entre sujeito e Outro, conflito marcado pelos movimentos de alienação e separação, conflito ainda intensificado pela divisão entre Outro e a, que provoca um efeito de perda para o sujeito.22 Significante Um, falo, poder, eis aí então algumas palavras-chave para entendermos o estatuto da política na afirmação de Lacan. Ressaltemos agora duas passagens nas quais ele relaciona mais diretamente esses quatro termos. No Seminário 4, ele afirma: Pode-se, sem dúvida, do ponto de vista da formalização, descrever as coisas exatamente da mesma maneira tomando um eixo de referência, um sistema de coordenadas simétrico fundado nas mulheres, mas então um bocado de coisas seria inexplicável, e em particular a seguinte. Em todos os casos, mesmo nas sociedades matriarcais, o poder político é androcêntrico. Ele é representado por homens e por linhagens masculinas. As anomalias muito bizarras nas trocas, as modificações, exceções, paradoxos, que aparecem nas leis da troca no nível das estruturas elementares do parentesco são explicáveis somente com relação a uma referência que está fora do jogo do parentesco e que se liga ao contexto político, isto é, a ordem do poder, e muito precisamente a ordem do significante, onde cetro e falo se confundem.23

Muitos anos depois, no Seminário 21, ele diz:

Trata-se do que, em outros termos, somos obrigados a levar em consideração, quando, na política, estamos diante do que temos como o que convém, isto é, diante de um tipo de informação na qual o sentido não possui outro alcance senão o imperativo, a saber, o significante Um? É para nos comandar ou, dito de outro modo, para que não sigamos senão a ponta do nosso nariz, que qualquer informação, em nossa época, seja esvaziada como tal.24

Sintetizando o que nos é essencial dessas citações no momento: primeiro, a política considerada enquanto ordem do significante em que cetro e falo se confundem, ocupando uma mesma posição no campo simbólico; depois, a política como aquilo que nos apresenta uma informação cujo sentido tem como alcance o imperativo do significante Um. Ou seja, o poder do Um, seja no nível da política ou Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 69-79 maio 2011

21 Ibid., p. 700.

22 Le Séminaire, livre XVI: d’un Autre à l’autre, (op. cit.), p. 127.

23 Lacan, O Seminário, livro 4: a relação de objeto (19561957/, p. 195).

24 Lacan, Le Séminaire: les non-dupes errent (1973-1974, p. 97).

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25 Freud, O Eu e o ID, (1923/2007, p. 63).

26 Lacan, O Seminário, livro XIX: ... ou pior, (1971-1972, pp. 106-107).

27 Ibid., p. 104.

28 Ibid., p. 107. 78

no da subjetividade, é instaurado pelo significante. É, portanto, pela via do significante Um que podemos encontrar uma relação mais direta entre o inconsciente e a política. O inconsciente é, ele mesmo, resultado da instauração do significante Um, que se refere ao poder paterno instaurado pelo falo enquanto operador lógico da linguagem. Mas ao mesmo tempo em que é instituído pela autoridade, pelo poder do Um, o inconsciente é também a parte do homem que não aceita a servidão. Se o psicótico arca com as consequências da não submissão, revelando seu inconsciente a céu aberto pela via dos delírios ou alucinações, o neurótico paga também um preço caro por se submeter à Lei do pai: é aquele que está fadado a viver sempre em busca desse significante do desejo, sem nunca o alcançar, a não ser em suas formas imaginárias, escorregadias; é aquele que vive em conflito com essa Lei, com esse significante Um do desejo, pois este o faz se sentir um eterno Sísifo. Concluindo, se o eu, como nos diz Freud, é o político, pois “acaba por ceder inúmeras vezes à tentação de se tornar servil, oportunista e mentiroso, tal como um político que, tendo certa compreensão das coisas, ainda assim quer manter-se querido pela opinião pública”,25 o inconsciente, como nos diz Lacan, é a política, é o campo da instituição do Um e da luta contra o Um. Aproveitando a metáfora freudiana, o inconsciente é aquilo que foi escondido pelo político e que retorna nos movimentos de resistência, fugindo às barreiras da repressão policial, revelando a verdade ocultada. O sintoma é a expressão desse conflito, o inconsciente, sua fonte. Ademais, esse duplo movimento do Um, isto é, de sua instituição e tentativa de destituição, indica um núcleo em torno do qual circulam os S1, mas um núcleo inacessível a eles. Trata-se da dimensão Real do inconsciente e da política. Essa dimensão evidencia uma ambiguidade do estatuto do Um, pois este se institui a partir de outro Um que falta: “o Um começa no nível em que há Um que falta”.26 Essa ambiguidade é explicada por Lacan a partir da teoria dos conjuntos. Fundamentando-se num princípio da teoria dos conjuntos, o de que pode haver um conjunto formado apenas por um elemento e que esse elemento pode ser o conjunto vazio, Lacan demonstra “que o Um que há, do conjunto, é distinto do Um do elemento”.27 E como Lacan demarca essa distinção? Nomeando esse Um do conjunto como o vazio, a falta, o nada ou o zero. Na teoria dos conjuntos, o conjunto vazio é o elemento 1. É a partir dele que se conta a série dos elementos do conjunto, ou seja, o vazio é o Um: “o conjunto vazio é, portanto, propriamente legitimado por ser ele, se posso dizer, a porta cuja ultrapassagem constitui o nascimento do Um”.28 O Um é considerado aqui enquanto vazio constitutivo. É somente nesse sentido que se pode afirmar que há Um (Il y a de O inconsciente é a política?


l’un, como diz Lacan). Não há Um significante que representa o sujeito, mas há o Um real que é constitutivo da série dos S1. Pois bem, é em torno desse Um real que se estruturam simbolicamente o inconsciente e a política. Nota-se aí uma homologia entre ambos. O inconsciente e a política são efeitos desse vazio que inaugura a cadeia dos S1, organizam-se em torno desse Um inapreensível, ora instituindo, ora lutando contra os Uns (S1). Ambos nascem simultaneamente. Não por acaso Freud situa, em Totem e Tabu, a origem da lei e da cultura no mesmo evento, o assassinato do pai da horda primeva, que pode ser interpretado aqui como a instauração da ausência, da falta, do vazio. Portanto, essa homologia, explicitada pela dimensão Real do Um, também serve como fundamento para a afirmação de Lacan de que o inconsciente é a política.

Referências bibliográficas CAMUS, A. (1956) La chute. Barcelone: Folio, 2010. CLASTRES, Pierre. (1974a) Troca e poder: filosofia da chefia indígena. In: Clastres, P. A Sociedade Contra o Estado – pesquisas de antropologia política. Francisco Alves, 1990. CLASTRES, Pierre. (1974b) O dever de palavra. In: Clastres, P. A Sociedade Contra o Estado pesquisas de antropologia política. Francisco Alves, 1990. CLASTRES, Pierre. (1980) A questão do poder nas sociedades primitivas. In: Clastres, P. Arqueologia da Violência – pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. FREUD, S. (1889) Resenha de Hipnotismo, de August Forel. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1996. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. II). FREUD, S. (1913) Totem e Tabu. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1996. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XIII). FREUD, S. (1916-1917). Conferências introdutórias sobre psicanálise. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1996. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XVI). Freud, S. (1923) O Eu e o ID. Trad. sob a direção de Luiz Alberto Hanns. Rio de Janeiro, Imago, 2007. (Escritos sobre a psicologia do Inconsciente. Vol. III). FREUD, S. (1924) A dissolução do complexo de Édipo. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1996. (EdiStylus Rio de Janeiro nº 22 p. 69-79 maio 2011

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ção Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XIX). LACAN, J. O Seminário, livro 4: A relação de objeto (1956-1957). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. LACAN, J. O Seminário, livro 5: As formações do inconsciente (19571958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. LACAN, Jacques. (1958a). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Lacan, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. LACAN, Jacques. (1958b). A significação do falo. In: Lacan, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. LACAN, Jacques. (1960). Subversão do sujeito e dialética do desejo. In: Lacan, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. LACAN, J. Le Séminaire: La logique du fantasme (1966-1967). Paris: Association Freudienne Internationale. (Publication hors commerce). LACAN, J. Le Séminaire, livre XVI: D’un Autre à l’autre (19681969). Paris: Éditions du Seuil, 2006. LACAN. J. O Seminário, livro XIX: ...ou pior (1971-1972). Salvador: Espaço Moebius Psicanálise, 2003. (versão sem fins comerciais). LACAN, J. Le Séminaire: Les non-dupes errent (1973-1974). Paris: Association Freudienne Internationale. (Publication hors commerce).

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O inconsciente é a política?


Resumo Este artigo visa discutir a afirmação de Lacan de que o inconsciente é a política. Para isso, retoma brevemente a noção de política na filosofia e antropologia em articulação com as noções psicanalíticas de Significante Um, falo e inconsciente, indicando nesses termos a chave de compreensão da afirmação de Lacan.

Palavras-chave Inconsciente, política, significante Um, falo.

Abstract

This paper discusses Lacan’s assertion that the unconscious is politics. To do so, it briefly resumes the notion of politics to philosophy and anthropology in conjunction with the psychoanalytical concepts of significant One, phallus and unconscious, indicating in those terms the key to understanding the statement of Lacan’s assertion.

Keywords Unconscious, politics, significant One, phallus.

Recebido 16/02/2011

Aprovado 24/03/2011

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Uma operação para a política do sinthoma Ronaldo Torres A articulação entre sintoma e política, tema nacional de trabalho dos Fóruns do Campo Lacaniano no ano de 2010, não se dá de forma evidente. Numa primeira abordagem, poderíamos afirmar, tomando um corte freudiano, que o sintoma, assim como a inibição e a angústia, faz bloqueio à política, se a tomarmos como laço social. Devemos aqui lembrar a forma tão singela quanto precisa pela qual Freud propôs sua orientação para o final da análise: criar a possibilidade de amar e trabalhar, figuras maiores do laço social. De certa maneira, Lacan não deixa de apontar para a mesma direção. A política do sintoma poderia ser enunciada como um “não querer saber de nada disso” tributário das formações de compromisso advindas da verdrängung. Não querer saber da castração do Outro e também, o que parece importante, não querer saber da fantasia, essa resposta à castração. Todavia, não devemos perder de vista que, para Lacan, isso já faz laço, ou melhor, que é o próprio discurso que faz laço, o discurso do inconsciente. Assim, se a verdrängung se anuncia como essa operação que determina uma forma de posição subjetiva diante do Outro, articulada ao sintoma e a esta política privada da fantasia, podemos pensar que talvez haja outra operação que possa apontar horizontes diferentes para se pensar a articulação entre sintoma e política. É claro que a primeira resposta que nos vem se orienta para a identificação, tal como Lacan a recupera no Seminário L’ insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre,1 quando elabora talvez sua última maneira de tentar dar conta do que seja, afinal, a experiência psicanalítica. Lembremo-nos que não se trata nem de identificação ao analista, ou ao inconsciente, mas identificação ao sintoma. Mas não propomos a via deste trabalho por este percurso. Propomos um outro exercício. Gostaríamos de tratar aqui dessa forma de negação aparentada à verdrängung, mas que é distinta dela: a verleugnung. O argumento mais geral para tanto se sustenta pelo uso que Lacan faz da verleugnung para abordar algo que se coloca como efeito do ato analítico (tomado aqui em sua acepção forte de ato de final de análise): “é o labirinto próprio no reconhecimento desses efeitos por um sujeito que não pode reconhecê-lo, posto estar inteiramente, como sujeito, transformado por este ato; são esses efeitos que deStylus Rio de Janeiro nº 22 p. 81-88 maio 2011

1 Lacan, O Seminário, livro 24: L’ insu que sait de l’unebévue s’aile à mourre (1976).

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2 Lacan, O Seminário, livro 14: A lógica da fantasia (1966-67, aula de 15/02/1967) [tradução nossa].

3 Lacan, O Seminário, livro 4: A relação de objeto (195657/1995).

4 Lacan, O Seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante (1971/2009, p. 18).

5

Lacan, Da psicose para-

noica em suas relações com a personalidade (1932/1987).

6 Lacan, O Seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud (1953-54/1986).

7 Lacan, O Seminário, livro 10: A angústia (196263/2005).

8 Lacan, O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964/1985).

9 Lacan, O Seminário, livro 14: A lógica da fantasia, (op. cit.).

10 Lacan, O Seminário, livro 15: O ato psicanalítico (1967-68).

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signa por todos os lados, donde o idioma está bem empregado, à rubrica de Verleugnung”.2 Assim, como pode ser notado, não se trata aqui, evidentemente, da configuração da verleugnug na constituição do sujeito perverso. Seu uso e conjuntura aqui são outros. Não nos estenderemos neste ponto, mas devemos retomar que, entre outras coisas, a verleugnung não é condição suficiente para a constituição do fetichismo. Deve haver ainda a idealização e fixação do objeto, operações ausentes, por exemplo, no caso do pequeno Hans, como nos aponta Lacan.3 Buscaremos aqui, a partir da estrutura da verleugnung, considerar a sua possível posição articulatória entre política e sintoma a partir da noção de semblante, o que talvez possa ser construído entre essas duas asserções bastante enigmáticas de Lacan. A primeira, de seu Seminário A lógica da fantasia, que foi citada acima; e uma segunda, do Seminário De um discurso que não fosse semblante, em que diz que “o semblante não é semblante de outra coisa”.4 Na passagem de uma a outra, passamos também da teoria do ato à teoria dos discursos. Tentaremos sustentar que, nessa passagem, as noções articuladas de verleugnung e semblante desempenham um papel importante, e que, talvez, possam funcionar para se propor uma forma específica de política do sintoma. Retomemos então aquilo que concerne à teoria do ato. Embora a noção de ato tenha sempre estado presente no horizonte de Lacan como essa espécie de corte que incide sobre a determinação simbólica do sujeito (remetemos ao tratamento dado à passagem ao ato de Aimée, em sua Tese5 e ao Ato de Palavra6 no início de seu ensino), é somente a partir de seu Seminário 10, “A angústia”, da relação desta com o estatuto real do objeto a7 e da articulação dessas duas figuras clínicas com a fantasia, numa acepção renovada, que se abre a Lacan a necessidade definitiva de formalizar a noção de ato. Isto porque o ato sempre guardará, de forma diversa, uma relação estreita com a fantasia e a angústia. Podemos acompanhar isso no próprio Seminário A angústia, no que se refere ao actingout; e a passagem ao ato, no Seminário seguinte, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, quanto às operações de alienação e separação,8 e de maneira mais formal nos Seminários A lógica da fantasia e O ato psicanalítico ao desenvolver suas ideias sobre o grupo de Klein9 e o ato analítico.10 De forma esquemática, podemos dizer que o que se coloca como orientação e desafio à clínica é a passagem das posições subjetivas formadas em torno do sintoma, da inibição e da angústia pelo atravessamento da fantasia, sem que isso se encaminhe ao acting-out ou à passagem ao ato (podemos reconhecer aqui a estrutura da “grade dos afetos” trabalhada por Lacan no Seminário A Angústia). O ato analítico é uma aposta que se materializa nessa passagem. Uma operação para a política do sinthoma


O grupo de Klein, tal como Lacan o subverte, é a formalização desse percurso. O que significa pensar como na verdade o tratamento deve levar o sujeito até a fronteira das coordenadas simbólicas que o determinam, para que a partir de um ato possa ultrapassálas. Essa passagem, como sabemos, ganhou alguns nomes: travessia da fantasia, destituição subjetiva e ato analítico. Todavia, precisamos entender no que consiste essa fronteira e sua ultrapassagem. Essa fronteira não é colocada por Lacan de outra forma, senão pelo impasse no qual o sujeito se encontra mediante a construção de sua fantasia em análise. A construção aqui ganha uma acepção bem distinta da montagem da fantasia como resposta à castração do Outro. A fantasia é construída sob transferência, ou seja, sob determinada direção encaminhada pelo manejo da transferência na suposição do sujeito ao saber. Todavia, na construção da fantasia, o sujeito se depara com a evidência de que na montagem fantasmática sua entrada na posição de objeto cumpriu e cumpre a função de buscar satisfazer aquilo que falta ao Outro, podendo este impasse se apresentar para o sujeito em forma de angústia. É este o ponto em que o sujeito se aproxima do objeto como evidência daquilo que foi como objeto para o gozo do Outro, e apesar de nesse momento já saber disso, a montagem continua funcionando conforme a crença de nada faltar ao Outro. A passagem que pode advir se coloca para Lacan a partir de um ato que encontrará seu agenciamento fora do sujeito, na verdade, em sua destituição, pois deve ser um ato de suspensão do Outro. Não há apoio possível na posição subjetiva perante o Outro para um ato como este, ato que Lacan nomeia analítico. Como sabemos, tal agenciamento se colocará por fazer o objeto a funcionar não como aquilo que falta ao Outro ou como restituição de uma perda ao Outro, mas como causa de desejo: “a operação do ato analítico deve reduzir esse sujeito à função do objeto pequeno a”.11 Esse é um desenvolvimento bem esquemático e rápido, mas que nos serve para retomar a questão da verleugnung. Para recapitular, tal como Freud a postulou, a verleugnung é uma forma de negar a falta criada pelo simbólico, mas que se difere radicalmente da verdrängung, na medida em que ela não opera como uma negação sobre o saber. Pelo contrário, o significante fálico é reconhecido como tal, ou seja, mantido como significação da falta, enquanto há a formação de um objeto que contradiz essa falta. Assim, a verleugnung se estrutura pela copresença do saber da castração (o significante fálico não é recalcado) e de um objeto que desmente a castração. O desmentido não vem ocupar o lugar do saber da castração, não há substituição de um pelo outro. Pois bem, ao levar sua busca de formalização até o limite nos Seminários A lógica da fantasia e O ato psicanalítico, Lacan encontra Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 81-88 maio 2011

11

Lacan, O Seminário,

livro 15: O ato psicanalítico (1967-68, aula de 24/01/1968).

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Lacan, O Seminário,

livro 18: De um discurso que não fosse semblante, (op. cit.) p. 18.

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um problema para se pensar o laço do sujeito com o Outro a partir de tal passagem. Na verdade, trata- se de pensar que tipo de relação se coloca a partir do ponto em que o objeto opera na posição de agente e na função de causa de desejo. Isso tem diversas implicações. Entre elas está a importância de se pensar a posição do analista. Pois se o ato analítico é capaz de instituir o analista que se autoriza de si mesmo, ele pouco diz sobre o que seria aquilo que estrutura essa posição para um outro, o tipo de laço que estrutura a relação que se monta em uma experiência analítica entre os elementos que estão em jogo. Isso de fato não pode ser observado no grupo de Klein. Sabemos das linhas gerais que Lacan irá seguir em seu ensino, a partir de então, com a teoria dos discursos, de que se ocupará por três anos em seus seminários (1968-1971). Mas, para o que nos importa aqui, é interessante notar como a verleugnung pode aparecer nesse momento relacionada à noção de semblante que Lacan desenvolverá nesse período. Pois, se no discurso do analista, Lacan posiciona no lugar de agente o objeto a e nos diz que ele está ali em função de causa de desejo, isso diz bastante do que é essa função para aquele que atravessou a fantasia, e para um outro que encontra, no agenciamento desse discurso, uma função de causa de desejo, mas não diz nada do que seja esse objeto. Vimos o que ele deixa de ser no ato analítico, mas não vimos o que ele passa a ser. É aí que devemos localizar sua materialidade no discurso do analista. Lacan, para abordar esse aspecto, parece lançar mão da noção de semblante, dizendo que “o semblante não é semblante de outra coisa”.12 Esta curta afirmação, da forma como a tomamos aqui, tem efeito de recuperar todo o percurso que o objeto pode percorrer na experiência analítica. Pois, se num primeiro momento o objeto se apresenta por suas vestes imaginárias como objeto que falta ao Outro, ele é apenas aparência de uma suposta essência. Ocorre que, no lugar dessa essência, que sustentaria a aparência como aparência de uma essência, ao final, não se encontra nada. Isto porque não há tal objeto para a falta do Outro. A essência, na realidade, é posta pela própria aparência, para que ela se sustente como aparência de uma essência. Claro que existe o real do corpo no objeto a, e toda a implicação de gozo que se coloca aí a partir da montagem fantasmática, como vimos. Mas é interessante notar como é justamente ele que faz furo nessa dialética entre essência e aparência, pois ele não é um objeto essencial que possa sustentar uma aparência. Essa parece ser a definição mais preciosa que Lacan nos deixou sobre o objeto a. Ele é um objeto real, mas absolutamente inessencial. É a radicalidade de sua presença informe, ou seja, não simbolizável ou especularizável. Assim, o semblante chegar a ser semblante que não é semblante de outra coisa, é o que sustenta esse furo no discurso do analista, Uma operação para a política do sinthoma


pois apresenta a aparência como pura aparência, e é só nessa configuração que pode funcionar como causa de desejo. Esse é o paralelo que talvez permita falar aqui em uma operação como a verleugnung, pois usar um semblante é manter o saber da castração e ainda assim apresentar algo como um semblante, e entrar com algo na relação com o outro a partir do furo singular pelo qual o real se enlaça ao simbólico. O semblante não é o furo, mas uma materialidade que porta esse furo, por não ser semblante de outra coisa. Daqui podemos desdobrar a relação disso com aquilo que Lacan propõe, nesse momento de seu ensino, relacionado com a letra e a escrita, no sentido de que o tratamento que dará a isso é esse mesmo de fazer borda, cingir o furo por meio da própria escrita. Não na escrita, mas com a escrita. Retomamos aqui essa passagem de Lituraterra: Entre centro e ausência, entre saber e gozo, há litoral que só vira literal quando, essa virada, vocês podem tomá-la, a mesma, a todo instante. É somente a partir daí que podem tomar-se pelo agente que a sustenta... É pelo mesmo efeito que a escrita é, no real, o ravinamento do significado, aquilo que choveu do semblante como aquilo que constitui o significante. A escrita não decalca este último, mas sim seus efeitos de língua, o que dele se forja por quem a fala.13

Há então essa proposta de formação do litoral pela letra, aquilo que decanta e dá contorno, forma, ravinamento do significado até que se possa precipitar os efeitos de língua do significante. Da forma como acompanhamos essas abordagens sobre a letra e a escrita, elas são homólogas à forma como Lacan nos apresentará o sintoma articulado ao final de análise mais à frente em seu ensino. Aliás, devemos lembrar-nos da maneira como Lacan inicia Lituraterra, mencionando Joyce e seu jogo homofônico entre letter e litter (letra e lixo), para dizer que, dessa maneira, a literatura é uma “acumulação de restos”, para depois, mencionar esse trabalho erosivo e de decantação do ravinamento. E no Seminário sobre O sinthoma, encontramos retomada toda essa articulação: Fui eu que comecei por dar ao discurso analítico seu status, a partir do fazer semblante do objeto a, ou seja, do que nomeio a propósito de que o homem se coloque no lugar do lixo que ele é – pelo menos aos olhos de um psicanalista, que tem uma razão para saber disso, pois ele mesmo se coloca nesse lugar. É preciso passar por esse lixo decidido para, talvez, reencontrar alguma coisa que seja da ordem do real.14

Lacan é bastante claro na referência direta ao uso que Joyce faz da escrita para que crie o sinthoma. Mas, mais que isso, reconhece Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 81-88 maio 2011

13 Lacan, Lituraterra (1971/2003, pp. 21-22).

14 Lacan, O Seminário, livro 23: O sinthoma

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15 Lacan, O Seminário, livro 23: O sinthoma, Ibid., p. 16.

16 Lacan, O Seminário, livro 24: L’ insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre (op. cit.) p. 7.

17 Lacan, O Seminário, livro 24: L’ insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre, Ibid., p. 8.

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ali o que chama de “boa maneira”, de ser “herético”, ou seja, fazer uso por uma escolha, um ato (de um miserável, um lixo – hère), mas que faça isso por uma boa maneira. É quando diz: “A boa maneira é aquela que, por ter reconhecido a natureza do sinthoma, não se priva de usar isso logicamente, isto é, de usar isso até atingir seu real, até se fartar”.15 Assim, essa forma da verleugnung, tomada de maneira bem particular, pode contribuir para pensarmos, o que faz com que essa posição tão difícil de ser experimentada diante da castração do Outro possa ser sustentada de alguma maneira. Na verdade, talvez a contribuição dessa leitura possa se dar pelo resgate dessa posição a partir da ideia de tensão e de contradição que a verleugnung expressa em si. Indicaria assim, que essa posição só pode ser sustentada a partir de uma tensão entre o saber da castração e o saber se “virar” com isso, a cada vez, e colocando algo de si de forma distinta ao que se pôde fazer pela fantasia. A maneira pela qual Lacan retoma isso no Seminário L’ insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre é bastante clara. Ali, ele opera uma dupla volta em torno do que seja conhecer. Ele abre o Seminário dizendo que “o sintoma é aquilo que se conhece, aquilo que se conhece melhor”.16 Uma dupla volta, pois ao mesmo tempo em que está nisso a profunda implicação do real na experiência analítica, que por certa tradição seria aquilo que exatamente não se prestaria ao conhecimento, Lacan indica que isso vai além do reconhecimento, que só pode ser tocado pelo ultrapassamento daquilo que se colocou nas relações entre sujeito e Outro pela dialética do reconhecimento. Mas isso não se faz a partir do nada. Faz-se a partir disso, que se chama conhecer o sintoma, ou seja, “saber lidar com esse sintoma, saber desembaraçá-lo, saber manipulá-lo... saber se virar com seu sintoma”.17 Se este artigo, de alguma forma retorna a referências anteriores de Lacan, é porque consideramos que talvez esteja nesse “saber se virar com” também uma forma de se fazer laço social, que talvez aí possamos encontrar uma política do sintoma afeita ao que Lacan denominou discurso do analista. E que talvez isso não seja apenas mais uma formalização do que seja o dispositivo de análise, o que já não seria pouco, mas uma maneira pela qual tentou tratar esse tipo de laço, de política, que faz transmissão.

Uma operação para a política do sinthoma


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Resumo Um dos caminhos que parece privilegiado para se pensar a relação entre política e sintoma aponta para aquilo que Lacan definiu como laço social. Se em Freud podemos pensar em certa antinomia entre sintoma e laço social, para Lacan a relação é mais complexa, pois é a própria presença do inconsciente que funda os discursos. Este artigo pretende examinar o alcance lógico da operação da verleugnung – articulada por Lacan aos efeitos do ato analítico (tomado como final de análise) – naquilo em que pode concernir a posição de agente no discurso do analista. Aqui é a especificidade da noção de semblante que comparece como articuladora dessa relação. Posteriormente, buscamos indicar como uma política do sintoma, afeita ao laço social, pode derivar de tal perspectiva.

Palavras-chave Política, Sintoma, Verleugnung, Semblante, Lacan. Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 81-88 maio 2011

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Abstract One of the prime ways of thinking about the relationship between politics and symptom points to what Lacan defined as a social bond. If Freud proposes a certain contradiction between the symptom and social bond, for Lacan, the relationship is more complex because it is the very presence of the unconscious that founds discourse. This article examines the scope of the logical reach of the Verleugnung operation – articulated by Lacan to the effects of the analytic act (taken as the end of analysis) – that relates to the position of agent in the analyst’s discourse. Here it is the specificity of the notion of semblant which appears as an articulator of this relationship. Later, we seek to indicate how a politics of the symptom, accustomed to the social bond, can derive from such a perspective.

Keywords Politics, Symptom, Verleugnung, Semblant, Lacan.

Recebido 15/02/2011

Aprovado 24/03/2011

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Uma operação para a política do sinthoma


direção do tratamento

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A política do sintoma na direção da cura Dominique Fingermann “O sintoma institui a ordem pela qual se verifica nossa política” (Lacan)1 O império da ciência e a extensão política de seu discurso não cessam de anunciar os progressos do progresso para reduzir os sintomas da falta-a-ser e do mal-estar, em sinais de distúrbios de uma civilização que faz de tudo para erradicar essa “estrangeiridade” que assombra as luzes da polis. Não nos deixemos intimidar, já que para nós está claro que nossa ética, “a práxis da teoria”, não está colaborando com esse tipo de progresso, e que nesse sentido o saber do psicanalista é um saber “que nem sequer pode, o saber da impotência, eis o que o psicanalista numa certa perspectiva, uma perspectiva que não qualificarei de progressista, eis o que a psicanálise poderia veicular”.2 Não nos deixemos constranger, pois urge ainda mais nossa responsabilidade ética lembrada mais uma vez por Lacan na sua Conférence à Genève sur le symptôme:3 “não seria mau, talvez, que o analista desse certo testemunho de que sabe o que está fazendo”. Um saber fazer que leve em conta o Real. Ora, se há algo que podemos e devemos testemunhar nesses tempos de “furor sanandi”, é de nossa operação sintoma, operação sobre o sintoma, com o sintoma, pois, por princípio o sintoma se articula com a operação própria da psicanálise. É isso “o salto da operação freudiana. Ela se distingue por articular às claras o status do sintoma com o seu, pois constitui a operação característica do sintoma em seus dois sentidos”.4 Não é uma operação de guerra contra o discurso capitalista, mas é uma partida acirrada na qual estratégia, tática e política5 contribuem para devolver ao sintoma seu alcance político, seu “efeito revolucionário”: “Não há diferença, uma vez iniciado o processo entre o sujeito que se dedica à subversão, a ponto de produzir o incurável em que o ato encontra sua finalidade própria, e aquilo que do sintoma assume um efeito revolucionário”.6 Do começo ao fim de uma análise, o que vetoriza a cura, a direção de seu processo (lógico) e de sua experiência (que inclui o real) é uma política do sintoma, em três atos. O desdobramento desses três atos na cena psicanalítica opera um tratamento da relação entre Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 91-99 maio 2011

1 Lacan. Lituraterra (2001, p. 23). No original : [...] Le symptôme institue l’ordre dont s’avère notre politique [...]. 2 Lacan. O Saber do Psicanalista (1971-1972/1997, p. 25). No original (Le savoir du Psychanalyste: Paris, Seuil, p. 23): [...] qui n’en peut mais, le savoir de l’impuissance voilà ce que le psychanalyste, dans une certaine perspective, une perspective que je ne qualifierai pas de progressive, voilà ce que le psychanalyste pourrait véhiculer [...].

3 Lacan. Conferência em Genebra sobre o sintoma (1975/1998). No original: [...] Il ne serait peut être pas mal que l’analyste donne un certain témoignage qu’il sait ce qu’il fait [...]. 4 Lacan. Do sujeito em questão (1966/2003, p. 235). No original: [...] le saut de l’opération freudienne. Elle se distingue d’articuler en clair le statut du symptôme avec le sien, car elle est l’opération propre du symptôme, dans ses deux sens [...]. 5 Fingermann. Estratégia da transferência, tática do ato, política do fim (2009, p. 21). 6 Lacan. Le séminaire XV – L’acte psychanalytique (1967-1968/2003, p. 382, grifos meus). No original: [...] Pas de différence une fois le procès engagé entre le sujet qui se voue à la subversion jusqu’à produire l’incurable où l’acte trouve sa fin propre, et ce qui du symptôme prend effet révolutionnaire [...]. 93


7 Lacan. A direção da cura e os princípios de seu poder. (1958/1998, p. 604, grifos meus). No original: [...] une direction de la cure qui s’ordonne, ... selon un procès qui va de la rectification des rapports du sujet avec le réel, au développement du transfert, puis à l’interprétation [...].

8 Neologismo criado por Lacan em Televisão a partir

o universal da castração e o singular da solução de ex-sistência, sinthome, incurável da estrutura, separação inaugural do sujeito, não todo alienado na identificação ao Outro. Essa política depende de seu operador, ato, desejo, discurso, função “de analista”: “O psicanalista seguramente dirige a cura”, adverte Lacan no texto de 1958, explicitando: “uma direção do tratamento que se ordena, como acabo de demonstrar, segundo um processo que vai da retificação das relações do sujeito com o real, ao desenvolvimento da transferência, e depois à interpretação”.7 Processo em três tempos, que podemos ordenar como três tempos lógicos da operação sobre o real do sintoma, que parte da reclamação de seu sem-sentido, prossegue com a exploração do seu sentido suposto até a sacação da sua letra – a cifra sem-sentido, ponto original das elucubrações das voltas e volteios da associação livre. Instante de ver: entrada em análise – um sintoma “idiota” se atreve a se submeter a um laço, a partir de uma hipótese, suposição, subversão do sujeito, transformando o sintoma objetor em significante da transferência, que passa a representar o sujeito: “retificação das relações do sujeito com o real”. Tempo para compreender: “dedicar-se à subversão até produzir o incurável”. Os desdobramentos da via do sujeito suposto saber, assim disparada, exploram o sentido do sintoma na experiência da neurose de transferência. Tempo para compreender o que por princípio não se compreende, e que resultará numa dupla extração do incompreensível. Momento de concluir: a interpretação é, desde Freud, princípio operador sobre o sintoma, operador da política do fim da psicanálise, enquanto “interpresta8*” o que perdura de perda pura; a interpretação conduz à separação.

das palavras presto (rápido) e emprestar. No original: [...] L’interprétation doit

Política do sintoma - Ato I

être preste pour satisfaire à l’entreprêt [...].

9 Freud. Conferência XXIII (1915-1917/s/d).

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Trata-se aqui da “passagem de uma política do avestruz a uma política que se orienta pelo inconsciente” ou do sintoma como encrenca à crença no sintoma. Antes do início de uma análise os sintomas são manifestações descabidas, discordantes, inadequadas, politicamente incorretas, inconfessáveis, sem sentido. Estorvam, atrapalham, incomodam, no corpo, no pensamento e nas suas extensões na “vida” (mãe, pai, marido, chefe, dinheiro, bagunça da casa, falta de sorte, de tempo, de filho, de parceiro, de sexo, excesso de filhos, de sexo etc.): “Os sintomas... são atos, prejudiciais, ou, pelo menos, inúteis à vida da pessoa, que por vez, deles se queixa como sendo indesejados e causadores de desprazer ou sofrimento”.9 Na entrada em análise, o inconciliável sem sentido do sintoma A política do sintoma na direção da cura


faz questão e faz laço: inclui o analista. O “salto da operação freudiana”, seu atrevimento, tem que ser reproduzido a cada entrada em análise, é um salto que subverte o mal-estar que de estorvo, “estrangeiridade” incômoda, se transforma em questão sobre o sujeito via uma suposição de sentido; assim “a forma externa do conteúdo dos sintomas individualmente” permite o acesso ao mais “íntimo âmago”.10 “Não há dúvida, quem quer que venha nos apresentar um sintoma acredita nele. O que isso quer dizer? Se ele nos pede nossa ajuda, nosso socorro, é porque ele acredita que o sintoma é capaz de dizer algo, que é preciso somente decifrar”.11 A crença no sintoma, explica Lacan, é o primeiro passo da entrada em análise. As primeiras entrevistas com um analista são sempre muito impactantes, tencionadas por uma inquietação premente, mas indecisa, a presença de algo inconciliável. Alguma coisa paira nas linhas e entrelinhas, que presentifica de diversas formas uma divisão, uma discordância entre enunciado e enunciação indicando algo do “individual”, um dizer que transparece pelo intermédio de uma certa opacidade subjetiva. Algo se presentifica no afeto e a voz – seja embargada, blasé, tonitruante ou hesitante que busca dizer, transformando a angústia em enunciados que, desde já, incluem o analista e o saber que ele é suposto deter sobre o enigma de seu desejo: “o que isso quer?” Acusar recebimento dessa enunciação informulável é a entrada do analista, que abre as duas vertentes da transferência: a suposição de um saber sobre o enigma do sujeito assim representado e apresentado na declamação/reclamação, e a função do objeto, ou seja, de algo que não se subjetiva nem se compreende, mas se põe em causa. Transformar a queixa em sintoma analítico analisável em que o sujeito estará em questão e desdobrará sua demonstração não acontecerá se o analista não tiver consideração para essa mostração singular do inconciliável, “a essência do discurso analítico é um discurso sem palavra”.12 O analista, desde o início, não se apresenta como cúmplice do sentido, mas parceiro de seu enigma fundamental. O paradoxo do ato do analista está desde já em função; por um lado, calado, ele acolhe o “Que se diga...”,13 “insondável decisão do ser”14 o inconciliável singular ponto de partida da enunciação, mas por outro, atento, ele dá trela aos enunciados vetorizados pelo sujeito suposto saber.

10 Idem ibidem. 11 Lacan. Le séminaire XV – L’acte psychanalytique (1967-1968/2003, p. 382, grifos meus). No original: [...] Pas de différence une fois le procès engagé entre le sujet qui se voue à la subversion jusqu’à produire l’incurable où l’acte trouve sa fin propre, et ce qui du symptôme prend effet révolutionnaire [...].

12 Lacan. De um outro ao Outro (1968-1969/2008, p. 11).

13 Lacan. Létourdit (1972/2001, p. 449). No original: [...] Qu’on dise reste oublié derrière ce qui se dit dans ce qui s’entend” [...].

14 Lacan. Propos sur la causalité psychique (1966/1998,

Política do sintoma - Ato II: A reviravolta da verdade

p. 177).

Se a psicanálise começa com uma irrupção de nonsense, ela continua como uma “prática do sentido”: ao se enganchar ao enigma do Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 91-99 maio 2011

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15 Lituraterra, (op. cit.).

16 Lacan. Do sujeito, enfim, em questão (1966/1998). No original: [...] qui représente le retour de la vérité comme tel dans la faille d’un savoir [...].

17 Soler. Le symptôme et l’analyste (2005).

18 Lacan. O Saber do Psicanalista (1971-1972/1997, p. 95). No original: [...] La psychanalyse, qu’est-ce que c’est? C’est le repérage de ce qui se comprend d’obscurci, qui s’obscurcit en compréhension, du fait d’un signifiant qui a marqué le corps [...].

19 Idem ibidem. 96

analista (seu desejo), o nonsense faz cadeia. A presença do analista, o seu posicionamento, posição do inconsciente, dispara a associação livre onde o sentido se desencadeia em direção a um parceiro “que tem chance de responder”, para que esse caminho desemboque no “melhor que se pode esperar de uma análise no fim”,15 e não no pior. Essa prática do sentido – do sentido simbólico ao sentido real – parte do nonsense do sintoma, desdobra-se nos diversos sentidos dos sintomas que a transferência suporta para, no final das voltas, deduzir o fora de sentido primordial de sua contingencial corpsubstância original. Essa prática – tempo para compreender – confere de saída ao falsus do sintoma um valor de verdade: “que representa o retorno da verdade como tal na falha de um saber”.16 A partir daí, enquanto a estratégia neurótica vetorizava-se em direção à verdade, a direção da análise vai resultar em três dimensões da verdade. 1 - Em direção à verdade mentirosa O trabalho de construção, desse tempo para compreender, procede pelas vias poéticas de metáfora e metonímia, trabalho “encantador” que tem todas as seduções possíveis para se transformar numa tarefa interminável (um parceiro paciente, condescendente, que permite sair da idiotice do sintoma, bem acompanhado!). O trabalho da associação livre (não sem o analista) prossegue, “como quem não quer nada”, na perseguição da verdade oculta do sintoma, num árduo trabalho de decifração que, em vez de completar a verdade com o saber, a descompleta com o saber que não se sabe, escancara-a pouco a pouco como não-toda. Quanto mais se segue adiante, mais se descompleta, contradiz, equivoca, se revela, claro, mas como “elucubração” (“trabalho assíduo, especulação vasta, artifício intrincado”, precisa o Dicionário Houaiss). Essas ficções de verdade são construídas pouco a pouco, até que se evidencie a sua inconsistência de um lado e, por outro, a constância fantasmática da verdade mentirosa. Esse tempo para compreender, de construção em desconstrução, comprova certo efeito terapêutico ao desacomodar, desconcertar, “fragmentar”17 o sintoma, cristalizado como destino da neurose. Mas a construção da fantasia não é tudo o que ocorre (experiência) nesse tempo para compreender onde se tange o desprendimento do sentido. 2 - Em direção à “verdade” da estrutura: o Real impossível “O que é a psicanálise? – pergunta mais uma vez Lacan em 1972. – É a localização daquilo que se compreende como obscurecido, daquilo que se obscurece em compreensão, pelo feito de um significante que marcou um ponto do corpo”.18 As elucubrações – o que se compreende de obscurante – procedem de um ponto de origem “um significante que marcou um ponto do corpo”.19 Como se produz essa localização do ponto de origem do sintoA política do sintoma na direção da cura


ma, “fora-da-lei” do sentido, no decorrer da associação livre, que é uma prática de fala orientada por uma verdade e procurando fazer sentido custe o que custar? Lacan, em O Saber do Psicanalista, anuncia dois horizontes do significante: o material/ maternal de um lado e, por outro, o matemático. Vale notar que o horizonte é, por definição, aquilo a que não se tem acesso, mas que determina uma direção: esses dois horizontes determinam a direção da cura e o tratamento analítico do sintoma: o real como impossível e o real como ex-sistência. O horizonte matemático do significante vetoriza a via lógica da psicanálise, a via de demonstração da verdade da estrutura: “Não há relação sexual”. O vetor matemático do significante é o vetor que reduz a articulação significante a um par ordenado (S1,S2),20 e a série dos ditos a uma série infinita de +1 +1. (S1→ S2) = (S1(S1(S1(S1→ S2). A suposição de que um significante representa o sujeito para outro significante se reduz, por fim, a uma série de Uns repetitivos, cujo horizonte é um saber S2, inacessível à série dos Uns, sempre fora de alcance do significante, no corpo (en-corps). Nessa perspectiva, a via da associação livre demonstra uma “profunda insuficiência lógica” (inacessibilidade do 2), mas permite tanger essa verdade universal “não há relação sexual”, incurável verdade própria a cada um dos casos particulares dessa lei universal. O indecidível decorrente da insuficiência lógica do vetor matemático da associação livre aponta para o fato de que não há conclusão lógica de uma análise; há decisão, seja pela saída da solução singular, pela Reação Terapêutica Negativa, ou pela infinitização da prática do sentido. Opção ética, portanto, com sequências políticas. 3 - Em direção à “verdade” do Ya d’l’Un – Há Um: ex-sistência real O horizonte material e maternal do significante rompe a lógica do significante que representa o sujeito para outro significante etc. Em vez de apontar e demonstrar o que não há, possibilita mostrar o que há: há Um. A suposição de sentido esbarra num limite e no real como impossível, a imisção do mal-entendido na direção da cura vai permitir tangenciar o real que ex-siste ao falaser, o real do vivo, de Um vivo, fora de sentido. “Desde que falamos, é um fato que supomos algo ao que se fala... É apenas pelo fato de falar... que se pode perceber que o que fala, qualquer que seja, é o que goza de si como corpo”.21 A prática do sentido da associação livre produz esse sentido real, a direção que vem do real e tem efeitos manifestos, não latente, na superfície da alíngua, efeitos “poemáticos”,22 mais do que poéticos, em que o “Há Um” aparece, mostra-se nos lapsus, no mal-entendido, (condensação, colapso do som e do sentido). Além da razão (raison) da série que a cadeia associativa permite Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 91-99 maio 2011

20 Lacan. D’un Autre à l’autre, (op. cit.). Lacan explora as propriedades do conceito da teoria dos conjuntos do “par ordenado” para extrapolar a mera articulação significante S1-> S2, e retoma esse desenvolvimento no Seminário XX Encore, p. 130.

21 O Saber do Psicanalista, (op. cit.), p. 95. No original: […] Dès que nous parlons, c’est un fait que nous supposons quelque chose à ce qui se parle... C’est seulement au fait de parler que ... puisse s’apercevoir que ce qui parle, est ce qui jouit de soi comme corps [...].

22 Soler. L’en-corps du sujet (2003).

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23 Valéry. Le cimetière marin (1920/2004, p. 803).

24 Lacan. Radiophonie (1970/2001, p. 443). No original: [...] C’est à ce joint au

extrair apontando para a não-relação sexual, ela permite também que ressoe (reson) o Há Um da alíngua nos tropeços do sentido. Uma via não vai sem a outra: ao produzir a razão do Um aponta-se para o conjunto vazio que ele permite nomear e numerar como Um, produzindo um oco,23 onde pode ecoar outra “reson”. “É nessa articulação com o real que se encontra a incidência política em que o psicanalista teria lugar, se fosse capaz de fazê-la”.24

réel, que se trouve l’incidence politique où le psychanalyste aurait sa place s’il en était

A política do sintoma - Ato III

capable [...].

25 Soler. L’ inconscient réinventé (2009).

26 Lacan. Le Séminaire XXIII – Le sinthome (19751976/2005, p. 7). No original: [...] La faute dont c’est l’avantage de mon sinthome de commencer par là. Sin, en anglais, veut dire ça, le péché, la première faute [...].

27 Lacan. Joyce le symptôme (1975/2001, p. 566). No original: [...] L’inconscient, c’est un savoir em tant que parlé comme constituant de LOM [...].

28 Radiophonie, (op. cit.), p. 415. No original: [...] Quand on reconnaîtra la sorte de plu-de-jouir qui fait dire “ça, c’est quelqu’un” on sera sur la voie d’une matière dialectique peut-être plus

Seguindo a indicação de Lacan em 1958, nomeei “Interpretação” o ato que condiciona o fim de uma análise. De fato, desde o começo, e nos diversos momentos da análise, é a tática da interpretação, em sua dimensão fundamental de corte, que a conduz até seu final. Que seja se apresentando como desejo enigmático, desconcertando a ficção fantasmática, revelando as aporias da associação livre, fazendo ressoar e ecoar o mal-entendido fundamental da alíngua, a interpretação desfaz os sentidos do sintoma, as táticas obedecem a uma mesma política: a produção de seu fim, a separação, dimensão eminentemente política do sintoma. (“identidade de separação”.)25 O momento de concluir não é uma conclusão, mas uma decisão. “O quadro me põe para fora”, diz o artista. Quando o analisante é suficientemente poema, ele se destaca, e de autista se faz artista: sinthome: sin + l’Hom. Sin – pecado original26 isto é, “Não há” + LOM27 = No ponto de partida de um gozo perdido: Há Um o que pode fazer dizer no dispositivo do passe: “Ça, c’est quelqu’un!”28, “Aí, tem gente!”, “This is some-body”, diríamos em inglês! Para não dizer que não falei da clínica, vou dar um exemplo a partir de uma música infantil francesa: Tout en passant par un petit bois, tout en passant par un petit bois Tous les coucous chantaient, Tous les coucous chantaient Et dans leur joli chant disaient: coucou, coucou coucou, coucou Et moi, je croyais qu’ils disaient: Coupe-lui le cou, coupe-lui le cou Et moi je m’en coure, coure, coure Et moi je m’en courais Et moi je m’en coure, coure, coure, Et moi je m’en courais toujours.

active que la chair à Parti, employée comme baby sitter de l’histoire. Cette voie, le psychanalyste pourra l’éclairer de sa passe [...].

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“Coupe-lui le cou, coupe-lui le cou”, é uma elucubração de linguagem (“moi, je croyais qu’ils disaient”, eu acreditava que ele dizia) a partir da alíngua: “coucou, coucou coucou, coucou”; encontro contingencial: “Tout en passant par un petit bois, Tous les coucous chantaient” (Enquanto passava no bosque, os cucus canA política do sintoma na direção da cura


tavam), mas que tem sérias consequências de sintoma: “Et moi je m’en coure, coure, coure, Et moi je m’en courais toujours” (E eu corria, corria para sempre...). O sujeito pode achar que ele tem mais o que fazer na vida do que correr do outro. Uma análise pode providenciar um encontro (contingência) com um saber fazer diferente com essa repetição da marca do significante sem sentido. Política do sintoma.

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A política do sintoma na direção da cura


Resumo Do começo ao fim de uma análise, o que vetoriza a cura é uma política do sintoma, em três tempos, que operam um tratamento da relação entre o universal da castração e o singular da solução de ex-sistência. São três tempos lógicos da operação sobre o real do sintoma, que parte da reclamação de seu sem-sentido, prossegue com a exploração do seu sentido suposto até a sacação da sua letra – a cifra sem-sentido, ponto original das elucubrações, voltas e volteios da associação livre.

Palavras-chave Operação; real; letra; sintoma; incurável.

Abstract From the beginning to the end of an analysis, what fosters the cure is a symptom politics, in three periods of time which operate a treatment of the relationship between the universal of castration and the singular of the solution of ex-istence. They are three logical intervals of the operation over the real of the symptom, which depart from the complaint of its no-sense, as it proceeds with the exploration of its supposed sense until the extraction of its letter – the senseless code, original point to mental elaborations, turns and re-turns of free association.

Keywords Operations; real; letter; symptom; incurable

Recebido 17/02/2011

Aprovado 11/03/2011

Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 91-99 maio 2011

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O real do sintoma: sua política na clínica Andréa Hortélio Fernandes Em 1975, no Seminário R.S.I., Lacan afirma que todo aquele que procura uma análise o faz por acreditar que o sintoma diz alguma coisa que demanda ser decifrada. Ele também apresenta o sintoma como o que há de mais real em cada um. Portanto, neste sentido, o sintoma analítico interroga a não-relação sexual. O real, como aquilo que não cessa de não se escrever, promove a associação livre, trabalho do analisante, via transferência. Logo, nosso trabalho pretende abordar as mudanças nas crenças do sujeito que procura uma análise levando em consideração o real do sintoma e sua política na clínica. O real próprio ao sintoma como aquilo que não cessa de não se escrever convoca mudanças nas crenças do sujeito. Acreditar que um sintoma diz alguma coisa está associado à vacilação de outras crenças do sujeito, entre elas a crença na religião e na ciência. Com relação à religião, Lacan diz que “ela é feita para curar os homens, isto é, para que não percebam o que não funciona”,1 para recalcar o sintoma. Com relação à ciência, sabemos que a busca da cientificidade termina por foracluir o sujeito por desconsiderá-lo naquilo em que ele se presentifica, e isso está articulado ao tratamento dado ao sintoma. Sintoma enquanto o que institui a ordem pela qual se comprova a política na direção do tratamento, segundo Lacan em Lituraterra. A psicopatologia explicativa, comunicativa e fenomenológica de Karl Jaspers seria um exemplo da foraclusão do sujeito fomentada pela exigência de cientificidade. A percepção e a compreensão orientam a perspectiva jasperiana ao definir o delírio como juízo patologicamente falseado e incompreensível. A busca do sentido aponta para quão distante estão Jaspers e Lacan, ao analisarmos o fato deste último afirmar que “o falasser é uma forma de exprimir o inconsciente”,2 e que, portanto, ao analista interessa o sem-sentido. Longe de propor uma hermenêutica do inconsciente, Lacan, no Seminário XI, irá deter-se na interpretação ressaltando o fato de ela não estar aberta a todos os sentidos,3 já que “ela mesma é um nãosenso”. Para Lacan, “quando se trata do inconsciente do sujeito”, está em questão “fazer surgir elementos significantes irredutíveis, non-sense, feitos de não-senso”.4 Temos já aí uma aproximação do inconsciente real, irredutível, feito de não-senso. Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 101-108 maio 2011

1 Lacan, (1974/2005) O triunfo da religião, p. 72.

2 Ibid. 3 Lacan, O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 236.

4 Ibid. 103


p. 196.

Se o falasser é como uma forma de exprimir o inconsciente, o saber em questão é um saber sem-sujeito. O inconsciente só pode ser abordado na análise em que não é a questão lembrar-se do que se sabe, mas de um “não me lembro mais disso. Não me reencontro nisso”.5 É nisso que o inconsciente interpreta o analisante e faz dele seu intérprete. Ainda sobre a interpretação, nos anos 70 Lacan diz que ela não é feita para ser compreendida, já que ela deve ser equívoca. É desta forma que a interpretação age na contracorrente do efeito de tapeação próprio à transferência, apontando para o engano do sujeito suposto que se explicita na pergunta: “o saber que só se revela no engano do sujeito, qual pode ser o sujeito que o sabe de antemão?”.6 Logo, entre o analisando e o analista existiria uma “divergência de suposição”.7 Do lado do analisando, a suposição de saber, própria da transferência; enquanto que do lado do analista, o postulado do sujeito suposto saber caberia ser abolido no decorrer de uma análise. A divergência de suposição aponta para a relação entre saber e crença, na qual “três quartos do dito saber não são nada mais que crenças”.8 A relação entre saber e crença interessou bastante a Lacan na década de 60. Nessa época, ele chamava a atenção dos analistas que tentaram tratar da existência do inconsciente fora da psicanálise, e assim deram um tom “tranquilizador”9 do inconsciente. Lacan diz então que irá, “no cerne da prática que fez empalidecer o inconsciente, buscar o seu registro”.10 À prática da análise, atrelada a dar sentido ao inconsciente, Lacan promulga a seguir a política do sintoma no que nele mantém-se um sentido no real atrelado ao ser de gozo do sujeito. É nesta perspectiva que em 1975, Lacan dirá que “O sintoma é real. É a única coisa verdadeiramente real, que conserva um sentido no real. É por essa razão que a psicanálise pode, se existe a chance, intervir simbolicamente”11 no real. Na articulação do sintoma com o real encontra-se a incidência política na qual o psicanalista é convocado a lidar, e isso tem relação com as mudanças nas crenças de um sujeito em análise. Para tratar da afirmação segundo a qual o sintoma é real, é importante nos determos na orientação clínica de Lacan sobre intervir simbolicamente no sintoma, na medida em que aí encontra-se também uma orientação política que se recusa a aceitar um tom tranquilizador do inconsciente. Para tanto, surge uma nova acepção do sintoma, o sintoma vindo do real, o sintoma como “acontecimento de corpo, que corresponde ao saber falado, ao saber falado fixado precocemente”.12 O sintoma, como encarnação do real, comporta uma incerteza por, desde sempre, permanecer “indeciso entre o fonema, a palavra, a frase, mesmo todo pensamento”.13 Isto porque “a linguagem, de começo, ela não existe”. “A linguagem é o

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O real do sintoma: sua política na clínica

5 Lacan, O engano do sujeito suposto saber (1967), p. 337.

6 Ibid. 7 Lacan, A psicanálise. Razão de um fracasso (1967), p. 337.

8 Lacan, Conférénces et entretiens dans des universitaires nord-américaines (1975) , p. 12.

9 Ibid., p. 25. 10

Lacan, O engano do

sujeito suposto saber (op. cit.), p. 332.

11 Lacan, O Seminário, livro 24: L’insu-que-sait de l’une bévue s’aile a mourre. Lição de 15 de março de 1977, inédito.

12 Soler, De que modo o real comanda a verdade (2009). In: Stylus, no 19, p. 23.

13 Lacan, O Seminário, livro 20: mais, ainda (1972-73),


que se tenta saber concernentemente à função de alíngua”.14 Desse modo, o sintoma tem um lugar privilegiado entre as formações do inconsciente, sendo imprescindível para que uma demanda de análise possa ocorrer. Numa conferência de Lacan na Universidade de Yale, o tratamento dado ao sintoma e ao saber é evocado no percurso de uma análise. Nessa conferência, o início do tratamento é descrito como o analista devendo “deixar-se guiar pelos termos verbais”.15 A expressão “termos verbais” propomos aproximar do significante fora da cadeia, fora de sentido, como um todo só, errático, do S1(S1(S1(S1 → S2))) “que soa em francês essaim,16 um enxame significante, um enxame que zumbe”17 e “que garante a unidade de copulação do sujeito com o saber”.18 É importante aqui “conceber que o S2 de alíngua é ele próprio composto de S1”, e que “o sujeito não virá no nível deste S2”.19 É assim que Lacan diz que “os efeitos de alíngua, que já estão lá como saber, vão bem mais longe de tudo que o ser falante é suscetível de enunciar”;20 trata-se, portanto, de um saber que ultrapassa o sujeito. A partir daí veremos o ensino de Lacan demarcar que “o significante é causa de gozo”,21 e que somente pelo simbólico é possível abordar o sintoma como acontecimento no corpo. Dito de outra maneira, o sintoma como modo pelo qual o sujeito goza na medida em que o inconsciente o determina, aponta para o fato de que o saber inconsciente “está alojado em outro lugar, ele está alojado na substância gozante”22 e aponta para uma fixação de gozo própria ao sujeito. Os uns erráticos que antecedem a linguagem conectam-se ao gozo corporal fazendo sintoma, entendido como acontecimento no corpo, por trazerem aos traços do gozo do Outro. Como não se pode gozar do corpo do Outro, dada a inexistência da relação sexual, é por meio do gozo do sentido que algo do sintoma pode ser tocado pela prática de falar em análise. Ao trabalhar o saber inconsciente alojado na substância gozante, para Lacan “o que há de surpreendente no sintoma... é que se acredita”.23 Logo, todo aquele que demanda uma análise acredita que o sintoma diz alguma coisa e basta apenas decifrá-la. O analista convocado a responder com o saber faz uma aposta de que uma análise se dê pela associação livre do analisando. O desejo advertido do analista está suportado na sua própria experiência de análise, que deve tê-lo levado a um ponto de ateísmo que não se contradiz. Nisto o ateísmo pode ser aproximado à questão do gozo. O ateísmo é definido por Lacan como “a doença da crença em Deus”,24 a crença de que Deus não intervém no mundo. Assim todos seriam religiosos, mesmo os ateus que acreditariam que Deus não tem nenhuma participação quando estão doentes. No nível do gozo, o analista levado ao ponto do ateísmo durável está advertido Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 101-108 maio 2011

14 Ibid. p. 189. 15 Lacan, Conférénces et entretiens dans des universitaires nord-américaines (op. cit.), p. 17.

16 No dicionário Le Robert – essaim significa enxame, exemplo: “groupe d’abeilles d’insectes em vol ou posés”. Le Robert, Dictionnaires, 1992.

17 Lacan, O Seminário, livro 20: mais, ainda (op. cit.), p. 196.

18 Ibid. 19 Soler, De que modo o real comanda a verdade (op. cit.), p. 23.

20 Lacan, O Seminário, livro 20: mais, ainda (op. cit.), p. 190.

21 Ibid., p. 36. 22 Soler, De que modo o real comanda a verdade (op. cit.), p. 18.

23 Lacan, O Seminário, livro 22: R.S.I. (1974-75), Lição de 21 de janeiro de 1975.

24 Lacan, Conférénces et entretiens dans des universitaires nord-américaines (op. cit.), p. 32.

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25 Lacan, Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1957/ 1998), p. 819.

26 Soler, Standards e não standards. In: Artigos Clínicos (1991), p. 28.

27

Lacan, O Seminário,

livro 20: mais, ainda, p. 195.

28 Ibid., p. 197. 29 Ibid., p. 190.

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de que o sujeito neurótico é levado a delegar o gozo ao Outro. Porém, a experiência da análise permite ao analista entrever que esta crença está pautada no ateísmo, a doença da crença em Deus. Isto porque na neurose, mesmo sendo o gozo o que falta ao Outro e o que o torna inconsistente, o neurótico tende a delegá-lo ao Outro. Logo, o analista cuja análise o levou a um ponto de ateísmo pode levar um sujeito a formular a seguinte questão: “este gozo, do qual a falta faz o Outro inconsistente, é meu?”.25 É necessário um percurso para que uma análise se dê, e ele está articulado àquilo que faz função de real no saber, ou seja, o impossível, a não-relação sexual. Uma análise começa com um sujeito supondo um saber ao analista. Ao analista cabe colocar a destituição subjetiva em pauta desde o início da análise para, assim poder manejar, com a suposição de saber a ele atribuída. O algoritmo da transferência mostra o caráter de cifra de gozo, fora-sentido do sintoma que convoca decifração. Por meio do S significante da transferência o sujeito apresenta o sintoma como um “incompreensível corpo estranho a ele próprio e portador de um sentido obscuro que o representa”.26 É aí que Lacan vai insistir que há Um e nada mais. O Um que insiste em se escrever pelo viés da fala, sob transferência, demonstra indiretamente o que não se escreve, a impossibilidade de escrever a relação sexual. A impossibilidade está posta entre o S1 e o S2 no discurso do mestre, S1 → S2, entre eles não há relação dada a coalescência entre S1 e S2. O sintoma, como o que há de mais particular em cada um, interroga a não-relação sexual e cria um intervalo entre S1 e S2, onde é possível situar o sintoma (∑) que faz existir a relação sexual, faz existir o discurso. A questão, então, é como um significante pode ser chamado a fazer sinal, a constituir signo, sintoma para um sujeito. Lacan afirma que “o saber do um, por pouco que possamos dizer disto, vem do significante Um”27 de alíngua. E ainda afirma que é de alíngua que é possível extrair o que é do significante. Ao propor o Um encarnado, Lacan concebe que S2 é composto pelo S1. Do lado do S2 está o resto que permanece não decifrado, não-significantizável, indizível, um saber falado tal qual o Um encarnado. O S2 aponta para o que há de contingente no ouvir e põe em marcha toda a crença do sujeito no sintoma, a ponto de Lacan declarar que “o significante Um não é significante qualquer. Ele é a ordem significante, no que ela se instaura pelo envolvimento pelo qual toda a cadeia subsiste”.28 Para Lacan, a linguagem é feita de alíngua. A linguagem “é uma elucubração de saber de alíngua”.29 Nesta época, Lacan vai aproximar o inconsciente de alíngua, propondo um inconsciente fora-sentido, anterior à linguagem. Segundo ele, “é porque há o inconsciente, isto é, alíngua... que o significante pode ser chamado a O real do sintoma: sua política na clínica


fazer sinal, a constituir signo”,30 a fazer enigma, levando ao cúmulo de sentido. O sentido do que o sujeito ignora, o sentido do que ele não sabe suscita o amor ao saber, ou seja, transferência.31 É neste contexto que, por contingência, ou seja, pela fala do sujeito em análise, algo pode vir a se escrever (S2), e é o que faz função de real no saber, um saber sem-sujeito, um saber que ultrapassa o sujeito e aponta para algo que cessa de não se escrever: o Um do gozo, a letra de gozo. Aponta, pois, para o sintoma como o que há de mais real em cada um e para o inconsciente real que pelo cúmulo de sentido do Um encarnado faz signo, enigma e leva o sujeito a acreditar que o sintoma possa ser traduzido, imprimindo uma política no tratamento do sintoma. Ao tratar da crença no sintoma, em 1975, Lacan marcará uma distinção entre acreditar no sintoma (“y croire”) como do campo da neurose e acreditar nele (“le croire”). Na psicose, sabemos, as vozes estão lá, o psicótico acredita nelas, daí porque Lacan formulou que na psicose o que foi foracluído no simbólico retorna no real. Porém, tanto na neurose como na psicose, o analista deverá manejar com a crença no sintoma. Na psicose trata-se de uma crença forçada. O psicótico sofre o efeito da cadeia significante rompida que faz com que a irrupção de um significante no real seja incontestável, por exemplo: “porca”. De acordo com Bernard David,32 o psicótico acredita na sua alucinação de forma redobrada, ele utiliza a passagem da paciente entrevistada por Lacan que diz ter escutado “porca” para demonstrar isso. A crença seria redobrada pelo fato de o significante “porca” surgir no real e, também, devido ao fato de o significante interpretar a paciente. Este significante quer lhe dizer alguma coisa e, em alguns casos, já diz alguma coisa, apesar da paciente. Em razão da não-extração do objeto a está vetado à paciente saber o que é o seu ser de gozo, o significante equivale a ela enquanto objeto de gozo do Outro. Entretanto, no desencadeamento da psicose encontramos um percurso que vai do acreditar no sintoma ao acreditar nele. O significante real “porca” (S2), essa irrupção do inconsciente real, de um saber sem sujeito, diante da paciente não se vê representado pelo significante alucinado, até aí ela sofre o efeito do cúmulo de sentido que faz signo e demanda interpretação. Somente com a formalização do delírio é que a paciente passa a acreditar nele, por meio da significação da significação. Na neurose, o sujeito acredita no sintoma, e isso o impulsiona na direção de uma elaboração, pautada na transferência. O significante que faz enigma seria real como o significante no real próprio à psicose; a diferença é que ele não é alucinado, podendo ser encarnado, inscrito no corpo, como nos ilustra a histeria. Esse significante é causa de gozo e objeto de gozo na medida em que se goza dele, Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 101-108 maio 2011

30

Ibid., p. 195.

31 Gerbase, O discurso histérico, aula do curso O diagnóstico na psicanálise e na psiquiatria, realizada no Campo Psicanalítico. Salvador: Inédito, 2010.

32 Bernard, Y croire, les croire. (2006/2010)

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33 Soler, O que Lacan dizia das mulheres (2005), p. 198.

34 Ibid. 35 Lacan, Conférénces et entretiens dans des universitaires nord-américaine (op. cit.), p. 29.

36 Soler, O que Lacan dizia das mulheres (op. cit.), p. 197.

porém, é um real que pode se converter em simbólico. O tratamento do real do sintoma pelo simbólico é, portanto, do que se ocupa uma psicanálise com especificidades na neurose e na psicose. Na psicose existiria a possibilidade de civilizar o gozo, possibilitando que mesmo na psicose o sujeito possa fazer laço social. Um exemplo seria Joyce ao conciliar seu gozo autístico, o gozo do Um, ao gozo da letra, ao se impor ao mundo como artista fazendo-se promotor de seu nome de gozo. Nos seus livros Retrato do artista quando jovem ou Stephen, o herói, ele não trata de um herói ou um artista, mas do herói e do artista que é uma crença da mesma ordem que a crença de Schreber de ser A mulher de Deus, apontando que ele acredita nela. Na análise com neuróticos, teríamos na entrada a crença no sintoma que o liga à cadeia significante sob transferência; e “na saída, a descrença que o desliga da cadeia significante”.33 Como já dissemos, acreditar no sintoma é acreditar que ele diga alguma coisa. É nisso que o sintoma interroga a não-relação sexual. Acreditar no sintoma seria como lhe acrescentar reticências, acreditar que ao S1 pode juntar um S2 que faria o sintoma retornar do real para o sentido. Aí está a própria crença no inconsciente. Em contrapartida, a identificação com o sintoma presume que o sujeito tenha deixado de esperar a tradução pelas reticências, deixa-se, pois, de acreditar. “A letra do sintoma resolve o vazio do sujeito que acabou com a questão do ser e com a elucubração de saber relacionada a ela”.34 Por fim, ao afirmar que “o real, tal como nós falamos dele, é completamente desnudado de sentido”..., “porque não é escrito com palavras e sim com pequenas letras”,35 Lacan aponta para o que seria a infinitude da análise. Numa análise “o sujeito ao acreditar no sintoma, acredita que o “um” da letra pode retornar ao “dois da cadeia”36 e assim alimentar o gozo do sentido atrelado ao real do sintoma, política cujo manejo o analista é convocado a operar.

Referências bibliográficas BERNARD. D. Y croire, les croire (2010). In: Pli, no 4. Revue de Psychanalyse du Collège Clinique Psychanalytique et Forums du Champ Lacanien – Pôle Ouest, 2006. LACAN, J. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar, 1985. LACAN, J. (1957). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. LACAN, J. (1967). O engano do sujeito suposto saber In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. LACAN, J. (1967). A psicanálise. Razão de um fracasso. In: Outros

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Resumo O presente trabalho aborda as mudanças nas crenças do sujeito que procura uma análise, levando em consideração o real do sintoma e sua política na clínica, parte do real próprio ao sintoma como aquilo que não cessa de não se escrever e assim convoca mudanças nas crenças do sujeito. Discute como todo aquele que procura uma análise o faz por acreditar que o sintoma diz alguma coisa que demanda ser decifrada. Apresenta que, por contingência, ou seja, pela fala do sujeito em análise, algo pode vir a se escrever (S2) e é o que faz função de real no saber, um saber sem-sujeito, um saber que ultrapassa o sujeito e aponta para algo que cessa de não se escrever: o Um do gozo, a letra de gozo. Conclui que o tratamento do real do sintoma pelo simbólico é do que se ocupa uma psicanálise com especificidades na neurose e na psicose e que a articulação do sintoma com o real apresenta a incidência política à qual o psicanalista é convocado na direção da cura.

Palavras-chave Sintoma, política, crença, real, gozo, saber.

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Abstract This work approaches the changes in the beliefs of the subject who seeks an analysis, taking into consideration the real of the symptom and its politics in the clinic. It departs from the real to the symptom as something which does not cease to not write itself, and then invites changes in the subject’s beliefs. It discusses how every person who seeks an analysis behaves, for believing that the symptom says something that needs to be deciphered. It introduces that, by contingency, that is, through the voice of the subject in analysis, something can come to write itself (S2), and that is what plays the role of real within the knowledge, a knowledge without subject, a knowledge which goes beyond the subject, and points to something that does not cease not to write itself: the One of the jouissance, the letter of jouissance. The conclusion is that the job of a psychoanalysis, with its specificities in neurosis and psychosis, is the treatment of the real of the symptom by the symbolic that presents the political incidence in which the psychoanalyst is summoned to deal with in the cure process.

Keywords Symptom; belief; real; jouissance; knowledge.

Recebido 17/02/2011

Aprovado 24/03/2011

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O real do sintoma: sua política na clínica


O que Marcélio sabia: o desejo e o gozo na constituição do sintoma Lia Carneiro Silveira O psicanalista, muitas vezes, recebe na clínica demandas relacionadas a problemas de aprendizagem e que poderiam ser endereçadas a profissionais diversos, como o psicólogo ou o psicopedagogo. Trata-se do momento em que, ao constatar o que entendem como um “déficit de aprendizagem”, os pais (amparados frequentemente pela escola) resolvem procurar um “especialista” que possa tratar esse “sintoma”. Para os saberes oriundos da psicologia, o que está em jogo aqui é uma defasagem, déficit ou transtorno. O processo de aquisição do conhecimento, tal como entendido nas abordagens hegemônicas neste campo – tradição experimentalista behaviorismo-cognitivismo (e até algumas leituras freudianas que se centraram num fortalecimento do Ego) – é entendido como a consolidação de determinadas respostas exitosas dadas por um organismo. Essas respostas seriam possíveis em razão de, por um lado, uma bagagem hereditária mínima de respostas comuns à espécie, e por outro, a uma interação com um “meio” que oferece os estímulos necessários. De qualquer forma, a responsabilidade pela aprendizagem reside no sujeito do conhecimento (o eu, a consciência ou a inteligência).1 Quando alguma coisa se interpõe entre o estímulo e a resposta (ou seja, não se alcança o nível ótimo esperado), o especialista espera encontrar nesse mesmo “eu” alguma resposta. Sendo o processo de aprendizagem entendido numa lógica organicista e maturacionista, logo o “defeito” só pode estar num desses planos. Ou se trata de um problema de desenvolvimento (considerado como alguma disfunção orgânica ou genética que afeta o corpo), ou interferência de algum “aspecto psicossocial” (ambiente familiar desajustado, maus-tratos etc.). Seja lá qual for a saída encontrada, a intervenção vai ter como objetivo extirpar o sintoma (déficit de aprendizagem) e restaurar no eu a capacidade de aprender. Estamos no discurso da ciência, do sujeito cartesiano, do saber do especialista. No entanto, diferentemente dessas profissões, o ofício da psicanálise vai demarcar uma ruptura radical na forma como podemos acolher as vicissitudes pelas quais um sujeito passa no seu processo Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 109-121 maio 2011

1 Lajonquière. De Piaget a Freud: para repensar as aprendizagens (1993).

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de aprendizagem. Também reconhecemos que, naquilo que nos é dirigido sob o título de “problemas de aprendizagem”, há alguma coisa que emperra. No entanto, isso não é entendido como um déficit, uma anomalia a ser corrigida. O que nos interessa é saber se para além da demanda dos pais e da escola há aí algo que o sujeito nos enderece como seu sintoma.

O Sintoma na psicanálise

2 Foucault. O Nascimento da Clínica (1980).

3 Freud. Conferência XXIII: Os caminhos da formação dos sintomas (1916, pp. 419-439).

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Para apontarmos a via pela qual podemos nos colocar diante das queixas de “problemas de aprendizagem” encontradas na clínica, faz-se antes necessário especificar qual o estatuto do sintoma para a psicanálise. Antes de tudo, é preciso afirmar que ele é considerado como um índice do sujeito e das tensões que se revelam entre este e o seu desejo, inconsciente. O sintoma já era considerado, antes mesmo da psicanálise, um importante conceito na medicina. Com Michel Foucault2 vemos como este é conceituado no seio do projeto anatomopatológico da medicina, no qual o sintoma sempre corresponde à lesão de um órgão, alteração que precisa ser corrigida para reencaminhar o organismo em direção a uma suposta normalidade. A psicanálise, por sua vez, nasce de um encontro: aquele que se dá entre Freud e o sintoma das histéricas. Destituído de lugar no saber médico exatamente por não apresentar lesão orgânica, com Freud o sintoma neurótico ganhou estatuto de mensagem. Portador de um texto que remete ao sexual, ou melhor, a uma falha no sexual. Além disso, Freud diz que os sintomas neuróticos são resultado de um conflito. Na premência constante das pulsões, algo não pode se escrito pelo Eu. Algo não pode ser aceito, ou por ser incompatível com o eu ou por afrontar seus padrões éticos. A libido insatisfeita é obrigada a abandonar a realidade e buscar outras vias de satisfação. Mesmo que a libido esteja disposta a assumir um outro objeto no lugar daquele recusado, se ainda assim a realidade se mostrar intransigente, ela será compelida a tomar o caminho da regressão e buscar satisfação em algum ponto de fixação, ou seja, em uma das organizações anteriores. Daí temos uma outra peculiaridade do sintoma em Freud: ele é um acordo, uma peça de ambiguidade engenhosamente escolhida, com dois significados em completa contradição mútua.3 Assim, a libido consegue encontrar alguma satisfação, embora seja uma satisfação que mal se reconhece como tal. Mal se reconhece, porque aqui estamos lidando não mais com o prazer, mas com um além do princípio do prazer. Quando falamos de pulsão, estamos falando irremediavelmente em sua faceta de pulsão de morte que, silenciosa, O que Marcélio sabia: o desejo e o gozo na constituição do sintoma


insiste em seu caminho. Os pós-freudianos tomaram do texto de Freud esse conflito entre realidade e busca de satisfação, entre o eu e as pulsões. A resposta desses autores, no entanto, girou em torno da possibilidade de fortalecer esse eu; suturar sua divisão e restaurar sua síntese, promovendo um eu forte o bastante para expulsar o sintoma; adequar o eu à realidade. Ora, essa via o próprio Freud a recusou de saída: não se trata de adequar o eu a uma pretensa realidade, mas sim de mostrar o quão adequado a ela o sujeito já estava. Lacan também vai execrar essa saída. Tanto, que em seu texto é raro não encontrarmos críticas a ela. Mas ele também abre uma via para outra resposta: se não se trata de fortalecer o eu, de levá-lo a alcançar a maturidade genital com a unificação das pulsões copiando o eu forte do analista, do que se trata então numa análise? Foi preciso retornar ao texto freudiano, demarcando ali o que está em jogo, mapeando os diferentes registros em que as coisas se passam. Para romper com a ênfase imaginária no eu forte dos pós-freudianos, Lacan valeu-se de algumas ferramentas que lhe permitiram, num primeiro momento de seu ensino, destacar da experiência do inconsciente o caráter estruturante do simbólico. No que tange ao sintoma a questão é a da ligação ao desejo, que permanece um ponto de interrogação, um enigma. Temos, então, nos anos cinquenta, uma proposição que enfatiza a face simbólica do sintoma como uma coisa que fala, um enigma que se articula. Mas ele também já aborda nessa época algo de irredutível que se instaura na complexidade das relações do sujeito com o Outro. Ele diz: se falo aqui da função da fala ou da instância da letra no inconsciente, certamente não é para eliminar o que o desejo é de irredutível e impossível de formular – não de pré-verbal, mas de para além do verbo.4 À espera de que algo do campo do Outro possa nomear seu ser, o sujeito permanece alienado. O sujeito da alienação supõe que o Outro detém um saber sobre seu ser. Tal saber jamais comparecendo integralmente, o sujeito toma a seu cargo a falta, preservando intacto o lugar do Outro.5 No entanto, uma outra operação se faz necessária. Na operação de separação, a barra incide não apenas sobre o sujeito, mas também sobre o Outro. Assim, em vez de se sujeitar a esse Outro supostamente não barrado, suposto responder pelo lugar do sujeito no mundo, advém uma interrogação acerca do desejo que se desenha na falta desse Outro, agora barrado: O Outro figura aí como faltoso, como incompleto, como parte interessada no jogo, e não como um árbitro que poderia emitir um julgamento sobre o ser do sujeito de uma distância objetiva, imparcial e isenta.6 Será nesse espaço que se estabelece a partir do recobrimento de duas faltas (falta no sujeito e falta no Outro) que Lacan irá situar o lugar do objeto. No entanto, não se trata de um objeto do desejo, Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 109-121 maio 2011

4 Lacan. A Instância da Letra no Inconsciente ou a Razão desde Freud (1957, p. 341).

5 Venturini. O sintoma e os impasses na análise (2007, p. 173).

6 Ibid., p. 173.

113


7 Lacan. O Seminário, Livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964, pp. 25-26).

8 Ibid., p. 27.

9 Acontecimento – devir (werden).

substância material qualquer que pudesse satisfazê-lo, respondendo ao seu enigma. Mas sim, do objeto causa do desejo, (a que Lacan chamou Objeto a), cuja única consistência é aquela do gozo, resto impossível de simbolizar. Temos, portanto, uma relação de amarração entre simbólico (aquilo que pode ser simbolizado) e o real (que permanece fora da simbolização). O primeiro comparece organizando o campo das relações do sujeito com a realidade, nele inscrevendo as linhas de força iniciais, diz Lacan no seu seminário dedicado aos Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. O simbólico permite que, antes ainda que se estabeleçam relações propriamente humanas, certas relações já estejam determinadas: Antes de qualquer formação do sujeito, de um sujeito que pensa, que se situa aí – isso conta, é contado, e no contado já está o contador.7 No entanto, afirma Lacan, em meio a essa experiência insiste a função da causa. Mas ele adverte que aqui não está tomando a causa como conceito filosófico, como algo que se situa no plano da determinação, da lei. Paradoxalmente, essa causa na psicanálise vai ser correlativa a uma falta, a uma hiância, pois segundo Lacan, só existe causa para o que manca.8 Lugar onde me deparo com o traumático sexual, fenda aberta, impossível de simbolizar, é lá que o sintoma neurótico vai se constituir como aquilo que se conforma a esse real indeterminado. Vemos estabelecer-se aí um corte entre dois registros. O simbólico, que organiza a experiência, predeterminado. E o real, onde nada se encontra determinado, e onde algo pode acontecer.9 Amparados por essa concepção de sintoma é que ouvimos aqueles que nos procuram buscando situar, na demanda que nos é dirigida, aquilo que de desejo e de gozo está implicado na amarração singular a cada um. Trazemos a seguir uma vinheta clínica que busca articular a partir da experiência analítica alguns desses conceitos.

O caso clínico Os pais de Marcélio, 11 anos, me procuraram em junho de 2009 porque, segundo eles, “a professora disse que ele precisava de psicólogo”. É muito inquieto, não presta atenção na aula e briga constantemente com os outros alunos. Além disso, embora esteja cursando pelo quarto ano consecutivo a terceira série, não consegue ler nem escrever. Trata-se de um caso atendido em um serviço público de Fortaleza (CE), situado em uma região muito carente da cidade. O desafio nas entrevistas preliminares foi tentar localizar algo na fala de Marcélio que o implicasse para além da demanda de adequação do comportamento endereçada a mim pelos pais e pela 114

O que Marcélio sabia: o desejo e o gozo na constituição do sintoma


escola (e que, inicialmente, ele parecia endossar). Vimos anteriormente como – tomado a partir do registro do simbólico – o sintoma é definido por Lacan como uma operação metafórica: uma mensagem cifrada do Inconsciente que é articulável e decifrável. A própria entrada em análise exige essa suposição. É preciso que o sujeito acredite que seu sintoma quer dizer alguma coisa e que aquele que o escuta sabe algo desse sentido. De início Marcélio fala muito pouco, e nesse pouco deixa entrever que acredita que está ali para ser mais comportado, para parar de brigar na escola e para conseguir aprender. Aqui estamos na dimensão da queixa e ainda não podemos considerar a existência de um “sintoma” no sentido analítico. Peço-lhe para me falar mais sobre esse “não conseguir aprender” e descubro que não se trata simplesmente de não conseguir, há uma singularidade muito relevante em sua história. Ele diz: “eu sabia ler e escrever, mas um dia o colégio caiu. Tive que ficar em casa por uns meses e quando eu voltei tinha esquecido tudo”.10 Suas dificuldades dizem respeito tanto à leitura quanto à escrita. Também esquece com frequência do que vai dizer: “às vezes a palavra vem reta na minha cabeça, mas na hora de dizer sai outra coisa”. A passagem que vai permitir a Marcélio sair da demanda dos pais para uma formulação de sua própria questão ocorre certo dia em que ele reconhece uma das pacientes que atendo como sendo uma de suas vizinhas, e me pergunta por que ela está ali. Respondo que as pessoas vêm para cá porque têm alguma coisa que as aflige, que as faz sofrer e vêm buscar ajuda. Pergunto se é o caso dele. Ele diz que tem sim, que ele sofre porque esqueceu algumas coisas e que acha que eu poderia ajudá-lo a se lembrar. Outro fato que lhe intriga é que ele, por diversas vezes, acordou e estava em pé, em frente à geladeira, por exemplo, e não se lembra como chegou lá. Esse momento foi um marco na direção do tratamento, pois, enfim, pudemos identificar elementos daquilo que virá a se constituir como sintoma em sua dimensão simbólica: um texto portador de uma mensagem que se constitui como resposta ao enigma do desejo do Outro. Deparar-se com esse enigma é correlativo da própria possibilidade de constituição do sujeito, e é também o furo em torno do qual o sintoma vem a se constituir. Quando nasce um filhote qualquer, a primeira coisa que ele busca é satisfazer suas necessidades. Com o filhote humano, no entanto, essa questão se torna infinitamente mais complexa, pois ao nascer o bebê já chega ao mundo banhado na linguagem. Além disso, nasce subjugado por sua prematuridade e assolado pela força das pulsões parciais. Sendo assim, para sair desse “desamparo fundamental”, como chamou Freud, o sujeito é levado a articular suas necessidades em termos de demanda. Ocorre Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 109-121 maio 2011

10 Os trechos entre aspas a partir daqui são excertos de fala do paciente.

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que a demanda exige, como tal, sua articulação em termos significantes. O que devemos considerar aqui é que não se pode confundir demanda com necessidade, pois o próprio exercício do significante transforma a manifestação dessa necessidade:

11 Lacan. O Seminário, livro

Mediante o concurso do significante introduz-se nesta um mínimo de transformação – de metáfora, numa palavra – que faz com que aquilo que seja significado seja algo para além da necessidade bruta. Por conseguinte, desde o começo, o que entra na criação do significado não é uma pura e simples tradução da necessidade, mas uma retomada, reassunção, remodelagem da necessidade, criação de um desejo outro que não a necessidade.11

5 – As formações do inconsciente (1957-58, p. 95).

12 LACAN, Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1960, p. 832).

13 Ibid., p. 477. 14 Ibid.

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A criança que articula seu grito em significantes espera do Outro uma resposta. No entanto, essa resposta é furada, pois ao Outro também falta alguma coisa, o Outro também deseja. Ali onde o : significante de uma sujeito espera um “oráculo”, descobre falta no Outro, inerente à sua função mesma de ser o tesouro do significante.12 Lacan afirma que o desejo vai se esboçar na margem em que a demanda se esgarça da necessidade, pela impossibilidade de haver no plano das pulsões qualquer possibilidade de satisfação universal. Diante dessa impossibilidade de resposta, o sujeito se angustia e se pergunta: o que esse Outro quer? Ou melhor, o que Ele quer de mim? Com aquilo que conseguir montar como resposta é que o sujeito vai produzir sua fantasia e seu sintoma. O Sintoma é uma significação. Foi isso que Freud introduziu: o sintoma é uma operação de significação, (...) é por essa razão que podemos legitimamente simbolizá-lo nesse lugar por um pequeno s(A), significado do Outro, vindo do lugar da fala.13 O neurótico é aquele que identifica a falta do Outro com sua demanda e, dessa forma, tenta articular sua resposta a ela. Preso a essa injunção do Outro permanece alienado, completo desconhecedor de seu desejo.14 Na operação de entrada em análise, o que se busca é reabrir essa fenda. Ao não responder à demanda (no caso de Marcélio, demanda de correção de um transtorno de aprendizagem), o analista abre um furo onde se pode recolocar a questão acerca do desejo: que queres? Marcélio passa, a partir daí, por uma mudança de posição: de objeto da queixa dos pais para um sujeito que, em associação livre, desfila seus significantes. Além disso, agora comparece sozinho à sua análise, sempre preocupado em vir “bonito” para a sessão, segundo relato da mãe. O que a histericização de seu discurso revela é que, para além de uma dificuldade de alfabetização, ocorreu uma regressão a um ponto onde algo se fixa no “não saber”. Para abordar como isso se dá O que Marcélio sabia: o desejo e o gozo na constituição do sintoma


é importante tecermos alguns comentários sobre o que a psicanálise tem a dizer sobre o processo de alfabetização. No texto sobre as afasias, ainda num momento pré-psicanalítico, Freud identifica o que está em jogo nos diversos momentos de aquisição da linguagem, num percurso que vai da aquisição da fala à aquisição da escrita. Aprendemos a falar, segundo ele, servindonos de uma linguagem própria; criamos uma espécie de dialeto. Fazemos isso associando uma imagem sonora da palavra (que adquirimos do Outro) a uma sensação de inervação da palavra, associando diferentes e estranhos sons de palavras a um único som que nós mesmos produzimos. No processo que se segue, passamos a tentar tornar esse som produzido o mais próximo possível da linguagem dos outros.15 A aquisição da leitura e da escrita envolve, segundo Freud, uma reedição desse processo, um segundo esforço de associação. Associamos as representações obtidas ao pronunciar cada uma das letras e, dessas associações, percebemos surgirem novas representações de palavras. Reconhecemos no que aí obtemos o som da palavra tal como a conhecíamos, e então, lemos compreendendo. Segundo ele, esse processo é facilitado pela semelhança que há entre o dialeto dos primeiros anos de vida e a linguagem escrita. Percebemos que há uma proximidade entre esse dialeto a que Freud se refere e aquilo que anos mais tarde Lacan vai chamar de Lalangue.16 Lalangue não é a linguagem, ela é antes um banho de obscenidade, como diz Colette Soler ao se referir a esses uns, essaim,17 enxame de significantes que a criança recebe de primeiro grande Outro, a mãe. Lalangue, portanto, não é da ordem do simbólico, mas do real. A autora nos adverte que não se trata, portanto, de aprendizagem, mas de impregnação, de marcas que a criança recebe: são termos que excluem o domínio e a apropriação ativa e, portanto, a identificação.18 Desses sons sem sentido, alguns vão se depositar sob a forma de detritos, os primeiros uns sonoros. Segundo Soler (2010), é só num a posteriori, tempo do encontro com o impossível do sexo, que esses uns vão se conectar ao problema do gozo do sujeito, especialmente do gozo fálico. Aqui não se trata da combinatória do significante, mas desses uns erráticos que se conectam diretamente com o gozo corporal. Nesse litoral que se escreve entre saber e gozo está em jogo não só a contingência do que foi falado pelo Outro, mas principalmente a contingência do que foi escutado. Ainda durante as entrevistas, fiquei sabendo (por intermédio do pai) de um acontecimento que vai retornar várias vezes na fala do filho. A família morava em uma cidade do interior: o pai, a mãe, a filha mais velha e Marcélio, então com cerca de três anos de idade. Certo dia, o pai está bebendo em um bar e entra numa briga: vai até sua casa, deixa Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 109-121 maio 2011

15 Freud. O Inconsciente (1915).

16 Neologismo criado por Lacan. O termo “Lalangue” faz referência à “lalação”, primeiros sons emitidos pelo bebê.

17 Em francês há uma homofonia entre “essaim”, “enxame” e “esse uns”, S1, termo que Lacan utiliza para se referir ao enxame de significantes.

18 Soler. O Corpo Falante (2010, p. 29).

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19 No Nordeste o significante tem uma conotação pejorativa, significando mulher de má reputação, prostituta. É frequente nos jogos de linguagem locais brincar com outra significação possível, atribuída ao português falado em Portugal, onde significa “moça, mulher jovem”.

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o filho que estava com ele no momento, pega uma faca e mata o colega com quem discutiu. Perseguido pela polícia, ele se esconde para se livrar do flagrante e depois se entrega. Havia três anos ficou sabendo de sua sentença: cumpriria pena em regime semiaberto. Havia cerca de três anos também nasceu a filha mais nova do casal. Na fala da mãe o pai aparece como violento e muito ciumento: chegava em casa bêbado e obrigava as crianças a se ajoelharem e escreverem o alfabeto na parede: “ele ficava rindo, parecia um louco”. Diz ainda que apanhou muito durante a gravidez de Marcélio: “será que isso tem a ver com o jeito dele ser hoje?” No decorrer do tratamento, aos poucos, Marcélio começa a falar sobre sua vida na escola e em casa. Diz que tem um irmão que está preso, o Daniel. Essa afirmação me surpreende, pois nem a mãe nem o pai tinham me falado da existência desse irmão. Fala também que o pai tem mais cinco filhos com outra mulher que conheceu antes de sua mãe. Ainda sobre a prisão de Daniel, faz uma relação com seu sintoma e afirma: “Ele foi preso, no mesmo dia eu fui pra escola, a tia mandou eu ler e eu não sabia mais”. Marcélio briga muito na escola, e ao perguntar o porquê disso ele me diz que os meninos chamam sua mãe de rapariga, e me pergunta o que é isso. Com o meu silêncio, ele me diz noutra pergunta: rapariga19 num é moça? Com essas informações novas e conflitantes e como Marcélio continua muito calado durante as sessões, sugiro trabalhar com desenhos, ao que ele se mostra muito interessado. Seguem-se aí várias sessões em que ele desenha várias pessoas, escreve seus nomes (alguns corretamente, com uma letra bem caprichada – o dele, o do pai) e outros que ele não consegue escrever e me pede ajuda – Daniel e Sibita –, uma prima com quem ele gosta de brincar, depois me fala sobre o que produziu. Noutras sessões ele recorta as figuras, formamos árvores genealógicas ou encenamos histórias com os personagens que ele desenhou. Nesses jogos e desenhos o que começa a se delinear é a dúvida de Marcélio sobre quem é essa família, principalmente sobre esses filhos que a mãe teria no interior. Ele diz que não tem certeza se Daniel é filho ou irmão dela, mas acha que é filho. Ele passa a investigar isso junto à mãe, que explica que eles, na verdade, são primos de Marcélio, filhos de uma irmã dela. Outra questão que surge ao longo de sua análise é com relação ao seu nome próprio: “Meu nome é igual ao do meu pai e eu não sei porquê”. “Uma amiga minha falou que esse nome é uma peste.” Certo dia deixa escapar, com um sorriso no rosto, que sua mãe, e quase todos na rua, o chamam de “Bebê” e que ele gosta muito de ser chamado assim. No transcurso do tratamento me diz: “acho que eu nasci doente, O que Marcélio sabia: o desejo e o gozo na constituição do sintoma


com alguma doença, porque até meu irmão mais novo sabe mais do que eu”. Acerca do seu nascimento afirma: “Eu nasci da barriga, me tiraram de lá. Tu conhece a novela do Zé Trovão? Eles apostaram uma corrida. Se a Ana Raio perdesse, tinha que dar um beijo nele; se ela ganhasse, num tinha não. Ela perdeu e eles se beijaram, os cavalos deles também, porque têm o mesmo nome que eles”. Pergunto por que ele lembrou disso? “Porque foi bom. Acho que é assim, eu lembro do que é bom. O que é ruim eu esqueço.” Fala também de uma cena que assistiu: a irmã mais nova, de três anos ainda mama e às vezes dorme no peito. Certo dia, conta ele, viu o irmão do meio (que já contava com oito anos) deitar na cama, botar o outro peito para fora e mamar. Essas passagens extraídas de seu discurso nos permitem abordar uma outra dimensão do sentido do sintoma. Não sua versão carta (lettre), portadora de uma significação (bedeutung) que pode ser endereçada, decifrada. Mas o sintoma como aquilo que aponta para o real traumático. Em sua face de letra, de lixo (lettre, litter)20 de resto idêntico a si mesmo, o sintoma é portador de um gozo que já não significa mais nada, mas cuja função é o sentido (Sinn) de um vetor apontando para o real. No texto intitulado “A Terceira”, Lacan afirma: o sentido do sintoma é o real, na medida em que ele se atravessa aí para impedir que as coisas andem, no sentido de que elas dão conta de si mesmas de maneira satisfatória. Sentido aqui não no sentido de significação, mas no de vetor. Ou seja, o sintoma é um vetor apontando para a presença do real.21 Marcélio diz que sua avó mandou um recado para seu pai. Os irmãos do homem que ele matou estão querendo vingança. Ele não pode ir pescar em... “Idubaiu”.22 A palavra certa não sai. Ele tenta várias vezes, mas automaticamente só consegue dizer “Idubaiu”. Pergunto se ele quer escrever. Ele escreve: “Dubaiu”. Depois tenta novamente: “Trubaiu”, e me diz: “não é isso. Eu não consigo dizer”. Pede para ir lá fora perguntar a um vizinho que o acompanhava e diz: “a palavra certa é Donabuiu”. Eu marco que ele lembrou do “buiu”, mas esqueceu o “dona” e digo: Dona também é um nome de mulher. Percebemos que esse significante surge como S1 que articula um enxame, ponto de articulação entre outros uns que se inscrevem e que atuam como vetores apontando para o traumático do gozo, da morte e do sexo. Assim, temos de um lado a escansão dos S1s, e do outro, as questões que Marcélio traz para sua análise que dizem respeito ao enigma do sexo, sua ascendência, a sexualidade materna e a indefinição de limites quanto a isso:

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20 Jogo de significantes que Lacan explora ao máximo no texto Lituraterra – indo de Lettre (carta e letra em francês) a Litter (lixo, em inglês). LACAN, J. Lituraterra (2003).

21 Lacan,

A terceira (1974,

p. 24)

22 Imagino que ele está fazendo referência ao município cearense de Banabuiú.

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Questões do sujeito => real traumático Donabuiú – Banabuiú – A mãe é rapariga? cidade onde o pai matou De onde vieram esses um homem irmãos? Dona – significante que E ele mesmo? aponta para o feminino Podem os filhos gozar do Dedina – a mãe chama-se corpo da mãe? Edna, mas ele escreve assim Por que ela dorme? O que Daniel – que, como ele pode o pai? mesmo destaca, também escreve com D Enxame de S1s

23 Freud. Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910).

24 Freud. O Recalque (1915).

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Seu sintoma, “esquecer o que sabia”, irrompe por volta dos sete anos de idade, num momento em que essas questões se presentificam: nasce a irmã mais nova, o pai vai ser preso, o irmão/primo é preso. O que podemos extrair daí aponta, em primeiro lugar, para a atuação da pulsão epistemofílica. Marcélio andou procurando saber, investigando sobre sua origem e a origem desses irmãos. No texto Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância, Freud afirma que uma fase cheia de investigações é frequente nas crianças pequenas. Elas visam saber de onde vêm os bebês, como eles são feitos. No limite, essas questões apontam também para a origem do próprio sujeito: de onde eu vim? Por que eu nasci? O que eles querem de mim?23 Marcélio provavelmente andou procurando essas respostas, e posteriormente encontrou ao longo de sua investigação algum limite desse saber (esse limite é estrutural, pois a investigação fatalmente caminha para um ponto impossível de dizer e para o reconhecimento de uma falta, principalmente a falta no Outro). Nesse momento, opera o recalque que, por definição, trata-se exatamente de um mecanismo que visa afastar determinada coisa da consciência, mantendo-a a distância.24 Seria seu sintoma (esquecimento) equivalente ao próprio mecanismo do recalque? É o próprio Freud quem nos responde, ao afirmar que sintoma e recalque não são a mesma coisa, longe disso, seguem caminhos de formação completamente diferentes, pois o sintoma equivale, na verdade, a um segundo momento, o momento em que algo desse recalcado busca acesso à consciência, um retorno do recalcado. Segundo Freud, o recalque se constitui em dois momentos distintos. Inicialmente, há o que ele chama de Urverdrängung (recalque original) e que consiste em interditar no consciente a admissão do representante psíquico da pulsão. Esse recalque estabelece uma fixação, mantendo, daí em diante, um enlaçamento entre a pulO que Marcélio sabia: o desejo e o gozo na constituição do sintoma


são e o representante em questão. A segunda etapa é aquela que Freud vai chamar “o recalque propriamente dito” e diz respeito às representações derivadas do representante recalcado. Ocorre que o recalcado original exerce uma força de atração sobre todo material com que consegue estabelecer conexão e, assim, submete ao mesmo mecanismo de recalque as cadeias de pensamento que estabelecem alguma relação com o representante psíquico interditado no recalque original.25 Tomemos novamente o caso de Marcélio: ele inicia, ainda numa fase remota, suas investigações que o remetem a um enigma que remete ao sexual, ao nascimento e à morte. Diante desse impossível, desiste de suas buscas e se contenta com uma resposta: Daniel é meu irmão. Num momento posterior, marcado por solicitações escolares, nascimento de uma irmã, prisão de Daniel e do pai, algo faz conexão com o primeiro momento de encontro com o real traumático. No entanto, o recalque não é completamente bem-sucedido. Vacilando o recalque, o sujeito faz um sintoma: esquece o que sabia... ler. Sintoma cujo sentido, o vetor, como diz Lacan, é apontar para o mesmo núcleo real com que esbarraram suas pesquisas sexuais, o impossível de saber. Nesse sintoma desvela-se ainda a posição de gozo de Marcélio. Apesar de haver incidência do Nome-do-pai, a saída pela identificação ao significante paterno é recusada por ele: “Não gosto de ter esse nome, esse nome é uma peste”. Prefere ser chamado pelo nome que recebeu da mãe, o Bebê. Continuar a ser o “bebê da mamãe”. Mas esse nome porta a marca de seu gozo, marca do impossível da relação, pois bebês não sabem ler.

25 Ibid.

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FREUD, S. (1916) Conferência XXIII – Os caminhos da formação dos sintomas. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Ja-

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Resumo Recebemos com frequência na clínica demandas relacionadas a problemas de aprendizagem. Trata-se do momento em que, ao constatar o que entendem como um “déficit”, os pais ou a escola resolvem procurar um “especialista” que possa tratar esse “sintoma”. No entanto, diferentemente dessas profissões, o analista vai demarcar uma ruptura radical na forma como podemos acolher as vicissitudes pelas quais um sujeito passa no seu processo de aprendizagem, pois, para a psicanálise, o sintoma é um índice do sujeito e das tensões que se revelam entre este e o seu desejo inconsciente. Apresentamos nesse texto uma discussão acerca do sintoma na psicanálise, articulando-a com uma vinheta clínica na qual a queixa inicial se apresenta como “distúrbio de aprendizagem”, mas que, a partir da escuta do sujeito, vai apontar para o real traumático envolvido.

Palavras-chave Sintoma, psicanálise, aprendizagem.

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O que Marcélio sabia: o desejo e o gozo na constituição do sintoma


Abstract

Very often, we receive in our clinic demands related to learning problems. This is the moment when, finding what is perceived as a “deficit”, parents or school decide to consult with a specialist who can treat this “symptom”. However, unlike such professions, psychoanalysis will mark a radical rupture in how we can take care of the hurdles through which a subject passes during his/her learning process, as for psychoanalysis the symptom is an index of the subject and of the tensions that unfold between him/her and his/her desire, unconscious. The article proposes a discussion about the symptom in psychoanalysis, linking it to a clinical vignette in which the initial complaint is presented as “learning disorder”, but as the subject is heard, it will point to the traumatic real involved.

Keywords Symptom, psychoanalysis, learning.

Recebido 16/02/2011

Aprovado 24/03/2011

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thesaurus: política

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A palavra Política nos Seminários, Escritos e Outros Escritos de Jacques Lacan Marcelo Amorim Checchia, Renata Martins Contancio e Michele Borges Parola (Orgs.) Método: Realizamos a busca da palavra política na obra completa de Lacan no texto original em francês através das versões digitalizadas disponíveis, sendo algumas da Association Freudienne Internationale e outras da Editora Seuil. Em seguida, buscamos a citação na versão em português e, quando não disponível nessa língua, optamos pela tradução em espanhol. Todos os textos estão referenciados em nota de rodapé. A apresentação das citações obedece à cronologia das aparições do termo política nos Seminários e posteriormente nos Escritos e Outros escritos, sempre indicando a paginação dos textos referenciados. Devido ao grande número de citações da palavra política na obra de Lacan (aproximadamente 280 ocorrências ao todo), selecionamos as que foram consideradas mais relevantes para a reflexão sobre as possíveis articulações entre a política e a prática psicanalítica.

Les écrits techniques (1953-1954)1 Os escritos técnicos de Freud (1953-1954)2 p. 293 HYPPOLITE – Non, elle n’est pas attaquable. Mannoni disait tout à l’heure c’est de la politique. MANNONI – C’est le côté par où la politique humaine s’insère, au sens large, parce que si les hommes n’agissent pas comme les animaux, c’est parce que justement ils échangent par le langage leurs connaissances. Et, par conséquent, c’est de la politique. La politique vis-à-vis des éléphants est possible grâce au mot. HYPPOLITE – Mais pas seulement. C‘est l’éléphant lui-même qui est atteint, c’est la logique hégélienne. LACAN – C’est pré-politique. C’est simplement la façon de vous faire toucher du doigt l’importance du nom. Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 125-157 maio 2011

1 Lacan, Jacques. Écrits techniques (1953-1954). Paris: Document interne à l’Association Freudienne Internationale.

2 Lacan, Jacques. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. (1953-1954). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.

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3 Lacan, Jacques. Le moi

p. 207 HYPPOLITE – Não, ela não é atacável. Mannoni dizia há pouco que era política. MANNONI: – É o lado pelo qual a política humana se insere. No sentido amplo. Se os homens não agem como os animais, é porque trocam o seu conhecimento pela linguagem. Em consequência, é política. A política relativamente aos elefantes é possível graças à palavra. HYPPOLITE: – Mas não somente. O próprio elefante é atingido. É isso, a lógica hegeliana. LACAN – Tudo isso e pré-político. Quero simplesmente fazêlos tocar com o dedo a importância do nome.

dans la theorie de freud et dans la technique psychanalytique (1954-1955). Paris: Seuil, 1978.

4 Lacan, Jacques. O seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. (1954-1955). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.

Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique psychanalytique (1954-1955)3 O eu na teoria de Freud e na técnica psicanalítica (1954-1955)4

p. 26 Ce que Socrate met en valeur, c’est très exactement ceci, qu’il n’y a pas d’épistémè de la vertu, et très précisément de ce qui est la vertu essentielle – aussi bien pour nous que pour les Anciens –, la vertu politique, par laquelle sont liés dans un corps les citoyens. Les praticiens excellents, éminents, qui ne sont pas des démagogues, Thémistocle, Périclès, agissent à ce plus haut degré de l’action qu’est le gouvernement politique, en fonction d’une orthodoxie, qui ne nous est pas définie autrement que par ceci, qu’il y a là un vrai qui n’est pas saisissable dans un savoir lié. p. 26 O que Sócrates destaca é muito exatamente o seguinte – não existe uma epistemé da virtude, e muito precisamente daquela que é a virtude essencial – tanto para nós como para os Antigos – a virtude política, pela qual os cidadãos se acham ligados num corpo. Os práticos excelentes, eminentes, que não são demagogos, Temístocles, Péricles, agem neste mais alto grau da ação, que é o governo político, em função de uma ortodoxia, que não é definida a não ser pelo seguinte – existe aí um verdadeiro que não é apreensível num saber ligado. p. 31 Je ne veux pas dire que le politique, c’est le psychanalyste. Platon précisément, avec le Politique, commence à donner une science de la politique, et Dieu sait où ça nous a menés depuis. Mais pour Socrate, le bon politique c’est le psychanalyste. C’est en quoi je réponds à Mannoni.

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A palavra Política nos Seminários, Escritos e Outros Escritos de Jacques Lacan


p. 31 Não estou querendo dizer que o político seja o psicanalista. Platão começa precisamente com o político a fornecer uma ciência da política, e sabe Deus onde isto, desde então, nos tem levado. Mas para Sócrates, o bom político é o psicanalista. Com isto respondo a Mannoni. pp. 337-338 Si César, au moment de passer le Rubicon, ne fait pas un acte ridicule, c’est parce qu’il y a derrière lui tout le passé de César – l’adultère, la politique de la Méditerranée, les campagnes contre Pompée –, c’est à cause de ça qu’il peut faire quelque chose qui a une valeur strictement symbolique – car le Rubicon n’est pas plus large à traverser que ce qu’il y a entre mes jambes. Cet acte symbolique déchaîne une série de conséquences symboliques. p. 365 Se César, ao atravessar o Rubicão, não efetua um ato ridículo, é porque atrás dele há o passado todo de César – o adultério, a política do Mediterrâneo, as campanhas contra Pompeu –, é devido a isso que ele pode efetuar algo que tem um valor estritamente simbólico – pois o Rubicão não é mais largo para atravessar do que o que existe entre minhas pernas. Este ato simbólico desencadeia uma série de consequências simbólicas.

Les psychoses (1955-1956)5 As psicoses (1955-1956)6 p. 235 Le Dieu dont il s’agit mène incontestablement une politique absolument inadmissible, il y a là une sorte de politique de demimesure, c’est aussi une demi-taquinerie, il emploie le mot «perfidie», (…). p. 150 Esse Deus realiza uma política absolutamente inadmissível, de meias-medidas, meias-implicâncias, e Schreber deixa escapar a esse respeito a palavra perfídia, (…).

Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 125-157 maio 2011

5 Lacan, Jacques. Les Psychoses (1955-1956). Publication interne de l’Association Freudienne Internationale.

6 Lacan, Jacques. O seminário, livro 3: as psicoses. (1955-1956). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988.

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La relation d’objet (1956-1957)7 A relação de objeto (1956-1957)8 7 Lacan, Jacques. La Relation d’objet (1956-1957). Publication interne de l’Association Freudienne Internationale.

8 Lacan, Jacques. O seminário, livro 4: a relação de objeto. (1956-1957). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.

p. 151 Seulement, si on le fait ainsi, il y a un tas de choses qui seront inexplicables et qui ne sont expliquées que par ceci: c’est que dans tous les cas où le pouvoir politique, même dans les sociétés matriarcales, est androcentrique, il est représenté par des hommes et par des lignées masculines, et que telle ou telle anomalie très bizarre dans ces échanges, telle ou telle modification, exception, paradoxe qui apparaissent dans les lois de l’échange au niveau des structures élémentaires de la parenté, ne sont strictement explicables que par rapport et en référence à quelque chose qui est hors du jeu de la parenté, et qui est le contexte politique, c’est-à-dire l’ordre du pouvoir, et très précisément l’ordre du signifiant, l’ordre où sceptre et phallus se confondent. p. 195 Pode-se, sem dúvida, do ponto de vista da formalização, descrever as coisas exatamente da mesma maneira tomando um eixo de referência, um sistema de coordenadas simétrico fundado nas mulheres, mas então um bocado de coisas seria inexplicável, e em particular a seguinte. Em todos os casos, mesmo nas sociedades matriarcais, o poder político é androcêntrico. Ele é representado por homens e por linhagens masculinas. As anomalias muito bizarras nas trocas, as modificações, exceções, paradoxos, que aparecem nas leis da troca no nível das estruturas elementares do parentesco são explicáveis somente com relação a uma referência que está fora do jogo do parentesco e que se liga ao contexto político, isto é, à ordem do poder, e muito precisamente à ordem do significante, onde cetro e falo se confundem.

9 Lacan. Jacques. Les forma-

Les formations de l’inconscient (1957-1958)9 As formações do inconsciente (1957-1958)10

tions de l’ inconsciente (19571958). Paris: Seuil, 1998.

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Lacan, Jacques. O semi-

nário, livro 5: as formações do inconsciente. (1957-1958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.

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p. 56 Selon la définition qu’en donne Littré, familial se dit de ce qui se rapporte à la famille, au niveau, dit-il, de la science politique. Le mot familial est ainsi lié à un contexte où l’on dit par exemple allocations familiales. L’adjectif est donc venu au jour au moment où la famille a pu être abordée comme objet au niveau d’une réalité politique intéressante, c’est-à-dire pour autant qu’elle n’avait plus A palavra Política nos Seminários, Escritos e Outros Escritos de Jacques Lacan


pour le sujet la même fonction structurante qu’elle avait toujours eue jusque-là, étant partie intégrante des bases mêmes de son discours, sans que l’on songe même à l’isoler. p. 59 Segundo a definição dada pelo Littré, diz-se familial daquilo que se relaciona com a família, no nível, em suas palavras, da ciência política. A palavra familial está ligada, portanto, a um contexto onde se diz, por exemplo, salários-família [allocations familiales]. O adjetivo veio à luz, assim, no momento em que a família pode ser abordada como objeto no nível de uma realidade política interessante, isto é, “por ela já não ter para o sujeito a mesma função estruturante que tivera até então, sendo parte integrante das próprias bases de seu discurso, sem que sequer se pensasse em isolá-la”. p. 457 Nous voici le 18 juin. La part du signifiant dans la politique – du signifiant du non quand tout le monde glisse dans un consentement ignoble – n’a jamais été encore étudiée. Le 18 juin est aussi l’anniversaire de la fondation de la Société française de psychanalyse. Nous aussi, nous avons dit non à un moment. p. 468 Aqui estamos nós, em 18 de junho. O papel do significante na política – do significante do não, quando todo o mundo desliza para um consentimento ignóbil – nunca foi ainda estudado. O 18 de junho é também o aniversário da fundação da Sociedade Francesa de Psicanálise. Também nós dissemos não num certo momento. p. 463 On peut envisager que, dans une société déterminée, des hommes pleins de bienveillance s’emploient à l’organiser et à le faire fonctionner. On peut même dire que c’est un des idéaux de la politique moderne. Seulement, l’Autre n’est pas cela. L’Autre n’est pas purement et simplement le lieu de ce système parfaitement organisé, fixé. p. 475 Podemos conceber que, numa determinada sociedade, homens repletos de benevolência se dediquem a organizá-la e a fazê-la funcionar. Podemos até dizer que esse é um dos ideais da política moderna. Só que o Outro não é isso. O Outro não é, pura e simplesmente, o lugar desse sistema perfeitamente organizado, fixo.

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Le désir et son interpretation (1958-1959)11 O desejo e sua interpretação (1958-1959)12 11 Lacan, Jacques. Le desir et son interpretation (19581959). Publication interne de l’Association Freudienne Internationale.

12 Lacan, Jacques. O seminário, livro 6: o desejo e a sua interpretação. (1958-1959). Publicação não comercial. Circulação interna da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. 2002.

p. 329 Cette façon de faire le fou qui est un des enseignements, une des dimensions de ce que je pourrais appeler la politique du héros moderne, est quelque chose qui mérite de n’être pas négligé si nous pensons que c’est ce dont s’est saisi Shakespeare au moment où il veut faire la tragédie d’Hamlet. p. 336 Este modo de fazer o louco que é um dos ensinamentos, uma das dimensões do que eu poderia chamar de política do herói moderno, é alguma coisa que merece não ser negligenciada se pensarmos que é disto que Shakespeare se apoderou no momento em que ele quer fazer a tragédia de Hamlet.

L’éthique de la psychanalyse (1959-1960)13 A ética da psicanálise (1959-1960)14 13 Lacan, Jacques. L’ éthique de la psychanalyse (19591960). Publication interne de l’Association Freudienne Internationale.

14 Lacan, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. (1959-1960). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

p.33 L’établissement de l’êtos, de ce quelque chose qu’Aristote pose comme différenciant l’être vivant de l’être inanimé, inerte, (…), et cet étos, il s’agit de l’obtenir conforme à l’êtos, ce qui définit l’étos, quelque chose qui a rapport à sa conformité, à un ordre ou à un Bien qu’il faut bien rassembler dans la perspective logique qui est celle d’Aristote en un dernier terme, en un Souverain Bien qui est en quelque sorte le point d’insertion, d’attache, de convergence, de quelque chose où cet ordre particulier s’unifie dans une connaissance plus universelle, où l’éthique débouche dans une politique, au delà de cette politique dans une imitation d’un ordre cosmique. p. 33 O estabelecimento do ethos é feito como que diferenciando o ser vivo do ser inanimado, inerte. (…). E esse ethos, trata-se de obtê-lo conforme ao ethos, ou seja, a uma ordem que é preciso reunir, na perspectiva lógica que é a de Aristóteles, num Bem Supremo, ponto de inserção, de vínculo, de convergência, em que uma ordem particular se unifica num conhecimento mais universal, em que a ética desemboca numa política e, mais além, numa imitação da ordem cósmica.

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A palavra Política nos Seminários, Escritos e Outros Escritos de Jacques Lacan


p. 293 Pour les maîtres-sots, c’est une autre affaire et, à vrai dire, je voudrais là-dessus exprimer quelque chose destiné à une matière délicate comme celle où nous nous avançons de l’éthique qui de nos jours n’est point séparable de ce qu’on appelle une idéologie, et donner quelques précisions sur ce qu’on peut appeler le sens politique de ce tournant de l’éthique, pour autant qu’il s’agit de le cerner, de le désigner en tant que c’est celui dont nous sommes, nous, les héritiers de Freud, responsables. p. 218 Quanto aos bobos-ensinadores a história é outra. Na medida em que um assunto delicado como o da ética não é hoje absolutamente separável do que se chama de uma ideologia, parece-me oportuno dar algumas precisões sobre o sentido político dessa virada da ética da qual somos responsáveis, nós, os herdeiros de Freud. p. 349 Parlant de ces deux termes, et, je dirai, dans un certain registre, dans une certaine dimension, les renvoyant dos à dos, je pus paraître faire preuve de cette imprudence qui encourage un certain indifférentisme en matière de politique. (…) Cette remarque, encore qu’on ne m’en conteste pas à proprement parler la pertinence, a paru à certains dangereuse à souligner. Je suis surpris que pareille chose puisse être apportée, précisément dans la perspective, orientée politiquement, d’où elle m’a été amenée. (…) Mais enfin, c’est un fait, là je mets les points sur les i, si j’ai dit que Freud n’était pas progressiste, j’ai dit quelque chose qui n’était aucunement une imputation politique le concernant. J’ai dit qu’il ne participait pas en somme à une certaine orientation qu’on – peut qualifier de l’ordre de certains types de préjugés bourgeois. p. 249 Falando desses dois termos, e de um certo registro, colocandoos um contra o outro, pude parecer dar provas dessa imprudência que encoraja o indiferentismo em matéria de política. (…) Essa observação, embora não me fosse contestada sua pertinência propriamente dita, pareceu a alguns perigoso acentuá-la. Estou surpreso de que tal coisa tenha podido ser-me dita, e precisamente na perspectiva, orientada politicamente, de onde me foi trazida. (…) Mas, enfim, Freud não era progressista. Não era de modo alStylus Rio de Janeiro nº 22 p. 125-157 maio 2011

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gum uma imputação política que lhe dizia respeito – só que ele não participava de certos preconceitos burgueses. pp. 476-477 L’affaire n’est pas autrement facilitée du fait, comme on l’a dit un jour, que le bonheur est devenu un facteur de la politique. Je n’en dis pas plus long, mais c’est bien ce qui m’avait fait terminer la conférence, intitulée la Psychanalyse, dialectique, (…), par le propos suivant – Il ne saurait y avoir de satisfaction d’aucun hors de la satisfaction de tous. Mon propos, qui consistait à faire recentrer l’analyse sur la dialectique vient présentifier pour nous que le but apparaît indéfiniment reculé. Ce n’est pas la faute de l’analyse si la question du bonheur ne peut pas s’articuler autrement à l’heure actuelle. Je dirai que c’est dans la mesure où, comme le dit Saint-Just, le bonheur est devenu un facteur de la politique. C’est du fait de l’entrée du bonheur dans la politique que la question du bonheur n’a pas pour nous de solution aristotélicienne possible, et que l’étape préalable se situe au niveau de la satisfaction des besoins pour tous les hommes. (…). J’y insiste, pour des raisons historiques, qui tiennent au moment historique que nous vivons, et qui s’expriment dans la politique par la formule suivante – Il ne saurait y avoir de satisfaction d’aucun sans la satisfaction de tous. pp. 342-343 O assunto tampouco é explicado em razão de a felicidade ter-se tornado um fator da política. Só digo isso, mas é justamente o que me fizera terminar a conferência intitulada A psicanálise, dialética, (...), pela afirmação seguinte – Não poderia haver satisfação de ninguém fora da satisfação de todos. Recentrar a análise na dialética vem presentificar para nós que a meta aparece indefinidamente recuada. Não é culpa da análise se a questão da felicidade não pode articular-se de outra maneira atualmente. Direi que é na medida em que, como o diz Saint-Just, a felicidade tornou-se um fator de política. É pelo fato da entrada da felicidade na política que a questão da felicidade não apresenta, para nós, como possível a solução aristotélica, e que a etapa prévia se situa no nível da satisfação das necessidades para todos os homens. (...) insisto, por razões históricas, que provêm do momento histórico que vivemos, e que se expressa na política pela fórmula seguinte – não poderia haver a satisfação de ninguém se não houvesse a satisfação de todos.

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p. 493 Et c’est pourquoi j’ai rappelé la dernière fois que le service des biens a des exigences, que le passage de l’exigence du bonheur sur le plan politique a des conséquences, (…). p. 356 (...) e é por isso que relembrei, da última vez, que o serviço dos bens tem exigências, que a passagem da exigência de felicidade para o plano político tem consequências. p. 520 Dit, je veux simplement rappeler ici, selon la formule d’un des rares hommes politiques qui ait fonctionné à la tête de la France, j’ai nommé Mazarin: «La politique est la politique, mais l’amour reste l’amour». p. 379 Em outros termos, segundo a fórmula de um dos raros homens políticos que tenha funcionado na chefia da França, nomeei Mazarin, a política é a política, mas o amor permanece o amor.

Le transfert (1960-1961)15 A transferência (1960-1961)16 p. 144 Qu’est-ce que ça veut dire? Est-ce que la perte de l’indépendance politique a pour effet irrémédiable quelque décadence raciale, ou simplement la disparition de ce mystérieux éclat, cet /himeros enargès/ de ce brillant du désir dont nous parle Platon dans le Phèdre? p. 163 O que quer dizer isso? Será que a perda da independência política tem por efeito irremediável alguma decadência racial, ou simplesmente o desaparecimento desse brilho misterioso, desse imeros enargès, essa luminosidade do desejo de que Platão nos fala no Fedro?

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15 Lacan, Jacques. Le transfert (1960-1961). Publication interne de l’Association Freudienne Internationale.

16 Lacan, Jacques. O seminário, livro 8: a transferência. (1960-1961). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

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L’identification (1961-1962)17 A identificação (1961-1962)18 17

Lacan, Jacques.

L’ identification (1961-1962). Publication interne de l’Association Freudienne Internationale.

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Lacan, Jacques. O semi-

nário, livro 9: a identificação. (1961-1962). Publicação não comercial dos membros do

p. 126 C’est pourtant comme cela, pendant des siècles on a fait l’enseignement de la morale et de la politique sur des ritournelles qui signifiaient dans l’ensemble «je voudrais bien baiser avec toi». Je n’exagère rien, allez-y voir. p. 139 Entretanto, é assim; durante séculos ensinou-se a moral e a política com estribilhos que significam no conjunto “gostaria de trepar com você”. Não exagero nada, vocês vão ver.

Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2003.

L’Angoisse (1962-1963)19 A angústia (1962-1963)20 19 Lacan, Jacques. L’Angoisse (1962-1963). Publication interne de l’Association Freudienne Internationale.

20 Lacan, Jacques. O seminário, livro 10: a angústia. (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

p. 33 (…) si la formule hégélienne est partiale et fausse et met en porte-à-faux tout le départ de 1a Phénoménologie de l’esprit comme je l’ai plusieurs fois déjà indiqué en vous montrant 1a perversion qui résulte, et très loin et jusque dans le domaine politique, de ce départ trop étroitement centré sur l’imaginaire, car c’est très joli de dire que 1a servitude de l’esclave est grosse de conséquences et mène au Savoir Absolu mais ça veut dire aussi que l’esclave restera esclave jusqu’à la fin des temps. p. 34 (...) é aquilo que fornece a verdade da formulação hegeliana. Esta, com efeito, é parcial e falsa, e até desaprumada. Já lhes apontei várias vezes a perversão que resulta e que vai muito longe, inclusive no campo político, de todo esse ponto de partida da Fenomenologia do espírito que se centra com demasiada estreiteza no imaginário. É muito bonito dizer que a servidão do escravo é prenhe de todo o futuro e leva ao saber absoluto, mas, politicamente, isso significa que, até o fim dos tempos, o escravo permanecerá escravo. p. 184 Encore faut-il savoir bien sûr ce qu’on entend par lа. Je pense que pour ceux qui ont entendu plus précisément ce séminaire, la morale est а chercher du côté du réel et plus spécialement en politique. Ce n’est pas pour cela que ça doit vous inciter а lа chercher du côté du Marché Commun!

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A palavra Política nos Seminários, Escritos e Outros Escritos de Jacques Lacan


p. 164 Mas resta saber o que se entende por isso. Que a moral deve ser procurada do lado do real, sem dúvida, e mais especialmente na política, não equivale a incitá-los a procurá-la, no entanto, do lado do Mercado Comum.

Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse (1964)21 Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964)22 p. 13 Et l’échange dont il s’agit est l’échange des individus, de supports sociaux qui sont par ailleurs ce qu’on appelle des sujets, avec ce qu’ils comportent de droits – sacrés, dit-on – à l’autonomie. D’ailleurs chacun sait que la politique consiste à négocier, et cette fois-ci, à la grosse, par paquets, les mêmes sujets, dits «citoyens», par centaines de mille. p. 12 A troca de que se trata é a troca de indivíduos, isto é, de suportes sociais, que são ademais o que chamamos sujeitos, com o que eles comportem de direitos sagrados, diz-se, a autonomia. Todos sabem que a política consiste em negociar e, desta vez, por atacado, aos pacotes, os mesmos sujeitos, ditos cidadãos, por centenas de milhares.

21 Lacan, Jacques. Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse (1964). Publication interne de l’Association Freudienne Internationale.

22 Lacan, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988.

p. 245 Comme cette ‘aliénation’, mon Dieu, je ne veux pas dire qu’elle, elle ne circule pas, de nos jours, (quoi qu’on fasse, on est toujours un petit peu plus aliéné, que ce soit dans l’économique, le politique, le psychopathologique, l’esthétique et ainsi de suite...) ça ne serait peut-être pas une mauvaise chose de voir en quoi consiste la racine de cette fameuse aliénation. p. 199 Essa alienação, meu Deus, não se pode dizer que ela não circula hoje em dia. O que quer que se faça, sempre se está um pouquinho mais alienado, quer seja no econômico, no político, no psicopatológico, no estético e assim por diante. Não seria mau, talvez, ver no que consiste a raiz dessa famosa alienação.

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Les Problèmes Cruciaux pour La Psychanalyse (1964-1965)23 Os problemas cruciais para a psicanálise (1964-1965)24 23

Lacan, Jacques. Les

Problèmes Cruciaux pour La Psychanalyse (1964-1965). Publication interne de l’Association Freudienne

p. 450 A vous informer de ce qu’il en est de la psychanalyse en Amérique selon Monsieur Norman Zinberg, je vois cet intérêt, au moins, de donner l’occasion, à moi qui parle et aussi à certains de vous qui m’écoutez, de rappeler que, sur tous les fronts, des combats sont à mener, des combats aussi bien politiques que théoriques.

Internationale.

24 Lacan, Jacques. O seminário, livro 12: os problemas cruciais para a psicanálise. (1964-1965). Publicação não comercial dos membros do

p. 446 Informando a vocês a respeito do que é a psicanálise na América, segundo o Sr. Norman Zinberg, vejo esses interesses, ao menos, de dar a oportunidade, a mim que falo e também a alguns de vocês que me escutam, de lembrar que, em todas as frentes, combates são travados, combates tanto políticos como teóricos.

Centro de Estudos Freudianos do Recife. 2006.

L’objet de la psychanalyse (1965-1966)25 El objeto del psicoanálisis (1965-1966)26

25

p. 11-12 Je veux dire nommément: à la société de la double monarchie, pour les bornes judaïsantes où Freud reste confiné dans ses aversions spirituelles; à l’ordre capitaliste qui conditionne son agnosticisme politique (qui d’entre vous nous écrira un essai, digne de Lamennais, sur l’indifférence en matière de politique?).

Lacan, Jacques. L’objet

de la psychanalyse (19651966). Publication interne de l’Association Freudienne Internationale.

26 Lacan, Jacques. Seminario 13: El objeto del psicoanálisis (1965-1966). Tradução para o espanhol não mencionada. Inédito

p. 4 Quiero decir concretamente: en la sociedad de la doble monarquía, para los límites judaizantes donde Freud queda confinado en sus aversiones espirituales; con el orden capitalista que condiciona su agnosticismo político – ¿Quién de ustedes nos escribirá un ensayo, digno de Lamennais, sobre la indiferencia en materia de política? p. 60 Ils sont ou non invités pour des raisons qui sont les mêmes que celle que Platon définit à la fonction de politique, c’est-à-dire qui n’a rien à faire avec la politique mais de celle qui est bien plutôt

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A palavra Política nos Seminários, Escritos e Outros Escritos de Jacques Lacan


à considérer comme celle du tapissier. S’il me faut quelques fils d’une couleur et d’autres fils d’une autre couleur pour faire ce jour-là une certaine trame, laissez-moi choisir mes fils. p. 46 Están o no invitados por razones que son las mismas que las que Platón definió en la función de la política. Es decir que, no tiene nada que ver con la política, sino con aquello que más bien debe considerarse como la del tapicero. Si me hacen falta unos hilos de un color y otros hilos de otro color para hacer ese día una cierta trama, déjenme elegir mis hilos.

La logique du fantasme (1966-1967)27 A lógica do fantasma (1966-1967)28 p. 172 Ce que j’instaure, en somme, est une méthode sans laquelle on peut dire que tout ce qui, dans un certain champ, reste implicite concernant ce qui définit ces champs, à savoir la présence comme telle du sujet, eh bien, cette méthode que j’instaure, consiste, permet de parer si l’on peut dire, à tout ce que cette implication du sujet, dans ce champ, y introduit de fallace, de falsité à la base. C’est quelque chose dont en somme on s’aperçoit, (…), je dirai même plus: quelque chose dont je m’aperçois moi-même, après coup, que quelque jour il arrive que cette méthode, on s’en serve pour repenser les choses là où elles sont le plus intéressantes – sur le plan politique par exemple – pourquoi pas?

27 Lacan, Jacques. La logique du fantasme (19661967). Publication interne de l’Association Freudienne Internationale.

28 Lacan, Jacques. O seminário, livro 14: a lógica do fantasma. (1966-1967). Publicação não comercial dos membros do Centro de Estudos Freudianos do Recife. 2008.

p. 241 O que instauro, em resumo, é um método sem o qual, pode-se dizer, que tudo que, num certo campo, a saber, a presença, como tal do sujeito, pois bem, este método que instauro, consiste, permite ornar, se se pode dizer, tudo que esta implicação do sujeito, neste campo, aí introduz, na base, de falácia, de falsidade. É algo que, em suma, percebe-se, (...), (... direi mesmo mais algo que eu mesmo percebo só depois) que algum dia acontece que este método, a gente se serve dele para repensar as coisas onde elas são mais interessantes – no plano político, por exemplo – por que não? p. 208 Politique de la vérité et, pour tout dire: son complément, dans l’idée qu’en somme seul ce que j’ai appelé tout à l’heure “le nombre” – à savoir ce qui est réduit à n’être que le nombre, à savoir que ce Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 125-157 maio 2011

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qu’on appelle dans le contexte marxiste “la conscience de classe”, en tant qu’elle est la classe du nombre – ne saurait se tromper! p. 309 Política da verdade e, para falar francamente, seu complemento, na ideia que, em suma, somente o que chamei há pouco “o número” – ou seja, o que é reduzido a ser apenas o número, isto é, aquilo que se chama no contexto marxista “a consciência de classe”, na condição da classe do número – não poderia enganar-se! p. 236 Et nommément celle-ci, par exemple, qui nous montrerait – qui nous montrerait sans doute, mais ce n’est pas aujourd’hui que je ferai dans cette direction même les premiers pas – que si Freud a écrit quelque part que “l’anatomie c’est le destin”, il y a peut-être un moment où, quand on sera revenu à une saine perception de ce que Freud nous a découvert, on dira – je ne dis même pas “la politique c’est l’inconscient” – mais, tout simplement: l’inconscient c’est la politique! Je veux dire que ce qui lie les hommes entre eux, ce qui les oppose, est précisément à motiver de ce dont nous essayons pour l’instant d’articuler la logique. p. 350 E notadamente esta, por exemplo, que nos mostraria sem dúvida, mas não é hoje que darei nessa direção mesmo os primeiros passos – que se Freud escreveu em algum lugar que “a anatomia é o destino” há aí talvez um momento onde, quando se voltar a uma sã percepção do que Freud nos descobriu, se dirá não digo mesmo “política é o inconsciente”, mas simplesmente, o inconsciente é a política! Quero dizer que o que liga os homens entre eles, o que lhes opõe, é precisamente a motivação do que tentamos nesse instante articular na lógica. p. 239 Il n’est pas sans se payer d’un certain prix, et puisque, tout à l’heure, j’ai introduit la dimension politique – chose curieuse et tout à fait sensible: ce type philosophique s’exclut lui-même, comme il se voit non pas seulement aux anecdotes, mais à la position du personnage dans son tonneau – eût-il un visiteur comme Alexandre –, qui se paie d’une exclusion de la dimension de la cité.

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p. 353 É pagando certo preço, e desde que há pouco introduzi a dimensão política – coisa curiosa e totalmente sensível, esse tipo filosófico se exclui ele mesmo, como se vê não unicamente nas anedotas, mas na posição do personagem em seu tonel (mesmo com um visitante como Alexandre!), que se paga com uma exclusão da dimensão da cidade. p. 243 Lire, dans Freud, qu’il y a, dans le psychisme, des fonctions désexualisées, ça veut dire – dans Freud – qu’il faut chercher le sexe à leur origine. Ca ne veut pas dire qu’il y a ce qu’on appelle en tels lieux, pour des besoins politiques, la fameuse “sphère non conflictuelle”, par exemple: un moi plus ou moins fort, plus ou moins autonome, qui pourrait avoir une appréhension plus ou moins aseptique de la réalité. p. 358 Ler em Freud que há no psiquismo funções dessexualizadas, quer dizer, em Freud, que é necessário buscar o sexo em sua origem. Isso não quer dizer que exista o que se chama em tais lugares, por necessidades políticas, a famosa “esfera não conflituosa”, por exemplo: um ego mais ou menos forte, mais ou menos autônomo, que poderia ter uma apreensão mais ou menos acética da realidade!

L’acte psychanalytique (1967-1968)29 O ato psicanalítico (1967-1968)30 p. 52 Donc, il s’agit de l’aretè et d’une aretè qui au départ nous pose sa question dans un registre qui n’est pas du tout pour désorienter un analyste puisque aussi bien ce dont il s’agit c’est un premier modèle donné de ce que veut dire ce mot dans le texte socratique de la bonne administration politique, c’est-à-dire de la cité. p. 50 Portanto, trata-se de “aretè”, e de uma “aretè” que de saída nos coloca sua questão em um registro que não é de forma alguma para desorientar um analista, já que se trata de um primeiro modelo dado daquilo que significa esta palavra no texto socrático sobre a boa administração política, quer dizer, a cidade.

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29 Lacan, Jacques. L’acte psychanalytique (1967-1968). Publication interne de l’Association Freudienne Internationale.

30 Lacan, Jacques. O seminário, livro 15: o ato psicanalítico. (1967-1968). Publicação não comercial dos membros do Centro de Estudos Freudianos do Recife. 2008.

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p. 77 Vous sentez que quand nous allons maintenant nous engager dans cette voie, d’interroger d’une façon plus précise, (…), ce qu’il en est de l’acte psychanalytique, je veux tout de même un peu plus que je n’ai pu le faire dans ces premiers mots, pointer qu’à notre horizon, nous savons ce qu’il peut en être de tout acte, de cet acte dont j’ai montré tout à l’heure le caractère inaugural, et dont si l’on peut dire le type, est véhiculé pour nous à travers cette méditation vacillante qui se poursuit autour de la politique par l’acte dit du Rubicon, par exemple. p. 80 Vocês sentem que quando vamos, agora, nos engajar nessa via de interrogar, de um modo mais preciso, (...), em que consiste o ato psicanalítico, eu quero de algum modo apontar, um pouco mais do que pude fazer nessas primeiras palavras, que, em nosso horizonte, nós sabemos o que pode ser de todo o ato, deste ato do qual mostrei, há pouco, o caráter inaugural e cujo tipo, se podemos dizer, é veiculado para nós através dessa meditação vacilante que se persegue ao redor da política pelo ato dito do Rubicão, por exemplo. p. 104 C’est là qu’il nous faut nous apercevoir que cette méditation a débouché très spécialement sur quelque chose qui s’appelle l’acte politique et qu’assurément il n’est pas vain que ce qui s’est engendré non seulement de méditations politiques mais d’actes politiques, en quoi je ne distingue nullement la spéculation de Marx de la façon dont elle a été, à tel ou tel détour de la révolution, mise en acte – est-ce qu’il ne se peut pas que nous puissions situer toute une lignée de réflexions sur l’acte politique en tant qu’assurément ce sont des actes au sens où ces actes étaient un dire et précisément dire au nom d’un tel qui y ont apporté un certain nombre de changements décisifs. p. 107 É aí que é necessário perceber que esta meditação desembocou, muito especialmente, em algo que se chama o ato político e seguramente não foi em vão o que se engendrou, não somente de meditações políticas, mas de atos políticos, no que não distingo de modo algum a especulação de Marx da forma pela qual ela foi, a tal ou tal desvio da revolução, posta em ato. Não seria possível situarmos toda uma linhagem de reflexões sobre o ato político? – na medida em que seguramente são atos, no sentido em que esses atos eram um dizer, e precisamente dizer em nome de um fulano, e por isso trouxeram um certo número de modificações decisivas. 142

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p. 149 A savoir: rien de moins que le statut de désir dont le lien, pour être secret, avec la politique par exemple est tout à fait sensible dans le tournant qu’a constitué l’instauration dans une philosophie, la philosophie anglaise nommément, d’un certain nominalisme; il est impossible de comprendre la cohérence de cette logique avec une politique sans s’apercevoir que ce que la logique elle-même implique de statut du sujet et de référence à l’effectivité du désir dans le rapport politique. p. 133 A saber, nada menos que o estatuto de desejo do qual o liame, por ser secreto, com a política, por exemplo, é inteiramente perceptível na virada que constituiu a instauração na filosofia, especificamente a filosofia inglesa, de um certo nominalismo. É impossível compreender a coerência desta lógica com uma política, sem se dar conta do que a 1ógica, ela própria, implica de estatuto do sujeito e de referência à efetividade do desejo na relação política. p. 156 S’il est vrai que dans le champ de l’acte psychanalytique ce que produit le psychanalysant, c’est le psychanalyste, et si vous réfléchissez à cette petite référence que j’ai prise en passant autour de l’essence de la conscience universelle du travailleur, à proprement parler, en tant que sujet de l’exploitation de l’homme par l’homme, est-ce qu’à focaliser toute l’attention concernant l’exploitation économique sur l’aliénation du produit du travail, ce n’est pas là masquer quelque chose dans l’aliénation constituante de l’exploitation économique de l’homme, ce n’est pas là masquer une face, et peutêtre pas sans motivation, la face qui en serait la plus cruelle, et à laquelle peut-être un certain nombre de faits de la politique donnent vraisemblance? pp. 140-141 Se é verdade que no campo do ato psicanalítico o que produz o psicanalisando é o psicanalista, e se vocês refletem sobre esta pequena referência que tomei de passagem, em torno da essência da consciência universal do trabalhador, propriamente falando, enquanto sujeito da exploração do homem pelo homem, será que focalizar toda a atenção relativa à exploração econômica na alienação do produto do trabalho não significará mascarar algo aí, na alienação constituinte da exploração econômica do homem? Não será mascarar uma face, e talvez não sem motivo, a face mais cruel e à qual talvez um certo número de fatos da política deem verossimilhança? Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 125-157 maio 2011

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D’un Autre a L’autre (1968-1969)31 De um Outro ao outro (1968-1969)32 31 Lacan, Jacques. D’un l’Autre au l’autre (19681969). Publication interne de l’Association Freudienne Internationale.

32 Lacan, Jacques. O

p. 21 Mais là, nous voici au vif du sujet puisque, comme je l’ai fait remarquer la dernière fois, à cette référence exaltante – surtout pour ceux qui ignorent même ce que ça veut dire – à l’énergétique, j’ai substitué une référence que, par les temps qui courent, on aurait du mal à suggérer qu’elle est moins matérialiste, une référence à l’économie, à l’économie politique.

seminário, livro 16: de um Outro ao outro. (1968-1969). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

p. 32 Mas, neste ponto, eis-nos no xis da questão, já que, como assinalei da última vez, substituí essa referência exaltamente à energética – exaltante sobretudo para aqueles que ignoram até mesmo o que isto quer dizer – por uma referência à economia política, a qual teríamos dificuldade de sugerir, nos tempos atuais, que é menos materialista. p. 27 On nous envoie dans les orbes spatiales des objets tout à fait bien conformés autant qu’habitables, mais il n’est pas sûr qu’au niveau le plus proche, celui d’où s’est engendrée la révolution et les formes politiques qu’elle engendre, quelque chose soit entièrement résolu sur le plan de cette frustration que nous avons désignée être le niveau d’une vérité. C’est par rapport à lui, sous sa forme scientifique, que je viens prudemment d’apprécier ce qu’il en est dans des relations, dans les deux réalités qui s’opposent dans notre monde politique. pp. 38-39 (...) enviam-nos para as órbitas espaciais em objetos perfeitamente bem-conformados, assim como habitáveis. Em contrapartida, no nível mais próximo, aquele a partir do qual são geradas a revolução e as formas políticas que ela suscita, não é certo que haja alguma coisa inteiramente resolvida no plano dessa frustração ao que designamos como sendo o nível de uma verdade. É em relação ao saber, sob sua forma científica, que venho apreciar prudentemente o que se dá nas relações das duas realidades que se opõem em nosso mundo político. p. 266 S’il y a quelque chose qui sert dans le vocabulaire politique, et non sans raison au joint du pouvoir et du savoir, c’est celui de lancer en un point du monde auquel j’ai déjà fait tout à l’heure

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allusion avec le langage, celui de tigre de papier. p. 313 Se há uma expressão que serve, no vocabulário político, e não sem razão, para a articulação entre poder e saber, é aquela que foi lançada num ponto do mundo a que já aludi agora há pouco, a propósito da linguagem: o tigre de papel. p. 267 Seulement, si les politiques ont toutes les peines du monde à persuader les foules de mettre à leur place les tigres de papier, ici la fonction ou plus exactement l’indication à donner est exactement inverse, (...). p. 313 Só que, se os políticos têm todas as dificuldades do mundo para convencer as massas a porem em seu lugar os tigres de papel, a indicação a ser dada aqui é exatamente o inverso. (...) p. 319 Tâchez de ne pas perdre la corde sur ce qu’on est comme effet du savoir. On est éclaté dans le fantasme ($ ◊ a). On est, si étrange que cela paraisse, cause de soi. Seulement il n’y a pas de soi. Plutôt il y a un soi divisé. Entrer dans cette voie, voilà d’où peut découler la seule vraie révolution politique. Le savoir sert le maître. J’y reviens aujourd’hui pour souligner qu’il naît de l’esclave, le savoir. p. 377 Tratem de não perder o fio da meada concernente ao que somos como efeito do saber. Como efeito do saber, somos cindidos. Na fantasia, ($ ◊ a), S barrado, punção, pequeno a; somos, por mais estranho que isso pareça, causa de nós mesmos. Só que não existe o si mesmo. Há, antes, um “si” dividido. Entrar nesse caminho, é daí que pode decorrer a única verdadeira revolução política. O saber serve ao senhor. Volto a isso hoje para destacar que o saber nasce do escravo. p. 327 Je peux très bien dire un jour que toute personne pourra entrer dans telle salle pour une communication confidentielle sur le sujet des fonctions de la psychanalyse dans le registre politique, car on s’interroge là-dessus vous n’imaginez pas à quel point! C’est vrai dans le fond qu’il y a là une véritable question dont un jour, qui sait, les psychanalystes, voire l’Université, pourraient avoir avantage à prendre quelque idée! Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 125-157 maio 2011

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pp. 387-388 Um dia, posso muito bem dizer que toda pessoa que tiver esse papel poderá entrar na sala tal, para uma comunicação confidencial a respeito das funções da psicanálise no registro político. As pessoas se interrogam a esse respeito, vocês não imaginam a que ponto. No fundo, é fato que há aí uma verdadeira questão, sobre a qual um dia, quem sabe, os psicanalistas ou a Universidade se beneficiarão de ter uma ideia.

L’envers de la psychanalyse (1969-1970)33 O avesso da psicanálise (1969-1970)34 33 Lacan, Jacques. L’envers de la psychanalyse (19691970). Paris: Seuil, 1991.

34 Lacan, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

p. 34 Ce qui est bien fait pour montrer combien peu porte l’incidence des écoles, c’est que l’idée que le savoir puisse faire totalité est, si je puis dire, immanente au politique en tant que tel. On le sait depuis longtemps. L’idée imaginaire du tout telle qu’elle est donnée par le corps, comme s’appuyant sur la bonne forme de la satisfaction, sur ce qui, à la limite, fait sphère, a toujours été utilisée dans la politique, par le parti de la prêcherie politique. p. 29 O que serve bem para mostrar o quão pouco pesa a incidência das escolas é o fato de que a ideia de que o saber possa constituir uma totalidade e, por assim dizer, imanente ao político como tal. Sabe-se disso há muito tempo. A ideia imaginária do todo tal como é dada pelo corpo – como baseada na boa forma da satisfação, naquilo que, indo aos extremos, faz esfera –, foi sempre utilizada na política, pelo partido da pregação política. p. 84 A moins de le définir d’une façon assez triste, à savoir que c’est d’être comme tout le monde, ce à quoi pourrait bien se résoudre l’autonomous Ego — le bonheur, il faut bien le dire, personne ne sait ce que c’est. Si nous en croyons Saint-Just qui l’a dit lui-même, le bonheur est devenu depuis cette époque, la sienne, un facteur de la politique. p. 69 A felicidade, a menos que seja definida de modo bastante triste, ou seja, ser como todo mundo – ao que bem se poderia reduzir o autonomous Ego –, a felicidade, é preciso dizê-lo, ninguém sabe o

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que é. Se acreditarmos em Saint-Just, que o disse ele próprio, a felicidade se tornou desde essa época – a sua – um fator da política. p. 90 Ces rappels sont tout à fait essentiels à faire au moment où, à parler de l’envers de la psychanalyse, la question se pose de la place de la psychanalyse dans le politique. L’intrusion dans le politique ne peut se faire qu’à reconnaître qu’il n’y a de discours, et pas seulement l’analytique, tout au moins quand on en espère le travail de la vérité. p. 74 É essencial fazer estes lembretes no momento em que, falando do avesso da psicanálise, coloca-se a questão do lugar da psicanálise na política. A intrusão na política só pode ser feita reconhecendo-se que não há discurso – e não apenas o analítico – que não seja do gozo, pelo menos quando dele se espera o trabalho da verdade. p. 100 Je ne le fais pas de façon arbitraire, ce discours du maître ayant déjà ses lettres de crédit dans la tradition philosophique. Néanmoins, tel que j’essaie de le dégager, il prend ici un accent nouveau du fait qu’à notre époque, il arrive à pouvoir être dégagé dans une sorte de pureté – et ce, par quelque chose que nous éprouvons directement, et au niveau de la politique. p. 81 Não o faço de maneira arbitrária, pois esse discurso do mestre já tem seus créditos na tradição filosófica. No entanto, tal como o tento depreender, ele adquire aqui uma nova relevância pelo fato de poder, em nossa época, ser depreendido em uma espécie de pureza – e isto por algo que experimentamos diretamente, no plano da política. p. 217 C’est ici qu’a lieu l’incidence politique. Il s’y agit en acte de cette question – de quel savoir on fait la loi? Quand on le découvre, il peut se faire que ça change. Le savoir tombe au rang de symptôme, vu d’un autre regard. Et là, vient la vérité. p. 178 É aqui que tem lugar a incidência política. Trata-se em ato desta pergunta – de que saber se faz a lei? Quando se descobre isso, pode ser que mude. O saber cai na categoria de sintoma, visto com outro olhar. E ali, vem a verdade. Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 125-157 maio 2011

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D’un discours qui ne serait pas du semblant (1971)35 De um discurso que não fosse semblante (1971)36 35 Lacan, Jacques. D’un discours qui ne serait pas du semblant (1971). Publication interne de l’Association Freudienne Internationale.

36 Lacan, Jacques. O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante (1971). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

p. 111 Que le symptôme institue l’ordre dont s’avère notre politique, c’est là le pas qu’elle a franchi, implique d’autre part que tout ce qui s’articule de cet ordre soit passible d’interprétation. C’est pourquoi on a bien raison de mettre la psychanalyse au chef de la politique. Et ceci pourrait n’être pas de tout repos, pour ce qui de la politique a fait figure jusqu’ici, si la psychanalyse s’avérait plus avertie. p. 115 O fato de o sintoma instituir a ordem pela qual se confirma nossa política – foi esse o passo que ela deu – implica, por outro lado, que tudo o que se articula dessa ordem é passível de interpretação. Por isso é que tem toda razão quem põe a psicanálise à frente da política. E poderia não ser nada fácil, para o que da política fez boa figura até aqui, se a psicanálise se revelasse mais esperta. p. 129 (…) et comme elle ne peut s’y [phallus] intéresser que par rapport à l’homme, en tant qu’il n’est pas sûr qu’il y en ait même un, toute sa politique sera tournée vers ce que j’appelle en avoir au moins un. p.134 E, como a histérica só pode interessar-se por ele [falo] em relação ao homem, posto não ser certo que haja mesmo um, toda a sua política se voltará para o que chamo de ter ao menos um. p. 148 Il apparaît que, loin que le discours capitaliste se porte plus mal de cette reconnaissance comme telle de la fonction de la plus-value, il n’en subsiste pas moins puisque aussi bien un capitalisme repris dans un discours du maître est bien ce qui semble distinguer les suites politiques qui ont résulté sous forme d’une révolution politique, qui ont résulté de la dénonciation marxiste de ce qu’il en est d’un certain discours du semblant. p. 154 Longe de o discurso capitalista se sair pior por esse reconhecimen-

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to como tal da função da mais-valia, parece que nem por isso ele deixa de subsistir, já que, aliás, um capitalismo retomado num discurso do mestre é justamente o que parece distinguir as consequências que resultaram, sob a forma de uma revolução política, da denúncia marxista do que se passa com um certo discurso do semblante.

Ou pire (1971-1972)37 Ou pior (1971-1972)38 p. 25 Vous, vous ne vous prosternez pas, vous êtes des électeurs conscients et organisés, vous ne votez pas pour des cons, c’est ce qui vous perd. Un heureux système politique devrait permettre à la connerie d’avoir sa place et d’ailleurs les choses ne vont bien que quand c’est la connerie qui domine.

37 Lacan, Jacques. Ou pire (1971-1972). Publication interne de l’Association Freudienne Internationale.

38

Lacan, Jacques. O

seminário, livro 19: ou pior.

p. 23 Vocês não se prosternam. Vocês são eleitores conscientes e organizados. Vocês não votam em imbecis. É o que os põe a perder. Um feliz sistema político deve permitir à imbecilidade ter seu lugar. E, aliás, as coisas não vão bem senão quando é a imbecilidade que domina.

Salvador: Publicação não comercial dos membros do Espaço Moebius, 2003.

p. 106 Ce que nous gagnons sur le plan scientifique qui est incontestable, n’accroît absolument pas pour autant par exemple notre sens critique en matière de ... en matière de vie politique par exemple. p. 102 O que ganhamos no plano científico, que é incontestável, não acrescenta contudo absolutamente nada, por exemplo, a nosso senso crítico em matéria de... de vida política por exemplo.

Encore (1972-1973)39 Mais, ainda (1972-1973)40

39 Lacan, Jacques. Encore (1972-1973). Paris: Seuil,

p. 70 Moi, je n’emploie pas le mot mystique comme l’employait Péguy. La mystique, ce n’est pas tout ce qui n’est pas la politique.

1975.

40

Lacan, Jacques. O semi-

nário, livro 20: mais, ainda. (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

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p. 102 Eu não emprego o termo mística como o empregava Péguy. A mística, não é de modo algum tudo aquilo que não é a política. p. 79 J’ai fait alors une allusion à l’amour courtois, qui apparaît au point où l’âmusement hommosexuel était tombé dans la suprême décadence, dans cette espèce de mauvais rêve impossible dit de la féodalité. A ce niveau, de dégénérescence politique, il devait devenir perceptible que du côté dé la femme, il y avait quelque chose qui ne pouvait plus du tout marcher. p. 115 Fiz então uma alusão ao amor cortês, que aparece no ponto em que o divertialmento homossexual havia caído na suprema decadência, nessa espécie de mau sonho impossível dito da feudalidade. A este nível de degenerescência política, devia tornar-se perceptível que, do lado da mulher, havia alguma coisa que não podia mais de modo algum funcionar. p. 89 Du savoir d’un Marx dans la politique – qui n’est pas rien – on ne fait pas commarxe, si vous me permettez. Pas plus qu’on ne peut, de celui de Freud, faire fraude. p. 131 Do saber de um Marx em política – o que não é um nada – não se faz comárxio, se vocês me permitem. Não mais do que não se pode, do saber de Freud, fazer fraude.

Les non-dupes errent (1973-1974)41 Los incautos no yerran (1973-1974)42 41 Lacan, Jacques. Le non-dupes errent (19731974). Publication interne de l’Association Freudienne Internationale.

42

p. 97 Est-ce que, dans d’autres termes, nous sommes obligés d’en tenir compte quand ce à quoi, dans le politique, ce à quoi nous avons affaire, c’est à un type d’informations dont le sens n’a d’autre portée que l’impératif, à savoir le signifiant Un.

Lacan, Jacques. Semina-

rio 21: Los incautos no yerran (1973-1974). Tradução para o espanhol não mencionada. Inédito.

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p. 59 En otras palabras, ¿acaso estamos obligados a tenerlo en cuenta cuando aquello que enfrentamos en lo político es un tipo de informaciones cuyo sentido no tiene otro alcance que el imperativo, a saber, el significante Uno? A palavra Política nos Seminários, Escritos e Outros Escritos de Jacques Lacan


p. 211 À ce moment, je n’avais d’aucune façon élaboré le discours comme tel; la notion, la fonction de discours ne devait venir que plus tard, c’est pour autant que ce discours est où se situe un lien social et donc, il faut le dire, politique, c’est autant que ce discours le situe, que j’ai parlé de discours. p. 130 En ese momento de ninguna manera había elaborado yo el discurso como tal: la noción, la función de discurso sólo llegaría después. Fue en la medida en que ese discurso esta allí donde si sitúa un vinculo social – y por lo tanto, hay que decirlo, político –, fue en la medida en que ese discurso lo sitúa, que hable de discurso. p. 213 Nous agissons aussi pour en sortir, de cette souffrance, et à l’occasion, nous nous y mettons à beaucoup; il s’agit de savoir ce que sont deux personnes, comme on dit, c’est-à-dire deux animaux situés d’une organisation politique très spécifiée parce que j’ai appelé un discours, il s’agit de savoir ce qu’est le dire d’un échange ritualisé de paroles, et ce qu’on appelle, ce qui est supposé être en jeu dans cet exercice, à savoir l’inconscient. p. 131 Actuamos también para salir de el de ese sufrimiento, y llegado el caso nos metemos en el con todo; se trata de saber qué son dos personas, como se dice, o sea dos animales situados por una organización política muy especificada por lo que he llamado un discurso, se trata de saber que es el decir de un intercambio ritualizado de palabras, y lo que llaman, lo que se supone está en Juego en este ejercicio, es decir, el inconsciente.

RSI (1974-1975)43 RSI (1974-1975)44 p. 171 Je ne sais pas si vous remarquez que la police dont Hegel pose fort bien que tout ce qui est de la politique s’y enracine et qu’il n’y a rien de la politique, qui ne soit enfin au dernier terme de réduction, police pure et simple, que la police n’a que ce mot à la bouche: «Circulez!».

43 Lacan, Jacques. RSI (1974-1975). Publication interne de l’Association Freudienne Internationale.

44 Lacan, Jacques. O seminário, livro 22: RSI (1974-1975). Versão anônima. Inédito.

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p. 66 Não sei se observam que a polícia – onde, segundo Hegel, se enraíza tudo que é da política, que não há nada na política que não se reduza ao termo de polícia pura e simplesmente – não tem outra palavra na boca senão: “Circulem!”.

Le sinthome (1975-1976)45 O sinthoma (1975-1976)46 45 Lacan, Jacques. Le sinthome (1975-1976). Publication interne de l’Association Freudienne Internationale.

46 Lacan, Jacques. O seminário, livro 23: o sinthoma. (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

p. 8 Et contrairement à ce qu’il pourrait en apparaître, à première vue, à savoir son détachement de la politique, produit, à proprement parler, ce que j’appellerai le sin t-home Rule. p. 15 Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, o distanciamento de Joyce quanto à política produz o que chamarei de sint’ home rule.

Écrits46 Escritos47 46

Lacan, Jacques. Écrits.

Paris: Seuil, 1966.

47 Lacan, Jacques. Escritos. (1966). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

p. 199 – Le temps logique et l’assertion de certitude anticipée – 1945 Nous nous mettons maintenant sous les auspices de celui qui parfois se présente sous l’habit du philosophe, qu’il faut plus souvent chercher ambigu dans les propos de l’humoriste, mais qu’on rencontre toujours au secret de l’action du politique: le bon logicien, odieux au monde. p. 199 – O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada – 1945 Colocamo-nos agora sob os auspícios daquele que às vezes se apresenta sob a roupagem do filósofo, que com mais frequência há que ser buscado, ambíguo, nos ditos do humorista, mas que é sempre encontrado no segredo da ação do político: o bom lógico, odioso ao mundo. p. 128 – Introduction théorique aux fonctions de la psychanalyse en criminologie – 1950 Ainsi Socrate, non sans lui faire apercevoir la dialectique, sans fond comme le tonneau des Danaïdes, des passions de la puissance, ni lui épargner de reconnaître la loi de son propre être politique

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dans l’injustice de la Cité, vient-il à l’incliner devant les mythes éternels où s’exprime le sens du châtiment, d’amendement pour l’individu et d’exemple pour le groupe, cependant que lui-même, au nom du même universel, accepte son destin propre et se soumet d’avance au verdict insensé de la Cité qui le fait homme. p.130 – Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia – 1950 Assim, Sócrates, não sem fazê-lo aperceber-se da dialética, tão sem fundo quanto o tonel das Danaides, das paixões do poder, nem poupá-lo de reconhecer a lei de seu próprio ser político na injustiça da pólis, acaba por incliná-lo ante os mitos eternos em que se exprime o sentido do castigo, da emenda para o indivíduo e do exemplo para o grupo, muito embora ele próprio, em nome do mesmo universal, aceite o destino que lhe cabe e se submeta de antemão ao veredito insensato da pólis que o fez homem. p. 145 – Introduction théorique aux fonctions de la psychanalyse en criminologie – 1950 Une séparation complète, par exemple, entre le groupe vital constitué par le sujet et les siens, et le groupe fonctionnel où doivent être trouvés les moyens de subsistance du premier, fait qu’on illustre assez en disant qu’il rend M. Verdoux vraisemblable, – (…) – une implication croissante des passions fondamentales de la puissance, de la possession et du prestige dans les idéaux sociaux, sont autant d’objets d’études pour lesquelles la théorie analytique peut offrir au statisticien des coordonnées correctes pour y introduire ses mesures. Ainsi le politique même et le philosophe y trouveront-ils leur bien. p. 147 – Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia – 1950 Uma separação completa, por exemplo, entre o grupo vital, constituído pelo sujeito e pelos seus, e o grupo funcional, em que devem ser encontrados os meios de subsistência do primeiro, falo que basta ilustrar dizendo que ele torna verossímil o sr. Verdoux – uma anarquia tão maior das imagens do desejo quanto mais elas parecem gravitar progressivamente em torno de satisfações escopofílicas, homogeneizadas na massa social, e uma implicação crescente das paixões fundamentais pelo poder, pela posse e pelo prestígio nos ideais sociais, são outros tantos objetos de estudos para os quais a teoria analítica pode oferecer ao estatístico coordenadas corretas para introduzir suas mensurações. Assim, o próprio político e o filósofo se beneficiarão disso (...).

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p. 375 – Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse – 1953 Si donc vous y portez la guerre, sachez au moins ses principes et qu’on méconnaît ses limites à ne pas la comprendre avec un Clausewitz comme un cas particulier du commerce humain. On sait que c’est à en reconnaître, sous le nom de guerre totale, la dialectique interne, que celui-ci est venu à formuler qu’elle commande d’être considérée comme le prolongement des moyens de la politique. p. 376 – Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise – 1953 Logo, se vocês levarem para aí a guerra, conheçam pelo menos seus princípios, e saibam que seus limites são desconhecidos quando ela não é compreendida, seguindo um Clausewitz, como um caso particular do comércio humano. Sabemos que foi ao reconhecer, sob o nome de guerra total, sua dialética interna, que este veio a formular que ela exige ser considerada como o prolongamento dos meios da política. p. 15 – Le séminaire sur «la Lettre volée» – 1955 Pour faire saisir dans son unité le complexe intersubjectif ainsi décrit, nous lui chercherions volontiers patronage dans la technique légendairement attribuée à l’autruche pour se mettre à l’abri des dangers; car celle-ci mériterait enfin d’être qualifiée de politique, à se répartir ici entre trois partenaires, dont le second se croirait revêtu d’invisibilité, du fait que le premier aurait sa tête enfoncée dans le sable, cependant qu’il laisserait un troisième lui plumer tranquillement le derrière; il suffirait qu’enrichissant d’une lettre sa dénomination proverbiale, nous en fassions la politique de l’autruche, pour qu’en elle-même enfin elle trouve un nouveau sens pour toujours. p. 17 – Seminário sobre “a carta roubada” – 1955 Para fazer apreender em sua unidade o complexo intersubjetivo assim descrito, buscaríamos de bom grado seu padrão na técnica lendariamente atribuída ao avestruz para se proteger dos perigos; pois esta mereceria afinal ser qualificada de política, ao se repartir aqui entre três parceiros, dos quais o segundo se acreditaria revestido de invisibilidade, pelo fato de o primeiro ter a sua cabeça enfiada na areia, enquanto, nesse meio-tempo, deixaria um terceiro depenar-lhe tranquilamente o traseiro; bastaria que, enriquecendo com uma letra sua proverbial denominação, fizéssemos dela a política do autruiche, para que em si mesma ela encontrasse para sempre um novo sentido. 154

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p. 482 – Situation de la psychanalyse et formation du psychanalyste en 1956 – 1956 2. Qu’une politique de silence tenace devant trouver sa voie vers la Béatitude, l’analphabétisme en son état congénital n’est pas sans espoir d’y réussir. p. 485 – Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956 – 1956 2. O que de, devendo uma política do silêncio tenaz encontrar sua via para a Beatitude, o analfabetismo em seu estado congênito não fica sem esperança de ter sucesso. p. 589 – La direction de la cure et les principes de son pouvoir – 1958 Allons plus loin. L’analyste est moins libre encore en ce qui domine stratégie et tactique: à savoir, sa politique, où il ferait mieux de se repérer sur son manque à être que sur son être. p. 596 – A direção do tratamento e os princípios de seu poder – 1958 Vamos adiante. O analista é ainda menos livre naquilo que domina a estratégia e a tática, ou seja, em sua política, onde ele faria melhor situando-se em sua falta-a-ser do que em seu ser. p. 614 – La direction de la cure et les principes de son pouvoir – 1958 Il est de fait que nous ne nous récusons pas à promettre le bonheur, en une époque où la question de sa mesure s’est compliquée au premier chef en ceci que le bonheur, comme l’a dit Saint-Just, est devenu un facteur de la politique. pp. 620-621 – A direção do tratamento e os princípios de seu poder – 1958 É fato que não nos recusamos a prometer a felicidade, numa época em que a questão de sua medida se complicou: antes de mais nada porque a felicidade, como disse Saint-Just, tornou-se um fator da política. p. 619 – La direction de la cure et les principes de son pouvoir – 1958 Qui ne souligne au reste l’importance de ce qu’on pourrait appeler l’hypothèse permissive de l’analyse? Mais il n’est pas besoin d’un régime politique particulier pour que ce qui n’est pas interdit, devienne obligatoire.

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p. 625 – A direção do tratamento e os princípios de seu poder – 1958 Quem não frisa, além do mais, a importância do que se poderia chamar de hipótese permissiva da análise? Mas não é preciso um regime político particular para que o que não é proibido se torne obrigatório. p. 572 – D’une question préliminaire à tout traitement possible de la psychose – 1959 Nous avons dans notre séminaire montré que la succession symbolique des royaumes antérieurs, puis des royaumes postérieurs de Dieu, l’inférieur et le supérieur, Ahriman et Ormuzd, et les tournants de leur «politique» (mot de la langue de fond) à l’endroit du sujet, donnent justement ces réponses aux différentes étapes de la dissolution imaginaire, que les souvenirs du malade et les certificats médicaux connotent d’ailleurs suffisamment, pour y restituer un ordre du sujet. p. 579 – De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose – 1959 Mostramos em nosso seminário que a sucessão simbólica dos reinos anteriores e, depois, dos reinos posteriores de Deus, o inferior e o superior, Ariman e Ormuzd, bem como as mudanças de sua “política” (termo da língua fundamental) em relação ao sujeito, fornecem justamente essas respostas às diferentes etapas da dissolução imaginária, que as lembranças do doente e os atestados médicos, aliás, conotam suficientemente, por restabelecer ali uma ordem do sujeito. p. 684 – Remarque sur le rapport de Daniel Lagache: «Psichanalyse et structure de la personnalité» – 1960 Mais théoriquement est-ce bien le dégagement du Moi qu’on peut lui donner pour but? Et qu’en attendre, si ses possibilités, pour nous servir du terme de Daniel Lagache, n’offrent en vérité au sujet que l’issue trop indéterminée qui l’écarte d’une voie trop ardue, celle dont on peut penser que le secret politique des moralistes a toujours été d’inciter le sujet à dégager en effet quelque chose: son épingle au jeu du désir? L’humanisme à ce jeu n’est plus qu’une profession dilettante. p. 691 – Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: “Psicanálise e estrutura da personalidade” – 1960 Mas, teoricamente, será mesmo o desprendimento do Eu que se pode dar-lhe como objetivo? E que esperar disso, se suas possibilidades, para nos servirmos do termo de Daniel Lagache, na 156

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verdade só oferecem ao sujeito a indeterminadíssima saída que o afasta de um caminho árduo demais, aquele do qual se pode pensar que o segredo político dos moralistas sempre consistiu em incitar o sujeito a tirar alguma coisa, com efeito: seu corpo fora do jogo do desejo? O humanismo, nesse jogo, nada mais é que uma profissão diletante. p. 811 – Subversion du sujet et dialectique du désir dans l’ inconscient freudien – 1960 Le travail, nous dit-il, auquel s’est soumis l’esclave en renonçant à la jouissance par crainte de la mort, sera justement la voie par où il réalisera la liberté. Il n’y a pas de leurre plus manifeste politiquement, et du même coup psychologiquement. La jouissance est facile à l’esclave et elle laissera le travail serf. p. 825 – Subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano – 1960 O trabalho, diz-nos ele, a que se submete o escravo, renunciando ao gozo por medo da morte, será justamente a vida pela qual ele realizará a liberdade. Não há engodo mais manifesto politicamente e, ao mesmo tempo, psicologicamente. O gozo é fácil para o escravo e deixará o trabalho na servidão. p. 812 – Subversion du sujet et dialectique du désir dans l’ inconscient freudien – 1960 (…) les besoins se sont diversifiés et démultipliés au point que la portée en apparaît d’un tout autre ordre, qu’on la rapporte au sujet ou à la politique? Pour le dire: au point que ces besoins soient passés au registre du désir, avec tout ce qu’il nous impose de confronter à notre nouvelle expérience, (…). p. 826 – Subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano – 1960 (...) as necessidades se diversificaram e desdobraram a tal ponto que seu alcance se afigura de ordem totalmente diversa, quer seja relacionado com o sujeito ou com a política? Explicitando: a tal ponto que essas necessidades passaram para o registro do desejo, com tudo o que ele nos impõe por confrontar nossa nova experiência, (...). p. 834 – Position de l’inconscient – 1964 Ce ménagement n’est pas politique, mais technique. Il relève de la condition suivante, établie par notre doctrine: les psychanalystes font partie du concept de l’inconscient, puisqu’ils en constituent l’adresse. Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 125-157 maio 2011

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p. 848 – Posição do inconsciente – 1964 Esta precaução não é política, mas técnica. Decorre da seguinte condição, estabelecida por nossa doutrina: os psicanalistas fazem parte do conceito do inconsciente, posto que constituem seu destinatário. p. 858 – La science et la verité – 1966 (…) à la société de la double monarchie, pour les bornes judaïsantes où Freud reste confiné dans ses aversions spirituelles; à l’ordre capitaliste qui conditionne son agnosticisme politique (qui d’entre vous nous écrira un essai, digne de Lamennais, sur l’indifférence en matière de politique?); p. 872 – A ciência e a verdade – 1966 Refiro-me, nomeadamente: à sociedade da monarquia dupla, no que tange aos limites judaizantes em que Freud ficou confinado em suas aversões espirituais; à ordem capitalista que condicionou seu agnosticismo político (quem dentre vocês nos escreverá um ensaio, digno de Lamennais, sobre a indiferença em matéria de política?); p. 869 – La science et la verité – 1966 (…), pourquoi d’en faire la théorie accroîtrait-il sa puissance ? Répondre par la conscience prolétarienne et par l’action du politique marxiste, ne nous paraît pas suffisant. p. 884 – A ciência e a verdade – 1966 (...), por que seu poder aumentaria ao ser feita sua teoria? Responder com a consciência proletária e com a ação do político marxista não nos parece suficiente. p. 69 – De nos antécédents – 1966 Si Freud rappelle le rapport du moi au système perceptionconscience, c’est seulement à indiquer que notre tradition, réflexive, dont on aurait tort de croire qu’elle n’ait pas eu des incidences sociales de ce qu’elle ait donné appui à des formes politiques du statut personnel, a éprouvé dans ce système ses étalons de vérité. p. 73 – De nossos antecendentes – 1966 Se Freud recorda a relação do eu com o sistema percepção-consciência, é apenas para indicar que nossa tradição, reflexiva – que erraríamos em crer que não teve incidências sociais por ter dado apoio a formas políticas do estatuto pessoal – testou nesse sistema seus padrões de verdade.

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Autres écrits48 Outros Escritos49 p. 189 – Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse: résumé du Séminaire de 1964 C’est pourquoi notre dernier temps est revenu à un fondement de grande logique, en remettant en cause sur la base de ce lieu du Grand Autre, promu par nous comme constituant du sujet, la notion, avilie par l’à-vau-l’eau de la critique politique, de l’aliénation.

48 Lacan Jacques. Autres écrits. Paris: Éditions du Seuil, 2001.

49 Lacan, Jacques. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

p. 197 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: resumo do Seminário de 1964 Foi por isso que nosso último tempo voltou a um fundamento de grande lógica, recolocando em questão, com base no lugar do Grande Outro, promovido por nós como constitutivo do sujeito, a ideia, aviltada pelo malogro da crítica política, de alienação. p. 443 – Radiofonie – 1970 C’est à ce joint au réel, que se trouve l’incidence politique où le psychanalyste aurait place s’il en était capable. p. 443 – Radiofonia – 1970 É nessa articulação com o real que se encontra a incidência política em que o psicanalista teria lugar, se fosse capaz de fazê-la.

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Psicanálise, linguística, linguisteria Ida Freitas Resenha do livro de Sônia Borges: Psicanálise, linguística, linguisteria. São Paulo: Editora Escuta, 2010 Para desenvolver seu pensamento acerca da escrita, Sônia Borges toma como eixo principal o conceito de representação, suas transformações e deslocamentos e seu uso nos campos da filosofia, da psicanálise, da linguística, da educação e da literatura. Dividido em quatro partes, cada uma delas subdividida em três a cinco seções, ao longo de 279 páginas a autora reúne trabalhos que se referem à sua pesquisa teórica e prática durante um percurso de 15 anos, em torno do tema da escrita. O texto traz, por exemplo, relatos e resultados de uma experiência singular em alfabetização com crianças em escola pública, ou em uma oficina de escrita do Centro de Atendimento Diário do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na primeira parte do livro Psicanálise, Linguística e Escrita, Sônia Borges estabelece uma comunicação especialmente entre as ideias de Derrida, recorrendo ao seu livro Gramatologia, de Saussure, por meio do Curso de linguística geral, texto que o próprio Derrida comenta, e de Freud e Lacan, em diversos momentos de suas obras. Por meio da interlocução entre essas ideias, a autora pretende discutir criticamente as relações entre oralidade e escrita. Assim, demonstra que na filosofia clássica as concepções sobre a escrita se desenvolveram sob uma concepção binária do signo, na qual coisa e palavra estabelecem uma relação direta de representação, o que acaba por depreciar a escrita em detrimento da fala na medida em que a escrita, dentro dessa concepção, se reduz a mera representação gráfica da linguagem oral. Destaca a originalidade do pensamento freudiano com relação à representação, responsável pela ruptura com a tradição teórica do Ocidente, uma vez que implica a dissolução das dicotomias sujeito/ objeto e interioridade/exterioridade. Ressalta Lacan no Seminário VII, quando ele afirma que se a representação para Freud não resulta de uma relação entre o sujeito e a coisa, mas de uma relação entre representações, desloca-se do sentido psicológico das representações para o lógico. Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 161-163 maio 2011

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São inúmeras as referências aos textos freudianos, até os mais iniciais de sua obra como As afasias, de 1891, nos quais a autora localiza o dedo de Freud apontando para a estrutura significante das representações, mas é na Interpretação dos sonhos e na Carta 52, elaborações logicamente relidas por Lacan, que Sônia Borges destaca o olhar freudiano para a textura de uma escrita relativa às formações do inconsciente. Em Escritas de criança, segunda parte do livro, fica evidente o entusiasmo da autora em sua aposta de que a aquisição da linguagem escrita pode ser equivalente à entrada de um sujeito na linguagem, se a ele é ofertado um universo significante de leitura e a possibilidade de experimentar a escrita sem as exigências de uma normatividade a priori. Desta forma, Borges defende a ideia de que o acesso da criança à escrita implica que ela transite pela representação; passeie pelas representações do Outro, isto é, pelas representações sobre a língua escrita que antecedem a sua, na ordem discursiva em que está inserida. Em última instância, o que a autora pretende demonstrar é que a alfabetização é um fato de linguagem e que a grande maioria das práticas pedagógicas não prioriza esse fato fundamental. O destaque para a parte três, Linguisteria, está na seção de A a Z, a escrita de um delírio, na qual Sônia Borges extrai de outra rica experiência, agora no campo da psicose, elementos para fundamentar a ideia da escrita como estruturante, como auxiliar para a construção da “metáfora delirante”, apoiando-se na perspectiva lacaniana do delírio como uma construção do sujeito impregnada do gozo do Outro, mas que vem conferir uma significação que pode fazer suplência à significação fálica ausente. Na última parte do livro, A linguagem da arte, Sônia Borges bebe na fonte das artes, mas propriamente da literatura, referindose a diversos autores que com sua arte, com sua relação particular à escrita, com seu fazer artístico contribuem para a reflexão psicanalítica. Destaca algumas das muitas indicações de Lacan para a relação da psicanálise com o fazer poético a exemplo de sua referência à interpretação no Seminário XXIV: “É porque uma interpretação justa extingue um sintoma que a verdade se especifica por ser poética”. Concluindo o livro, Sônia Borges investiga ainda, o que ela denomina “os mistérios do ato criativo”, buscando justificar sua suposição de que a criação pressupõe o sujeito criador na posição feminina. A iniciativa de Sônia Borges em publicar suas pesquisas no campo teórico e prático em torno da escrita vem enriquecer a literatura psicanalítica, contribuindo, entretanto, não só para a psicanálise, mas para outros campos do saber e do fazer em que a escrita se apre164

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senta como elemento de atenção. O rigor com que são trabalhados os conceitos e teorias nos diversos campos abordados pela autora e a clareza com que expressa suas próprias construções tornam a leitura de Psicanálise, Linguística e Escrita muito instigante para o aprofundamento das relações entre o inconsciente e a escrita.

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A alteridade feminina Alba Abreu Lima

Resenha do livro de Carmen Gallano: A alteridade feminina. Campo Grande: Andrea Carla Deuner Brunetto ed., 2011 A recente tradução do livro A alteridade feminina, decorrência das intervenções, de Carmen Gallano, na Universidade e no Fórum do Campo Lacaniano de Medellín (Colômbia), em novembro de 1998, ganhou peso na edição primorosa de Andréa Brunetto, não somente pela tradução rigorosa com revisão de Sandra Berta, mas acima de tudo pela busca das referências bibliográficas, deixando um precioso material de estudo e pesquisa aos que desejam compreender a clínica da vida amorosa feminina. Em seu estilo claro, vigoroso, profundo na pesquisa psicanalítica e eminentemente clínico, Carmen aborda desde as patologias do amor nas mulheres, detalhando a clínica de amor feminino ligado ao gozo e à relação direta com o abismo da falta do Outro, para embarcar no Lacan dos anos 70 e suas elaborações sobre o todo fálico e o não-todo fálico, elucidando, assim, os conceitos tão caros à psicanálise, mas que se perdem na homogeneidade de nossos dias. Alteridade, identidade, diferença, singularidade feminina, novas formas de família, desamor e aflições no laço amoroso são temas de sua pesquisa que agora nos transmite como se fosse uma conversa. No primeiro capítulo, uma pergunta, que mais parece provocação nos dias de amor líquido, é esboçada: o amor masculino e o amor feminino são distintos? A partir daí, Carmen discorre sobre os infortúnios do amor que surgem na clínica e a nova nomeação para um acontecimento antigo: o desamor. Evoca que se procura cada vez mais os psicanalistas com o lamento do desamor, com um sofrimento por amor ou por falta de amor, e a expectativa seria a de encontrar a chave para um amor feliz. Demonstra que quando a mulher diz não com seu sintoma, é porque, apesar do que canta o poeta (“qualquer maneira de amor vale a pena”) nem todo tipo de amor vale a pena. Isso não impede aos psicanalistas saberem que o amor é o modo de o homem suportar o mundo. E como esse lastro faz falta ao psicótico! Carmen também distingue três modos do amor feminino: 1. Aquelas que adoecem pelos homens, que são mal acompanhadas pela dedicação sacrificial e vivem na insatisfação; Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 165-168 maio 2011

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2. As inibidas e que vivem no recolhimento narcisista e adoecem pela indiferença ao desejo sexual pelo parceiro, não conseguem amá-lo; 3. As que sofrem de um insensato amor louco, uma loucura que extravasa e revela uma experiência de gozo arrebatadora, muitas vezes em mulheres bastante sensatas. Com muitas ilustrações clínicas e retomando o Seminário XX, de Lacan sobre o amor, Carmen consegue indicar a brecha (ou a fórmula?) pela qual a mulher consegue efetivamente amar: quando consente no luto das miragens e na possibilidade de enfrentar o acaso. O segundo capítulo apresenta a tríade Identidade, diferença e alteridade, como opção de ordenar os três tempos e modos de abordar o sexo e a questão da alteridade feminina. Como o homem e a mulher adquirem uma identidade sexual? Na atualidade, a noção de identidade ficou reduzida ao indivíduo. Em psicanálise, podemos falar apenas de identidade significante, a partir de um sujeito do inconsciente, um X, que é dividido e por isso mesmo só é idêntico a si mesmo. Para falar da identidade como cristalização de identificação, Lacan recorda que os três modos de cristalizar uma identidade são as três identificações freudianas: uma identificação feita de amor é a primeira identificação ao pai; a segunda identificação ao traço unário; a terceira, a identificação histérica. Nesse momento, Lacan situa essas três identificações no nó borromeu: a primeira é identificação ao real do Outro real; a segunda, ao simbólico do Outro real; e a terceira, ao imaginário do Outro real. O significante introduz a diferença, porque um significante se define pela diferença com outro significante. O que quer dizer que homem e mulher são significantes, e no discurso corrente se opõem em suas diferenças. Assim, o significante, mais do que proporcionar uma identidade, introduz a diferença. A primeira alteridade do sujeito, de certo modo, é como sujeito do inconsciente, porque esse Outro, portador dos significantes que puxam os fios do sujeito, aparece vindo a ancorar, a inscrever o sujeito de um lugar Outro. Mas Carmen vai além e pergunta: como pensar uma alteridade feminina anterior à lógica fálica e não dependente dela? Elabora a resposta com Levinas, que afirma: “não podemos reduzir a feminilidade somente ao que dela se depreende por diferença do masculino”. Quando ele fala de alteridade, pode estar tratando do que depois Lacan formalizou como a lógica do não-todo. Para a autora já não se define a diferença dos sexos em termos de identificações, nem de identificações edípicas, porque se dizer homem ou se dizer mulher não é achar-se homem ou achar-se mulher. Trata-se do código de semblantes para tratar o outro em sua diferença sexual em relação com o desejo, e precisamente por isso, o código não 168

A alteridade feminina


é de mero respeito, mas de cortejo e de sedução. É sempre código do jogo de reconhecimento da diferença. Quando as mulheres dizem: esse homem sabe tratar as mulheres, indicam que sabe significar na função da palavra a diferença sexual. Um homem sabe tratar as mulheres quando sabe fazê-las distintas e, portanto, desejáveis. O terceiro capítulo – O que se opõe ao Um de todo homem são as mulheres, Limite da razão masculina – é dedicado a uma revisão detalhada da lógica das fórmulas da sexuação, apresentando também o que se passa na neurose obsessiva, na histeria, na toxicomania, na homossexualidade. Sobre o significante fálico, falar da diferença sexual, de uma alteridade feminina definida somente como diferença relativa, na única resposta que permite o inconsciente com relação à feminilidade, é falar que a mulher não é um homem, não tem o falo e não o é; por isso, somente no semblante pode fazer aparência de sê-lo, para tapar o que não o é. Dizer o que uma mulher não é não diz o que é. Dizer que não é um homem não diz o que é como mulher. Por fim, o que a autora diz poder verificar com a clínica é que a única maneira de um homem suportar uma mulher é amá-la para além do inalcançável do gozo desse corpo Outro, o corpo feminino. O quarto capítulo – Ela se desdobra: a lógica da sem-razão feminina – é a continuação das fórmulas da sexuação, desta feita introduzindo a questão do masculino e feminino. Ela comenta as três formas diferentes de suportar a alteridade feminina: ter duas, a bigamia clássica do neurótico – a esposa amada e a amante desejada falicamente; fazê-la mãe, fazer-lhe filhos; ou amá-la como uma mulher. A autora diz do desdobramento da mulher: não é que haja duas por estar partida, não é a divisão do sujeito. O desdobramento não é subjetivo, é real, e não está inscrito no inconsciente, mas em seu limite. Não está na cabeça das mulheres, de metade-metade, como dizem as histéricas. “Eu tenho duas partes, sou uma coisa e o contrário”. É o sujeito da contradição, o sujeito histérico: não se sabe onde está o que ela é na lógica fálica e onde está nela mesma, essa parte outra, estrangeira a ela mesma. Se a divisão do sujeito está inscrita no inconsciente, o desdobramento da não-toda só pode se abordar pela inconsistência do Outro, que pode dizer uma coisa e o contrário sem contradição. Em uma mulher, não se pode dizer a fronteira entre sua alteridade feminina e o que dela fica na lógica fálica. É a alteridade presente de um infinito atual, mas que não se pode discernir. Uma mulher passa pelos semblantes, mas passando por eles, transcende-os. O último capítulo tem como tema de estudo as aflições femininas. Carmen consegue exemplificar com a clínica fatos que vêm surgindo na atualidade e como o amor de mulher se engancha ao gozo sexual desdobrado: quando o homem se converte em ponto de mediação entre o real do gozo, inominável; e o simbólico da falta Stylus Rio de Janeiro nº 22 p. 165-168 maio 2011

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do Outro, mas coordenado na ordem simbólica da castração (que o homem possa operar para ela como sinthoma). Pergunta-se por que há essa solidão crescente entre as mulheres, esse desamor nas relações? Responde que as mulheres não estão cada vez mais histéricas, como se pode pensar, mas há algo em nossa civilização, da economia do mercado, da ciência que marca o estigma feminino. Afinal, na ordem antiga havia uma mediação simbólica para alojar uma mulher na ordem simbólica, como filha, esposa etc., enquanto um homem encarnava o suporte sintoma do simbólico que civiliza as mulheres e lhes dá um lugar na família. Se essa função terminou, não é mais pela incidência edípica no social nem pela família que uma mulher encontra seu lugar. Essa função somente pode se dar se os homens respondem assumindo seu lugar de seres sexuados e oferecendo-se como seres sexuados masculinos, porque senão não há mediação da castração para que uma mulher possa fazer-se Outra para si mesma. Continua a autora: no mundo de hoje, não se inscreve a castração nas relações simbólicas, só se promovem os indivíduos e seus objetos, para ignorá-la. Se existe cada vez mais pulsante, uma clínica da depressão, da melancolia, da tristeza, essa clínica se reporta às perdas do amor. De que forma o objeto de amor coloniza para uma mulher, o lugar da angústia? O lugar da angústia é o lugar do impossível de saber? Em tempos de crepúsculo de amores femininos, mulheres do planeta Vênus, genes e hormônios dando explicação para quase tudo, o livro de Carmen Gallano é incomparavelmente um retorno aos princípios psicanalíticos com um rigor incomparável e uma escrita de dar gosto!

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Orientações editoriais STYLUS é uma revista semestral da ESCOLA DE PSICANÁLISE DOS FÓRUNS DO CAMPO LACANIANO - BRASIL e se propõe a publicar artigos inéditos das comunidades brasileira e internacional do CAMPO LACANIANO, e os artigos de outros colegas que orientam sua leitura da psicanálise principalmente pelos textos de Sigmund Freud e Jacques Lacan. Serão aceitos artigos provenientes de outros campos de saber (arte, ciência, matemática, filosofia, topologia, linguística, música, literatura etc.) que tomem a psicanálise como eixo de suas conexões reflexivas. Aos manuscritos encaminhados para publicação, recomendam-se as orientações editoriais que se seguem. Serão aceitos trabalhos em inglês, francês e/ou espanhol. Se aceitos, serão traduzidos para o português. Todos os trabalhos enviados para publicação serão submetidos a, no mínimo, dois pareceristas, membros do CONSELHO EDITORIAL DE STYLUS (CES). A EQUIPE DE PUBLICAÇÃO DE STYLUS (EPS) poderá fazer uso de consultores ad hoc, a seu critério e do CES, omitida a identidade dos autores. Os autores serão notificados da aceitação ou não dos artigos. Os originais não serão devolvidos. O texto aceito para publicação o será na íntegra. Os artigos assinados expressam a opinião de seus autores. A EPS avaliará a pertinência da quantidade dos textos que irão compor cada número de STYLUS, de modo a zelar pelo propósito dessa revista: promover o debate a respeito da psicanálise e suas conexões com os outros discursos.

O fluxo de avaliação dos artigos será o seguinte: 1. Recebimento do texto por e-mail pelos membros da EPS de acordo com a data divulgada na rede-afcl@yahoo.com.br 2. Distribuição para parecer. 3. Encaminhamento do parecer para a reunião da EPS para decisão final. 4. Informação para o autor: se recusado, se aprovado ou se necessita de reformulação (neste caso, é definido um prazo de 20 dias, findo o qual o artigo é desconsiderado, caso o autor não o reformule apropriadamente). 5. Após a aprovação o autor deverá enviar à EPS no prazo de sete dias úteis uma cópia de seu texto em CD e outra em papel. A revista não se responsabiliza pela conversão do arquivo. O Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-172 dezembro 2010

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Serão aceitos trabalhos para as seguintes seções: Artigos: análise de um tema proposto, levando ao questionamento e/ou a novas elaborações (aproximadamente 12 laudas ou 25.200 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Ensaios: apresentação e discussão a partir da experiência psicanalítica de problemas cruciais da psicanálise no que estes concernem à transmissão da psicanálise (aproximadamente 15 laudas ou 31.500 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Resenhas: resenha crítica de livros ou dissertações de mestrado ou teses de doutorado, cujo conteúdo se articule, ou seja, de interesse da psicanálise (aproximadamente 60 linhas (3.600 caracteres). Entrevistas: entrevista que aborde temas de psicanálise ou afins à psicanálise (aproximadamente 10 laudas ou 21.000 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). A revista Stylus possui as seguintes seções: ensaios, trabalho crítico com os conceitos, direção do tratamento, entrevista e resenhas. Cabe à EPS decidir sobre a inserção dos textos selecionados no corpo da revista.

Apresentação dos manuscritos: Formatação: os artigos devem ser enviados por e-mail, no mínimo, em arquivo no formato “Word for Windows 6.0/95, 98 ou 2000 (doc.)” à EPS conforme indicado na home page da AFCL e endereçados à EPS em tamanho A4, letra Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5, justificado, margens de 2 cm, lauda do texto em torno de 2.100 caracteres. A primeira lauda do texto original deve conter apenas o título do trabalho, nome completo do autor (se for único) ou dos autores (no caso de coautoria), biografia(s) e seu(s) respectivo(s) endereço(s) completo(s). As demais páginas (contendo título e texto) 172


devem ser numeradas, consecutivamente, a partir de 2. Ou mais recente como está abaixo: Os artigos devem ser enviados por e-mail, no mínimo, em arquivo no formato “Word for Windows 6.0/95, 98, 2000 (doc.) ou mais recente” à EPS conforme indicada na “home page” da AFCL e endereçados à EPS Ilustrações: o número de figuras (quadros, gráficos, imagens, esquemas) deverá ser mínimo (máximo de 5 por artigo, salvo exceções, que deverão ser justificadas por escrito pelo autor e avalizadas pela EPS) e devem vir em separado e devidamente nomeadas como Fig. 1, Fig. 2 e indicadas no corpo do texto o local específico dessas Fig. 1, Fig. 2., sucessivamente. As ilustrações devem trazer abaixo delas um título ou legenda com a indicação da fonte, quando houver. As imagens precisam ser enviadas em alta resolução. Gráficos e tabelas devem estar em formato PDF. No caso de fotos ou imagens digitalizadas, deve ser enviado o arquivo JPG original. Resumo/Abstract: todos os trabalhos (artigos, entrevistas) deverão conter um resumo na língua vernácula e um abstract em língua inglesa, em um parágrafo único e contendo de 100 a 200 palavras. Deverão trazer também um mínimo de três e um máximo de cinco palavras-chave (português) e key-words (inglês) e a tradução do título do trabalho. As resenhas necessitam apenas das palavras-chave e key-words. Citações no texto: as citações de outros autores que excederem quatro linhas devem vir em parágrafo separado, margem de 2 cm à esquerda (além do parágrafo de 1,25 cm) e 1 cm à direita, tamanho e letra igual ao texto. Os títulos de textos citados devem vir em itálico (sem aspas), os nomes e sobrenomes em formato normal (Lacan, Freud).

Citações do texto nas notas: 1. As notas não bibliográficas devem ser reduzidas a um mínimo, ordenadas por algarismos arábicos e arrumadas como nota de rodapé ou notas de fim de texto antes das referências bibliográficas (citadas no corpo do texto); 2. As citações de autores devem ser feitas por meio do último sobrenome, da obra citada e do ano de publicação do trabalho. No caso de transcrição na íntegra de um texto, a citação deve ser acrescida da página citada; Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-172 dezembro 2010

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3. As citações de obras antigas e reeditadas devem ser feitas da seguinte maneira: Kraepelin (1899/1999); 4. No caso de citação de artigo de autoria múltipla, as normas são as seguintes: A) até três autores – o sobrenome de todos os autores é mencionado em todas as citações, usando e ou &, conforme exemplo (Pollo & Rossi & Martielo, 1997). B) de quatro a seis autores – o sobrenome de todos os autores é citado na primeira citação, como acima. Da segunda citação em diante só o sobrenome do primeiro autor é mencionado, como abaixo (Pollo et al., 1997, p. 120). C) mais de seis autores – no texto, desde a primeira citação, somente o sobrenome do primeiro autor é mencionado, mas nas referências bibliográficas os nomes de todos os autores devem ser relacionados; 5 Quando houver repetição da obra citada na sequência da nota deve vir indicado Ibid., p. (página citada.); 6. Quando houver citação da obra já citada, porém fora da sequência da nota, deve vir indicado o nome da obra em itálico, op. cit., p. (Fetischismus, op. cit., p. 317).

Referências bibliográficas

(outras informações: consultar a NBR 6023 da ABNT-2002): Os títulos de livros, periódicos, relatórios, teses e trabalhos apresentados em congressos devem ser colocados em itálico. O sobrenome do(s) autor(es) deve vir em caixa alta. 1. Livros, livro de coleção: 1.1. LACAN, J. Autres Ecrits. Paris: Editions Seuil, 2001. 1.2. FREUD, S. (1905) Die Traumdeutung. In: Studienausgabe. Frankfurt a. M.: S. Fischer, 1994. Band II. 1.3. FREUD, S. (1905) A interpretação dos sonhos. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1994. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. II). 1.3. LACAN, J. O seminário – livro 8: A Transferência (19601961). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1992. 1. 4. LACAN, J. O seminário: A Identificação (1961-1962): aula de 21 de março de 1962. Inédito. 1.5. LACAN, J. O seminário: Ato psicanalítico (1967-1968): aula de 27 de março de 1968. (Versão brasileira sem fins comerciais). 1.6. LACAN, J. Le séminaire: Le sinthome (1975-1976). Paris: Association freudienne internationale, 1997. (Publication hors commerce). 174


2. Capítulo de livro: FOUCAULT, Michel. Du bon usage de la liberté. In: FOUCAULT, M. Histoire de la folie à l’ âge classique (pp. 440-482). Paris: Gallimard, 1972. 3. Artigo em periódico científico ou revista: QUINET, A. A histeria e o olhar. Falo. Salvador, n.1, p. 29-33, 1987. 4. Obras antigas com reedição em data posterior: ALIGHIERI, D. (1321). Tutte le opere. Roma: Newton, 1993. 5. Teses e dissertações: TEIXEIRA, A. A teoria dos quatro discursos: uma elaboração formalizada da clínica psicanalítica. Rio de Janeiro, 2001, 250f. Dissertação. (Mestrado em Teoria Psicanalítica) – Instituto de Psicologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2001. 6. Relatório técnico: BARROS DE OLIVEIRA, M. H. Política Nacional de Saúde do Trabalhador. (Relatório Nº). Rio de Janeiro. CNPq, 1992. 7. Trabalho apresentado em congresso, mas não publicado: PAMPLONA, G. Psicanálise: uma profissão? Regulamentável? Questões Lacanianas. Trabalho apresentado no Colóquio Internacional Lacan no Século. 2001 – Odisseia Lacaniana, I, 2001, abril; Rio de Janeiro, Brasil. 8. Obra no prelo: no lugar da data deverá constar (No prelo). 9. Autoria institucional: American Psychiatric Association. DSMIII-R, Diagnostic and statistical manual of mental disorder (3rd edition revised.) Washington, DC: 1998. 10. CD ROM – GATTO, C. Perspectiva interdisciplinar e atenção em Saúde Coletiva. Anais do VI Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. Salvador: ABRASCO, 2000. CD-ROM. 11. Home page – GERBASE, J. Sintoma e tempo: aula de 14 de maio de 1999. Disponível em: <htttp://www.campopsicanalitico.com.br>. Acesso em: 10 de julho de 2002. Outras dúvidas poderão ser encaminhadas para a Equipe de Publicação da Revista Stylus (EPS) para o e-mail revistastylus@yahoo.com.br

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Sobre os autores Alba Abreu Lima

Psicanalista, Psicóloga Especialista em Psicologia Jurídica, Psicóloga TJ SE. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil / Fórum Aracajú. Diretora do Projeto Freudiano de Aracaju. E-mail: albabreulima@hotmail.com

Andréa Hortélio Fernandes

Psicanalista. Doutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise (Paris VII). Professora Adjunta da graduação e pós-graduação do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano- Brasil/ Fórum Salvador. Coordenadora do Campo Psicanalítico/ Formações Clínicas do Fórum do Campo Lacaniano em Salvador. E-mail: ahfernandes@terra.com.br

Colette Soler

Doutora em Psicologia (Paris VII), AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – França. Professora de FCCL – Paris. Autora de vários livros, entre os quais “Psicanálise na civilização (Contracapa), “O que Lacan dizia das mulheres” (JZE), “O inconsciente a céu aberto na psicose” (JZE) e a recém lançada edição bilíngüe do caderno “Stylus 1: O corpo falante”. E-mail: solc@wanadoo.fr

Dominique Fingermann

Psicóloga. Psicanalista. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil / Fórum São Paulo. Representante do CIG (Colégio Internacional de Garantia) e do CAOE (Colegiado de Animação e de Orientação da Escola). Co-autora de “Por causa do pior” (Iluminuras) E-mail: dfingermann@terra.com.br

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Gabriel Lombardi

Psicanalista. Médico e Doutor em Psicología. Professor titular de Clínica Psicológica de Adultos na Universidad de Buenos Aires. AME da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano – Argentina. Autor do livro Clínica y lógica de la autorreferencia, Letra Viva, Buenos Aires, 2008. E-mail: gabriellombardi@fibertel.com.ar

Ida Freitas

Psicóloga. Especialista em Psicologia Clínica. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil/ Fórum Salvador. Membro da Associação Científica Campo Psicanalítico – Salvador. E-mail: idabf@terra.com.br

Joan Salinas-Rosés

Licenciado em Filosofia pela Universidade de Barcelona. Professor de Teoria Psicanalítica na Universidade dos Pais Vasco: Faculdade de Filosofia em San Sebastian. Docente em FCCL da ACCEP/Barcelona y JAKINMINA/Pais Vasco. AME da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano. Membro do Fórum Psicanalítico de Barcelona e do Foro Psicanalítico dos Pais Vasco. Espanha. E-mail: j.salinas-roses@telefonica.net

Keila dos Santos Silveira

Psicóloga. MBA em Gestão de Pessoas na Anhanguera. Atualmente fazendo especialização em Terapia Cognitivo-Comportamental no ITCC de Campo Grande - MS. E-mail: keila_silveira@hotmail.com

Lia Carneiro Silveira

Psicanalista, Doutora em Enfermagem, Professora da Universidade Estadual do Ceará. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil / Fórum Fortaleza. E-mail: silveiralia@gmail.com

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Luis Guilherme Coelho Mola

Psicólogo. Psicanalista. Doutor em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Pesquisador do Núcleo de Psicanálise e Sociedade da PUC São Paulo. Membro do Fórum do Campo Lacaniano - São Paulo. E-mail: lgcoelho@uol.com.br

Marcelo Amorim Checchia

Psicanalista, Doutorando em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo, bolsista da CAPES. Membro do Fórum do Campo Lacaniano – São Paulo. E-mail: checchia@gmail.com

Michele Donizete Ferreira Borges Parola

Psicologa. Pós Graduada em Psicopedagogia pela Universidade Gama Filho e em formação psicanalítica pelo Instituto Langage. Atua como Psicóloga Clinica e Psicóloga Escolar em escolas privadas de São Paulo e Grande São Paulo. E-mail: micheleborgesparola@gmail.com

Renata Martins Constancio

Psicóloga. Atualmente cursa a Especialização Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC. E-mail: reconstancio@globo.com

Ronaldo Torres

Psicanalista, Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Doutorando pela mesma instituição. Membro do Fórum do Campo Lacaniano - São Paulo. E-mail: ronaldotorrescl@gmail.com

Rosanne Grippi

Psicanalista, Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil / Fórum Rio de Janeiro. E- mail: rogrippi@yahoo.com.br

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stylus, m. 1. (Em geral) Instrumento formado de haste pontiaguda. 2. (Em especial) Estilo, ponteiro de ferro, de osso ou marfim, com uma extremidade afiada em ponta, que servia para escrever em tabuinhas enceradas, e com a outra extremidade chata, para raspar (apagar) o que se tinha escrito / / stilum vertere in tabulis, Cic., apagar (servindo-se da parte chata do estilo). 3. Composição escrita, escrito. 4. Maneira de escrever, estilo. 5. Obra literária. 6. Nome de outros utensílios: a) Sonda usada na agricultura; b) Barra de ferro ou estaca pontiaguda cravada no chão para nela se estetarem os inimigos quando atacam as linhas contrárias.


Pareceristas do número 21 Ana Paula Gianesi (EPFCL - São Paulo) Ana Paula Pires da Silva (FCL - São Paulo) Conrado Ramos (EPFCL - São Paulo) Diego Mautino (EPFCL - Roma) Silvana Pessoa (EPFCL - São Paulo)

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