Revista Entre Ilhas - Vol. I de AGITA - Assoc. de Guias de Inf. Turística dos Açores

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Foto: Marco Farias

Periodicidade: Semestral • distribuição gratuita • Ano I- Nº 1 novembro 2021


Foto: Paulo Melo

Propriedade:

Anexo ao Moinho, Rua da Vila Nova 9500-506 Ponta Delgada NIF: 515965731 Email: agitaacores@gmail.com 910826480 Nº Registo: 127628 Depósito Legal: 492136/21

Diretora: Maria das Mercês Pacheco Editor: Filipa Martins Sede da Redação/Editor: Anexo ao Moinho, Rua da Vila Nova 9500-506 Ponta Delgada Direção: Paulo Bettencourt, Filipa Martins, Bento Cordeiro, Daniela Cassis e Wilson Silva Periodicidade: Semestral Tiragem: 500 exemplares Impressão: Coingra - Companhia Gráfica dos Açores Parque Industrial da Ribeira Grande - Lote 33 9600-499 Ribeira Grande

Design Gráfico e Paginação: Criativaçores Unipessoal, LDA Colaboradores: António Maria Gonçalves, António Pedroso, Boa Fruta, Café Nunes, Deolinda Estevão, Francisco Miguel Nogueira, Hélio Nuno Soares, Isabel Soares de Albergaria, João Carlos Nunes, José Eliseu, José Luis Neto, Maria das Mercês Coelho, Olarias da Vila, Paulo Ramalho, Pedro Parreira, Raimundo Quintal, Secretaria Regional do Ambiente e Alterações Climáticas, Sérgio Rezendes, Sónia Moniz e Teófilo de Braga. O uso e reprodução parcial ou total de qualquer conteúdo existente nesta revista é expressamente proibido. Os anúncios existentes nesta revista são da inteira responsabilidade dos anunciantes.

ESTATUTO EDITORIAL - Revista ENTRE ILHAS A Revista Entre Ilhas define-se como uma publicação semestral, em versão impressa e digital, dedicada à informação na área do Turismo e Património Local, com especial enfoque nas ilhas dos Açores. A Revista Entre Ilhas orienta-se por critérios editoriais de rigor e responsabilidade, apresentando-se totalmente independente ideológica, política e economicamente. A Revista Entre Ilhas é uma revista de âmbito regional produzida por uma equipa que se compromete a respeitar os direitos e deveres previstos na Constituição da República Portuguesa; na Lei de Imprensa e na Declaração Universal dos Direitos Humanos. A Revista Entre Ilhas visa promover um maior e melhor conhecimento da Região e incentivar a uma maior partilha e coesão entre as nove ilhas dos Açores.


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Nota de Abertura Maria das Mercês Pacheco

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Introdução

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A I Guerra Mundial nos Açores e o Depósito de Concentrados alemães na ilha Terceira. Sérgio Rezendes

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“Saudades da Terra” Paulo Ramalho

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O Património Cultural Subaquático - Pedro Parreira

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Mau Tempo no Canal José Luís Neto

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A Casa da Salga Francisco Miguel Nogueira

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H istória, uma residente permanente

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Património Paisagista: trilhos de conhecimento

A Lagoa das Furnas Isabel Soares de Albergaria

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Geodiversidades João Carlos Nunes

O Jardim António Borges: apontamentos históricos Teófilo de Braga

Jardim António Borges: algumas curiosidades da sua flora Raimundo Quintal

Memórias e Tradições

A transumância na ilha de SJ António Pedroso

Memórias e lembranças do Dia da Lã na Ilha do Corvo Deolinda Estêvão

Açorianiedade: personalidades de destaque

Roberto de Mesquita Ant. Mª Gonçalves

Pontos de Visita e Percursos imperdíveis

Conheça o ponto mais alto de PT Sec.R. do Ambiente e Alterações Climáticas

Café da Fajã dos Vimes

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Olarias da Vila

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Evolução Histórica da Cantoria na Terceira Jose Eliseu

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Fotos de Acácio Mateus

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O livro “O Mosteiro de Nossa Senhora da Esperança de Ponta Delgada” Hélio Nuno Soares

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Fotos de Paulo Melo

A ilha Graciosa no despertar dos céus Maria das Mercês Coelho

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Fotos de Rogério Mota

Ananás dos Açores Boa Fruta

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Fotos de Marco Farias

Espaços Museológicos Ribeira Grande Sónia Moniz - Divisão de Cultura da CMRG

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AGITAmentos

Rota dos Livros

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Homenagem Póstuma

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Fotografia: uma arte ao

serviço da promoção turística


Nota de Abertura

Quando o mundo parou, nós, profissionais de informação turística, proficientes da comunicação e das paisagens, fazedores de estórias e memórias, ficámos sem plateia. Sem sorrisos questionadores, sem chuvas inesperadas, sem atrasos inexplicáveis, sem episódios incontáveis. Permaneceram as paisagens. A grandeza das lagoas, o calor das águas termais, a beleza das cascatas, o desafio dos trilhos, os sabores das ilhas ficaram connosco, mas sem partilhas. Pudemos, qualquer um dos habitantes dos Açores, apreciar as nossas ilhas sem interrupções. Mas sem as partilhar. Nos passos seguintes a este fecho, como todos os outros que viveram aquilo que nunca pensaram algum dia viver, adaptámo-nos. Uma grande parte dessa mutação adveio de nos termos (re)unido. Aderindo ao “olá” digital, reunimos forças e unimos ideias, criando a AGITA e um laço de solidariedade e afirmação profissional que, cremos, nos firma contra tempestades e nos valoriza a favor do futuro. Para que nos conheçam, para que nos conheçamos melhor uns aos outros, a Revista em que estas palavras se inscrevem é a realização física e a celebração real de um ritual de passagem que nunca pensámos acontecer: contudo, aqui estamos, de novo, a partilhar quem somos e porque o somos. Com pontos de interrogação? Claro. E com chuva inesperada, bonança imprevista ou nevoeiro misterioso.

Maria das Mercês Pacheco

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Os primeiros passos da AGITA A AGITA - Associação de Guias de Informação Turística dos Açores é uma associação profissional , sem fins lucrativos, que representa os Guias da Região Autónoma dos Açores e surge por vontade e união de esforços dos seus membros fundadores: Paulo Bettencourt, António Bicudo, Bento Cordeiro, Vera Correia, Paulo Câmara, Daniela Cassis, Filipa Martins, Eduardo Almeida, José Resende, Maria das Mercês Pacheco, Nuno Garcia, Serafina Silva, Maria Filomena Medeiros, Pedro Nunes, Paula Medeiros, Henrique Câmara, Manuel Oliveira, Paulo Melo, Diogo Falcão, Maria Gabriela Teves, António Rebelo, José Fernando Melo, Rui Branco, Gerbrand Michielsen, Marco Farias, Luís Nunes, Nicolle Steggink, Artur Moniz, Michael Stieglitz, Jutta Stieglitz, Filipe Rodrigues, Joseph Haagmans, Jochen Schober, Wilson Silva, Birgit Siegel, Teresa Melo e Syuzanna Myrovych. A 18 de Fevereiro de 2020 é formada a Comissão Instaladora, que toma como sua missão a criação legal e registo desta associação, composta pelos seguintes elementos: Paulo Bettencourt, Daniela Cassis, Bento Cordeiro, Manuel Oliveira, António Rebelo, Luís Nunes, Filipe Rodrigues e Pedro Nunes. Devido ao ano atípico, que se viveu face à pandemia, os serviços encerraram durante algum tempo, por isso, o registo da AGITA efectuou-se apenas a 29 de Maio de 2020. Com o intuito de defender e promover a profissão de Guia no arquipélago dos Açores, o surgimento desta Associação apresenta-se como uma evolução natural de um projecto que une estes profissionais numa causa comum e já conta com cerca de 80 associados. As primeiras eleições ocorreram a 5 de Junho de 2020. Paulo Jorge Bettencourt foi eleito Presidente da Direção da Associação de Guias de Informação Turística dos Açores. Os restantes membros da Direção são a Vice Presidente Filipa Silva Martins, o Secretário Bento Cordeiro, a Tesoureira Daniela Cassis e o Vogal Wilson Silva. O Conselho Fiscal tem como Presidente Luís Nunes, o Secretário é Artur Moniz e o Vogal Marco Farias. Em relação à Mesa da Assembleia, a mesma é composta pelo Presidente Manuel Oliveira e pelos Secretários António Manuel Rebelo e Paula Medeiros. A AGITA conta ainda com Delegados de Ilha, que em contato direto com a Direção, promovem o diálogo e reforçam a pre-

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sença da Associação nas várias ilhas do arquipélago. Durante este primeiro ano de mandato, os dirigentes além de lutarem pela autonomia e reconhecimento da classe profissional também focaram-se na regulamentação e certificação da profissão de Guia na Região Autónoma dos Açores. Várias visitas informativas e palestras foram desenvolvidas, em colaboração com diversas entidades, com o objetivo de aprofundar e aumentar os conhecimentos dos associados em diversas áreas, transformando, desta forma, um momento bastante difícil, e em inactividade, em algo produtivo e útil para quando ocorra a retoma do Turismo na região. Destacam-se os programas desenvolvidos em parceria com as Câmaras Municipais de Ponta Delgada e Ribeira Grande: “(Re)Descobrir Ponta Delgada” e “Explorar Ribeira Grande”, que foram um grande sucesso. Estas iniciativas permitiram, neste caso, aos Guias reinventarem-se e adaptarem o seu serviço por forma a trabalharem com um público diferente, a população local. O programa (Re)Descobrir Ponta Delgada teve duas vertentes, uma de visitas guiadas, abertas à população em geral, permitindo percorrer, com acompanhamento de um Guia, o centro histórico da cidade, o Jardim António Borges e as Estufas de Ananases. Outra faceta do programa foi direcionada para ATLs, onde os Guias numa experiência fora do comum, mas muito satisfatória, levaram até às crianças do concelho


temáticas como Sete Cidades e lendas, O ciclo da laranja e o ananás, Fortes e piratas, Vulcões e Fauna e Flora. No programa Explorar Ribeira Grande, as visitas desenvolveram-se aos fins de semana, em diferentes locais e trilhos, com o objetivo principal de dar a conhecer o município aos munícipes. A abertura do programa deu-se com uma visita temática sobre a Emigração e um passeio guiado na Vila de Rabo de Peixe. A criação deste Boletim Informativo centra-se na importância de divulgar o rico e diversificado património das nove ilhas do Arquipélago, promover o conhecimento das particularidades inerentes a cada um das ilhas e à própria Região, numa tentativa de diminuir a ignorância, muitas vezes, existente sobre o posicionamento e papel dos Açores, ao longo dos tempos, e a sua fascinante história.

Entrevista ao Presidente da Direção da AGITA Paulo Jorge Bettencourt Paulo, quais foram os motivos que o levaram a abraçar este projeto (AGITA)? “De alguns anos a esta parte, ter verificado que não conhecia uma grande parte dos colegas, não haver uma união efetiva, haver uma enorme discrepância no sector e os Guias não serem reconhecidos como de primordial importância para o conhecimento e promoção da Região. Embora tenha havido muita gente que achava que este projecto tinha que seguir em frente, quando chegou a hora da verdade, muitos dos impulsionadores ficaram pelo caminho, enfim, faz parte…!” Qual é a realidade desta Associação? Quantos associados representam? Quais os principais objetivos? “Neste momento, esta Associação é conhecida nos Açores e a nível Nacional, em pouco mais de um ano conseguimos um feito incrível. Representamos neste momento cerca de 80 guias de quase todas as Ilhas do arquipélago, com exceção do Corvo, pois de momento não existe nenhum que esteja dentro dos requisitos do nosso regulamento interno. Os principais objectivos desta associação são, antes de mais, certificar profissionais, com provas dadas no terreno, algo que não acontece desde 2007, regulamentar áreas específicas de trabalho para os Guias de Parque Natural e, não menos importante, regulamentar a profissão de Guia Intérprete e Guia de Parque Natural, começamos como associação abrangente de forma a que estes profissionais fossem certificados, quer

em Guias de Parque Natural quer em Guias Intérpretes Regionais. Depois, claro que iremos ver junto com a tutela no futuro quem poderá exercer a atividade e quais os requisitos para certificação por forma a que permita a entrada de sangue novo na atividade, certificado com regularidade.” Quais as atividades realizadas que gostaria de destacar, assim como desafios e projetos entre mãos... “Gostaria de destacar as parcerias com as Câmaras Municipais de Ponta Delgada com o (Re) descobrir Ponta Delgada e o Explorar Ribeira Grande, que trouxeram uma lufada de ar fresco para os nossos associados e muita esperança num ano que dávamos como perdido. Foram realizadas diferentes atividades para aprofundar os nossos conhecimentos, nomeadamente: visitas aos Parques de Recreio e Reservas Florestais, organizadas pela Direção Regional dos Recursos Florestais, assim como visita ao Centro de Agricultura Biológica das Sete Cidades, cortesia do Serviço de Desenvolvimento Agrário de São Miguel. Visita à Gruta do Carvão, parte visitável, cortesia da Associação Amigos dos Açores, e uma visita a outro troço, junto à Sinaga, com a simpática colaboração do Professor João Carlos Nunes - GeoNovembro 2021 -

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parque Açores. Fomos à descoberta do Eremitério da Covoada, gentilmente permitida pelo seu proprietário. A convite dos proprietários, visitamos a Grená. Acompanhados pelo Dr. Raimundo Quintal, fizemos uma visita botânica ao Jardim António Borges. Acompanhados pela família Vieira, visitamos a sua Fábrica de Cerâmica. Promovemos uma conferência, proferida pelo Dr. José de Mello, sobre a Sinagoga de Ponta Delgada. Destaca-se o Curso de Avifauna, promovido pela Direção Regional do Ambiente para os nossos associados, que teve um enorme sucesso, assim como uma nova edição do Curso de Guias de Parque Natural, realizado a nosso pedido. Encontra-se a decorrer o PDL TV MAGAZINE, deixo o meu agradecimento a todos os que se disponibilizaram para participar nesta importante iniciativa, que servirá para dar a conhecer as freguesias do Concelho de Ponta Delgada aos locais e aos nossos emigrantes, com claros benefícios para todos. E, por fim, não menos importante a plantação de endémicas no Miradouro, onde está localizada a sede da Associação, que ocorreu no Dia da Árvore, a 21 de Março.

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Os desafios são muitos e neste momento o fundamental é manter a nossa profissão com orgulho e que os profissionais que a exercem sintam que podem acreditar que, num futuro próximo, teremos uma retoma e, até lá, quer através do (Re)descobrir Ponta Delgada 2ª edição quer através das certificações e formações se garanta um rendimento. Claro que temos ainda algum caminho a percorrer, embora já tenhamos alguma luz ao fundo do túnel. Entre mãos neste momento temos a criação de um site, que servirá para divulgar os nossos associados. Estamos a investir numa presença mais forte nas redes sociais de forma a promover o colectivo e a desenvolver parcerias que nos permitam realizar algumas conferências online sobre temáticas importantes para a nossa profissão.” As dificuldades econômicas, causadas pela pandemia, afetaram gravemente os Guias de Informação Turística... o que salienta sobre este período difícil que atravessam? “A salientar neste momento a união entre os guias, a luta para conseguir manter os profissionais do sector com alguma dignidade e a solidariedade entre colegas.” Uma mensagem que queira deixar aos seus colegas de profissão. “Antes de mais transmitir optimismo, no futuro, seguramente, sairemos melhores profissionais desta pandemia,haverá um melhor equilíbrio em termos de rendimentos e conhecimentos, entre os profissionais do sector. Instar todos a participar nas actividades da associação, quer sejam remuneradas ou não, estamos a trabalhar para dar visibilidade à nossa actividade e à associação, sem o contributo de todos tal não será possível. Relembro aqui uma passagem de um texto sobre a vida de José Bensaude aquando do lançamento da FTM : Os agricultores continuaram a fumar o tabaco que produziam nas suas terras e a classe com maior poder de compra estava habituada a fumar os charutos de fabrico estrangeiro. Para ultrapassar esta dificuldade foi necessário, durante meses e anos, oferecer cigarros na cidade, vilas e freguesias para mudar os hábitos de fumar. «Conta-se também que José Bensaude mandou fazer um furo no chassi do seu automóvel e, ao passar pelas localidades ia deixando cair os invólucros vazios e amarrotados para pensarem que já havia muitos consumidores de cigarros feitos». Para colher temos que semear. Com votos de muito sucesso para todos, juntos somos mais fortes.”


A Casa da Salga

Francisco Miguel Nogueira A Memória, o Património, a História são partes fundamentais e integrantes da Cultura de um país. Saber de onde viemos, o que construímos, é saber mais quem somos! Daí, ser essencial a preservação da Casa da Salga, um bem patrimonial e um símbolo da História da Terceira. Este edifício foi importante durante a Batalha da Salga e para muitas pessoas esta era a casa de Brianda Pereira, ideia que a lenda e a tradição oral criaram, mas que não corresponde à verdade. Esta propriedade pertencia e ainda pertence aos Merens de Távora. A Casa da Salga foi construída na segunda metade do século XVI, em 1562, pela família Távora, tal como a Ermida do Bom Jesus, que foi fundada em 1682. Este tronco dos Távora veio parar à Terceira nos princípios do século XVI, chegando a ocupar funções de senadores de Angra. Os fundadores desta Casa também eram descendentes da família Merens, responsável pelo governo da cidade de Angra desde o início do povoamento dos Açores. A Casa da Salga foi edificada durante um período em que se assistiu ao início da construção de uma linha de fortes na Ilha devido aos sistemáticos ataques de piratas e corsários nos mares dos Açores, pois a Terceira, sobretudo Angra, era um ponto de escala essencial para o comércio do Império Português no Atlântico Norte. Quando D. Sebastião morreu, em 1578, em Al-

cácer Quibir, sucedeu-lhe o seu parente mais próximo, neste caso, o tio-avô Cardeal D. Henrique, que, já idoso, morreu, em 1580, sem herdeiros diretos, abrindo, assim, uma crise de sucessão. Houve 3 principais herdeiros, D. Catarina de Bragança, D. Filipe II de Espanha e D. António, Prior do Crato. Este último foi aclamado rei em Santarém, contra a vontade da Alta Nobreza, apoiante de D. Filipe II. Para este, Portugal era um reino muito importante para a estratégia do Império Espanhol. D. Filipe II acabou então por enviar o seu exército, que mais bem preparado, venceu os apoiantes de D. António. O Prior do Crato acabou por refugiar-se na Terceira, o único ponto do país que ficou do seu lado. D. Violante do Canto, que herdara uma grande fortuna em 1577, apoiou a causa de D. António, sustentando as tropas anglo-francesas estacionadas na ilha. A Terceira passou a ser, então, alvo das atenções espanholas. Outro nome importante neste período é o de Ciprião de Figueiredo, que havia sido nomeado por D. Sebastião, em 1576, para o cargo de corregedor dos Açores (uma espécie de governador) e tornou-se em um forte apoiante de D. António, aquando da crise de sucessão. A 25 de julho de 1581 (passaram este ano exatos 440 anos), uma esquadra espanhola comandada por Pedro de Valdez, tentou a conquista da ilha açoriana. A frota era composta Novembro 2021 -

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por 10 navios, 8 dos quais galeões de alto bordo, com 1 000 homens de guerra, que tentou desembarcar na baía da Salga e, apanhando de surpresa os locais, conseguiram vencer as primeiras resistências. As tropas espanholas começaram logo a incendiar as searas e as casas existentes nas imediações, ocupando a Casa da Salga, hasteando a sua bandeira, e muito provavelmente a casa de Brianda Pereira, aprisionando os homens que encontraram. Entre os prisioneiros figurava Bartolomeu Lourenço, que se encontraria ferido, marido de Brianda. Esta, em sentimento de revolta e de defesa, incentivou como podia, os terceirenses a lutarem e também pegou no que tinha à mão e foi para os combates. Assim, a lenda e o mito de Brianda Pereira misturaram-se com a realidade dos factos. Como a batalha endureceu, pelas nove horas da manhã os combates eram intensos, com os espanhóis a atacar fortemente a costa com a sua artilharia, o que dificultava a tarefa dos locais. As gentes da vila de São Sebastião, apoiadas pelas do Porto Judeu, vieram em defesa da sua terra. O calor daquela manhã de verão era intenso. Ferreira Drummond conta que Gonçalo Anes Machado, terceirense de 60 anos que, percebendo que o filho ia ser agredido pelo inimigo, foi, de imediato, defendê-lo. Acabou por atacar os castelhanos com uma lança e lutou até morrer. Outra estória da História é a do idoso António Gonçalves, o qual, depois de atacar os espanhóis, acabou barricado. Provocou, então, um castelhano, que dizia que ia “violar” a mulher de Gonçalves. Este, em defesa da honra da família, desferiu o castelhano, dizendo: “- Tende-me tento naquele castelhano”. Afirmando depois: “- António Gonçalves depois de velho cavalheiro, e minha mulher velha, me queríeis enxovalhar?! Não cumprireis já o vosso danado intento!”. Cerca do meio-dia, estando a batalha indecisa, o religioso agostinho Frei Pedro, que participava ativamente na luta, teve a ideia de, como estratagema, dirigir gado local, para as posições espanholas e, assim, desbaratá-las. Rapidamente foi reunido mais de um milhar de bovinos, que, à força de gritos e tiros de mosquete, lançaram-se sobre o inimigo. Neste momento, a bandeira castelhana foi arriada e a Casa da Salga era novamente controlada pelos seus proprietários. Os espanhóis recuaram e houve tempo para os terceirenses reagruparem e prepararem nova defesa da Ilha.

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Diz-se que centenas de castelhanos morreram nos combates ou afogados na fuga do gado. Há até quem afirme que não mais do que 50 espanhóis voltaram para os navios, enquanto nos locais, foram poucas as dezenas de mortos. Se dos 1 000 só sobreviveram 50 não saberemos com certezas, mas que muitos morreram e ficaram feridos disto não temos dúvidas, e que esta foi uma humilhante derrota para as tropas de D. Filipe II de Espanha, isso é garantido. A vitória da Ilha Terceira significou um fracasso diplomático para Espanha, pois vários reinos europeus deram o seu apoio a D. António, o que contrariava os desejos de D. Filipe II de Espanha. A pressão internacional aos desejos do rei espanhol ia crescendo. Brianda Pereira incentivou até ao desfecho da Batalha da Salga para que os homens e as mulheres lutassem até ao fim. Brianda Pereira virou a nova heroína dos portugueses contra os espanhóis, muito ao gosto do que foi a Padeira de Aljubarrota, em 1385, tendo a sua imagem mitificada pelo tempo. Devemos relembrar que as estórias e a Memória construídas deste dia, afirmam que dois ilustres escritores espanhóis participaram na Batalha, Miguel de Cervantes, autor de D. Quixote de la Mancha, e Lope de Vega, um dramaturgo espanhol, sobrevivendo ambos. A Batalha da Salga permitiu o reanimar das tropas terceirenses e o fortalecimento da sua posição contra o Rei espanhol. Assim, nos 2 anos seguintes, o povo terceirense não desistiu de lutar. Data deste período, mais precisamente de 13 de fevereiro de 1582, a famosa carta de Ciprião de Figueiredo, a D. Filipe II, onde afirmava: “antes morrer livres que em paz sujeitos”, hoje a divisa dos Açores. Só em 1583 a Terceira foi subjugada pelos espanhóis, comandados por D. Álvaro de Bazán, no conhecido Desembarque da Baía das Mós, pois os castelhanos encenaram um suposto desembarque na baía da Praia, o que levou a que os comandantes portugueses destacassem vários contingentes militares para a zona praiense. Assim, com este “engano”, os castelhanos puderam desembarcar na Terceira e ocupar a Ilha. Passados 120 anos, já depois da Restauração da Independência de Portugal de 1640, do fim da Guerra do Castelo na Ilha (finais de março de 1641 a início de março de 1642) e da saída dos espanhóis da Terceira a 6 de março de 1642, a Capela começava a sua construção. Com Alexandre Merens de Távora, em 1682, nascia a Ermida do Bom Jesus da Salga.


O orago do Senhor Bom Jesus foi escolhido para esta Ermida porque esta imagem de Cristo crucificado é cheia de simbolismo e força. Assim, nesta Ermida nascia a imagem do Senhor Bom Jesus da Salga. Ligando o orago ao local. Pode-se supor que a ideia que se queria passar provavelmente era que embora a Terceira tivesse estado exposta a uma época difícil, com a União Ibérica e, consequentes ataques de piratas e corsários, inimigos do Império espanhol, a Ilha não se tinha rendido. Mesmo sofrendo com a presença espanhola, o orgulho português continuava forte. A Ermida do Bom Jesus foi construída em continuidade à Casa, em prolongamento uma da outra. Foi também provavelmente Alexandre de Merens Távora que mandou fazer a imagem do Bom Jesus da Salga, que data do século XVII. Infelizmente não há muitas informações. Até 1978, encontravam-se uns belos quadros da Via Sacra na Ermida, pendurados nas paredes, mas o estado em que esta Ermida se encontrava e se encontra, obrigou os responsáveis a retirá-los. A imagem do Senhor Bom Jesus da Salga encontra-se guardada. Isto aconteceu devido ao estado desta Ermida e pelo roubo desta mesma por três rapazes. Felizmente a imagem foi recuperada. O estado desta Casa deixa-nos tristes por estarmos a ver um símbolo da nossa História a deteriorar-se, a desfazer-se. Embora o Governo Regional dos Açores, pela Resolução do Conselho do Governo Regional dos Açores n.º 222/2020 de 10 de agosto de 2020, tenha classificado como bem imóvel de interesse público a Casa da Salga, “constituída por casa principal, residência do quinteiro, ermida e adega”, ainda há muito a fazer para que haja uma recuperação e preservação deste bem patrimonial de todos nós, a bem da Memória do nosso povo, da nossa História e da nossa Cultura. Em um tempo em que tudo é fugaz, manter viva a Memória Coletiva de todos nós é essencial. Conhecer e divulgar a nossa História, preservar e dinamizar o nosso Património e

promover o nosso conhecimento do meio onde vivemos não é um capricho, é uma necessidade para a Cultura de todos nós açorianos. Que as entidades competentes se unem à família Merens de Távora e que se lute pela proteção e salvaguarda de um património indelével da nossa História. A ideia da construção de um Centro de Interpretação da Batalha da Salga, ligado à linha de fortes e à resistência aos espanhóis, é um caminho que se tem de fazer, a ver se todos juntos conseguimos salvar um espaço que representa culturalmente um pedaço de todos nós.

Bibliografia DRUMMOND, Francisco Ferreira, Anais da Ilha Terceira, Tomo I, Volume IV, 2ª edição, Câmara Municipal de Angra do Heroísmo/Instituto Histórico da Ilha Terceira, Angra do Heroísmo, 2016, pp. 35-50. MENESES, Avelino de Freitas, Os Açores e o domínio filipino: 1580-1590, vol. 1, Angra do Heroísmo, Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1987, 398 p. NOGUEIRA, Francisco Miguel, A Casa da Salga in Jornal da Praia, 28 de abril de 2017, p. 3. NOGUEIRA, Francisco Miguel, A Terceira e a Batalha da Salga in Jornal da Praia, 29 de agosto de 2014, p. 9. NOGUEIRA, Francisco Miguel, D. António, Prior do Crato, e Ciprião de Figueiredo, Conde da Vila de São Sebastião in Jornal da Praia, 20 de julho de 2018, p. 4. NOGUEIRA, Francisco Miguel, Os Canto – De Pero Anes a Violante do Canto in Jornal da Praia, 5 de janeiro de 2018, p. 4. REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES, Resolução do Conselho do Governo n.º 222/2020 de 10 de agosto de 2020 in Jornal Oficial, I série, nº 120, 10 de agosto de 2020. Novembro 2021 -

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A I Guerra Mundial nos Açores e o Depósito de Concentrados alemães na ilha Terceira. Sérgio Rezendes

Em sequência da importância do oceano Atlântico para a logística dos beligerantes e dado o domínio pelos navios de superfície da Royal Navy, eventuais presas da marinha mercante alemã rapidamente se resguardaram de possíveis saques ao atracar em portos neutrais como Horta e Ponta Delgada, aguardando o evoluir da situação entre 1914 e fevereiro de 1916. Entretanto, dadas as múltiplas declarações de guerra, fechavam-se sem aviso prévio as rotas comerciais no Atlântico Norte. Dada a falta de soluções, alguns tripulantes tentaram a sua sorte ao embarcar nos navios de carreira, no que se dizia ser uma viagem perigosa uma vez que podiam ser intercetados em plena viagem e enviados para campos de prisioneiros ingleses. Desde janeiro de 1915 que nas ilhas circulavam boatos sobre eventuais proibições de circulação aos súbditos alemães, conhecendo-se algumas medidas práticas como a apresentação de vários indivíduos no governo civil, sob pena de procedimento judicial. Entretanto, a guerra evoluíra e os súbditos alemães voltaram a ser notícia a 25 de fevereiro de 1916, aquando da requisição das embarcações surtas nos portos açorianos. Estava a população alarmada e apreensiva por prever os efeitos dessa ação, apesar da forma ordeira como se desenrolou nos portos de Ponta Delgada e Horta. Levantava-se agora a questão: o que fazer com a carga e marítimos? Com a declaração de guerra por parte da Alemanha a 9 de março de 1916, ficaram as tripulações proibidas

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Sem o respectivo apoio material e financeiro, a fase inicial do DCA seria de complexa resolução para os militares. Forte de São João Batista (c.1916). Prova fotográfica sobre papel. MAHI20161013.

de abandonar a ilha, passando-se ao estado de reserva em áreas como a dos cabos submarinos. Em finais do mês de abril, ainda se desconhecia o decreto 2.350, aguardando-se instruções precisas que só chegaram a 1 de maio. Se em idade militar, os do sexo masculino tinham que ficar em Portugal, em vigilância circunscrita, podendo os restantes acompanhar o familiar, caso este se responsabilizasse pela alimentação, ou então abandonar o país. A geografia e a história acabaram por contribuir para fazer da fortaleza de São João Baptista em Angra do Heroísmo, ilha Terceira, um dos principais depósitos, apesar de nesse verão existirem outros dois provisórios em São Miguel (Casal de Francisco Machado de Faria e Maia, em Lagoa) e Faial (instalações da Deutsche Atlantische Telegraphengesllschaft, Horta), um pouco à semelhança do que aconteceu no império. O processo de concentração dos prisioneiros esteve longe de ser simples, impondo-se de início um Estado de Sítio na ilha Terceira, dada a necessidade de estabilizar e controlar a sociedade e a alimentação perante um anormal aumento da população, em mais de mil pessoas num ano; as inseguras ligações marítimas e a parca autarcia da ilha. Até ao fim do Estado de Sítio, a treze de setembro de 1916, apenas o governador militar da ilha autorizava a exportação de géneros como o peixe salgado e seco, trigo, milho, gado vacum e suíno, entre outros. Enquanto governador civil de Angra do Heroísmo e da ilha, com plenos po-


Fotografia de grupo no Monte Brasil, fortaleza de São João Batista (1917). Prova fotográfica sobre papel. MAHI20161156.

deres, o comandante militar dos Açores tomou todas as decisões tidas como pertinentes para a manutenção da Ordem Pública, terminando a missão com elogios das autoridades civis, apesar de algumas tensões. A partir daí, seguiu-se uma complexa gestão de recursos entre militares; concentrados e civis, de 1916 a 1919. As medidas da I República sobre os alemães radicados em Portugal. O decreto n.º 2.350 de 21 de abril de 1916 estabeleceu entre várias restrições, o direito de residência; das relações comerciais e de administração de bens, por exemplo. A legislação subsequente proibiu a entrada de súbditos alemães e aliados, banindo-os por fronteira terrestre e munidos de passaportes, desde que não fossem homens em idade militar. Os locais de concentração podiam ser temporários, caso de Lagoa (São Miguel) e Horta (Faial) ou Macequece e Lourenço Marques (encerrados mais tarde), ou permanentes, caso da ilha Terceira, Peniche e Caldas da Rainha, por saturação do campo angrense. À publicação do decreto, tinham 24 horas para se apresentar às autoridades militares, sendo os indigentes alimentados pelo Estado. Mesmo para os portugueses de ascendência paterna alemã, a expulsão do território era inevitável, salvo resolução do governo. Anulados os atos jurídicos desde a declaração de guerra, ficaram as naturalizações até ao terceiro grau sem efeito; os casamentos, proibidos e a transmissão de bens, à semelhança da gestão dos negócios alemães, à tutela do Estado. Sociedades e sucursais com sede em território hostil viram os bens arrolados em depósito e entregues a um depositário-administrador nacional que, teoricamente, as manteria sob sua guarda, gerindo-as no que seria uma das maiores falhas de todo o processo: no regresso à normalidade, muitos destes bens haviam sido vendidos ao desbarato. Em 1916, seriam os próprios inimigos a fornecer todos os elementos, e o depositário-administrador a ceder, autorizado

Turma escolar na Fortaleza de São João Batista (1917-1919). Prova fotográfica sobre papel. MAHI20161229.

pelo Tribunal do Comércio, os valores estritamente necessários à sua alimentação, numa relação sempre difícil de comprovar. É notório que os prisioneiros eram detentores de verbas, mas nos casos mais conhecidos são de organizações de assistência internacionais. Os navios alemães surtos em águas portuguesas e suscetíveis de serem transformados em navios de guerra foram entregues ao Tribunal de Presas, num processo à parte dos requisitados nos termos do decreto n.º 2.299 de 23 de fevereiro de 1916. A prostração deste importante grupo social afetou várias áreas da sociedade, tais como os transportes, as comunicações e o comércio, tendo um duro impacto junto das comunidades locais, porque para além de forças vivas da sociedade, dinamizavam a economia emprestando e investindo nos mercados locais. O Depósito de Concentrados Alemães em Angra do Heroísmo (DCA). Iniciado a 1 de maio com o desembarque de 80 súbditos oriundos do continente, estavam os alemães, por vontade própria, organizados em três classes sociais, e em maior número que o aguardado pelas autoridades locais, dadas as precárias informações recebidas via cabo telegráfico. Dado o seu cada vez maior número e consequente falta de espaço, a solução residiu na saída de unidades/órgãos militares da fortaleza, assim como das famílias dos militares e em especial do Comando Militar dos Açores (CMA). Subsequentemente, o Depósito de Concentrados Alemães (DCA) recebeu prisioneiros de todo o império, à exceção de Macau e Timor, destacando-se um conjunto de levas até ao outono de 1916, complementadas por pequenos grupos, já em 1917, alguns oriundos dos extintos depósitos coloniais em Goa, Angola e Moçambique. Até novembro de 1919, transitaram pelo Depósito de Concentrados Alemães em Angra do Heroísmo 763 internados, incluindo mulheres e crianças. Ao ministro da guerra, o Comando Militar dos Novembro 2021 -

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Açores refere uma disciplina extraordinária a um dos concentrados, pelo que seria de contar com hostilidade em caso de um golpe de mão à ilha, provocado por uma equipa de assalto alemã, a partir de um submarino. Estando a ilha numa situação anormal, a atenção teria que ser redobrada quer no aprisionamento quer na defesa geral, o que implicava o reforço de militares, inclusive a partir de Ponta Delgada. A 9 de agosto de 1918 eram 715 os concentrados em Angra do Heroísmo, iniciando-se a fase de declínio: a 15 de janeiro de 1919 eram 653 e em finais de outubro, 596. Pelo Lothar Bohlen embarcam rumo a Lisboa, Faial, Madeira e Alemanha 510 ex-prisioneiros, ficando apenas quatro súbditos na Terceira. Do recenseamento geral à saída, sabe-se que dos 763 prisioneiros que transitaram pelo DCA, 728 eram exteriores à ilha e oito nasceram em cativeiro; que catorze faleceram e seis regressaram ao DCA após transitarem por outras unidades e que 722 partiram, a grande maioria para Hamburgo. Quem eram os súbditos alemães? Eram civis

quente declaração de guerra, o encarceramento da comunidade civil alemã no império tornou-se inevitável, surgindo depósitos de concentrados um pouco por todo o império português. Nestes, o Estado tentou pautar-se pelas convenções de Genebra, permitindo desde cedo a entrada de delegados da Cruz Vermelha e de cônsules estrangeiros, como o americano nos Açores, atestando as favoráveis circunstâncias dos prisioneiros de guerra. Faltaria, contudo, a capacidade financeira para os desenvolver em boas condições. Planeada desde o início para receber um elevado número de concentrados, a fortaleza de São João Batista padeceu de um Estado que não se antecipou financeiramente, para desenvolver as estruturas básicas para os acomodar. Grupo após grupo, enviaram-se os prisioneiros para Angra do Heroísmo até à total incapacidade, passando-se então a engrossar os do continente português. Apesar dos incessantes pedidos de apoio, o envelope financeiro

Formatura na parada junto à Igreja de São João Batista (c.1916). Prova fotográfica sobre papel. MAHI20160993.

que trabalhavam em território português ou então tripulações cujas embarcações haviam sido apreendidas em fevereiro de 1916. São industriais, comerciantes, professores, comandantes e engenheiros, domésticas, marinheiros, fogueiros, artesãos, entre outros. São famílias com crianças e idosos, que optaram por não se separar. São em muitos casos alemães casados com portuguesas e com filhos, considerados alemães à semelhança do pai. Em conclusão, três anos de peripécias na busca por um equilíbrio. Estudos internacionais demonstram que os Açores eram já equacionados para aprisionar alemães, desde os anos de 1914 e 1915. Com a requisição das embarcações alemãs e a conse-

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foi sempre tardio e insuficiente para colmatar as necessidades. Afinal, a arruinada I República era incapaz de assegurar os encargos financeiros internos e externos. Sem grande apoio do Estado, a solução passou por uma dificílima gestão das autoridades militares, em articulação com a sociedade local, o que terá camuflado as suas reais necessidades perante o governo central, por exemplo, de Sidónio Pais. Ao comum dos mortais, difícil se tornava entender o esforço militar ao tentar em simultâneo criar condições dignas para que não se gerassem problemas com a população prisional e, internacionalmente, deixar que o país ficasse bem visto pelo tratamento aos seus prisioneiros, o que de facto aconteceu: hoje o depósito dos


Açores, apesar dos múltiplos problemas, é encarado como um exemplo. É possível dividir o encarceramento alemão em duas fases, o antes e o depois do Armistício, embora interligados por problemas estruturais desde o início. Se por um lado a ação do Estado poderá ser caraterizada, em parte, por moderada, humanista e cumpridora das responsabilidades internacionais, a forma como equacionou todo o processo deixou muito a desejar porque se em síntese, os prisioneiros tiveram ao seu dispor uma série de benefícios,

Sérgio Rezendes tem uma obra publicada especificamente para dar a conhecer, o Depósito de Concentrados Alemães na Ilha Terceira (2019) (capa do livro)

difíceis de adquirir para largos sectores da população, na realidade não dotou à priori, o Comando Militar dos Açores dos meios técnicos, humanos e financeiros para o fazer, e dificilmente o fez, à posteriori. Sem fazer passar a informação, provavelmente por nem saber ao certo como operacionalizar o processo, o Estado não só surpreendeu pela negativa como fez tardar soluções que se exigiam rápidas, confiando à capacidade de imaginação dos militares nos Açores, a resolução de múltiplas questões do dia-a-dia. Uma segunda falha foi a forma como, declarada a beligerância, as autoridades portuguesas administraram os bens alemães, fosse pela gestão ou fornecimento de verbas aos legítimos proprietários, o que nem sempre

aconteceu levando-os na prática à indigência generalizada durante o cativeiro (agravando as preocupações militares) quer pela restituição dos seus pertences já no pós-guerra, num processo que fez abandonar o país, famílias por completo. Localmente, o Exército acabou por ter que atuar mais pela capacidade de desenrasque, ao contornar os problemas, uns com mais sucesso do que outros, orientando-se por um profundo respeito a homens, mulheres e crianças, e instar ao governo, para o envio dos materiais e recursos imprescindíveis. Debatendo-se com graves problemas financeiros e estruturais, teve que, em articulação com as autoridades civis e comerciantes, encontrar soluções para inúmeros problemas que se geraram em poucos meses numa ilha frágil em recursos, nomeadamente alimentares, agravados pela chegada de centenas de prisioneiros e a chamada ao serviço militar de milhares de jovens, na sua maioria camponeses, paralisando a mão-de-obra civil principalmente após o ataque do U-155 a Ponta Delgada, a 4 de julho de 1917. A falta de materiais; as parcas condições de higiene e o regresso de doenças ditas como comuns, aliadas a outras desconhecidas, mas de grande ferocidade como a Pneumónica de 1918, flagelaram os responsáveis de um campo que tardava em receber as prometidas ajudas económicas em virtude da burocracia e crise com que o país se debatia. Contudo, os próprios prisioneiros entendiam a situação e colaboraram com as autoridades até porque era do seu interesse, numa postura normalmente partilhada pela população civil, embora se tratassem de inimigos. Contudo, o eco deste tratamento gerou recalcamentos numa sociedade em privações que, com muito esforço, os militares procuravam evitar no interior do DCA. Com o Armistício, estes sentimentos vieram ao de cima em parte da população angrense, gerando-se incidentes graves à semelhança do que aconteceu internacionalmente. Local de morte para alguns e de vida para outros, o Depósito de Concentrados Alemães em Angra do Heroísmo acabou por ser o reflexo da sua época e das dificuldades que a jovem I República conhecia. O espírito de respeito e vontade de melhorar por parte dos militares nos Açores, apesar de alguns atritos, debateu-se sempre com dificuldades advindas do distanciamento dos centros de poder e do caos financeiro de uma I República guerrista. Nada que surpreenda, dado o agravamento de condições político-financeiras durante e após o conflito. Novembro 2021 -

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“Saudades da terra” como repositório de Estórias: A origem mitológiva de São Miguel e Santa Maria

Paulo Ramalho

Gaspar Frutuoso (1522-1591) é unanimemente considerado o «pai» da história açoriana, e “Saudades da Terra”, a sua magnun opus, um documento imprescindível para o conhecimento da Macaronésia no final do século XVI. Os seis volumes do manuscrito – detalhada descrição histórica e geográfica dos arquipélagos dos Açores, Madeira e Canárias, redigida entre 1586 e 1590 – continuam ainda hoje a ser um importante manancial de informações sobre a geografia, mineralogia, história, usos e costumes, genealogia, toponímia, fauna e flora dos arquipélagos atlânticos nos dois primeiros séculos de povoamento. Mas este ilustre micaelense, bacharel em Artes e doutor em Teologia pela Universidade de Salamanca, não se limitou a ser o melhor dos cronistas insulanos (o que já não seria pouco). Destacou-se também, no pequeno e isolado meio cultural açoriano, pelo seu conhecimento enciclopédico e humanismo multifacetado, típico de um espírito renascentista. Literato, artista, músico, observador sensível de todos os fenómenos naturais, Frutuoso foi um homem da sua época, aberto a um mundo em mudança e atento a todas as formas de conhecimento da realidade. A sua formação erudita e a leitura atenta dos autores clássicos, aliada à atenção dispensada ao trabalho dos seus contemporâneos, colocam o cronista das ilhas atlânticas entre a elite cultural do seu tempo e revelam-se de um modo particularmente evidente ao longo da composição de “Saudades da Terra”, onde a vivacidade com que evoca tradições e conta histórias se alia muitas vezes a uma idealização poética da realidade, assente numa trama alegórica que deve muito às normas e à estética da tradição literária greco-latina. Se estas referências clássicas são mais abundantes no Livro Primeiro, elas não deixam de estar presentes no conjunto da obra, espreitando ao longo da narrativa ou impondo-se em determinados capítulos, quer pela estrutura formal de composição, quer pelo imaginá-

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rio pagão, assente em temáticas grandiosas e mitologias ficcionadas que enfatizam as virtudes do amor platónico. É o caso da interessante alegoria sobre a deriva – rio Tejo abaixo e Atlântico fora – das ilhas de São Miguel e Santa Maria, até ao seu parto final, a partir dos corpos de pedra do gigante Almourol e da giganta Cardiga, que surge no capítulo XXXVII do Livro Quarto. Partindo de uma ideia poética – a ilha de S. Miguel assemelha-se a um gigante “no espaçoso mar deitado e em perpétuo sonho dormindo” – e de um facto real – Frei Gonçalo Velho, primeiro Capitão de São Miguel e Santa Maria, foi Comendador de Almourol –, Frutuoso cria um elaborado enredo em torno de um gigante mourisco chamado Almourol, “que alguns disseram haver antigamente” e que foi senhor, no rio Tejo, “daquele castelo que tomou o nome dele”. Almourol era um “horrendo e espantoso gigante, de grande e espaçosa estatura” (notem-se as ressonâncias adamastorianas da descrição) que depois de falecido foi enterrado junto ao Tejo, nas imediações do seu castelo. Sucedeu, porém, que certo dia o rio galgou as margens com “tão crescida enchente que, escarvando a terra de sua recente sepultura, trouxe por suas apressaduras correntes abaixo seu corpo inteiro (…) [através das] amenas e saudosas serras, as terras verdes e frescas, os campos cheios de cores e deleitosos prados, as quintas alvíssimas e formosas e aquelas populosas vilas e ricos lugares que de ambas as partes o acompanham.” Frutuoso descreve a dor dos seus familiares que, vendo o gigante partir na deriva da corrente e lembrando-se de como fora seu senhor, “casado com a Cardiga, sua senhora, já morta, deram grandes gritos, lamentando o seu apartamento tão saudoso.” Segue-se depois o circunstanciado relato do arrastamento do corpo em direcção à embocadura do Tejo e ao grande mar oceano. O gi-


gante passa meia légua abaixo do castelo de Almourol, à vista do mosteiro de Santo Onofre, e de duas quintas “que dali a quatro tiros de besta estão de aquém e de além Tejo.” Meia légua mais à frente bordeja a Chamusca, Ulme e a Golegã, até chegar à vista da vila da Azinhaga e da cidade de Santarém, por entre vívidas descrições da paisagem, com referências a quintas e palácios, famílias ilustres, pormenores geográficos de interesse, detalhes históricos e, até, curiosidades avulsas. Um exemplo: “E logo três tiros de besta para baixo, a quinta de André Teles, e além, uma légua e meia de campo até às Barrocas da Rainha, apartadas meia légua do Tejo, em que entra correndo por junto delas um rio pequeno, que se passa em uma barca de grande rendimento, cujo barqueiro tem seu prémio cada novidade de cada um dos lavradores do campo, e a barca certa moeda de real e meio, de cada pessoa que nela passa. E atrás das Barrocas, em que está a venda, vira um mosteiro da Província de S. José, de religiosos capuchos; e logo mais adiante, uma légua e meia de fertilíssimos campos e vinhas.” Depois de Santarém a deriva do descomunal cadáver prossegue, por entre pormenorizadas descrições de férteis lezírias e terras ribeirinhas. Sucedem-se as localidades, ora numa margem, ora na outra, até à “afamada vila de Almada (…) em que haverá perto de sessenta moendas que moem de maré, e bons vinhos e muita lenha de pinho, de rama e de tronco, que em barcas levam para Lisboa”. Em frente do gigante, estendendo-se desde Xabregas a Belém, está agora a magnífica capital do reino, apinhada de denso casario e variadas gentes. E, acrescenta o cronista, daquele local parece Lisboa o realmente que é: “a mais soberba e populosa cidade do universo.” De tal modo que (assevera, num arroubo literário) se Almourol fosse ainda vivo “o borborinho e bafo dela [ali] o detivera e muito curta lhe parecera a idade para desejar de gastar em tal cidade a vida toda.” A passagem da colossal criatura diante da grande urbe não passa, no entanto, despercebida. Vendo-o deslizar sobre as águas, os frades dos mosteiros pedem a Deus para os livrar de semelhante monstro, e as saloias de Oeiras fogem em pânico, deixando a praia juncada com os cestos, que para “refeição da natureza enfastiada ou faminta da populosa cidade

traziam”. As únicas que não parecem temer Almourol são as ninfas Tágides, acostumadas a conviver com estranhas criaturas marinhas. Ainda assim, as suas opiniões dividem-se. Seria ele um animal das profundezas oceânicas? O pai das naus das Índias? Ou uma grande serra que “com crescida corrente, as doces águas ao salgado mar (…) levavam”? Passando Almourol a barra do Tejo, “se veio engolfando no grande mar oceano, para esta ocidental parte” e, navegando ao sabor de fortes correntes e ventos, acabou por encalhar longe da costa, no baixio das Formigas. Ora, explica o cronista, “como era corpo de excessiva grandura e pesado, neste lugar fez assento e aqui se ficou nestas oceanas e salgadas águas o morto sepultado para sempre.” Assim surgiu a ilha de São Miguel. Alguns anos antes, uma outra enchente do Tejo tinha já trazido até tão longínquas paragens a giganta Cardiga, a quem depois foi posto o nome de Santa Maria. E eis que agora, para remate feliz desta fábula insular, o gigante voltava para perto de sua defunta mulher, morto também ele, mas preso ainda de seus amores. “Ambos escolheram aqui os seus jazidos”, conclui melancolicamente Gaspar Frutuoso, “porque na verdade qualquer ilha destas, neste tão comprido e largo mar oceano, não é outra coisa senão uma prisão algum tanto espaçosa, e até, de coisas pequenas, quanto mais das grandes, uma muito estreita e muito mais curta sepultura.” As aventuras póstumas dos dois amantes inseparáveis, Almourol e Cardiga, são um bom exemplo das múltiplas possibilidades de re-criação artística que a narrativa frutosiana oferece – e por essa razão me demorei nos meandros da história. Imagino-a (porque não) fonte de inspiração mitológica para o ciclo criativo de um pintor; ou então tema para uma curta-metragem de cinema de animação (os laços indissolúveis entre as duas ilhas mais orientais do arquipélago açoriano). Diria, no entanto, que “Saudades da Terra” se impõe também no âmbito de um turismo de descoberta focado na história dos Açores. Afinal de contas, o cronista descobriu, no seu tempo, aquilo que ainda hoje aqui nos traz enquanto Guias de Informação Turística: a rede umbilical de relações que une as nove ilhas do arquipélago açoriano na grande teia de uma alma comum. Novembro 2021 -

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Mergulhar no Tempo.

O projeto Margullar e o património cultural subaquático dos Açores Pedro Parreira

O arquipélago dos Açores reúne, em potência, cerca de mil naufrágios, documentalmente assinalados pelo trabalho de cronistas e registos históricos, ao longo de cerca de cinco séculos. Acresce, para além desse vasto número, outras ocorrências patrimoniais dispersas, como o são, por exemplo, os vestígios de antigas fortificações, entretanto desaparecidos, pelas mais diversas causas, que acabaram por ficar, parcial ou totalmente submersas, deixando para trás os vestígios dessa presença humana, que ocupam um espaço de excelência na construção da identidade do arquipélago, e das suas gentes. Na verdade, essa identidade sempre esteve profundamente enraizada no mar. Os habitantes dos Açores são, por excelência, pessoas que se dividem entre a terra e o oceano Atlântico que os rodeia, ocupando espaços repartidos, territorialmente, mas interligados por uma construção identitária comum. A herança desse passado materializa-se, certamente, em terra, mas é no mar, e nos vestígios patrimoniais nele submersos, que podemos encontrar uma maior representatividade de todos os que passaram pelo arquipélago, que, desde o século XV, se assumiu como escala de excelência para a navegação transcontinental. No começo daquela que se pode apodar de «primeira globalização», quando os primeiros marinheiros europeus iniciaram o processo de traçar rotas seguras para alcançar o continente americano, bem como partir para o longínquo Oriente, e regressar em segurança, o arquipélago dos Açores passou,

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Fotografia: Nuno Sá

desde cedo, a assumir-se como central. Esse centralismo surgiu, não de forma dominante, mas enquanto ponte natural, porquanto as ilhas assumiram-se como pontos de paragem obrigatória, para reabastecimento, antes do regresso a casa, ou último reduto de uma cultura europeia, antes da partida em direção ao Novo Mundo. Foi graças a essa interculturalidade, e ao contínuo fluxo de bens e pessoas, que, desde muito cedo, encontramos registos de episódios fascinantes, associados ao mar, sendo que muitos deles acabaram por culminar em processos de deposição de bens patrimoniais – frequentemente naufrágios -, que ainda hoje permanecem por descobrir, ao largo das nove ilhas. São verdadeiros exemplos materiais de túmulos temporais, aguardando, silenciosamente, o resgate, por parte dos arqueólogos que os estudam, e dão a conhecer as inúmeras estórias do quotidiano dos que por ali passaram. Esse autêntico tesouro é classificável como um dos maiores museus subaquáticos do mundo, tanto pela sua vasta expansão geográfica, como pelo elevado quantitativo de registos conhecidos, para além dos que ainda estão por reconhecer. Desbravando a neblina da história, encontram-se episódios fascinantes, alguns deles associados à pirataria e aos grandes conflitos bélicos dos últimos cinco séculos. No canal que separa a ilha das Flores da do Corvo, em 1591, uma embarcação corsária, de seu nome, Revenge, enfrentou, sozinha, uma armada espanhola, comandada pelo temível Alonso


de Bázan, responsável pela derrota de várias esquadras britânicas ao largo dos Açores. O Revenge, que fora, em tempos, comandado pelo famoso Francis Drake, era à época capitaneado por Richard Grenville, aristocrata corsário, que ordenou que os seus homens fizessem frente aos castelhanos, de forma a possibilitar a fuga dos seus conterrâneos, que ali se encontram, noutras embarcações. Seguiu-se um conflito que ficou marcado na história de portugueses, espanhóis e ingleses. Durante uma noite, o Revenge aguentou-se, perante a fúria dos adversários, até sucumbir, pela madrugada, rendendo-se a sua tripulação e o seu líder. O universo, todavia, ainda não tinha terminado os seus planos para com aquele navio corsário. Escoltado pelos castelhanos, para ser apresentado ao seu monarca, Filipe, enquanto orgulhoso espólio de guerra, o Revenge foi apanhado numa tempestade, ao largo da ilha Terceira, e acabou por naufragar nos Açores, onde ainda permanece, para contar a sua história e oferecer uma narrativa fascinante à imaginação de todos os que por ela se apaixonam. Contam-se muitos outros exemplos de navios de guerra e corso, dispersos um pouco por todo o arquipélago. Ao largo da Calheta, em São Jorge,

Fotografia: Nuno Sá

encontra-se a Her Majesty’s Ship Pallas, exemplar de excelência da fragata moderna, do século XVIII, que serviu a coroa britânica em diversos conflitos, o mais famoso dos quais, a Guerra da Revolução Americana. O visitante que deseje embrenhar-se na sua história poderá visitar dois dos canhões da embarcação, junto à baía da Calheta, ou observar uma parte do espólio da embarcação, no Museu Francisco Lacerda, abrindo uma janela no tempo, para o quotidiano dos seus tripulantes. Através da investigação histórica e arqueológica, foi já possível remontar uma parte interessante do passado desses, e de muitos outros navios que navegaram ao largo do arquipélago. Esse papel, assumido, numa primeira instância pelos historiadores e arqueológos, permite formar uma narrativa, que é

posteriormente passada ao grande público, pelos profissionais de turismo que com eles trabalham. A arqueologia subaquática, ciência que procura desvendar, através dessa cultura material, o passado e a nossa herança conjunta, esteve, desde sempre, intrinsecamente associada ao arquipélago açoriano. Pouco depois de se ter autonomizado, enquanto disciplina científica e humana, no pós-II Guerra Mundial, chegaram a Portugal os primeiros trabalhos na área, efetuados, primeiramente, por amadores, que acabariam por criar técnica e método, ainda hoje reproduzido, um pouco por todo o país. Os primeiros trabalhos decorreram em duas frentes. Ao largo de Troia, em Setúbal, aqueles que podemos designar como os primeiros arqueólogos subaquáticos do país, procuraram resgatar vestígios do período romano, ali submersos. Mas é nos Açores que vamos encontrar a primeira campanha plurianual, contando com a presença de uma equipa internacional, visando a recuperação de artefactos arqueológicos, para incorporação dos mesmos em reserva museológica. Esse trabalho foi fruto da visão estratégica de Manuel Coelho Baptista de Lima, pioneiro na museologia açoriana, primeiro diretor

Fotografia: Rolando Oliveira

do Museu de Angra do Heroísmo e coordenador de uma missão arqueológica, ao largo da ilha Terceira, na década de 60 do século XX, com vista à recuperação de peças de artilharia, em vários pontos da costa, em colaboração com mergulhadores norte-americanos, da Base das Lajes. O resultado positivo levou a que, no começo dos anos 70, Sydney Wignall, arqueólogo britânico, - e provável espião da Coroa, nas horas vagas -, tenha rumado à ilha Terceira, para procurar resgatar o local de naufrágio do anteriormente mencionado Revenge. Em parceria com Baptista de Lima, Wignall aventurou-se ao largo da freguesia da Serreta, bem como na baía de Angra, coordenando uma prospeção intensiva dos fundos marinhos, que permitiu identificar uma nova peça de artilharia, mas que


ficou aquém dos resultados esperados. Todavia, atendendo à crescente presença de interessados no património cultural subaquático daquela enseada, o Museu de Angra do Heroísmo, na figura do seu diretor, propôs ao Governo da República a criação do estatuto de Reserva Arqueológica para o local, tendo a mesma sido aprovada, em 1973, e tornando-se na primeira, ao nível nacional. A arqueologia subaquática açoriana assumiu-se, assim, como pioneira. E esse esforço, nos anos 70, veio repercutir-se nas décadas seguintes, através das equipas que promoveram múltiplos trabalhos de investigação, um pouco por todas as ilhas, e que, contando com o apoio das autoridades tutelares, foram criando um inventário crescente de sítios arqueológicos submersos. Com um processo de cariz verdadeiramente revolucionário em curso, já nos anos 2000, o Governo Regional dos Açores assume a tutela autonómica do património arqueológico, e passou a contar com especialistas nessa área no seu quadro. A partir desse momento, abrem-se as portas à criação de estratégias de gestão patrimonial que, de uma forma ou de outra, pautaram por colocar numa posição de primazia esse património cultural submerso. Os motivos para tal prendem-se, conforme se foi podendo atestar, por estes breves parágrafos, com o manancial patrimonial existente, de relevo, a nível local, nacional e internacional. Por volta de 2016, a Direção Regional da Cultura, através da sua equipa de arqueologia, tinha já identificado perto de uma centena de sítios de naufrágio, através de trabalhos de prospeção e registo in situ. A capitalização desses locais, enquanto ativos económicos, foi uma preocupação assumida pelos responsáveis técnicos e políticos, à época, e passou a ser uma constante da visão estratégica governamental, desde então. Se, em tempos passados, a presença de um naufrágio servia a economia local, através do resgate dos seus salvados e reaproveitamento de partes da própria embarcação na construção utilitária do quotidiano, conforme o atesta a já mencionada expressão «ventos de carpinteiro», o certo é que o naufrágio, em época atual, reúne potencial para servir a economia de formas bem distintas, mas igualmente importantes para o seu crescimento. Atendendo a que o turismo de mergulho corresponde a uma das tipologias com maior índice de crescimento, em momento anterior à pandemia, naturalmente, não será de espantar que a estratégia tenha passado por uma integração desse património cultural subaquático enquanto produto da Marca Açores. Esse ativo turístico, entre 2016 e 2020, cresceu de forma considerável, em muito pelo papel que a gestão desse património assumiu.

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Em 2017, o Governo Regional dos Açores publicou um Guia do Património Cultural Subaquático dos Açores, onde se encontram reunidas as histórias de trinta sítios patrimoniais submersos, que reúnem condições para a sua visitação. Esse produto foi o primeiro passo para a diversificação da estratégia em curso, focando-a na promoção turística. Todavia, a estratégia visou, de igual forma, a visitação sustentável. No que concerne à sustentabilidade do produto, em 2017, iniciaram-se também esforços, para apresentar uma candidatura conjunta, com outras instituições locais, nacionais e internacionais, no sentido de enquadrar a gestão do património cultural subaquático num projeto cofinanciado pela União Europeia, no âmbito dos programas INTERREG-MAC. Esse trabalho culminou com a aprovação da candidatura, e o começo do projeto, que se designou Margullar. O projeto Margullar é uma iniciativa de cooperação transnacional, cujo objetivo é o de vincular o binómio Património e Turismo, através de ações assentes na arqueologia subaquática e na preservação e conservação do património cultural subaquático, valorizando-o como ativo económico, para a sua promoção, e que envolve a Região Autónoma dos Açores, a Madeira, Cabo-Verde, Canárias e o Senegal, na procura de criar um produto de turismo cultural sustentável a partir do património cultural subaquático comum. A criação de roteiros visitáveis, de forma sustentável, bem como a identificação de novos sítios de interesse cultural subaquático, levou à implementação de diversas estratégias de ação, tais como a realização de prospeções subaquáticas, em vários pontos do arquipélago, e a formação de técnicos especializados, nas vertentes práticas da arqueologia subaquática. Procura-se, assim, aumentar a oferta patrimonial, capitalizando-a, enquanto mais-valia turística, económica e cultural, mas também aumentar a qualidade e quantidade de sítios estudados, nos Açores. Outros trabalhos que foram sendo promovidos envolveram a criação de documentários e trabalhos artísticos, de teatro e literatura, para divulgação desse enorme potencial patrimonial junto de todo o tipo de públicos, incluindo os que não o visitam de forma direta. Um naufrágio é, por si mesmo, um espaço de visitação em constante perigo de destruição. Em primeiro lugar, pela ação da natureza, com a presença de correntes marítimas intensas, temporais e outras intempéries altamente destrutivas, mas também com a mera erosão anual, que gradual, mas seguramente, vai acabar por consumir todos os vestígios que permaneçam submersos. Esse perigo é acrescido pela presença de visitantes, sejam eles os investigadores,


Fotografia: João Bruges

sejam os turistas, mergulhadores profissionais ou, de forma mais insidiosa, os caçadores de tesouro. A criação de condições para a visitação sustentável passou, portanto, pela sensibilização dos que estão capacitados para essa visita, com a criação de uma estratégia concertada para a sua execução. O principal resultado desse trabalho foi a elaboração de um protocolo inédito entre a Direção Regional da Cultura e a Associação dos Operadores de Mergulho dos Açores, da qual resultou um Manual de Boas-Práticas do Património Cultural Arqueológico Subaquático dos Açores, no âmbito do projeto Margullar, traduzido para três línguas e disponibilizado aos profissionais que trabalham diretamente com esse património, diariamente. Entre 2019 e 2021, foram promovidas ações de formação dos operadores marítimo-turísticos dos Açores no âmbito do protocolo, porquanto correspondem à mais direta linha de defesa desse património, transformando-se em autênticos guardiões de tesouros da Região. As formações decorreram, igualmente, junto das diversas delegações da Autoridade Marítima Nacional, procurando sensibilizar os responsáveis pelo policiamento dos mares dos Açores para a necessidade de acautelar e proteger o património cultural subaquático perante uma das suas principais ameaças: a caça ao tesouro e o tráfico ilícito de antiguidades. Esse trabalho de formação, que envolveu pequenas sessões de esclarecimentos, acrescidas da distribuição dos referidos Manuais, estendeu-se a pratica-

mente todas as ilhas, estando prevista a sua continuação, de acordo com as diretrizes, associadas à higiene e segurança pública, no contexto da pandemia, da Direção Regional de Saúde. Uma última palavra para a questão da pandemia, e o futuro do projeto Margullar. Em 2020, a Direção Regional da Cultura dos Açores iniciou o projeto Margullar 2, uma linha de continuidade, perante o já estabelecido. Face ao desafio que o mundo enfrenta, no contexto da difusão pandémica do vírus COVID-19, esse trabalho não se desenvolveu, nos últimos tempos, de forma plena. Todavia, procurou-se acautelar a relação de proximidade com as comunidades locais, que se têm assumido como pilar basilar dos projetos em curso. Essa ligação foi cimentada pelo desenvolvimento de atividades de promoção, que levaram o património às escolas e à casa das pessoas, através de palestras digitais e sessões de esclarecimentos. O futuro passará pela melhoria das condições de visitação, incluindo para os que, por motivos diversos, não podem mergulhar, com a criação de Centros de Conhecimento e Sensibilização, em todas as ilhas. Passará, igualmente, por uma aposta na transição digital e na disseminação de novos sítios visitáveis, que aumentem a oferta turística, fomentando o trabalho de investigação, que permitirá contar novas e interessantes estórias, e contribuir para a herança identitária conjunta da Região Autónoma dos Açores, da Europa e do mundo. Novembro 2021 -

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MAU T EMP O NO CANAL… A versão debaixo do mar José Luís Neto

Em dias de chuva, de cinzento empastados, com regulares arrepios de frio, que gerados nos pés invariavelmente medram costas acima, é incontornável, numa pausa abrigada, recordar os verões que foram e ansiar pelos que tardam por vir. Foi no último pré-pandémico, em agosto de 2019, na ponta da Greta, junto ao forte da Greta, ao largo do Monte da Guia, que, guiado pelo incomparável Norberto, em companhia do Zé António Bettencourt, fomos fazer o reconhecimento de um sítio relativamente afamado localmente, conhecido como o “naufrágio da Escavação arqueológica no sítio do Horta 1. Autor: José Bettencourt.

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A cidade da Horta, na ilha do Faial. Autor: José Bettencourt.

loiça”. O local é do conhecimento comum dos mergulhadores da Horta e dele já haviam dado notícias, faz duas décadas, tanto Frederico Cardigos, como José Serra, bem como Paulo Alexandre Monteiro. O sítio de naufrágio fica localizado a 38 metros de profundidade. Em descida rápida – mas que nem assim me alheou da surpreendente e sedutora beleza da bruta geografia, da abundante fauna e flora marinhas –, observámos, no fundo, parte de um costado lateral de um navio em ferro, com parte das balizas contíguas, fragmento de cerca de 5 por Recuperação de peça de artilharia proveniente do sítio do Horta 3. Autor: José Bettencourt.


2,5 metros. Foi igualmente verificada a presença de uma zona de dispersão de material, de vasta extensão, sobre fundo arenoso e de pedra miúda, tendo sido possível observar um único fragmento de fundo de taça, de faiança de produção industrial, esmaltada a branco. O óbvio foi constatado. Mesmo com reguladores nas bocas, não foi o silêncio verbal que foi óbice ao consenso. Um local de mergulho cultural, jurado e filmado como excecional, para o qual iríamos estudar as melhores possibilidades de o abrir ao público, era agora um deserto. É evidente que há duas décadas atrás, a consciência da importância do património cultural subaquático nos Açores era muito distinta da presente. Nem se pensaria, no âmbito do mergulho recreativo, a manutenção das peças “in situ”, à exceção de uns poucos quantos, tidos, no mínimo, como muitíssimo originais. Foi entendido como normal, mormente como testemunho de um mergulho realizado com sucesso a essa profundidade, trazer um sinal que atestasse a coragem, a audácia e a perícia do mergulhador. E terá sido assim, que de “lembrança” em “lembrança”, de “recuerdo” em “recuerdo”, ao longo dos últimos vinte anos, o “naufrágio da loiça”, passou ao “naufrágio sem loiça”. Atualmente será muitíssimo difícil abrir este local como sítio de turismo de mergulho cultural, porquanto o mergulho a essa profundidade obriga a pouco tempo de permanência no fundo, seguido por dois patamares de descompressão, o que se justificaria plenamente para ver uma carga centenária de antanho, mas dificilmente atrairá alguém a tal fadiga, para simplesmente olhar para um bocado de ferro, por mais do antigamente que seja. O fragmento de loiça, que lá encontrámos e lá ficou, “in situ”, pertence ao grupo tipológico “Opaque white stonewares”, produzido desde a década de 1830 até aos finais do século XIX. No que respeita à tipologia de construção do costado, é datável de meados do século XIX, até inícios do século XX. Com o olho experiente, o Zé António disse, a partir daquele pequeno fragmento de costado, que tratar-se-ia de uma embarcação de significativo volume, calculável em cerca de 70 a 100 metros, de comprido. Em terra, o Norberto, percebeu os rostos sombrios daqueles que tinham – antes de se lançarem à água, ficado entusiasmados com a possibilidade de talvez ali verem um futuro parque arqueológico subaquático – regressado desanimados, sem terem sequer como conseguir identificar, pelo menos, o navio naufragado. Foi a casa e trouxe uma peça por si recolhida no naufrágio, havia décadas. Tratava-se de uma tampa de molheira, da mesma tipologia, sem qualquer marca, que doou e passou a integrar

Trabalhos de registo arqueológico no sítio do Horta 6. Autor: Friederike Kremer-Obrock

Cidade da Horta com respetiva localização dos naufrágios visitáveis adjacentes.

Naufrágio da Loiça. Autor: José Bettencourt.

Caroline.

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a coleção do Museu da Horta, o que testifica a existência de um naufrágio, mas que, infelizmente, não permitiu melhorar as perspetivas de identificar a embarcação soçobrada. É que entre 1830 e 1900 são setenta anos contados e, para esse período de tempo, há cerca de meia centena de naufrágios documentados ao largo da ilha, metade do total dos naufrágios documentados para o Faial. No estudo preliminar colocado a público na Carta Arqueológica dos Açores (googlem-no e o encontrarão), fez-se um esforço para apertar a malha da peneira, mas, vos confesso, com pouca convicção. Assim, um recurso cultural promissor, o “naufrágio da loiça”, ora é o “naufrágio sem loiça”; e sem his-

desculpa aos respetivos por este meu atrevimento), estou em crer que as experiências que assinam a pele, levam-nos a querer regressar aos locais onde sucederam. Corria o ano de 2004, a 7 de janeiro quando, em declarações ao “Azores Global”, o diretor regional da Cultura, anunciou que estava em estudo a criação de um parque arqueológico subaquático na zona de Porto Pim. Não cheguei a conhecer esse estudo, que terá quase 20 anos, mas compreendo as razões que o poderão ter justificado. Nos fundos marinhos jazem os destroços da nau da Índia, a capitânia “Nossa Senhora da Luz”, aí soçobrada num temporal em 1615. A história e estórias associadas a este naufrágio são de tal forma de espantar que,

Main em chamas. Autor: Álbum Dabney, nº4, 014, BPARJJG

tória e sem a sua carga, não passa de um pedaço de ferro velho no fundo do mar. É minha convicção que devemos fazer uso útil do hiato pandémico para refletir em soluções defensáveis, com vista a um futuro benéfico para um desenvolvimento sustentável nas ilhas. Parece ser óbvio, mas nunca é demais recordar que melhor e mais sustentável desenvolvimento, implica uma crescente criação de postos de trabalho, a significar dignidade económica para as famílias e consequente aumento de qualidade do meio ambiente, valorizando os ativos endógenos. Pese embora não seja profissional da área do turismo (pedindo, desde já,

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por si só, justificariam tal proteção. Mas essas ficarão para outra oportunidade de as partilhar, ou fazer um guião para filme de Hollywood. Contudo, de sete naufrágios registados na zona, um deles se destaca pela impressiva integralidade estrutural. O “Main”, navio inglês comprometido com o ignominioso comércio de algodão dos estados confederados dos Estados Unidos da América, ali encontrou a sua morada final. A tão somente 4 a 5 metros, ou seja, sem qualquer risco de saúde para os iniciantes de mergulho, trata-se de um dos mais fáceis, acessíveis e com evidente potencial de ser financeiramente rentável, locais de naufrágio de todo


Núcleo dos canhões. Autor: José Bettencourt.

o arquipélago. É local seguro para batismos de mergulho, infelizmente, pouco utilizado e parcamente explorado pelos operadores de mergulho sedeados, apesar de se tratar de recurso de património cultural de exceção. Trata-se de um vapor construído em 1868, pela Caird & Company Greenock, com 1805 toneladas, 101,2 de comprimento e 12,2 m de boca. Três anos apenas haviam decorrido do final da “Guerra de Secessão”, o que o fez testemunha de todo o período que medeia a “Proclamação de Emancipação” e o da privação de direitos e segregação legal das “leis de Jim Crow”, um dos mais decadentes e embaraçosos períodos da história dos Estados Unidos da América, cujos fantasmas parecem teimar em não querer passar, recrudescente de tempos a tempos, como com o assassinato de George Floyd. Para se ter a perceção desses tempos, nessas latitudes, embora retratando um período ligeiramente anterior, basta rever o célebre filme “12 anos escravo”. Foi já com largos anos de navegação que entrou no porto da Horta, a 23 de novembro de 1892, com um incêndio a bordo, quando navegava entre Nova Orleães, nos Estados Unidos, e Liverpool, em Inglaterra. No dia seguinte foi encalhado no Porto Pim, onde foi fotografado em chamas pela família Dabney. Para que se caminhe para a dignificação dos ativos culturais próprios, bom seria retomar esse desígnio do início do século e dignificar o Faial com um parque arqueológico subaquático, que promova o

Pontão 16. Autor: Frederico Cardigos.

turismo ambiental e cultural em simultâneo, que difunda o conhecimento e as experiências vividas, intimistas e marcantes, com o mar oceano. A ideia foi retomada em 2019, tanto pela Cultura como pelos Assuntos do Mar, que fizeram assinalável trabalho técnico. Porém, no vórtice do eterno presente, que parece ser o determinístico destino dos dias correntes, creio ser altura para tirar o projeto da gaveta do oblívio e, em prol do bem-comum, colocá-lo em discussão pública, dando-o a conhecer aos cidadãos, aceitando o seu juízo no processo de tomada de decisão, para que a cidadania não fique diminuída à condição de espetadora da vida própria. É absolutamente necessário “desconfinar”, acima de tudo as pessoas sem dúvida, mas não menos “desconfinar” ideias e “desconfinar” projetos, que podem oferecer horizonte de futuro às comunidades. Melhores ainda são aqueles cujos custos se reduzem aos do papel do “Diário de Governo” em que são impressos. Contudo, não sempre devem ser somente razões socioeconómicas a bússola que orienta os valores de salvaguarda do património cultural subaquático. Em maio de 2013 mergulhei, pela primeira vez, no Canal. Comigo, Tiago Castro, faialense, mergulhador exímio e experimentado, investigador e ativista da defesa do mar e empresário do setor marítimo-turístico, conjuntamente com a Joana que, dessa vez, optou por não ir ao fundo azul, mas que não foi por isso menos elucidativa e incisiva no esclareciNovembro 2021 -

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Viana. Autor: Frederico Cardigos.

mento do compromisso eco-sustentável da empresa. O objetivo desse nosso encontro foi o de observar um dos naufrágios mais famosos da área, para quem anda nisso das arqueologias subaquáticas, a tão somente 8 metros de profundidade, a “Caroline”. Recordo ainda hoje, depois de tão prazeroso mergulho, o quente daquele chá de conforto no pós-mergulho que acompanhou uma interminável conversa, o fascinado que fiquei pelas extraordinárias histórias partilhadas e pelo sentido de compromisso responsável daquela empresa familiar, claramente à frente do seu tempo, o imenso afeto e admiração que desde essa data lhes nutro. Em finais de julho voltei à “Caroline”, desta feita em conjunto com uma empresa de mergulho da Madalena, onde tive a oportunidade de conhecer Eduardo Bettencourt, pele tisnada pelo sol e sal, profundo conhecedor dos mares picarotos e ardentíssimo amante das histórias do mar, nas quais as pessoas não passam de vírgula, cúmplice na criação dos trabalhos técnico-científicos que levaram, um ano mais tarde, à criação do Decreto Regulamentar Regional n.º 15/2014/A, de 8 de agosto, que criou o parque arqueológico subaquático da “Caroline”, o primeiro do Canal e o terceiro do arquipélago. O veleiro “Caroline” foi uma embarcação de quatro mastros, mandado construir em 1895, nos estaleiros de la Loire, em Nantes, alçando 3026 toneladas brutas, tendo sido perdida ao largo da vila da Madalena, ilha do Pico, a 3 de setembro de 1901, devido a uma avaria no sistema de navegação, entre os ilhéus e a Areia Larga. O local do naufrágio foi reconhecido oficialmente no verão de 1998. Logo do ano seguinte, foi apresentada a proposta de criação de uma reserva arqueológica de proteção deste nau-

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frágio, da autoria de Paulo Alexandre Monteiro que, desde cedo, teimou em ver mais longe. Em 2008, Ana Catarina Garcia, no âmbito da colaboração entre a Direção Regional de Cultura e a Fundação Rebikoff-Niggeler, voltou ao local, onde fez um primeiro registo arqueográfico. Consequentemente, em 2010, o Museu do Pico solicitou à Direção Regional de Cultura a criação do parque arqueológico da “Caroline”, sem sucesso na altura, contudo, em junho de 2013, o município da Madalena, solicitou igualmente a criação do parque arqueológico, razão pela qual, sem o esperar, me vi a mergulhar duas vezes naquele mesmo naufrágio no espaço de três meses. A integridade das estruturas de arquitetura naval é assinalável para a condição do afundamento, o local é de uma beleza extraordinária, em que o qualificativo de mágico não é excessivo, contudo, como pude verificar por experiência vivida, somente se revela em toda a sua plenitude raras vezes ao ano. O mergulho de maio foi um dos mais belos que tive oportunidade de realizar em todos os que já fiz nos Açores, ao passo que o de julho-agosto, mostrou o quão caprichoso pode ser o oceano na proteção dos seus mais belos tesouros. Ao longo de uma semana apenas lá conseguimos mergulhar por duas vezes, ambas em radicais versões de mergulho de forte corrente, uma contra e outra a favor, em que eu e o meu companheiro de mergulho tivemos de fazer pela vida, sem resultados de monta para o que nos propúnhamos executar, ficando vergados e extenuados pelo esforço. Não nos devemos admirar dos caprichos da “Caroline”, uma vez que tal também serve ainda mais para sublinhar a sua história, que é admirável, local único


de casamento dos universos literários de Júlio Verne, no que respeita à arquitetura naval e soluções engenhosas e tecnológicas, dignas do melhor das “Vinte mil léguas submarinas”, com o contexto histórico ardentíssimo e intenso de Isabel Allende, principalmente na “Filha da Fortuna”, romance que parece ter sido esculpido a talhe para encaixar na perfeição e para constituir a verdadeira carga que a “Caroline” trazia nos porões na sua derradeira viagem. É que a narrativa da “Caroline” é bem mais complexa que a simples história de uma embarcação, se não nos retivermos somente em considerandos técnicos de construção naval. Se procurarmos entender o que, em verdade, a “Caroline” representa, teremos de iniciar esta narrativa nas guerras de independência da américa espanhola e explicar, a partir do prisma especificamente chileno, a história do mundo desde a sua independência até à primeira guerra mundial, com as suas virtudes, os seus fascínios, os seus sonhos e os seus numerosos embustes, desilusões e impotência face aos interesses das grandes potências de então. Acrescem, no Canal, aos referidos naufrágios, o “Pontão 16”, defronte da Praia do Almoxarife, Faial, a 25 metros de profundidade, fácil de visitar e que ali jaz inteiro; o bacalhoeiro “Viana”, a sudoeste do Faial, que magnífico descansa entre os 40 e os 60 metros de profundidade (o que não é para todos); o “Ravenswood”, navio mercante oitocentista que findou a sua existência, após excessivo consumo de vinho de Bordéus por parte da tripulação, no Cais do Mourato, Pico, que hoje descansa nas coleções do Museu do Pico; o “Lakeside Bridge”, cargueiro americano que soçobrou na noite de Natal de 1920 em São Caetano, Pico; a âncora da Areia Larga, da tempestade de 28 de agosto de 1893, que hoje repousa nos ilhéus; o “Horta 1”, mais conhecido como “naufrágio do marfim”, navio setecentista inglês com carga de uma centena de presas de elefante; até ao “Horta 6”, navio baleeiro americano de oitocentos, que hoje residem nas reservas do Museu da Horta, depois de retirados aquando da construção do terminal de passageiros do porto da Horta; e, claro, o “núcleo de canhões” de Entre-os-Montes, verdadeira reserva museológica subaquática visitável desses seis navios, acessível à profundidade de um “Open water”, certificação primeira de um mergulhador recreativo. Como bem me chamou à atenção o amigo e investigador Moussa Wele, os estudos realizados no ano de 2015, demonstram que existem mais de 30 milhões de mergulhadores certificados, em todo o mundo. Cerca de três milhões fazem uma ou mais viagens vocacionadas para a fruição dessa atividade, anualmente. O número dos que, a cada ano, se iniciam na atividade, ronda um milhão de pessoas.

Presentemente, são cada vez mais os países com território em zona litoral que exploram o turismo de mergulho, com vista ao desenvolvimento económico regional. Trata-se de uma oferta turística com comprovado potencial, como opção para o crescimento do turismo eco e autossustentável. Os Açores foram classificados como 3.º melhor destino de mergulho, em 2017, pela “Dive Magazine”, uma das principais publicações britânicas sobre mergulho. Em 2019, ao património cultural subaquático dos Açores, a UNESCO outorgou o “Best Pratices for Underwater Cultural Heritage”, única região do mundo a ostentar este título, pois os demais similares foram somente dados a sítios específicos. Em 2020, a Comissão Europeia premiou-o com o “European Heritage Label”, primeiro selo de qualidade dado ao património cultural subaquático do continente. Em 2017 foi apresentado na BTL o “Roteiro do património cultural subaquático dos Açores”, que reunia 25 sítios visitáveis e, desde então, conta já com mais de uma trintena. Nesse mesmo ano teve início o projeto Margullar, Interreg/MAC, que vigorará pelo menos até 2023, reunindo Açores, Madeira, Canárias, Cabo Verde e Senegal, com vista à criação de um produto cultural com valor turístico, tendo por base esse património e trabalhando à escala europeia, procurando-se alicerçar uma nova centralidade atlântica que contrarie a perspetiva periférica do ponto de vista da centralidade de Bruxelas e do eixo Paris-Berlim. Antes da pandemia calcula-se que haveria cerca de 45 500 mergulhadores por ano, de acordo com os dados disponibilizados pela Associação dos Operadores Marítimos dos Açores. Segundo o Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores, cada turista de mergulho equivalia, na região, a uma média de 1500,00€. Esse valor foi apresentado por Frederico Cardigos, à época Diretor Regional dos Assuntos do Mar, na “IV Bienal de Turismo Subaquático”, na ilha Graciosa. Tal incluía, não apenas os serviços especializados (operadores de mergulho), mas também passagens (aviação comercial), dormidas (hotelaria) e alimentação (restauração). Ficam de fora as lembranças e outros gastos não mensurados no estudo realizado. Sendo estimável que, antes da pandemia, o mergulho no património cultural subaquático já correspondesse a metade da totalidade do mercado de mergulho no arquipélago, não deixa de ser impressivo que, nas ilhas do Pico e do Faial, este não tenha adquirido significativa expressão. Caberá aos profissionais de turismo saber se também pretendem, ou não, explorar este filão, até hoje negligenciado na área do turismo de mergulho que poderá corresponder, grosso modo, a uma semana de estadia de mergulho. Novembro 2021 -

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A Lagoa das Furnas e a valorização estética da paisagem Isabel Soares de Albergaria Num estudo empírico coordenado por mim e pela Professora Cristina Castel-Branco levado a cabo no verão de 2014, em que aplicamos o método das preferências visuais (Steinitz, C., 1990 e Castel-Branco, C. et al.,2011) para testar a valoração estética conferida às paisagens da ilha de São Miguel, concluímos que as paisagens das lagoas ocupavam os lugares do pódio nas preferências reveladas pelos inquiridos. Com base em 240 inquéritos realizados à população residente e visitante, os resultados demonstraram que quando instados a escolher 5 imagens preferidas, representando 13 diferentes tipologias de paisagem, diferenciadas pelos usos do solo e caraterísticas morfológicas, quatro correspondiam às paisagens das lagoas, e destas 32.5% couberam à Lagoa das Furnas (Castel-Branco & Albergaria, 2017). Não tendo agora em conta os limites teóricos que podem ser apontados relativamente à “objetividaLagoa das Furnas traken from Grená, fotografia de autor desconhecido, s.d. (c. 1880). Col. BPARJJG

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Lagoa das Furnas, 2017. Foto Isabel Albergaria

de” deste tipo de instrumentos de avaliação estética das paisagens (Jacques, 2019:184-190), não deixa de ser absolutamente evidente a persistência de uma imagem positiva associada a esta paisagem de funções recreativas, transformada pela arte paisagista e pela arquitetura e representada pelo marketing turístico, cuja formação decorreu ao longo dos últimos 200 anos. É, pois, sobre a génese e transformação da Paisagem Cultural da Lagoa das Furnas que pretendo debruçar-me, salientando o papel dos seus principais protagonistas, com especial destaque para José do Canto (1820-1898). Sobre ele podemos aplicar a asserção de Monica Luengo segundo a qual os grandes jardins são o produto e o espelho da personalidade do seu criador em articulação com o genius loci (Luengo 2011). Recuando aos tempos primevos do povoamento da ilha, deparamo-nos – estranhamente – com parcas alusões à extensa lagoa, pese embora a celebridade precoce do Vale das Furnas. Situada a sudoeste da freguesia do mesmo nome, na parte oriental da ilha São Miguel, a uns escassos dois quilómetros do povoado, a Lagoa grande – assim chamada por comparação com outras duas, mais peRetrato de José do Canto, anonimo, quenas, que a erupParis, s.d. Col. Privada


Planta da propriedade de José do Canto, na Lagoa das Furnas, por George Aumont, Passy-Paris, c. 1867. Desenho aguarelado. Col. Privada

ção vulcânica de 1630 fez desaparecer – nunca foi local de habitação permanente, mantendo-se sítio de passagem e de estadias breves ou sazonais, tal como ocorre até ao presente. Foi morosa e intermitente a fixação de população nas Furnas, vindo a sofrer um “despovoamento” na sequência da erupção do Pico do Fogo de 1630. Quanto à Lagoa, conhece-se apenas a existência da fazenda de um tal Diogo Preto sediada nas imediações da Lagoa Grande, a que se refere o cronista quinhentista Gaspar Frutuoso (Frutuoso, 1998). Parte dessa extensa propriedade, presente na microtoponímia local até ao século XIX, iniciava-se nos Covões, à entrada da atual estrada da Lagoa das Furnas, e continuava pelos dois lados da estrada, ao longo da Chã de Diogo Preto, grota de Diogo Preto (ribeira do Rosal), Lagoa Seca e caminho do Sanguinhal, tendo sido, mais tarde, adquirida por José do Canto para formar a sua extensa propriedade com c. de 250 hectares (Borges, 2007:59). Toda a área encontrava-se coberta por um denso arvoredo, cujo primeiro “desbaste” foi levado a cabo para acudir ao desastre e consequente reconstrução de Vila Franca do Campo, motivado pelo terramoto de

1522. Poucos são os que se referem a este local, antes que o gosto pelas viagens por motivos de saúde colocasse o vale das Furnas no centro nevrálgico das vilegiaturas micaelenses. A romaria dos doentes e curiosos que se deslocavam “a banhos” para a estância termal que começava a ganhar alguma fama internacional, torna-se abundante a partir das últimas décadas do século XVIII e engrossará continuamente ao longo da centúria seguinte. Entre os primeiros relatos conhecidos encontra-se o do magistrado português Felix de Valois e Silva que visitou o vale em 1791, tendo deixado algumas notas significativas sobre o local. Queixa-se o magistrado de que pouca ou nenhuma importância era atribuída ao cenário envolvente da Lagoa, apesar de esta ser o que reputa de uma “maravilha da natureza”, espantando-se por não existir na área “nem uma só choupana” que servisse de abrigo a viajantes e pastores nos meses de inverno e de repouso nos meses de estio “para todos os que vão ao divertimento da pesca” (Apud Sousa, 2008:212) Por este testemunho percebemos que a lagoa se encontrava povoada de espécies piscícolas e que a atividade recreativa da pesca nestas águas interiores já seria ao tempo, uma prática corrente. Segundo Valois e Silva a introdução da fauna aquática teria ficado a dever-se a “alguns curiosos” que pouco tempo antes lhe haviam lançado peixes das mesmas espécies das que se vêm nas quintas particulares e que começavam então a reproduzir-se por outras lagoas e lagoeiros da ilha. Alguns anos mais tarde, o escritor irlandês Tomas Ashe, na sua History of the Azores (1813) identifica o cônsul americano Tomas Hickling como o autor da iniciativa (Ashe, 1813:103). Ashe, ao lado de outros autores, ajuda a firmar a

Vista área da capela de Nossa Senhora das Vitórias, 2017. Foto Maximilian Schönherr

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Vale dos Fetos, Mata-Jardim José do Canto, 2018. Foto Isabel Albergaria

ideia de que todos os “melhoramentos” tendentes à transformação do vale das Furnas estariam associados ao pioneirismo de Hickling. Não obstante a justeza da observação, no que toca à Lagoa das Furnas, a ação decisiva de humanização das encostas bravias e incultas que envolviam o lago vulcânico não pode ser-lhe imputada. Essa iniciativa coube, efetivamente, a Edward Noursey Harvey, um britânico membro do Royal Yatch Squadron e amante do iatismo como modalidade desportiva, que chegou a São Miguel entre 1832 e 1835. Por volta de 1838 adquire uns terrenos ermos na encosta do Pico do Ferro (Dias, 94-95) onde inicia a plantação de um bosque com algumas exóticas, entre as quais se encontrava o freixo (O Agricultor Michaelense, 1849:336) e projeta a construção de uma vistosa country house cujo risco ficou a dever-se a Thomas Hickling Jr. A propriedade, que então receberia o nome de Gitana, não permanece muito tempo nas mãos de Harvey e a casa não chegaria sequer a ser concluída (Rodrigues, 1995: 194). O que não significa que o arrojo do gesto tenha perdido impacto face a uma nova visão sobre aquela paisagem.

Habitar a Lagoa…

Numa carta datada de 1848 dirigida a Caterine Prescott, o autor do projeto, Thomas Hickling Jr. afirmava que a intenção de Harvey era vender a propriedade, e acrescentava as suas considerações sobre o lugar: “Se a Gitana fosse em Inglaterra valeria 36.000 libras! Ele juntou-lhe mais de 120 acres de terra alta, que fica a 600 pés acima do lago, onde existe uma boa nascente de água pura.” E concluía: “Penso

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que uma pessoa com bom gosto e meios de fortuna pode fazer dessa propriedade um dos mais bonitos e românticos lugares do mundo”. (Insulana, 1995 (LI):194). Uma clausula estabelecida na procuração de venda impunha a aquisição da propriedade exclusivamente por britânicos e, com efeito, o próximo proprietário foi o cônsul inglês Samuel Vines, a quem foi vendida em 1858 “por 800 libras, que foi o preço que ela custou” (Swindells, 1877: 87 Insulana, 1995 (LI):194). O cônsul empenhou importantes capitais na construção da casa e no melhoramento dos terrenos em volta, transformando-os numa bela estância de montanha, como nos conta Rupert Swindells, visivelmente impressionado pela imagem que o sítio lhe deixara durante a viagem realizada aos Açores em 1877: “[…] near this part of the lake, on an elevation, is a solitary large and good house, most beautifully situated overlooking the lake, with plantations and gardens, greenhouses and croquet ground; […].” Nessa época, havia já recebido o nome por que ainda hoje é conhecida: Grená. Segundo nos revela o Marquês de Jácome Correia o topónimo referia-se a uma extensa propriedade irlandesa situada na região dos lagos Leane, Ugper Lake e Torc, que havia pertencido ao político nacionalista Daniel O’Connel, tio de Mrs. Catherine Vines, a mulher do cônsul (cit. Borges, 2007:482). A verdade é que Vines teve uma passagem curta e intempestiva pelos Açores, deixando definitivamente a ilha de São Miguel em 1867, já exonerado do cargo de cônsul britânico, na sequência de um processo judicial em que foi acusado e condenado por crimes de violência praticada contra naturais da terra (A Persuasão, A. 40, Nº 2069 (1901-09-11). Dois anos depois, o novo inquilino da casa situada na encosta do “Salto do Bragado” da Lagoa das Furnas – conhecido depois por “Salto da Inglesa”, em atenção a Catherine Vines – era, precisamente, José do Canto. De regresso definitivamente de Paris, José do Canto instala-se na casa da Grená para dali poder acompanhar mais de perto os seus projetos de plantação e edificação na Lagoa das Furnas. De acordo com Pedro Maurício Borges a sua intenção teria sido, muito possivelmente, adquirir aquela propriedade, unindo a margem norte aos terrenos que fora adquirindo na ponta oposta e com isso “privatizar” a Lagoa (Borges, 2007:476). A clausula de venda, porém, viria a gorar as suas expetativas e a Grená seria vendida, cinco anos mais tarde, a James Hinton, que tratou de despejar o arrendatário. José do Canto sonhava, então, com uma “choupana em que podesse estar mais ao pé da Lagôa” e onde pudesse gozar do prazer de nela navegar


Lagoa das Furnas, Gilberto Nóbrega, s.d. Col. ICPD

durante os meses de Verão (Cartas Particulares, 8-91863). Os planos estavam traçados e passavam por um modelo de habitação diferente da situação de meia encosta em que se encontrava a Grená. Pelo menos foi essa a opção seguida nos projetos de arquitetura concebidos entre 1861 e 1867 e onde se incluía uma mansão a ser instalada na Chã do Forno da Cal; uma Maison de Garde (o chalet, a atual Casa dos Barcos) e um Pavillon de Pèche et de Navigation, convertida – assim o julgo – na Casa dos Barcos, além, evidentemente, da Capela de Nossa Senhora das Vitórias. Se o projeto da mansão riscado pelo prestigiado arquiteto londrino Mathew Digby Wyatt previa uma implantação mais afastada do plano de água, mesmo assim a uma cota baixa, os restantes debruçavam-se sobre a lagoa, ainda que os desenhos da época mostrem a presença de uma área de margens mais largas do que as atualmente existentes. Talvez por ter considerado a construção da mansão demasiado custosa, ou por ter acalentado em determinado momento a ideia de adquirir a Grená, o certo é que nunca chegaria a ser lançada a primeira pedra dessa construção. Quanto às restantes, fazem parte integrante do cenário das margens da Lagoa.

Uma paisagem transformada (1785-1885)

A transformação efetiva das margens da Lagoa das Furnas, depois do arranque tímido dos vários proprietários britânicos na Grená, coube a José do Canto. Com efeito, o proprietário micaelense iniciara, desde 1852, a compra de extensas porções de terra realizando para isso mais de uma centena de escrituras (Cartas Particulares, 1999:6). Numa carta dirigida de Paris a José Jácome Correia, datada de 8 de setembro de 1863, explicava como havia “começado a espalhar por alli alguma planta, quasi sem esperança de vingarem (...) Algumas plantas pegaram, os pinheiros não vieram mal, e comecei a ter a ambição de cobrir aquelles montes estéreis, de verdura e sombra.” (ibidem) Certo é que as plantações receberam desde o início as orientações do jardineiro inglês George Brown (1813-1881) que voltou a estar ao serviço de José

do Canto em 1852, depois de um interregno de três anos em que esteve ausente da ilha (Borges, 2007: 428). Empregado na Whitley & Osborn, casa viveirista de Fulham, em Londres, foi contratado por intermédio do arquiteto David Mocatta, projetista da casa e jardim para Santana (Albergaria, 2000: 121), sendo-lhe reconhecido um enorme contributo nos progressos da horticultura ornamental e no traçado de parques e jardins na ilha de São Miguel. Não obstante, o traçado paisagista pela mão de um profissional chegaria, mais tarde, com Jean-Pierre Barillet-Deschamps (1824-1873) – um arquiteto paisagista que havia estagiado no Jardin des Plantes e que desde 1860 assumira o cargo de jardineiro chefe da cidade de Paris, sob a direcção geral de Jean-Charles-Adolphe Alphand (Jellicoe, 1986: 304). O desenho dos caminhos e canteiros na faixa plana marginal à Lagoa cumpre quase exatamente a planta desenhada pelo paisagista francês, tendo sido orientada localmente pelo engenheiro topógrafo Lainé (UACSD; FBS-AJC, doc. F01). Considerou-se, grosso modo, uma técnica operativa conhecida por «decorative horticulture» que consistia no traçado de arruamentos em amplas curvas, descrevendo elipses e círculos nas zonas planas e a densificação da vegetação nas pendentes. No interior dos círculos relvados foram distribuídos grupos isolados de árvores ou indivíduos destacados. Além dos pinheiros que dominavam as serranias, José do Canto reservava o que chamava de “curiosidades” para alguns desses lugares escolhidos. É o que acontece com o Pico do Fogo onde já floresciam em 1859 rododendros “tãobem ou melhor do que em Inglaterra” (BAM/JC, Carta de 14-3-1859), bem como araucárias, cedros-do-Líbano e Cedrus deodara, aucubas, criptomérias, espruce-branco (Abies canadensis), entre muitas outras (Sousa, 2001:204). Nas margens da Lagoa, uma coleção especial porque parte importante de uma paixão local são as camélias. Em 1853 já as existiam na Mata-Jardim em bom número, como de resto provam as instruções enviadas ao seu jardineiro para que terminasse a plantação na «rua das roseiras do Japão» (UACSD, FBS-AJC, F06). Atualmente a propriedade conta com mais de 1400 pés de cameleiras, grande parte das quais introduzidas em meados do século XX por Maria Josefa Gabriela Jácome Correia (19211984) (Albergaria & Sampaio, 2014) Embora nos comentários de José do Canto acerca das novidades dos viveiristas deixasse transparecer que não se sentia particularmente atraído pelas palmeiras – anunciadas em todos os catálogos de plantas! – a verdade é que a associação de palmeiras e fetos arbóreos se tornou um tema quase obrigatório dos famosos vales dos fetos. Logo em 52 Brown resolve instalar um “fernery by the Rock on the lower Novembro 2021 -

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side” naquilo a que podemos chamar uma grota, pedindo ao patrão que lhe enviasse alguns fetos arbóreos (Borges, 2007:429). Era o embrião do famoso Vale dos Fetos que lá para o final do século constituía uma das principais atrações da propriedade da Lagoa das Furnas (Albergaria, 2000:227). Em 1859 José do Canto deixava escapar com inconfessada vaidade em carta a Maria Guilhermina: “Se Deos proteger aquellas plantações, e nos der vida para as continuarmos, espero que quando os nossos filhos houverem terminado a sua educação será um dos mais agradáveis prédios desta Ilha”. (BAM/ JC, Carta de 14-3-1859) Não se enganava. O esforço gigantesco de aclimatação botânica empreendido nas suas matas ajardinadas e, particularmente, na extensa propriedade da Lagoa das Furnas deixaram um legado imenso, amplamente reconhecido pelos testemunhos coevos. Fouqué atribui ao proprietário micaelense a intenção de fazer da ilha um vasto jardim de aclimatação – o que em todo o caso parece um tanto exagerado (Fouqué, 1873:11). É ainda o geólogo francês que, no que respeita aos pinheiros marítimos, documenta a plantação por José do Canto de mais de dois milhões de indivíduos anualmente, confirmando a ideia de que ainda não ocorrera a sua substituição por matas de criptoméria, como viria a acontecer ao longo do século XX. Em qualquer balanço feito hoje acerca da transformação operada por José do Canto e pelos seus émulos oitocentistas, coloca-se a questão incontornável dos danos resultantes da sua ação no equilíbrio ecológico. Constitui a outra face da moeda desta aventura empolgante da aclimatação botânica, que apaixonou mais do que uma geração em

toda a Europa ocidental e encontrou no clima benigno e solos antes férteis dos Açores condições ótimas para uma exploração intensa. Uma das plantas apontada como “culpada” pela sua enganosa bela aparência é, naturalmente, a conteira (Hedychium gardnerianum). Sabemos que a introdução na ilha desta atraente planta originaria das florestas húmidas da zona este dos Himalaias se deve, efetivamente, a José do Canto. A primeira referência que lhe é feita consta de uma lista de plantas do jardim de Sant´Ana, elaborada em 1851. Tendo passado praticamente despercebida nas observações de diversos naturalistas e cientistas que visitam os Açores, foi notada pela primeira vez como invasora, precisamente na propriedade de José do Canto da Lagoa das Furnas, pelo botânico norte-americano William Trelease, em 1897 (Trelease, 1897:82). O clima ameno dos Açores e as condições fisiológicas de auto-propagação da planta propiciaram o seu extraordinário desenvolvimento vegetativo, tendo-se tornado “escapada de cultura” e atualmente com estatuto de invasora em todas as ilhas dos Açores. Mas se olharmos o estado eutrófico do plano de água, segundo os especialistas em limnologia, um dos primeiros “pecados” que está na origem do processo foi a introdução de espécies piscícolas exóticas. Teríamos, assim, Tomas Hickling como outro culpado. Não sejamos, por isso, demasiado severos ou ingénuos no nosso julgamento histórico. A transformação da paisagem da Lagoa das Furnas, como em muitos outros lugares, está carregada de intencionalidade humana. Aqui, porém, espelha – em larga medida – o sonho e a capacidade de realização de um único homem: José do Canto.

Referências (O) Agricultor Michaelense (1849) n.º 20, 2.ª série. Albergaria, Isabel Soares de (2000). Quintas, Jardins e Parques da Ilha de São Miguel. Lisboa: Quetzal. Albergaria, I.S. & Sampaio, J.F. (2014). “The camellia collection of the José do Canto Woodland Gardens”, in 2014 International Camellia Congress. Pontevedra, Spain. Book of Proceedings (pp.110-115), Pontevedra: Deputation de Pontevedra. ISBN: AE-2014-14013640. Ashe, Tomas (1813) History of the Azores, or western Islands; containing an account of the government, laws and religion... illustrated by maps and other engravings / [by Thomas Ashé]. London: printed for Sherwood, Neely and Jones, Paternoster Row. Borges, Pedro Maurício Loureiro de Melo (2007). O desenho do território e a construção da paisagem na ilha de S. Miguel, Açores, na segunda metade do século XIX, através de um dos seus protagonistas. Tese de doutoramento em Arquitetura apresentada à Universidade de Coimbra. 2 vols. Castel-Branco, C. et al.(2011): “Método das Preferências Visuais/Visual Preference method”, Archi News.Revista de Arquitetura, urbanismo, Interiores e Design, 1: 36-74 Castel-Branco, C. & Albergaria, I.S. Castel-Branco, Cristina, Albergaria, Isabel Soares de (2017). “The Azores Lake Gardens as touristic asset: using the visual preferences method/Los jardines de los lagos de las Azores como bien turístico: estudio por el método de preferencias visuales”, Methaodos. Revista de Ciencias Sociales Monográfico sobre Turismo Cultural Vol. 5, núm. 1 (2017), pp. 182-193. Corrêa, Aires Jácome de (Coord.) (1999). Cartas Particulares a José Jacome Corrêa e Conde de Jacome Corrêa, 1841 a 1893, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada. Dias, Urbano de Mendonça (1936). História do Vale das Furnas, Emp. Tip. Ltd. de Vila-Franca do Campo Fouqué, M. Ferdinand, (1873) “Voyages geologiques aux Açores”, extrait de la Revue des Deux Mondes, 1.er Janvier e 15 avril, 1873, Paris, de l’Imprimerie de J. Claye. Jacques, David (2019), Landscape Appreciation. Theories since the Cultural Turn, Chichester: Packard Publishing Limited. Jellicoe, Sir Geoffrey and Susan (1986). The Oxford Companion to Gardens. New York: Oxford University Press. Rodrigues, Henrique de Aguiar (1995) em Insulana, vol. LI, n.º 2, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, p. 194. Sousa, Nestor de (2001), “Os «Canto» nos Jardins Paisagísticos da Ilha de S. Miguel”, Arquipélago, 2ª série (IV):131-312. Swindels, Rupert (1877). A summer trip to the Island of St. Michael. The Azores, Manchester, Ed. For private circulation. Thompson, Wyville (1877). The Voyage of the Challenger: the Atlantic: a preliminary account of the general results of the exploring voyage of H. M. S. Challenger during the year 1873 and the early part of the year 1876, London, Macmillan and Co. Trelease, William (1897). “Botanical Observations on the Azores”. In the Missouri Botanical Garden Annual Report, 1897.

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Geodiversidade e Geossítios: A Componente Abiótica da Natureza João Carlos Nunes

O Património Natural da Região Autónoma dos Açores é entendido, cada vez mais, não apenas como sendo constituído pela sua flora e fauna (com particular realce para as suas espécies endémicas e indígenas), mas também pelo substrato geológico que as suporta e condiciona. Na verdade, o mundo vivo que constitui estas ilhas, incluindo o Homem Açoriano, tem “raízes” nos vulcões que as originaram, nas rochas que as constituem e no ar e no mar que as envolvem. Neste contexto, a par da biodiversidade das ilhas dos Açores, importa catalogar, conhecer e proteger a geodiversidade da Região, vista como uma componente importante do Património Natural Açoriano. Mas, afinal, o que se entende por geodiversidade? O primeiro documento conhecido onde o termo “geodiversidade” é utilizado, com um significado similar ao atual, foi publicado por Chris Sharples em outubro de 1993, por ocasião da Conferência de Malvern, Reino Unido, sobre “Conservação Geológica e Paisagística”, sendo que o primeiro livro dedicado exclusivamente a esta temática foi editado, apenas, em 2004. Trata-se da obra de Murray Gray (do Departamento de Geografia da Universidade de Londres, intitulada “Geodiversity: valuying

Cone de tufos e fajã lávica, Velas, Ilha de São Jorge

and conserving abiotic nature”. Deste modo, com apenas poucas dezenas de anos de vida com identidade própria, o termo geodiversidade não possui, ainda, uma implantação sólida e uma divulgação generalizada comparável à da noção de biodiversidade, surgida nos anos 70 do século passado e que corresponde ao conceito análogo relativo à diversidade do mundo vivo, da biosfera! Define-se geodiversidade como “the natural range (diversity) of geological (rocks, minerals, fossils), geomorphological (landform, processes) and soil features. It includes their assemblages, relationships, properties, interpretations and systems” (Gray, 2004). A geodiversidade inclui, assim, a variedade de ambientes geológicos, fenómenos e processos que dão origem às paisagens, rochas, minerais, fósseis, solos e outros depósitos superficiais que são o suporte para a vida na Terra. Em suma, a geodiversidade compreende todos os aspectos não vivos do planeta Terra, ou seja, a natureza abiótica! Deste modo, e pelo exposto, ressalta que, nas questões relacionadas com a Conservação da Natureza, as componentes da biodiversidade e da geodiversidade adquirem uma importância acrescida, em especial na medida em que, estando intrinsecamente associadas, constituem Novembro 2021 -

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Algar vulcânico, Caldeirinha de Pêro Botelho, Ilha de Graciosa

acções promotoras de um desenvolvimento sustentável. Dada a natureza arquipelágica dos Açores e as limitações impostas pela dimensão e distribuição das diferentes ilhas, tais componentes assumem, aqui, uma relevância acrescida. Com efeito, a geodiversidade das Ilhas dos Açores, juntamente com outros factores determinantes, como o isolamento insular e o clima, são responsáveis por condições ecológicas distintas e distintivas, que traduzem, de forma singular, a estreita relação entre a geodiversidade e a biodiversidade do arquipélago. O Património Geológico, importante componente do Património Natural, pode ser definido como um georrecurso não renovável, que, pelo seu valor cultural, estético, económico, funcional, científico e educativo, deve ser preservado para as gerações vindouras. Neste contexto, importa i) conhecer as ameaças a que está sujeito; ii) definir as acções que asse-

Maar, Lagoa Comprida, Ilha das Flores

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gurem a sua protecção e iii) implementar medidas de (geo)conservação e integrar aquelas ações em políticas que promovam, de forma integrada e sustentável, a valorização do Património Geológico e o seu usufruto por parte das populações. Nos Açores, tem-se verificado um forte impulso nas questões associadas ao Património Geológico – em parte, muito por força da criação e implementação do Geoparque Açores, Geoparque Mundial da UNESCO – embora ocorram ainda (demasiadas) situações em que este é ignorado, ou não é devidamente tido em conta ou valorizado, em políticas sectoriais municipais e regionais, designadamente ao nível do ordenamento do território. Por outro lado, a paisagem vulcânica do arquipélago (e.g. “a geosfera açoriana”) apresenta um vasto conjunto de formas, rochas, relevos e estruturas ímpares, derivadas do tipo de erupção que as originou, da sua dinâmica e da poste-


Biocalcarenito fossilífero, Pedreira do Campo, Ilha de Santa Maria

rior actuação dos agentes externos da hidrosfera, atmosfera e biosfera. Alguns elementos de geodiversidade que integram o território açoriano, bem delimitados geograficamente e que, pela sua peculiaridade ou raridade, apresentem valor científico, educativo, cultural, estético (e.g. paisagístico), económico (e.g. turístico), são então considerados como geossítios (também designados de geótopos ou geomonumentos). Ou seja, correspondem a locais ou sítios geológicos com aspetos singulares e com interesses específicos, devendo, como tal, ser alvo de especial atenção nas políticas de desenvolvimento (em especial nas de ambiente, de ordenamento do território e de turismo), sendo que o conjunto de geossítios existente na Região define o Património Geológico dos Açores. Com efeito, tal como uma ruína, uma igreja, um castelo ou qualquer vestígio histórico, pelo seu valor, significado e/ou grandiosidade, fa-

zem parte integrante do património cultural, também um cone, uma paisagem vulcânica, uma caldeira, um campo lávico, uma disjunção prismática e outras ocorrências geológicas, podem possuir características que permitam classificá-las como geossítios. Nesta medida, e do mesmo modo que para as memórias culturais que se procura preservar, tal classificação permite valorizar o Património Geológico como parte integrante do Património Natural de uma região ou país. Os geossítios podem ser caracterizados em função da sua dimensão e numa perspetiva da adoção das melhores medidas para a sua eficaz proteção, preservação e valorização: 1- a nível do afloramento, quando constituem pequenas ocorrências, no geral com uma extensão de alguns metros a dezenas de metros; 2- a nível do sítio, quando, ocupando uma área/extensão de centenas de metros, oferecem condições para que o visitante circule no

Estratovulcão, Montanha do Pico, Ilha do Pico

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Fumarola, Furnas, Ilha de São Miguel

seu domínio; 3- a nível da paisagem, à escala quilométrica e que, dadas as suas dimensões, podem observar-se a partir de um ou mais miradouros. No arquipélago dos Açores, e no âmbito dos trabalhos associados ao estabelecimento do Geoparque Açores, foram inventariados e devidamente caracterizados 121 geossítios em todas as ilhas e nos fundos oceânicos vizinhos, alguns dos quais constituem, simultaneamente, verdadeiros ex libris turísticos da Região. É o caso, entre muitos outros, de jazidas fossilíferas na ilha de Santa Maria, das disjunções prismáticas da ilha das Flores e das fumarolas da ilha Terceira (ao nível do afloramento), dos lajidos de Santa Luzia (Pico), da Furna do Enxofre (Graciosa) e das fajãs de São Jorge (ao nível do sítio) e da Ponta da Ferraria (em São Miguel), das caldeiras do Faial, do Caldeirão (no Corvo) e das Furnas e das Sete Cidades, em São Miguel. De entre os 121 geossítios dos Açores, seis

Caldeira de subsidência, Caldeira, Ilha do Faial

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Estalactites de sílica, Algar do Carvão, Ilha Terceira

apresentam relevância internacional: i) a Cordilheira Médio-Atlântica, implantada entre as ilhas do Faial e Flores e onde se dá a expansão do oceano Atlântico; ii) a caldeira do vulcão das Furnas, a principal hidrópole da Europa; iii) a Montanha do Pico, o ponto mais alto de Portugal e o terceiro maior vulcão do Atlântico Norte; iv) a Caldeira da Graciosa e Furna do Enxofre, uma cavidade vulcânica abobadada, única no panorama vulcanoespeleológico internacional; v) o Vulcão dos Capelinhos, cuja erupção constitui um marco na vulcanologia mundial e, vi) o Algar do Carvão, no top ten das cavidades vulcânicas do Mundo, com os seus espeleotemas de sílica amorfa. No contexto da implementação do Geoparque Açores, a inventariação, caracterização, quantificação, classificação, valorização e divulgação dos geossítios incidiu, ainda, naqueles de relevância nacional ou regional, que constituem os restantes 115 geossítios dos Açores. De entre estes, 52 apresentam relevância nacional, cujo

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Delta/fajã lávica, Ponta da Ferraria, Ilha de São Miguel

top ten integra: a Caldeira do Faial; os maars das caldeiras Negra, Comprida, Seca e Branca (Flores); a Praia Formosa e Prainha (Santa Maria); a caldeira de Santa Bárbara e domos dos Mistérios Negros (Terceira); a caldeira do vulcão das Sete Cidades (São Miguel); os maars das caldeiras Rasa e Funda (Flores); as arribas das fajãs dos Vimes - São João (São Jorge); o Monte Brasil (Terceira); a Ponta do Cintrão e Ladeira da Velha (São Migue) e a Fajã Grande Fajãzinha (Flores). Por outro lado, e como corolário de um trabalho articulado com o Governo dos Açores ao longo de vários anos, atualmente 77% dos geossítios dos Açores (93 geossítios) integram a Rede de Áreas Protegidas dos Açores, sendo que alguns destes locais foram objeto de classificação quase exclusivamente, ou em grande parte, devido à sua importância geológica. É caso, entre outros, do Pico das Camarinhas e fajã lávica da Ferraria (São Miguel), do Vulcão dos Capelinhos (Faial), da Gruta das Torres (Pico), da Gruta do Carvão (São Miguel) e da Pedreira do Campo (Santa Maria). Para este desiderato muito contribuiu, segura e decisivamente, uma maior sensibilidade por parte das entidades governamentais desta área, bem como o dinamismo, a persistência e a competência de alguns trabalhos, entidades e investigadores que se têm dedicado a esta temática nas últimas duas décadas. Merecem especial relevo, neste âmbito, as actividades e os traba-

lhos realizados pelo GESPEA - “Grupo para o Estudo do Património Espeleológico dos Açores”, a Universidade dos Açores, as Associações “Amigos dos Açores” e “Os Montanheiros” e o OVGA - Observatório Vulcanológico e Geotérmico dos Açores. Por último, e como antes referido, os geossítios dos Açores constituem-se na sua grande maioria como locais turísticos emblemáticos da Região, de visitação obrigatória e verdadeiros ex-libris dos Açores. Neste contexto, a geodiversidade da Região suporta, potencia e promove um geoturismo diferenciador e respeitador dos valores naturais dos Açores, neste caso da sua Natureza abiótica. Melhor conhecer e caracterizar a geodiversidade e o património geológico dos Açores, contribuem, pois, não só para a sua preservação, mas também para a sua divulgação, promoção, valorização e gestão sustentáveis, pilares essenciais da atuação do Geoparque Açores, Geoparque Mundial da UNESCO. Na verdade, a valorização e o uso sustentável dos recursos endógenos da Região Autónoma dos Açores, onde se incluem os recursos geoturísticos (como os trilhos, o termalismo, as cavidades vulcânicas, as geopaisagens e os centros geoambientais) implicam, simultaneamente, uma maior consciencialização para a salvaguarda dos valores naturais da Região, abióticos e bióticos, na medida em que “não se protege aquilo que não se conhece”! Novembro 2021 -

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O Jardim António Borges: apontamentos históricos Teófilo de Braga

António Borges da Câmara Medeiros, 3° filho do morgado António Pedro Borges da Câmara Medeiros e de Maria Francisca de Andrade e Albuquerque Bettencourt, nasceu no solar do Calço da Furna, na Fajã de Baixo, a 14 de junho de 1812 e faleceu em Ponta Delgada, no dia 19 de março de 1879. O seu interesse pelas plantas, jardins e agricultura poderá estar associado ou foi potencializado pelo facto de António Borges ter frequentado um curso agrícola na escola de Grignon, em França. Seguindo o exemplo de José do Canto e de José Jácome Correia, António Borges iniciou, em 1858, a construção de um jardim no prédio que possuía na Lombinha. Tudo leva a crer que seja da sua autoria o desenho do jardim e é sabido que ele dirigia os trabalhos de jardinagem, mesmo em condições atmosféricas adversas. A maioria das espécies exóticas mandadas plantar por António Borges foram adquiridas por ele durante algumas viagens que fez pela Europa, sobretudo a viveiristas tanto em Paris como em Londres ou na Bélgica. Com o falecimento de António Borges, durante alguns anos o jardim não teve a manutenção que devia até que, em 1922, um grupo de empresários propôs-se resgatá-lo “do seu atual sequestro, como propriedade particular que é, restituindo-lhe as condições que faziam d’esse pedaço de torrão um dos mais invejáveis embelezamentos citadinos”. De acordo com uma notícia publicada no Correio dos Açores, no dia 1 de abril de 1922, o grupo citado, constituído pelo Dr. José Jacinto de Andrade Albuquerque, proprietário do jardim, Pedro de Lima Araújo, Manuel José de Vasconcelos, Manuel Joaquim Raposo e José Cristiano de Sousa, decidiu pôr mãos à obra com vista à recuperação do jardim, tendo por fim a criação de “novas condições que ali chamem o grande público como local de recreio,

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Jardim António Borges 1920-1930 - Instituto Cultural de Ponta Delgada/Coleção Fotográfica Digital:PT/ICPD/CFD.00866

com iluminações, música, pavilhões para refrescos, cinematógrafo, jogos, sports, etc.” O principal responsável pelos trabalhos de recuperação do jardim foi o Padre Manuel Vicente, como provam as notícias publicadas nos jornais da época. Assim, o Diário dos Açores, de 9 de junho de 1922, relata uma visita ao jardim a poucos dias da sua inauguração e refere que, para além dos membros da sociedade, esteve presente “o técnico-amador dirigente dos trabalhos sr. Padre Manuel Vicente”. À mesma conclusão se chega através da leitura do Correio dos Açores, de 10 de junho de 1922, quando é afirmado o seguinte: “Como chegámos à tabela, segundo nosso hábito, e os restantes convidados estivessem em tardança, guiados pelo Padre Manuel Vicente, que de galochas Borges da Câmara Medeiros - Instituto Cultural de borracha, António de Ponta Delgada/Coleção Fotográfica Digital: ICPD/ por causa da CF.00242 humidade, sobretudo cautelosamente abotoado, olhar inspirado de criador, abrindo os braços, dava ordem a uma pequena tribo de trabalhadores…” e mais adiante : “Padre Manuel Vicente dispôs em volta dessa homenagem ao fundador do maravilhoso jardim uma decoração artística e sóbria, de flores e plantas e


nessa nesga em que as árvores dum lado e outro da avenida se cruzam em fraternal abraço, o busto de António Borges…” Padre Manuel Vicente - Instituto Cultural de Ponta Delgada/Coleção Fotográfica Digital: ICPD/CF.NEG00006a

O Padre Manuel Vicente foi também um dinamizador da vida do Jardim António Borges após a sua abertura ao público, em 1992., como demonstram duas das suas iniciativas. Na noite de São João de 1922, realizou-se um festival no Jardim António Borges, onde, a convite do Padre Manuel Vicente, cantaram Miss Helen Bartlett e Mr. Edgar Accetta. O jornal Diário dos Açores de 26 de junho, deu os parabéns àquele sacerdote “pelo êxito completo de mais esta festa tão distintamente organizada”. O mesmo padre também organizou no mês de julho de 1922, no Jardim António Borges, uma “Festa Infantil” que constou de um grande baile de crianças. De acordo com o Correio dos Açores, de 25 de julho, “as crianças dançaram animadamente ao som marcial da banda “União” e até “as pessoas sisudas começavam a esboçar atitudes de querer participar das danças”. No dia 11 de setembro de 1957, depois de mais um período de abandono, o Jardim António Borges foi inaugurado como Parque da Cidade. O jardim foi comprado pela Câmara Municipal de Ponta Delgada, presidida pelo Dr. Manuel da Silva Carreiro, aos herdeiros de António Borges, nomeadamente o Dr. José Jacinto de Andrade Albuquerque de Bettencourt e o seu filho, o engenheiro agrónomo Caetano de Andrade Albuquerque de Bettencourt. Para além das verbas da própria Câmara Municipal, a aquisição do jardim só foi possível com o apoio da Junta Geral do Distrito, sendo governador o Dr. Carlos de Paiva, que inscreveu no seu orçamento uma importante verba e à colaboração do Ministério das Obras Públicas que também comparticipou financeiramente. De acordo com o discurso do Dr. Manuel Carreiro proferido na inauguração, os principais trabalhos de restauração do jardim, que demoraram um mês e meio, foram, entre outros, os seguintes: recuperação de muros em ruínas, demolição de “construções motivadas pela exploração do cinema, que tanto desfeavam a entrada do jardim”, beneficiação do “grande reservatório de água e o modelar sistema de canalização”, regularização e revestimento de

tetim das principais ruas, desentulho e cimentação dos lagos, colocação de relva em alguns espaços, fixação de bancos, construção de um parque infantil e vedação da parte sul. Na visita que se seguiu à cerimónia de inauguração, onde os convidados foram acompanhados pelos membros da Câmara Municipal de Ponta Delgada e pelo Eng. Estrela Rego, a reportagem do Diário dos Açores dá destaque a “uma «ficus», de grandes e majestosas raízes aéreas e a “uma imponente araucária e outras árvores e palmeiras de regiões tropicais”. Através de um desdobrável editado recentemente, fica-se a saber que a Câmara Municipal de Ponta Delgada, em 1968-70, construiu um aviário, um recinto para macacos e uma cerca para uma zebra. Em 1987, a triste ideia do senhor Presidente da Câmara Municipal de Ponta Delgada de “encher” o Jardim António Borges “de diversas espécies animais com o objetivo de constituir um polo de atração para a população citadina, que passava a frequentar, com mais assiduidade, aquela zona verde e a gozar os benefícios daí advindos, foi colhida sem aparente oposição no meio local”, exceto pelos Amigos dos Açores que defenderam que no jardim deviam ser feitos todos os melhoramentos possíveis, mas para que fosse classificado como Jardim Botânico. Em 1999, finalmente a Câmara Municipal de Ponta Delgada, através do vereador Melo Medeiros, numa reportagem publicada no Diário dos Açores, no dia 9 de julho, deu a conhecer que “as principais preocupações da atual vereação em relação a esses espaços verdes [Jardim António Borges, Jardim Antero de Quental, Jardim Padre Sena Freitas e Relvão] são a sua conservação, embelezamento, dignificação e segurança” e reconheceu “que no passado foram introduzidos elementos estranhos e incompatíveis com a natureza do Jardim António Borges, como a de animais de grande porte” e “o parque infantil”. Na mesma reportagem, o vereador Melo Medeiros garantiu a manutenção do parque infantil “por razões sentimentais, por servir de espaço de divertimento a muitas gerações”. Já no século XXI, em 2008, ficou concluído o projeto de identificação das principais espécies botânicas do jardim, a que se seguiu, em 2010, a colocação de 153 placas de identificação botânica. Mais recentemente, no ano 2020, por solicitação da Câmara Municipal de Ponta Delgada, Raimundo Quintal, especialista em fitogeografia, elaborou o elenco florístico do Jardim António Borges que é constituído por “239 táxones pertencentes a 154 Géneros e a 82 Famílias”. Na mesma altura foram colocadas cerca de 580 placas identificativas, cada uma com a indicação do nome científico, do nome vulgar, da família e da origem. Novembro 2021 -

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Jardim António Borges

Algumas curiosidades da sua Flora Raimundo Quintal Os visitantes do Jardim António Borges têm oportunidade de observar e conhecer 239 plantas oriundas de todos os continentes com exceção da Antártida. A viagem à volta do mundo na companhia das plantas que povoam o mais antigo e emblemático jardim municipal da cidade de Ponta Delgada está facilitada porque, desde setembro de 2020, as árvores, os arbustos, as trepadeiras e as herbáceas exibem o seu bilhete de identidade, com o nome científico, a família, os nomes vulgares em português e inglês e a naturalidade. Estas plantas (205 espécies, 2 subespécies, 2 variedades, 9 híbridos, 21 cultivares) pertencem a 155 géneros e a 83 famílias. As famílias Asparagaceae (23), Arecaceae (19) e Myrtaceae (14) são as que possuem uma maior representação. A flora da Ásia posiciona-se em primeiro lugar

Castanospermum australe – 15.01.2020

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Miconia cinnamomifolia – 23.07.2020

com 52 plantas (21,8%), das quais 46 são indígenas do extremo oriente. Segue-se o conjunto das plantas nativas da América (50 – 20,9%). Destas, 21 são indígenas da América do Sul, 16 são oriundas da América Central e arquipélagos das Caraíbas e 13 são naturais da América do Norte. A Oceânia, com 16,7%, surge na terceira posição. Das 40 plantas, 29 são indígenas da Austrália, 7 da Nova Zelândia e 4 de outras ilhas do Pacífico. A Europa está representada por 33 táxones (13,8%), que englobam 6 espécies macaronésicas e seis endemismos dos Açores – Ilex azorica (azevinho), Laurus azorica (loureiro), Picconia azorica (pau-branco), Polypodium macaronesicum subsp. azoricum (polipódio-dos-açores), Prunus azorica (ginjeira-do-mato) e Viburnum treleasei (folhado) A África está presente com 32 (13,4%) táxones, dos quais 19 são indígenas da África do Sul. Duas plantas são cosmopolitas (0,8%) e 30 (12,6%) têm origem hortícola (híbridas e cultivares). Quanto ao regime de folheação é clara a predominância das perenifólias (202 - 84,5%), seguindo-se as caducifólias (29 - 12,1%), as sazonais (5 - 2,1%) e as semi-caducifólias (3 - 1,3%). A larga maioria absoluta das plantas de folha persistente determina que a imagem da formação vegetal varie pouco ao longo do ano. Este não é um jardim de outono dourado. No que diz respeito ao porte, há um claro predomínio das árvores (incluindo as plantas arborescentes, como são os casos dos fetos arbóreos


ou das estrelícias gigantes) com 118 táxones (49,4%). Os arbustos são 54 (22,6%), as herbáceas 53 (22,2%) e as trepadeiras 14 (5,8%). Mais de duas dezenas de espécies de árvores, que agora têm placas com a sua identidade, nunca tinham sido identificadas neste jardim, outras viveram muitos anos com falsa identidade. Das que foram identificadas pela primeira vez, saliento o jacatirão (Miconia cinnamomifolia), da família Melastomataceae, indígena da Mata Atlântica, no Brasil. O específico cinnamomifolia é uma referência à morfologia das folhas, que são muito parecidas com as da árvore-da-canela (Cinnamomum verum), da família Lauraceae, nativa do Sri Lanka. Mas as semelhanças ficam por aí. As flores e os frutos são muito diferentes. As flores brancas do jacatirão ocorrem em março e abril. As pequeninas bagas, vermelhas no início da maturação, caem roxas no outono. Apenas existe uma árvore no Jardim António Borges e não conheço outro espécime nos parques e jardins de São Miguel. Das que que viveram com a identidade trocada, escolhi o castanheiro-da-austrália. No domingo, 16 de novembro de 2008, a convite dos Amigos dos Açores – Associação Ecológica, orientei uma visita de estudo no Jardim António Borges. Foi com enorme surpresa que, naquela manhã, recebi das mãos do pequeno Marco Alexandre uma vagem com quatro sementes parecidas com castanhas, que tinha encontrado por baixo duma árvore que eu vinha tentando identificar sem sucesso. Na posse daquele precioso achado, consegui em poucos dias a resposta para a dúvida que me atormentava há vários anos: Castanospermum australe (castanheiro-da-austrália). Na parte alta do Jardim António Borges identifiquei dois belos exemplares. Posteriormente, encontrei árvores da mesma espécie no Jardim Botânico José do Canto e no Jardim da Universidade dos Açores. No edição número 31 (2009) de Vidália, Boletim dos Amigos dos Açores – Associação Ecológica, escrevi um artigo sobre esta interessante árvore australiana perfeitamente adaptada ao clima das áreas de baixa altitude de São Miguel e dei conta da experiência bem sucedida da germinação das sementes colhidas no solo no decorrer da visita guiada. Seis anos mais tarde voltei a escrever um artigo, na edição de novembro de 2015 da revista Jardins, sobre esta espécie arbórea. Talvez pela vaga aparência das folhas, as duas árvores do Jardim António Borges tinham sido identificadas como pertencendo à espécie Cedrela odorata, da família Meliaceae, nativa duma

Castanospermum australe – 22.07.2020

vasta área geográfica desde o México até à Argentina, com flores e frutos muito diferentes do castanheiro-da-austrália. No solo foram afixadas placas com a falsa identidade, que se mantiveram induzindo os visitantes em erro. Finalmente, em julho de 2020 foram colocadas nas duas árvores placas com a identificação correta - Castanospermum australe. Esta espécie é a única do género Castanospermum, designação que deriva das suas sementes serem muito semelhantes às castanhas. No entanto, esta árvore indígena das florestas húmidas do nordeste da Austrália e da Nova Caledónia, onde é conhecida por “Moreton Bay Chestnut’, não é da família das Fagáceas, que integra os castanheiros da Europa. Pertence à grande família das Fabáceas, tal como as acácias, as faveiras, as ervilheiras ou os tremoceiros. Na natureza atinge 40 metros de altura, mas os exemplares dos jardins de São Miguel não ultrapassam aos 10 metros. As inflorescências brotam diretamente dos ramos no fim da primavera e no verão. As flores têm cálices alaranjados e as corolas oscilam entre o amarelo e o vermelho. Segue-se o desenvolvimento das vagens, que ficam maduras e libertam uma a quatro sementes no outono. Estas castanhas são venenosas, mas os aborígenes australianos consomem-nas depois de assadas durante muito tempo. A multiplicação é relativamente simples. As sementes, enterradas parcialmente num substrato formado por 50% de areia de origem vulcânica e 50% de composto orgânico, germinam ao fim de 3 meses, desde que a temperatura atmosférica não seja inferior a 18ºC. É uma experiência que recomendo com o objetivo de aumentar a presença desta bela árvore ornamental nos jardins das cidades e vilas de São Miguel. Novembro 2021 -

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A transumância na ilha de São Jorge. António Pedroso

A ilha das fajãs, que romanticamente o turismo promove, com paisagens idílicas, com os trilhos serpenteando as encostas, com cascatas e piscinas naturais, para os nossos antepassados não foi sinónimo de vida fácil. Desde o povoamento que os jorgenses enfrentaram uma geografia pouco amiga do homem. E na realidade os primeiros povoamentos se realizaram na zona sul, de fácil acesso e menos agreste. Mas a população aumentou e a necessidade de sobreviver numa ilha isolada no meio do Atlântico, que tinha de ser autossuficiente, obrigou a que cada naco de terra, cada socalco da encosta, cada rocha ou resquício de pastagem fosse rentabilizado ao máximo para alimentar bocas que muitas vezes conheceram a fome. Assim se desbravou as alcantiladas escarpas construindo com pedras toscas, à força de braços e de bestas, trilhos que permitiram acesso entre o planalto superior e as línguas de lava que emergem pelo atlântico quais garras de um dragão fossilizado, as fajãs de S. Jorge. As condições climáticas na parte alta da ilha não eram favoráveis a algumas culturas, mas em contrapartida o microclima que as fajãs ofereciam era propício a culturas tropicais, desde a banana ao café, figos, uvas e até à produção de ananases. O árduo trabalho deste povo ilhéu domou a agreste paisagem da ilha e a transformou no local paradisíaco que hoje conhecemos. Não foi fácil tal

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empreitada repleta de suor e dor, mas também com momentos de felicidade que a vida simples proporciona. A vida da maioria das famílias jorgenses desenrola-se necessariamente entre a montanha e a fajã. A transumância vivida nesta ilha é digna de registo, pelo impacto social e económico e até cultural que tem na história deste povo. Atualmente com acessibilidades melhoradas, com viaturas modernas, a transumância está sendo rapidamente substituída por idas e vindas de fim de semana. As exíguas adegas ou casas de fajã foram melhoradas, aumentadas ou simplesmente destruídas para a construção de luxuosas residências que o estatuto social ou os dólares dos lusodescendentes americanos exigem. Mas ainda há quem insista em manter a tradição de séculos. Recuando às memórias da minha infância, na freguesia do Norte Grande diria que a ida anual para a fajã do Ouvidor era algo esperado com impaciência depois de terminar o ano escolar. Era um misto de férias e de trabalho de campo, porque todos na família tinham de contribuir nos trabalhos domésticos. Tudo era preparado e planeado com antecedência. As pequenas casas de fajã não tinham muito mobiliário e era necessário levar quase tudo, desde roupas de cama, utensílios de cozinha e as


nossas roupas e objetos pessoais. Como a maioria das casas da Fajã não tinha forno, tinha de se cozer e levar o pão de trigo, de milho, a massa sovada, doçaria tradicional como os suspiros, os esquecidos, as espécies cuidadosamente armazenadas em latas, e os caramelos que eram cuidadosamente embrulhados em papel de seda colorido. Nunca faltava o queijo enorme que estava presente em todas as refeições. Simultaneamente a casa da fajã tinha de ser limpa, os colchões assoalhados, alguns de palha, outros de casca de milho que era substituída ou colocada ao sol. Era necessário proceder ao retelho, pois a tradicional telha da Graciosa a tal obrigava esse esforço anual, eram caiadas as paredes e barradas as fachadas com anil. Até chegar ao grande dia da muda, era muito trabalho. Finalmente tudo a postos e lá chegava o dia. O carro de bois era carregado com as peças mais pesadas, móveis, talhões, alguidares, alguns colchões extra, atoalhados, cestos com galinhas, bilhas de petróleo para os candeeiros, alfaias agrícolas, tudo cuidadosamente atado com correias de couro. Por vezes, algum idoso da família se aconchegava comodamente na parte de trás do carro. Seguiam-se os muares e o cavalo carregados com esteiras de junco, sacas de serapilheira cheias de produtos de mercearia, entre tantas outras coisas. Acompanhava também a vaca da raça do Ramo

Grande que iria produzir leite fresco para a família. Todos os animais domésticos também nos acompanhavam. Alguns mais relutantes que outros, mas todos tinham de ir. O gato, o cão, galinhas, patos e o porco que por vezes tinha de ser aliciado com alguns grãos de milho para o convencer a sair do curral. As crianças mais pequenas em algazarra, pouco atentas aos avisos do pai e às recomendações da mãe, acomodavam-se na garupa do cavalo ou simplesmente saltitavam todo o caminho. Os maiores tomavam conta dos animais. O chiar das rodas do carro e o cadenciado passo dos bois marcavam o arranque desta viagem de três quilómetros que nos levaria à fajã. Um caminho de terra batida ladeado de vegetação luxuriante onde os brincos de princesa vermelho vivo alternavam com as conteiras em flor que os miúdos desfolhavam para chupar o suco adocicado do caule. Das folhas de inhame ou de conteiras se faziam copos para beber água das cascatas que corriam cristalinas pela encosta. O desassossego desta muda ouvia-se à distância, pois várias eram as famílias que o faziam no mesmo dia, num misto de vozes das pessoas, gritos das crianças, com os sons dos animais numa verdadeira agitação fora do comum. A freguesia inteira mudava-se a partir de meados de agosto depois da festa da padroeira, inclusive Novembro 2021 -

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o padre, as missas passavam a ser celebradas na pequena capela da fajã. A freguesia ficava como uma aldeia fantasma. Ouvia somente o chilrear dos pássaros, que na sombra das urzes protegidos do sol de verão entoavam o seu canto estridente, somente interrompido pela manhã, ao som do trote dos cavalos que regressavam da ordenha das vacas. A vida na fajã era mais tranquila, a vizinhança era diferente, preparavam-se as vindimas, lavava-se as barricas e o lagar e o crivo onde se esmagaria as uvas. Escovava-se os cestos de vimes e atapetava-se o chão de terra batida da loja com folhas de cana. Havia peixe fresco, muitas vezes trocado por batata-doce ou outros produtos, numa época em que a fatura e número de contribuinte era um ilustre desconhecido. Apanhava-se perrexil para fazer curtume. Ia-se às lapas, que se comiam cruas com vinho e pão de milho ou então, num molho Afonso, ou até se faziam tortas de ovo com elas. Não faltavam figos, uvas, melancias e meloas, a natureza era abundante e agricultura biológica era a normalidade. Éramos tão ecológicos e não sabíamos. Nas tardes solaregas não faltava tempo para uns banhos de mar, para os mais afoitos no pequeno porto de pesca, fazia-se travessias até à baixa da Margarida ou uns bons mergulhos na poça do Simão Dias. Para os outros, crianças e idosos, as piscinas naturais menos profundas eram um deleite. Mas só se ia ao banho depois das tarefas domésticas feitas. Era necessário tratar dos animais. A vaca alojada num pequeno palheiro com telhado só de uma água que se chamava “o Cher” era alimentada com incenso e milho verde. Desfolhar o incenso era tarefa dos mais pequenos.

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À noite à luz do candeeiro de petróleo ou de um lampião jogava-se às cartas, contavam-se estórias de tempos passados, do ano em que a ribeira transbordou e inundou algumas casas, da festa dos bons amigos em que as provas de vinho e aguardente foram excessivas para alguns. Tocava-se a viola da terra e cantava-se a saudade ou dançava-se a chamarrita. Havia quem simplesmente contemplasse a imensa encosta negra altiva e sobranceira, coroada pela via láctea enquanto ouvia os cagarros que em voo rasante ecoavam gritos quase humanos. O regresso à freguesia só se realizava depois da festa religiosa na terceira semana de setembro. A novena realizava-se na pequena ermida, engalanada com videiras e cachos de uvas em que o povo assistia fervorosamente na rua por falta de espaço no interior. No domingo havia o cortejo de oferendas, a missa, a procissão, à noite as comédias, o jogo da roleta e o fogo preso. Na segunda-feira a tourada à corda, as tascas onde não faltava os pirolitos e finalmente os Bons amigos, em que se faz a ronda pelas adegas provando vinhos e aguardentes. E quando ainda estavam a desfrutar, já era tempo de fazer malas e voltar a subir a íngreme encosta com toda a parafernália. Ainda ficam os cagarros por mais algumas semanas para também partirem rumo a outro continente e deixarem o silêncio pairar sobre a fajã novamente. Antes de os humanos migrarem já estas aves extraordinárias o faziam, atravessando o atlântico acompanhadas com os seus jovens filhotes com a promessa do regresso anual ao seu local de nascimento. O mar do Norte já fustiga a poça do Simão Dias e a furna do Lobo, Neptuno não desiste de aprimorar as esculturas de basalto nas imponentes rochas de negro basalto e o polimento do calhau rolado. A natureza segue o seu percurso. Havia famílias que voltariam no período de Carnaval para preparar as terras e podar as vinhas, mas a maioria só o fazia no verão. Algumas ainda o fazem, com outro conforto dos tempos modernos, atualmente a maioria das habitações das fajãs estão equipadas com tudo o que é necessário inclusive eletricidade. No entanto ainda há fajãs que o acesso é só pedestre o que fará que esta tradição da transumância perdure no tempo.


Isto bem pensado faz chorar pedras …* Memórias e lembranças do Dia da Lã na Ilha do Corvo Deolinda Estêvão * autoria do Sr. Alfredo Emílio

Falar do dia da lã é lembrar uma tradição Corvina que se extinguiu na segunda metade do séc. XX, mais concretamente em 1969 1, mas que ainda prevalece na lembrança de alguns corvinos. Em termos genéricos e de âmbito popular, a memória pode ser entendida como a capacidade do ser humano para relembrar experiências e informações relacionadas com o passado. Este entendimento aproxima-se mais da lembrança sendo, por isso, importante distinguir estes dois conceitos. A memória é preservada através da lembrança que os indivíduos têm do passado e que pode ser compartilhada e registada, sendo útil para o presente e para o futuro. A lembrança é exclusiva dos sobreviventes e é efémera. A memória é o registo que fica das lembranças passadas e é fundamental para a construção da História. Jacques Le Goff (2013)2 aponta a relação entre memória e História, quando salienta: “Tal como o passado não é a História, mas o seu objeto, também a memória não é a história, mas um dos seus objetos. […] A memória procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro”. Nesta perspetiva, o trabalho desenvolvido pelo Ecomuseu do Corvo assume extrema importância. A memória do dia da lã está, ainda, muito presente na lembrança de alguns corvinos que vivenciaram este dia. Mas esta lembrança é efémera! Torna-se, por isso, urgente registá-la para memória futura. É por isso que o Ecomuseu do Corvo pretende

Separação das ovelhas - 18.12.582 - Pertence a José SaramagoArquivo fotográfico do Ecomuseu do Corvo.

salvaguardar esta tradição através do seu registo, mediante a recolha de depoimentos, fotografias, objetos e, também, através da recriação deste dia que, para muitos, era um dia de festa e de convívio que quebrava a monotonia dos duros trabalhos agrícolas ao longo do ano. A extinta tradição, reminiscência do antigo comunitarismo que existia na criação do gado ovino, é sempre lembrada com grande saudosismo e alegria pelos anciãos e por aqueles que ainda se lembram desse dia. A tradição do dia da lã está associada aos primórdios do povoamento da ilha Corvo. É sabido que, aquando da chegada dos primeiros colonos às ilhas dos Açores, lançou-se nelas gado, sendo maioritariamente gado ovino pela facilidade de transporte e, também, pela variedade das suas utilizações e facilidade de adaptação ao terreno. Na ilha do Corvo não foi diferente. A criação de ovelhas assumiu, desde os tempos mais remotos, uma grande importância, pois, por um lado, uma parte do foro3 era pago em lã e, por outro, o grande isolamento da ilha obrigou os seus habitantes a serem autossuficientes e a produzirem os seus bens de primeira necessidade, nomeadamente o seu vestuário e agasalhos. Este espírito de autarcia, que caraterizou as populações arquipelágicas, está bem marcado na população do Corvo que, desde muito cedo, soube ser resiliente e adaptar-se às condições muito adversas a que estava sujeita. Percebe-se, assim, a importância da criação de Novembro 2021 -

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Dia da Lã no Corvo/Convívio - 18.12.574 - Pertence a José Saramago Arquivo fotográfico do Ecomuseu do Corvo.

ovelhas na ilha do Corvo e a importância do dia da lã, que era o dia da tosquia, que deixou memórias que têm passado de geração em geração e marcam a História e a identidade do povo do Corvo. Era um dia de festa. Um dia de alegria! Alfredo Emílio deixou-nos este brilhante testemunho, que consta de um dos depoimentos recolhidos pelo Ecomuseu do Corvo. (…) era aquele dia de tosquiar (…). Como é que hei de dizer? Era muita alegria! Era o conjunto de toda a gente lá em cima! Tudo o que podia ia. E os que não podiam andar e que o burro podia com eles, que era o último transporte que havia, ia. […]. Quando eu estava lá fora, não me lembrava do dia de Nossa Senhora [dos Milagres] nem do dia do Espírito Santo. Era do dia da lã. Andar atrás das ovelhas e levá-las pela rocha (…). Este testemunho, relatado com grande emoção e brilho nos olhos, demonstra-nos, à saciedade, a importância que o dia da lã teve no passado e o saudosismo que prevalece na lembrança dos que o viveram. Infelizmente, o Sr. Alfredo Emílio já não está entre nós, mas a memória que nos deixou deste dia irá prevalecer nos aquivos do Ecomuseu do Corvo e será transmitido às novas gerações do Corvo e a todos os que nos visitam. Obrigada, Sr. Alfredo Emílio! A descrição que a seguir farei baseia-se, quase exclusivamente, no depoimento de Alfredo Emílio e em alguma literatura recente produzida sobre esta temática. O dia da lã ocorria na última segunda-feira do mês de maio, segunda-feira, do Espírito Santo. Eles reuniam ao Outeiro na segunda-feira adiante do Espírito Santo. E depois nesse dia, se estava claro, a gente ia às ovelhas. Isto era em maio, que era para a tosquia.

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Separação das ovelhas - 18.12.574 - Pertence a José Saramago - Arquivo fotográfico do Ecomuseu do Corvo.

Separação das ovelhas - 18.12.576 - Pertence a José Saramago- Arquivo fotográfico do Ecomuseu do Corvo.

A tosquia 17.05.285- Pertence a Pe. Leonete Vieira Rego - Arquivo fotográfico do Ecomuseu do Corvo.

(…) tinha de ser depois do Espírito Santo porque havia um pão de trigo, que naquele tempo não havia pão de trigo, muito pouco, era só nas festas. E era um resto da carne que tinha restado do Espírito Santo. E então, na segunda feira à frente, se estava bom. E depois, se não estava bom esperava até ficar bom [tempo] para tosquiar as ovelhas. A tosquia das ovelhas era uma tarefa comunitá-


Criança a fumar - 18.12.568 - Pertence a José Saramago- Arquivo fotográfico do Ecomuseu do Corvo.

José Saramago com um cordeiro ao colo - 18.12.579 - Pertence a José Saramago- Arquivo fotográfico do Ecomuseu do Corvo.

ria, que juntava um grande número de pessoas, inclusivamente forasteiros que se deslocavam da vizinha ilha das Flores, para se juntarem à festa. No dia, que começava bem cedo, depois de ser tomada a decisão, de acordo com as condições atmosféricas, como relata Alfredo Emílio, formavam-se as “esquadras”, geralmente em núme-

ro de doze. Cada esquadra era liderada por um “cabo”, que tinha à sua conta dez homens. Cada “esquadra” (constituída por 11 homens), ajudada pelos cães, reunia as ovelhas no sítio chamado de “Lagos”, “onde se juntava toda a população válida da ilha”.4 Chegavam aos Lagos e estavam, ficavam à espera “ah ainda falta fulano” ainda falta fulano, ainda falta fulano e às tantas já chegou. O juiz do mato tirava o boné da cabeça, que não era chapéu, era boné e metia as sortes lá dentro. Vinha a ser 10 sortes e cada sorte tinha 10 lavradores, 12, 12 lavradores. E cada um ia tirar a sua sorte para saber para que sítio é que ia. Por exemplo, eu era um cabo, tu eras um cabo, tu ias lá tirar a tua sorte: oh, vais para a Fonte dos Poços, oh, eu vou para os Azevinhos, aquele vai para o Morro da Vaca, aquele vai para o Estreitinho, aquele vai para a Fajã das Negras, aquele vai para a Pedra Grande. Isso tudo e mais ainda, que ainda tem mais, o Queimado. Era só no Baldio. Isto eram os sítios no Baldio. E juntava-se as ovelhas nos Lagos iam para dentro de um curral, e depois de estarem dentro do curral, cada um escolhia as suas e amarrava numa cobra. Aquilo eram só as mulheres que estavam lá e iam amarrar na cobra. O marido estava dentro do curral, e dentro do curral botavam na parede, nuns boquetes que era para a linha amarrar numa cobra. Cada um amarrava as suas para o seu lado. Tinha um sinal nas orelhas. Estava na Câmara. Esta descrição relata-nos o sorteio que era feito pelo chamado “Juiz do Mato” que definia o local onde cada esquadra ia “à conta”. (termo local para designar «cercar as ovelhas».) Depois de todas as ovelhas estarem reunidas, num imenso manto matizado de branco, preto e castanho, iniciava-se a tosquia. O Corvo na segunda metade do séc. XIX era a segunda ilha com mais cabeças de gado ovino. Carlos Alberto Medeiros refere: “No conjunto do arquipélago, o Corvo ocupava em 1965 o 2.º lugar no número absoluto de cabeças de gado ovino, apenas excedido pelo de S. Jorge (…)” (A ilha do Corvo, p.87). As ovelhas eram amarradas a uma “cobra”. (Corda grossa cujas extremidades eram atadas a estacas fixas ao solo.) Cada proprietário reconhecia as suas ovelhas por meio de marcas. Existia um caderno, na Câmara Municipal do Corvo, como refere o Sr. Alfredo Emílio, onde eram registados os sinais de cada um dos criadores.5 Depois de presas, com a ajuda das mulheres, iniciava-se então a tosquia que, por vezes, se prolongava no dia seguinte. Mais do que um dia de trabalho, as descrições feitas relatam um dia de alegria Novembro 2021 -

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e de alguma aventura. Juntar aquele gado ovino, saltar e correr atrás dele, gerava uma certa adrenalina que era vivida com grande euforia. Nesse dia, o farnel era melhorado, vestia-se a melhor roupa e as poupanças das crianças serviam para comprar algumas guloseimas. Também eram permitidos alguns “direitos especiais”, pois as crianças podiam fumar livremente em frente aos seus pais. Tradição pouco saudável, mas comum para aquela época. Em setembro voltavam-se a reunir as ovelhas para se tosquiar alguma que tivesse ficado em falta e para se marcar as fêmeas, no sentido de se saber a quem pertenceriam os cordeiros que iriam nascer. Feita a tosquia a lã era trazida para a vila e era trabalhada, maioritariamente, pelas mulheres que separavam, limpavam, cardavam, fiavam e teciam. E depois ela vinha para casa [a lã]. As mulheres é que lavavam, despontavam e depois teciam. E ela depois de estar tecida, ia para um sítio que se chamava pisão, onde era apisoada. Eram dois homens deitados num estrado e a malhar ali com os pés, até ela entrar. Quer dizer, o entrar, não era para entrar mais nada. Aquilo era para sair a gordura da lã que estava lá, e era com água a ferver e com urina, que juntavam pelas casas dos vizinhos. E não podia ser urina de pessoa que tomasse medicamentos. Se tomasse medicamentos a tingidura não ficava boa, ficava riscada.

A lã era tecida em teares manuais. Toda a roupa, desde a roupa interior, lençóis cobertores, era tecida nestes toscos teares. As cores mais utilizadas eram as cores naturais da lã, mas também se tingiam alguns tecidos de azul. Com a chegada de roupa vindas, principalmente dos Estados Unidos da América, o tear passou a tecer apenas roupas de cama e agasalhos e a tecelagem foi-se perdendo. Hoje existem poucos teares ou quase nenhuns. Uns foram vendidos para outras ilhas, outros foram destruídos, pois ocupavam muito espaço nas pequenas casas do Corvo. O progresso, que, gradualmente, foi chegando à ilha fez com que se extinguisse a tecelagem no Corvo. Tal como se extinguiu o dia da lã assim se foi extinguindo a tecelagem e todo o ciclo da lã. Tradições que o Ecomuseu quer recuperar e manter vivas! Porque as ovelhas também acabaram. Acabou as ovelhas porque quando eu era garoto, a roupa que se vestia era toda de lã das ovelhas. E depois houve já uns que… mais espertos… E principiou a matarem as ovelhas, a acabar com as ovelhas e a meter gado no Baldio. (…) Se tinha futuro? Estão muitas [ovelhas] aí, mas quem é que as quer ir buscar? Eles agora são malandros. (…) Isso bem pensado faz chorar pedras… (Alfredo Emílio, 2019)

Notas: 1

Cfr. Teresa Perdigão, “Memórias e Lugares Um passado Coletivo”, in Tecelagem dos Açores – Contornos Insulares, VPGECE- CRAA, 2019, p.93.

2

Jacques Le Goff, História e memória, Edições 70, 2013, p. 51.

O foro consistia num pagamento anual de 40 moios de trigo, 80 varas de pano de lã e 80 mil reis em dinheiro. Em 1832, este imposto foi reduzido para metade e o pagamento em dinheiro foi abolido, por ação de Mouzinho da Silveira. Em 1853, o pagamento do restante foro foi suprimido. 3

4

Carlos Alberto Medeiros, A ilha do Corvo, 2.ª ed., Livros Horizonte, 1987, p.88.

5

Sobre este assunto, João Saramago, O Livro de Marcas da Ilha do Corvo, Câmara Municipal do Corvo, 2013.

Tear manual com cerca de 100 anos. Ao fundo vemos um lençol em lã com motivos em azul.

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Roberto de Mesquita - ( no 150 º. Aniversário do seu nascimento)

António Maria Gonçalves A 19 de junho de 1871, nascia em Santa Cruz das Flores aquele que é considerado um dos maiores poetas açorianos, imediatamente a seguir a Antero de Quental e Vitorino Nemésio. Este último, situou-o ao lado de António Nobre, Camilo Pessanha e Eugénio de Castro, figuras importantes do “simbolismo” português. Seus pais eram Fernando de Mesquita Henriques e Maria Amélia de Freitas Henriques, descendentes da mais importante nobreza açoriana. O pai, natural de Santa Cruz, era um importante proprietário e secretário da Administração de Concelho, pagador de Obras Públicas e mais tarde advogado de provisão ou solicitador. A mãe, que era prima do pai, nascera na vila de Lajes das Flores e o respetivo casamento realizara-se a 19 de abril de 1869. Após frequentar a Escola Régia de Santa Cruz, Roberto faz o exame de 2º. Grau da instrução primária em 1885. Em setembro desse ano segue para Angra do Heroísmo com o irmão Carlos, que era um ano mais velho, aonde frequentam o liceu daquela cidade. Os seus estudos nessa cidade não foram contudo muito bem-sucedidos, ao que se julga, devido à hostilidade de um professor, o Padre António Mariano de Sousa, que era um velho inimigo de seus pais. Recorrendo ao ensino do Liceu da Horta, em 1887, nesse estabelecimento de ensino faz o exame de 1º.ano, onde foi aprovado por unanimidade a todas as disciplinas. Uma excelente classificação, é por ele conseguida no ano seguinte em todas as matérias do 2º. Ano. Em outubro, matricula-se no 3º. Ano e com seu irmão Carlos tem por professores Rodrigo Guerra e Ludovico Meneses, ambos escritores que lhes incutem o gosto pela literatura, admitindo-os na tertúlia da redação do Jornal “O Açoriano”. Mais tarde Roberto de Mesquita e Carlos de Mesquita, dedicariam nas páginas desse periódico, poesias aos seus professores Rodrigo e Ludovico. É todavia nas Flores, no Jornal florense “O Amigo do Povo”, em 1 de março de 1890 (aos 19 anos) que publica o seu primeiro poema com o pseudónimo de Raul Montanha. No ano seguinte já com o seu nome, colabora nos jornais “ A Ilha das Flores” e “O Açoriano”.

Provavelmente por dificuldades económicas do Pai, terá sido obrigado a abandonar os estudos, ocupando-se durante alguns anos nas secretarias diversas sediadas na vila de Santa Cruz, então ocupadas por parentes seus. Em 1892 publica poemas no “O Açoriano”, jornal da cidade da Horta. No ano seguinte colabora na “Revista Faialense” e projeta um livro de poemas que entretanto não consegue publicar. Em agosto de 1894 desloca-se com o pai à cidade da Horta, onde se apresenta à inspeção para recrutamento do serviço militar, de que fica isento. Em 1896 (aos 25 anos) seria eleito vereador substituto da Câmara Municipal de Santa Cruz e nesse ano faz também concurso para escriturário das Finanças, sendo então colocado em Ferreira do Zêzere, por despacho de 13 de agosto desse mesmo ano. A seguir, requer a sua transferência para a Secção de Finanças de São Roque do Pico, onde é colocado nos finais do mesmo ano. Aí convive com o poeta parnasiano Manuel Henrique Dias, enveredando pela corrente espiritista que marca alguns dos seus poemas. Ainda com a categoria de 3º. Escriturário, é transferido a 2 de abril de 1898 para a Secção de Finanças de Santa Cruz das Flores. Em face Novembro 2021 -

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dos seus vastos conhecimentos profissionais, a 6 de agosto de 1900 é nomeado chefe da Secção de Finanças de Lajes das Flores, lugar que ocupa até 23 de março de 1901, altura em que volta ao seu lugar em Santa Cruz. Todavia, seis meses depois, voltaria ao mesmo serviço na vila das Lajes. A sua promoção a 2º. Aspirante viria a ter lugar na Secção de Finanças de Santa Cruz a 12 de abril de 1902, depois de ter sido atestado pelo Escrivão que “dava provas de muito zelo pelo serviço público, a que se dedicava com inteligência, sendo além disso dotado de conduta irrepreensível”. Mediante concurso realizado em Lisboa durante o mês de fevereiro de 1904, é nomeado Escrivão, tomando posse da chefia da Secção de Finanças de Santa Cruz das Flores a 5 de junho desse mesmo ano. Em 1911, face a um desfalque encontrado na Tesouraria por uma inspeção de Lisboa, acabada de desembarcar na Ilha, de que resultou o suicídio de Francisco António da Silveira, então tesoureiro e seu cunhado, Roberto de Mesquita é envolvido num processo disciplinar. Segundo a imprensa da época, o desvio provisório visava satisfazer necessidades financeiras do Barão de Freitas Henriques, encarregado da Estação Postal da vila santa-cruzense, que entretanto, havia desaparecido temporariamente, presumindo-se que saíra repentinamente da ilha (nesse mesmo dia da chegada dos inspetores). Corrido o processo, o Barão acabaria por perder tudo o que tinha, enquanto que Roberto de Mesquita, corresponsável pelo Serviço da Tesouraria da Fazenda Pública, como chefe da Secção de Finanças, embora inocente do desfalque, era punido com a sua transferência para a ilha do Corvo, onde toma posse da respetiva Secção de Finanças a 13 de abril de 1912 , aí mantendo-se até ser transferido no ano seguinte, novamente para a vila de Lajes das Flores, a seu pedido. Aí é novamente submetido a novo processo disciplinar por atraso nos serviços, não sendo, contudo, castigado, devido ao seu bom comportamento, conforme atesta o inspetor Júlio Batista. Finalmente volta às Finanças de Santa Cruz no começo de outubro de 1919. A 26 de dezembro de 1923, após uma semana de doença, é acometido de um desmaio ao levantar-se de uma cadeira de descanso. Assistido pelo médico da vila Dr. José Jacinto Armas da Silveira, seu primo, mantem-se acamado nos dias seguintes. Delirante, balbuciava poemas em português e francês. A 31 desse mês, falecia Roberto de Mesquita,

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ainda longe da fama que viria a ter. O seu funeral realizou-se no dia seguinte, com a participação de muitos dos seus amigos florenses, e com a presença da filarmónica “União Musical Florentina” a que ele havia pertencido como executante de 1º. clarinete. Conforme a respetiva certidão de óbito fora acometido de “tabes dorsalis” uma doença degenerativa dos neurónios. Entretanto, havia casado em 31 de maio de 1908 com Maria Alice Lopes, professora primária, natural e residente em Santa Cruz das Flores. Na 2ª edição de “Almas Cativas”, Pedro da Silveira, que faz uma excelente recolha de elementos históricos sobre o poeta, anota que Roberto de Mesquita, em 1907, “já de casamento aprazado, inesperadamente pôs termo a um namoro de alguns anos com uma filha (Maria José) do médico Dr. Júlio César de Caires Camacho” e acrescenta, “segundo testemunhos que colhi em Santa Cruz das Flores entre 1949 e 1951, foi o único amor do poeta”. Sobre o casamento do poeta, Pedro da Silveira escreve que “Nunca se entenderam muito bem”, “Separava-os a sensibilidade e a cultura”. Por sua vez, Manuel Ferreira, que baseia grande parte do seu livro (O Segredo das Almas Cativas) no trabalho de recolha de Jacob Tomaz, que havia passado muito do seu tempo disponível conversando com a irmã do poeta Maria Leonor — a fiel depositária dos seus sonhos e desabafos — entende que o grande amor de Roberto de Mesquita terá sido a pequena Maria, que falecera ainda em idade escolar. Seja como for, na ilha das Flores, muitas pessoas afirmavam que o poeta não fora feliz no casamento, o que se refletia com evidência em parte dos seus poemas. Sobre os amores ou desamores do poeta, interessa acrescentar que, em 10 de Setembro de 1897, o Jornal “A Ilha das Flores”, que no tempo se publicava em Santa Cruz, noticiava: “Consta que o Sr. Roberto de Mesquita pediu em casamento a exmª. filha de do senhor Avelino, empregado das Obras Públicas nesta ilha”. Mas é como poeta que Roberto de Mesquita se distingue. Depois de ter iniciado a sua colaboração em vários jornais e revistas açorianos, os seus poemas aparecem também na imprensa continental, sobretudo depois da sua ida a Lisboa, Coimbra e Viseu, em 1904, quando foi fazer exame para Escrivão. Nessa ocasião, como o irmão estava a lecionar em Viseu, mas já integrado na tertúlia de Coimbra junto dos maiores expoentes do simbolismo português, este propiciou-lhe contato pessoal com variados escritores da época, designadamente com Eugénio de


Castro e Manuel da Silva Gaio, poetas por ele admirados. Os seus poemas aparecem então em “Ave Azul” (Viseu), “Os Novos” de Coimbra e “ Ilustração” que se publicava em Lisboa. Nos Açores, colabora, para além dos jornais e revistas já referidas, em “O Açoriano Ocidental” e “Florentino” (Santa Cruz), no “Faialense” (Horta) e “Actualidade” (Ponta Delgada). Refira-se a propósito que, quando em 15 de abril de 1917 o jornal “O Açoriano Ocidental” apareceu em Santa Cruz das Flores, Roberto de Mesquita integrava o seu corpo redatorial com António Maria Henriques, Fernando Amorim Armas; Fernando Joaquim, Armas Jr, Jaime Leal Páscoa, João Rodrigues Magalhães, José J. Armas da Silveira, Júlio C de Almeida, Manuel Pedro Lopes, Maurício António de Fraga, Rodrigo Armas e Urbano Lino de Freitas. A partir do seu falecimento, a obra do poeta permanece algo esquecida não obstante os apelos de alguns para que a mesma fosse editada. Assim acontece, com o impulso de Júlia Mesquita, sua irmã, que incentiva a viúva Maria Alice Lopes a fazê-lo, promovendo assim a edição de “Almas Cativas”, onde são inseridos muitos dos poemas de Roberto Mesquita, por elas selecionados. Júlia Mesquita, que vivia em Lisboa onde era professora, ao visitar as Flores, leva consigo o acervo escolhido para essa publicação, encarregando o amigo do poeta falecido Marcelino Lima, escritor faialense, de prefaciar a obra com um texto por ele intitulado de “Comentário”. Assim, suportada a edição pela viúva e pela irmã, a sua primeira edição (de 300 exemplares) foi editada pela Minerva de Famalicão. Por ocasião do cinquentenário da morte do poeta, em 1973, novo livro de “Almas Cativas e Poemas Dispersos” foi editado pelas Edições Ática. Esta edição, mais completa pois a adição de novos poemas, “aparece, graças ao zelo de Pedro da Silveira, com vista a que a mesma ajude a colocar Roberto de Mesquita no rol dos poetas lidos, estimados e estudados”, como escreve o autor do prefácio o poeta e professor Dr. Jacinto Prado Coelho, da Faculdade de Letras de Lisboa. Essa edição, além de incorporar o retrato (de 1921) de Roberto de Mesquita, contem excelentes documentos anexados por Pedro da Silveira. Em 1983, a Secretaria Regional da Educação e Cultura assume a responsabilidade financeira da 3ª. edição de “Almas Cativas”, cujo texto é repescado do jornal académico “O Arauto” que o vinha publicando com a colaboração do Núcleo Cultural da Horta.

Com os títulos de “ Grande Poeta em Pequena Ilha” e “Nota Explicativa e Efemérides”, o Dr. Tomás da Rosa, faz então uma extensa análise poética a “Almas Cativas” publicando diversos artigos no jornal “Correio da Horta”. Editado pela Câmara Municipal de Santa Cruz das Flores, o livro de “O Segredo das Almas Cativas”, publica poemas inéditos recolhidos por Jacob Tomaz durante os seus contactos com a viúva do poeta, Maria Alice Lopes e com a irmã Maria Leonor Mesquita. Neste livro que está ilustrado com várias fotografias alusivas ao poeta, também se divulga, pela primeira vez, a existência de um grande amor juvenil de Roberto de Mesquita pela Maria, falecida em idade escolar. Ainda, em 1984, a antologia “Tesouros da Poesia Portuguesa”, editada pela Verbo, dedicou merecida atenção a Roberto de Mesquita, acolhendo nas suas páginas os poemas “Ar de Dia Santo”, “Ar de Inverno” e “Às Grades da Prisão”. Anteriormente, já o nosso ilustre poeta florense Pedro da Silveira, na sua “Antologia de Poesia Açoriana – do século XVIII a 1975”, insere a biografia e alguns dos poemas de Roberto de Mesquita. Finalmente, gostaria ainda de deixar aqui um dos seus poemas. Neste seu 150º. aniversário, a minha escolha e a minha homenagem recai no soneto “Exilado”. EXILADO Quando a luz vesperal afrouxa no Ocidente, Pondo saudosos tons na tarde de veludo, E a mística emoção que transparece em tudo Tem eco no vibrar dum ângelus plangente. Para o que em terra estranha evoca o lar ausente Torna-se o exílio então mais opressivo e rudo, E no seu coração como um espinho agudo, Crava-se a nostalgia, agora mais pungente. Mas ninguém há, como eu, que o seu exílio tenha Na própria pátria, e sinta essa saudade estranha Que no meu coração morbidamente avulta Por vezes, quando à tarde o olhar nos longes ponho: Saudade de um país mais vago do que um sonho E que eu nunca hei-de ver, nem sei onde se oculta… BIBLIOGRAFIA: “ Florentinos que se distinguiram” de José Arlindo Armas Trigueiro, “O Segredo de Almas Cativas de Manuel Ferreira”, edição da S.R.E.C. de 1983 Jornal “Correio da Horta de 17.7.1984, artigo de Francisco António Gomes , jornal “ A Ilha das Flores de 10.9.1897 e “Almas Cativas e Poemas Dispersos,” Edição (2ª.) da Ática . Novembro 2021 -

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Conheça o ponto mais alto de Portugal, a Montanha do Pico Secretaria Regional Climáticas

do

Imponente, exuberante, magnífica, grandiosa, são algumas das qualidades que esta Montanha revela por parte de quem a vê e conhece, mantendo-se eternamente na sua memória. A Montanha do Pico é considerada um ex-líbris dos Açores e de Portugal. É o ponto mais alto do país e o terceiro maior vulcão ativo do oceano Atlântico. Para além da majestosa beleza estética que influencia toda a paisagem da ilha do Pico, bem como a das ilhas vizinhas, a Montanha encerra valores naturais (geológicos e biológicos) muito relevantes, o que fez com que, a partir da década de 70, surgisse a preocupação pela preservação e conservação deste ecossistema único. Foi assim que, através de decreto-lei, foi classificada como “Reserva Integral da Montanha do Pico”, em 1972, sendo uma das áreas protegidas mais antigas de Portugal. Neste documento, a Montanha é considerada “um grandioso cone vulcânico, no cimo do qual se regista a maior altitude de Portugal europeu, e cujo interesse geológico e condições ecológicas particulares justificam plenamente as medidas de defesa preconizadas, de modo a garantir a sua conservação”. Após uma década, o Governo Regional dos Açores reclassificou esta área como “Reserva Natural” e, em 2008, foi inserida no Parque Natural do Pico, o maior dos nove Parques Naturais de Ilha sob gestão da Secretaria Regional do Ambiente e Alterações Climáticas (SRAAC), com 22 áreas

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Ambiente

e

Alterações

protegidas dispersas por uma área territorial que abrange cerca de 35 % da superfície terrestre da ilha (o que corresponde a aproximadamente 156 km²), à qual acresce cerca de 79 km² de área de proteção marinha. Esta Montanha está também classificada como Zona Especial de Conservação da Rede Natura 2000 – ZEC Montanha do Pico, Prainha e Caveiro – e é um geossítio prioritário de relevância internacional do Geoparque Açores – Geoparque Mundial UNESCO. Recentemente, obteve também reconhecimento nacional, vencendo o concurso “7 Maravilhas Naturais de Portugal” na categoria de Grandes Relevos, integrada na Paisagem Vulcânica do Pico. Em termos geológicos, a Montanha do Pico constitui um edifício vulcânico designado por estratovulcão, com uma altura de 2351 metros acima


Casa da Montanha

Piquinho, Cratera e “quebrada”

do nível do mar e cerca de 3500 metros acima da plataforma oceânica dos Açores, sendo muito semelhante ao Pico do Fogo (Cabo Verde), ao Teide (Canárias), ao Monte Fuji (Japão) e ao Vulcão Mayon (Filipinas). Estima-se que a sua formação terá tido início há cerca de 240 mil anos e que se dividiu por três fases. Durante o seu processo de edificação, ocorreram inúmeras erupções nos seus flancos, predominantemente efusivas (com emissão de lavas pahoehoe), tendo também ocorrido, mas em menor quantidade, erupções adventícias, principalmente de estilo estromboliano, originando diversos níveis de piroclastos. Assim, nos flancos da Montanha existem alguns depósitos de vertente originados a partir de escorregamentos gravíticos, localmente designados por “quebradas” e “areeiros” (Areeiro de Santa Luzia, Quebradas do Norte, do Curral e

da Terça). Neste local existem ainda relevantes elementos de geodiversidade, como depósitos piroclásticos; escoadas lávicas do tipo pahoehoe, algumas delas encordoadas e exibindo interessantes microrrelevos como os pahoehoe toes ou os tumulli; lavas em tripa; cavidades vulcânicas do tipo algar e tubo lávico; hornitos e, aos 2050 metros de altitude, uma cratera fóssil, que marca a separação entre a primeira e a segunda fase de construção deste imponente estratovulcão. Na cratera atual, aos 2250 metros, localiza-se o cone lávico (driblet cone) do Piquinho e uma fissura eruptiva, testemunhos da atividade vulcânica recente deste vulcão, onde ainda hoje se verifica atividade fumarólica. Nesta imensidão de diversidade geológica é também possível descobrir habitat naturais e espécies de elevado interesse, sendo esta Montanha considerada uma zona extremamente interessante e valiosa do ponto de vista ecológico, com destaque para a espécie bremim-da-montanha (Silene uniflora subsp. cratericola), subespécie endémica deste local, onde a maior população ocorre dentro da cratera, a cerca de 2200 metros de altitude. Desde o sopé até cerca de 1600 metros, encontrase mato macaronésico onde ocorrem várias espécies naturais dos Açores, como o cedro-domato (Juniperus brevifolia), a urze (Erica azorica), a uva-da-serra (Vaccinium cylindraceum), o fetopente (Blechnum spicant), a Tolpis azorica e o patalugo (Leontodon spp.). Com o aumento de altitude, quer a diversidade, quer a densidade das espécies de flora diminuem, contudo, a vegetação assume interesse muito particular. A Montanha é o único local do Arquipélago que comporta habitat alpinos e onde a vegetação está sujeita a depósitos de neve prolongados. A comunidade vegetal existente nesta zona está adaptada às condições adversas de montanha, como a temperatura e o vento. Por isso, atinge maior expressão o coberto cuja estrutura é de mato rasteiro, com domínio de rapa (Calluna vulgaris) e erva-úrsula (Thymus caespititius), que são acompanhadas pela caniça (Holcus rigidus) e pelo queiró (Daboecia azorica). Em relação à fauna, destacam-se as aves, sendo mais comuns as subespécies endémicas melro (Turdus merula azorensis), alvéola (Motacilla cinerea patriciae) e tentilhão (Fringilla coelebs moreletti). Para conhecer de perto esta bio e geodiversidade, nada melhor do que subir até ao ponto mais alto de Portugal, percorrendo o seu trilho. Com uma extensão de cerca de 7600 metros e um desnível de aproximadamente 1150 metros, esta caminhada, cujo percurso está devidamente sinaNovembro 2021 -

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Casa da Montanha (Receção)

lizado, tem início na Casa da Montanha, a 1230 metros de altitude, subindo até ao cume (2351 metros), e termina com o regresso ao ponto inicial. No seu começo, encontra a estátua do “Anjo da Montanha” da autoria de José Nuno da Câmara Pereira, que constitui uma marca arquitetónica simbólica desta mítica Montanha. Aos 1500 metros situa-se a Furna Abrigo, que corresponde a um cone de spatter ou cone de salpicos de lava, com um algar associado de aproximadamente 40 metros de profundidade e uma galeria que servia de abrigo aos caminhantes que por aqui se aventuravam. Ao chegar ao topo, revela-se uma paisagem de cortar a respiração, com vista panorâmica para todas as ilhas do Grupo Central, sempre que as condições meteorológicas são favoráveis. Embora não seja uma escalada técnica, a subida à Montanha do Pico tem um grau de dificuldade médio a elevado, pelo que é recomendável uma

Vista do Faial a partir da Casa da Montanha

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boa preparação física. De forma a preservar os seus valores naturais, a SRAAC determina o seu acesso através do Regulamento de Acesso à Reserva Natural da Montanha do Pico, que tem como objetivos principais o controlo dos acessos e a aplicação de regras de conduta e de segurança na Montanha. Este trabalho é levado a cabo na Casa da Montanha, um centro de interpretação ambiental de apoio aos visitantes, sob alçada da SRAAC, inaugurado em 2008 e ponto de paragem obrigatório para quem quer fazer o trilho. Aqui, é possível explorar uma exposição alusiva à geologia, biologia, história e clima da Montanha do Pico e, antes da subida, é disponibilizada toda a informação sobre o regulamento, as condições e duração média do percurso, as regras de comportamento e de segurança, a previsão meteorológica, e os termos e condições das operações de resgate. Apesar do registo e controlo das subidas ser efetuado na Casa da Montanha, a subida ao ponto mais alto de Portugal pode ser reservada através da plataforma: https://montanhapico.azores.gov.pt/. Desde o povoamento da ilha, no final do século XV, que o ponto mais marcante da paisagem “picarota” é a Montanha do Pico, servindo de referência a navegadores, inspirando poetas e alimentando o imaginário popular. A partir de então, inúmeras foram as gentes que conheceram de perto esta emblemática paisagem, e que levaram consigo as recordações de uma viagem inesquecível.


Café da Fajã dos Vimes

A Origem do Nosso Café Açoriano Café Nunes

Açores, não haja dúvida que em séculos passados, no meio do Oceano Atlântico, foram as ilhas deste Arquipélago que tiveram uma forte relevância nas relações comerciais entre a Europa e o Ultramar, nomeadamente as Américas. A sua variante geográfica proporcionou ao arquipélago rotas e relações comerciais privilegiadas, o aparecimento de mercadorias exóticas e ainda o esteio das produções locais, que conquistaram os mercados externos.

cafe Fajã dos Vimes

No entanto, até meados do século XVIII, viver nas ilhas era difícil, ora por fenómenos naturais (sismo, vulcões…), ora por escassez de alimentos. Isso fez com que houvesse emigração em especial para o Brasil, como forma de recrutamento e aliciamento na promessa de oferecer dinheiro, terras, ferramentas agrícolas, sementes, gado e armas de fogo para as famílias.

Estes aliciamentos e promessas para emigrar para o Brasil eram controladas pela coroa para o sucesso da colonização de várias regiões brasileiras, como Rio Grande do Sul e Santa Catarina, entre outras, mas o desespero de muitos jovens açorianos fez com muitos partissem clandestinamente, por traficantes de escravos, a chamada “escravatura branca”, onde o trabalho desses traficantes consistia em aliciar jovens interessados em migrar para a América do Sul em busca de riqueza, negociar o seu transporte com os comandantes de navios e entregá-los juntamente com seus contratos de trabalho aos proprietários das fazendas a quem os estrangeiros trabalhariam. Contudo, entre o prometido nos contratos e a realidade à qual os portugueses/ açorianos eram submetidos, havia um gap. O esvaziamento das ilusões dos emigrantes provavelmente começava a acontecer já nos navios que os levaria ao destino. Os viajantes eram acomodados em porões de navios insalubres, aglomerados, submetidos às intempéries e à restrição de água e de alimentos e, em muitos casos, vitimados por doenças, sequer sobreviviam para desembarcar no Brasil. Esta “escravatura branca” faz com que, de certa forma, muitos acabem por regressar às suas ilhas nos finais do século XVIII e princípios do século XIX. Este regresso permitiu que muitos açorianos introduzissem várias espécies de plantas exóticas vindas do Brasil, como forma de experimento de novas culturas agrícolas. E o café foi provavelmente uma dessas espécies exóticas Novembro 2021 -

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Manuel Nunes

introduzidas na ilha de São Jorge, possivelmente e inicialmente na Fajã de São João e Fajã dos Vimes, tendo-se expandido, mais tarde, no século XX em outras ilhas. Ao longo de muitos anos, infelizmente, a cultura do café foi ficando esquecida pelas ilhas, mas teimou em ficar entranhada como tradição na ilha de São Jorge e isto graças a algumas pessoas das Fajãs, em especial na Fajã dos Vimes, onde as Tecedeiras que produziam as tão afamadas colchas de “ponto alto” ofereciam esta bebida tão apreciada. No entanto, e com o passar do tempo, as tecedeiras foram deixando esta arte - por diversas razões - ficando apenas a Casa de Artesanato Nunes: uma família que continuou a arte de tecer. Manuel Nunes aumentou a sua produção de café para bem servir as pessoas que vinham comprar as colchas à Casa de Artesanato e aos curiosos que vinham somente para passar o dia nesta Fajã, aproveitando para beber um café entre longas horas de conversas e risadas. Com o crescimento gradual de pessoas a visitar a Casa de Artesanato Nunes, em 1995, melhorou-se o espaço para o Artesanato e, em 1997, criou-se um estabelecimento que pudesse servir as pessoas que quisessem tomar algo - o Café

Dina Nunes

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Nunes. Assim, de boca em boca, o nosso café ficou conhecido no mundo através de roteiros turísticos. Hoje em dia, o Café da Fajã dos Vimes, continua a ser uma produção pequena e para muitos uma produção extremamente pequena, em formato caseiro e que se mantém com trabalho árduo e manual, todo ele em família e com especial carinho, paciência e paixão. São Jorge apresenta um clima dito um pouco e um tanto estranho, de microclima próprio e único, que propicia às Fajãs de São Jorge uma beleza natural, terrenos férteis favoráveis ao cultivo de uma infinidade de variedade de espécies. E o café [Coffea Arabica] é uma dessas infinidades de espécies capazes de sobreviver a um clima não tropical, que contraria a sua natureza. Aqui, vive a poucos metros do nível do mar, ao contrário do resto do Mundo, em que é produzido em altitude, tornando-o único na Europa, e quem sabe único no Mundo! Dado à particularidade do clima da Fajã, o Café da Fajã dos Vimes apresenta um sabor único: rico em aroma, frutado e florado dando uma doçura e acidez especial, mas também com um teor de cafeína menor ao que é dito normal. Hoje em dia, o Café Nunes recebe turistas e visitantes de todo o Mundo, desde há mais de 25 anos, para provar este delicioso café, onde a família, de forma simples e humilde, abre as portas da sua casa para dar a conhecer não só a existência de um café num dito “calhau” no meio do Oceano Atlântico, quase imperceptível à escala mundial, mas também e sobretudo mostrar as vivências, tradições e experiências do típico Jorgense. Dina Nunes (filha de Manuel Nunes)


Olarias da Vila Vila Franca do Campo e a Vila Nova A história de Vila Franca do Campo funde-se com a história da ilha de São Miguel, o local escolhido por Gonçalo Vaz Botelho (o Grande), no século XV, para construir a mais importante urbe micaelense. Parte desta história e património material, ficou soterrado após o desastre ocorrido na noite de 22 de outubro de 1522, quando um terramoto e deslizamento de terras destruiu grande parte do povoado e matou milhares de pessoas. A reconstrução de Vila Franca do Campo após este evento, iniciou-se no lado ocidental do povoado, conhecido atualmente como a Vila Nova. Estima-se que antes de 1522 já existisse uma Rua dos Oleiros, situada nas imediações da primitiva Igreja Matriz. No entanto, os estudos arqueológicos provam que a louça existente antes do terramoto, era predominantemente importada de Portugal continental e proveniente dos países envolvidos no comércio transatlântico do século XV. As olarias e a Louça da Vila Este centro de produção foi essencial à subsistência das populações que procuravam adquirir telhas, tijolos e louça utilitária para o transporte, armazenamento, conservação, consumo, preparação de alimentos e água potável. Constituindo-se numa atividade económica essencial para os oleiros, os carreteiros, os burriqueiros, os extratores de barro e as transportadoras navais. Atualmente, assume-se como um importante testemunho do património cultural material, imaterial e edificado do concelho, protegido e musealizado neste Roteiro das Olarias.

O Roteiro das Olarias O roteiro das Olarias da Vila é constituído por quatro espaços: a Olaria Mestre João da Rita, a Olaria Mestre José Batata, o Forno de Louça Manuel Jacinto Carvalho e a Olaria Mestre António Batata (Olaria Museu). As olarias eram chamadas de “tendas” e tradicionalmente eram compostas por um ou dois compartimentos, onde existia um “barreiro”, uma ou várias rodas em madeira, um “estaleiro”, prateleiras de madeira e um forno em pedra para o cozimento da louça. As tendas eram espaços com pouca luz natural, frios e húmidos, com paredes de pedra, o chão em terra batida e um “secadoiro”, acessível através de uma escada em madeira amovível. A produção cerâmica e oleira foi uma atividade económica relevante na freguesia de São Pedro. Em tempos, somente nesta rua, funcionavam cerca de doze espaços dedicados a este ofício, onde trabalhavam os mestres: José Gracioso, António Balaia, Manuel Cozinheiro, António Melão, José Melão, José Vicente (pai e filho), Teotónio de Andrade, José Aninhas, José “Guegué”, Manuel Cristiano, António Manuel, José “Camelo”, os irmãos Floriano e Olindo, os “Bichinhos”, entre outros. Os oleiros eram normalmente pagos ao dia e podiam trabalhar em tendas diferentes. A Olaria Mestre José Batata (18/12/191821/07/2006) é o espaço onde trabalhou o Mestre José Batata e é composto por uma roda tradicional, um barreiro e um forno. Atualmente tem patente uma exposição com peças da sua autoria Novembro 2021 -

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O Forno de Louça Manuel Jacinto Carvalho é um forno coletivo de louça que foi construído no século XIX, por Manuel Jacinto Carvalho (1911-1968), época em que a Olaria representava uma das mais importantes atividades artesanais em Vila Franca do Campo. O forno cerâmico tradicional é composto por uma câmara de combustão para o fogo e uma ou duas câmaras para a cozedura. Para o processo de cozedura eram necessários vários oleiros para carregar a louça, enfornar, vigiar o lume e desenfornar. Este forno, em particular, demorava dois dias para ser enfornado e cerca de quatro dias e quatro noites para completar a cozedura. Depois do cuidadoso empilhamento da louça crua no forno, os oleiros tinham o hábito de benzer a fornada com a oração: “Vai com Deus!”, com fé que a louça saísse perfeita, sem quebras nem fissuras. A Olaria Mestre António Batata (13/08/192005/03/2010) ou a Olaria Museu, é conhecida por “Tenda do Mestre António Batata”, a Olaria Museu é um Núcleo Museológico pertencente ao Museu Municipal de Vila Franca do Campo, onde se realizam atividades relacionadas com a olaria, importante património identitário e cultural do concelho. Esta tenda foi construída no século XIX e após o seu restauro, foram mantidas as suas características originais: as paredes de pedra, o chão de terra batida, as três rodas tradicionais de oleiro e o sótão.

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Em 1988, foi considerada de “valor concelhio” pelo Decreto Regional n.º 13/79/A. A Coleção Museológica De aparência rude e arcaica, as peças de louça que chegaram aos nossos dias, sofreram adaptações às necessidades e ao gosto dos consumidores. As inovações caracterizaram-se apenas pela criação de novos hidrocerames e a introdução de ornamentos mais arrojados, influenciados pela cerâmica brasileira. Os últimos oleiros tradicionais tiveram algum sucesso comercial na venda de louça(s) em miniatura e de peças destinadas ao mercado da saudade, nas festas religiosas, como o Sr. Santo Cristo dos Milagres e o Senhor Bom Jesus da Pedra. Está patente no edifício Solar Viscondes do Botelho, sede do Museu Municipal de Via Franca do Campo, a exposição “Formas & Figurados”, onde se podem observar todo o tipo de louça(s) característica do centro de produção Vilafranquense. Serviço Educativo para diferentes públicos Atualmente, graças a este roteiro, a olaria é uma das temáticas tradicionais e culturais mais divulgadas do concelho. O Museu Municipal de Vila Franca do Campo promove continuamente visitas e ações práticas, onde os diferentes públicos podem experimentar a roda tradicional de oleiro. Desta forma, através de uma experiência real, os participantes fruem e sedimentam, o conhecimento teórico apreendido ao longo de todo o percurso.


Enquadramento histórico do aparecimento da cantoria na ilha Terceira e respetiva evolução até à atualidade Jose Eliseu momentos folgazões a viola repenicava, rasgada, na chocarrice das Velhas. Não pode lusquir-se o Samacaio que “deu à costa nos baixos do Maranhão”. Ou seja, a Terceira exportou música e cantares populares para o Brasil através dos que se aventuraram a cruzar o Atlântico e por refluxo recebeu-as modificadas, com ritmos e estilos dos indígenas de lá. Também importado das Américas parece ter sido o gosto pelo despique em melodias ligeiras. Aliás, tudo aponta para que o termo “repentistas” tenha vindo do Brasil. Por cá, o improviso foi estandardizado na forma de quadra popular, de rima cruzada e sem refrão, desenvolvido na moda da Chamarrita Velha. Essas mudanças aconteceram sem que a aristocracia angrense se apercebesse. Estava nessa altura inculcada pelas tendências da poesia renascentista, cheia de figuras de retórica, malabarismos semânticos, de rima não obrigatória e expressa em versos de métrica variável. Mas, por decisão do Marquês de Pombal, em Decreto de 2 de Agosto de 1766, assinado pelo Rei D. José, foi sediada em Angra a Capitania Geral dos Açores. O primeiro Capitão General foi D. Antão de Almada, 12.º Conde de Avranches, natural de Condeixa-a-Nova, do distrito de Coimbra. Desembarcou na cidade de Angra a 28 de setembro desse ano e tomou posse a 7 de outubro. Conta-se que tinha um copeiro, de origens humildes, com habilidade para improvisar quadras. Então, nos lautos jantares que oferecia, o capitão general solicitava que o seu servidor dedicasse uma tirada das suas aos convivas da alta sociedade. Os visados já de braço dado com Baco, achavam muita piada, mas sem valorizar muito essa arte. Vintismo e o nascimento do Terra Cantoria em São Mateus (da esquerda para a direita: António Mota, José Eliseu, Rui Santos (S. Miguel), Tiago Clara (S. Miguel) Bruno Oliveira (S. Jorge) e Fábio Ourique) A invasão de Portugal por

No século XVIII, o arquipélago dos Açores era um grande produtor cerealífero, especialmente trigo que era exportado para o Continente e Madeira, terras com carência frumentária. Mas a meados desse século as colheitas de trigo minguaram e o milho ganhou importância, de consumo e de mercado. Na ilha Terceira, praticamente todos os proprietários rurais faziam desfolhas para facilitar a armazenagem do milho e em quase todas elas havia animação com cantadores. Mas estes momentos animados escondiam, por vezes, vidas sofridas. Para o ilhéu pobre que procurava horizontes inatingíveis a solução passou pela emigração. A América do Sul, principalmente o Brasil, era o destino mais procurado, após a descoberta e exploração do ouro e diamantes, a partir de 1730. Houve, então, um considerável fluxo migratório açoriano, tanto no segmento de alistamento de casais, como nos de recrutamentos e emigração isolada. Os destinos preferidos dos primeiros grupos foram a Ilha de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Pará e Maranhão. Esta mobilidade populacional marcou o folclore da ilha Terceira com novas modas e letras. A dor de ver partir exprimia-se nos gemidos das toeiras da viola no interlúdio da Saudade. A alegria da chegada refletia-se na ligeireza da Chamarrita. Para os

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Pezinho em Quatro Ribeiras (da esquerda para a direita: José Eliseu, José Esteves, Bruno Oliveira (S. Jorge) e António Isidro Cardoso (S. Jorge))

tropas francesas, comandadas pelo General Jean Andoche Junot, 1.º Ajudante de Campo de Napoleão de Bonaparte, a 18 de outubro de 1807, obrigou o Príncipe Regente D. João e toda a corte portuguesa a embarcarem para o Brasil. O Soberano Luso em exercício, pela demência de sua mãe, a Rainha D.ª Maria I, tentou até ao limite manter a neutralidade portuguesa, mas não evitou que Napoleão iniciasse a denominada Guerra Peninsular. No dia 27 de novembro de 1807, toda a família real subiu para bordo de uma esquadra real, protegida por quatro naus britânicas, deixando o país entregue a uma regência com instruções para não resistir aos invasores. A comitiva real aportou em São Salvador da Baía, a 22 de Janeiro de 1808 e no dia 7 de março chegou à cidade do Rio de Janeiro. Foi, depois, na célebre Batalha do Buçaco, que o exército anglo-português, comandado por Arthur Wellesley, Duque de Wellington, derrotou o exército napoleónico às ordens do Marechal André Massena, obrigando-o a abandonar Portugal, a 17 de Abril de 1811. Napoleão de Bonaparte abdicou a 6 de abril de 1814, após a estrondosa derrota na Batalha de Toulouse e dois anos depois, a 20 de março, faleceu D.ª Maria I, iniciando-se o reinado de D. João VI. Com revoluções liberais um pouco por toda a Europa, esse ideário acabaria também por alastrar a Portugal. Um pronunciamento militar na cidade do Porto, em agosto de 1820, originou a formação de uma Junta Provisória do Governo Supremo do Reino, presidida pelo Brigadeiro António da Silveira Pinto da Fonseca e deu início a um período conhecido por Vintismo. Foram formadas as Cortes Constituintes

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que votariam favoravelmente a primeira Constituição Portuguesa, em 1822, que, na opinião do Professor Joaquim de Carvalho, foi a “organização política da democracia”. D. João VI fora forçado a regressar do Brasil, em razão de Portugal se encontrar empobrecido, entregue a uma regência subserviente perante a Inglaterra e sob a ação usurpadora do Marechal-General inglês William Beresford. O texto constitucional foi jurado pelo Rei D. João VI, no dia 1 de outubro de 1822. Nele, os liberais viam a criação de uma nova e racional ordenação jurídica que, limitando o poder do rei, garantisse os direitos individuais. Nos Açores, a época do Vintismo, foi bastante conturbada na ilha Terceira. Um dos principais agitadores foi o Bispo D. Frei Manuel Nicolau de Almeida que extravasou das suas competências eclesiais para o campo político. Desalinhou da hierarquia da Igreja ao negar juramento às bases constitucionais. Os liberais da ilha juntamente com correligionários ali exilados tentaram depor as autoridades. O prelado apoiou ativamente o Capitão-General Francisco Stokler, neto de um influente homem de negócios de Hamburgo, na violenta subjugação dos movimentos revolucionários. Os autores da revolta foram deportados para Lisboa e puseram em versos todo o radicalismo do pensamento liberal que sustentara a sublevação. Até que, no dia 15 de maio de 1821, ancorou em Angra uma esquadra vinda do reino com ordens para demitir o governador militar e substituí-lo por um interino, fiel aos ideais cartistas. O cabido e o clero de Angra subscreveram uma carta que formalizava a obediência do corpo eclesiástico


à nova ordem política. Essa tomada de posição não impediu que o Bispo D. Manuel de Almeida proferisse um sermão na Sé de Angra que excedeu a moderação com um ataque ostensivo aos regeneradores. Como consequência, veio de Lisboa um desembargador para lavrar o auto de culpa do bispo e do capitão-general. A 18 de setembro de 1821 ambos embarcaram numa corveta de guerra com destino ao cárcere. D. Manuel esteve preso em Camarate durante vinte e um meses, tratando-se do mais longo encarceramento de um prelado durante o Vintismo. E foi quando o clero secular e regular português prestou juramento à nova Constituição e quase três meses depois da independência do Brasil, que nasceu, no dia 30 de novembro de 1822, um sábado, na freguesia de Porto Judeu, concelho de Angra do Heroísmo, Francisco José da Terra. Filho do picoense António José da Terra e da terceirense Maria Santa, “O Terra”, como ficou publicamente conhecido, foi o primeiro cantador ao desafio de que há registo na ilha Terceira. Era analfabeto, mas essa limitação instrutiva não foi obstáculo para mostrar propensão e arte para improvisar quadras, com um estilo burlesco desconcertante. Fazia-o, como muitos que lhe subseguiram, em bailes, terços, desfolhadas e matanças organizados por aldeões. Melodias e alterações formais da cantoria Depois da crise dinástica (1826-32), da guerra civil (1832-34), que opôs os dois irmãos D. Pedro e D. Miguel, veio o estabelecimento do regime cartista, ou seja, um liberalismo moderado que defendia a passagem da monarquia absoluta para a monarquia constitucional. Foram nacionalizados os bens das ordens religiosas masculinas, entretanto extintas, num país em crise comercial, aferrado na esperança da aposta africana de Sá da Bandeira e com o tesouro nos mínimos. Emergiu, então, a figura de Mouzinho da Silveira, um estadista, político e jurisconsulto que se tornou uma das figuras maiores da Revolução Liberal. Curiosamente, tomou posse dos cargos de Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Fazenda e interinamente da Justiça e Negócios Eclesiásticos, em Angra do Heroísmo, no dia 2 de março de 1832, integrado no governo que o regente D. Pedro aí formou. Na sua frenética produção legislativa, na ânsia de destruir de vez as bases do Antigo Regime, destaca-se a transferência das propriedades, outrora pertencentes às ordens religiosas, para uma nova burguesia, ligada a atividades financeiras e sedenta de títulos nobiliárquicos, a abolição dos pequenos

vínculos, a extinção ou redução das sisas, a extinção dos forais e bens da Coroa e a reforma da administração pública. Dividiu o Reino em províncias, comarcas e concelhos, geridos por administradores, todos nomeados pelo Rei, que se faziam assistir por Juntas Diretivas. Refira-se que quase todos os decretos foram redigidos por Almeida Garrett, que estivera em Angra aquando das invasões francesas. Na ilha Terceira, Mouzinho da Silveira extinguiu a Capitania Geral e elevou os Açores a Província do Reino. Tal como a nível nacional, também na Região o poder passou a ser disputado entre duas sociedades secretas: as lojas maçónicas e as barracas da Carbonária. Mostrava-se mais agressiva a maçonaria, correspondente à ala mais à esquerda, vinda das opções vintistas e constitucionais, os chamados “reformistas”. Em Angra consolidaram-se as lojas maçónicas e sobressaía a ação dinâmica do reformador Teotónio de Ornelas Bruges. Ter sido a ilha Terceira baluarte da resistência liberal, culminada na Batalha da Praia, de 11 de agosto de 1829, e os seus habitantes tidos por “os súbditos mais fiéis”, valeu-lhe benesses várias, entre as quais os títulos honoríficos de “Vitória” concedido à Praia e de “Heroísmo” à cidade de Angra. Só que na Terceira, como no restante país, a onda liberalista não molhou os escolhos do povo. O liberalismo passou por várias fases até à implantação da República, como, por exemplo, o Setembrismo, o Cabralismo, a Regeneração ou o Ultimato Inglês, mas nesse trajeto histórico o povo continuava um estrato social desvalido, iletrado e não ouvido. Imune a esse menosprezo, a classe básica continuava a descobrir hiatos no seu quotidiano penoso para organizar os seus arraiais. Neles cabiam quase obrigatoriamente os improvisadores. O seu repentismo saía trocista em quadras bem congeminadas na vivacidade da moda da Chamarrita Velha. Esta base musical era tocada rasgada, em Lá maior, com compassos binários, aparentando-a melodicamente com as marchas. A ligeireza da música exigia uma improvisação bastante rápida só suportada pelos predestinados. A velocidade de raciocínio exigida era como uma joeira que selecionava os cantadores. As estrofes cantadas eram invariavelmente em quadra popular, ou seja, o padrão métrico de redondilha maior e a rima cruzada, do tipo a-b-c-b. Nesta época, os improvisadores eram sobretudo zombeteiros, através, muitas vezes, de piadas caricaturais. Em todo o século XIX continuaram as emigrações para o Brasil e para um novo destino: Estados Unidos da América. A nível literário, o Novembro 2021 -

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iluminismo foi o magma intelectual para a eclosão do romantismo, bem patente nas obras do multifacetado Almeida Garrett, do músico e pintor António Domingos Sequeira, do romancista e historiador Alexandre Herculano, do prosador Camilo Castelo Branco, do romancista Júlio Dinis ou do poeta lírico João de Deus. Nesta mesma centúria o micaelense Antero de Quental, egrégio membro da chamada Geração de Setenta, legou à literatura portuguesa odes e sonetos que o imortalizam. Também no século XIX, por inspiração dos ideais liberais e da fraternidade, parte do chavão da Revolução Francesa, nasceram as primeiras filarmónicas em Portugal com o objetivo de democratizar a instrução e elevar o nível cultural das pessoas, a maioria delas iletradas. Na ilha Terceira, o aparecimento de bandas fez nascer uma tradição ligada às festividades do Divino Espírito Santo: o Pezinho. Moda cantada pelo caminho aos benfeitores dos impérios e às portas dos lugares de culto. Variante musical mista com instrumentos de sopro, enquanto o cortejo se desloca, e instrumentos de corda, no acompanhamento dos cantadores. Mudança para as 4 rimas Enorme júbilo houve na Terceira, no mês de Julho de 1901, com o desembarque em Angra de Sua Majestade o Rei D. Carlos e sua esposa a Rainha D.ª Amélia de Orleães. Contudo, o ambiente extático na receção ao séquito real nas ilhas contrastava com o clima político conturbado na metrópole. Por isso, sem grande surpresa, quando pelas 9 horas da manhã, do dia 5 de outubro de 1910, José Relva, natural da Golegã, com voz longitroante, proclamou a República, na varanda da Câmara Municipal de Lisboa, abriu-se uma nova página na história portuguesa. Um longo processo de mutações políticas, sociais e mentais antecedentes a essa data desencadearam o ideal revolucionário. O Ultimato Inglês acicatou os ânimos e revigorou os conteúdos programáticos do Partido Republicano Português. Implantado o novo regime, duas figuras se destacaram e ambas nascidas nos Açores: Teófilo Braga e Manuel de Arriaga. O primeiro, nascido em Ponta Delgada, chefiou o primeiro Governo Provisório e o segundo, natural da Horta, foi o primeiro Presidente da República eleito. Realce-se que Teófilo Braga deixou escrita, entre outras, uma obra de extrema importância etnológica intitulada “História da Poesia Popular Portuguesa”. Apesar da enorme instabilidade política e social e a da indigência generalizada, na ilha Terceira as tradições festivas eram escrupulosamente respei-

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tadas e os cantadores cada vez mais apreciados e amados. Um deles ganhou proeminência: Manuel Borges Pêcego, mais conhecido por “O Bravo”. Teve o condão de operar uma transformação formal nas quadras improvisadas na ilha Terceira através do aperfeiçoamento do tipo de rima. Manteve-a cruzada mas com a consoante silábica do 1.º verso a harmonizar com a do 3.º verso (a-b-a-b). Portanto, passou da quadra popular para a chamada quadra literária, que já era então usada pelos principais cantadores da Ilha de São Miguel. Esta mudança foi importante e irreversível, por tornar as cantigas esteticamente melhores, mais completas no conteúdo e poeticamente mais ricas. Passar a cantá-las na Chamarrita Velha é que exigia uma capacidade de improviso e uma criatividade invulgares. Este foi o ponto de partida para outra modificação de fundo no modo de cantar ao desafio: a melodia. Despontava nesse tempo, na freguesia de Cinco Ribeiras, um jovem prodigioso, a quem auguravam um futuro brilhante, o que se veio a confirmar, pelos conteúdos poéticos das suas improvisações. Refiro-me a José de Sousa Brazil, eternizado pela alcunha de Charrua. Apesar dos predicados técnicos, padecia de grandes limitações vocálicas e de vozeio, o que lhe impedia de obter rendimento na Chamarrita Velha. A velocidade desta moda era um espartilho e um óbice ao perfeccionismo que ele procurava. Por volta de 1930, foi convidado um cantador micaelense, chamado José Raposo da Câmara, de nome artístico Barbeiro, natural da Vila de Nordeste, para cantar na festa do Império dos Quatro Cantos, em Angra do Heroísmo. A grande novidade foi ele cantar num tom de Sol menor e numa nova matriz rítmica, mais pausada. Charrua interessou-se sobretudo pela nova cadência mas não pela tonalidade. O Sol menor pedia voz Baixo e não dava grande expressão ao que era cantado. Então, os dois cantadores, Charrua e Barbeiro, juntamente com os violistas Laureano Correia dos Reis e Francisco Caetano Diniz, conhecido por Ceguinho da Serreta, formaram um grupo de trabalho para encontrar um tom que universalizasse e se adaptasse a qualquer tipo de voz. Entenderam ser o Lá Menor. Desse entendimento nasceu o embrião musical da moda da Cantoria terceirense ou da “Moda do Charrua”, como passou a ser vulgarmente conhecida, tão do agrado do primeiro proponente, e que, salvas algumas inovações que foram sendo introduzidas, ainda hoje vigora e que obliterou a Chamarrita Velha. Tocada em Lá menor, em compassos ternários, ficou parenta das valsas. Com o abrandamento


Cantoria antiga em São Carlos: Cantadores (da esquerda para a direita): Ferreirinha da Bicas Pai, Caneta e Turlu.

rítmico, o improvisador passou a dispor de mais tempo para raciocinar e preparar a sua cantiga. Se na Chamarrita Velha tinha 10 a 12 segundos, na moda da Cantoria aumentou para aproximadamente 30 segundos. A lentidão da nova melodia, que apresentava e apresenta algumas variantes relativamente a São Miguel, fez recrudescer géneros como o lírico ou o épico, com os intérpretes a mostrarem já uma instrução progressiva, capaz de proporcionar desafios com relativa erudição e que constituíam, nalguns casos, autênticas aulas campais. A diversificação estilística sempre constituiu uma mais-valia para as festas populares. Mesmo na austeridade do Estado Novo, com a liberdade de expressão condicionada, a sátira foi sempre muito apreciada. Até mesmo os adeptos do cantar sério não a dispensavam no remate de um serão. Esta necessidade de rir fez com que alguns cantadores se especializassem na moda chalaceira das Velhas. O primeiro especialista de que há registo foi Manuel Vieira da Costa, com a propósito popularizado como Manuel Vieira das Velhas, nado na freguesia de Fontinhas, no dia 24 de janeiro de 1863. Era relojoeiro e atuava sozinho por não haver quem soubesse ou quisesse cantar As Velhas. Sendo a complexidade da estrutura das cantigas bastante superior à das quadras, raramente alguém se aventurava a improvisa-las mas, sim, tê-las em reportório. São compostas por dois tercetos consecutivos, o de mote e o de desenvolvimento, ambos de rima emparelhada, cantados

em refrão, e por uma quadra de remate de rima cruzada. Portanto, é uma décima com cinco rimas diferentes, acompanhada no tom de Ré e em compassos binários. Fazendo um bosquejo muito geral da predileção variável das turbas que acompanham os cantadores desde meados do século XIX até ao terceiro lustro do século XXI, podemos dizer que as mudanças de paradigma foram moldando as massas críticas ao longo do tempo. Até ao fim do primeiro decénio do século XX, o pessoal deliciava-se com as cantigas ao desafio jocosas em que a fisionomia do improvisador dava mote para hilariantes comparações. No auge da fama da dupla Bravo-Tenrinho o foco da atenção centrava-se no contraste de estilos: o primeiro mais filosófico e revolucionário; o segundo, mais larachista e irónico. Mais ou menos a seguir à segunda Grande Guerra iniciou-se um largo período de cantadores poderosos do ponto de vista poético. Caía no goto dos espetadores, o assunto histórico ou bíblico e até a esgrima agressiva de argumentos, com recurso a muitas figuras de estilo. Finalmente e já no terceiro milénio surgiu uma nova geração de improvisadores briosos, com discurso aprimorado e com um sentido de humor subtil. As ilhas Terceira e São Jorge foram as principais fornecedoras de novos valores para os palcos. Reencheram-se os salões e arraiais, curiosamente com muita juventude à mistura. Pode designar-se a época hodierna como a do Renascimento das Cantorias. Novembro 2021 -

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O livro “O Mosteiro de Nossa Senhora da Esperança de Ponta Delgada” Hélio Nuno Soares Um livro

A obra que apresentamos ao leitor foi lançada a 6 de junho de 2021. Assinala os 480 da fundação do Mosteiro. É uma oportunidade para conhecer um imóvel, que é uma referência inde-

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lével para os açorianos, independentemente de serem crentes ou não, o Mosteiro de Nossa Senhora da Esperança de Ponta Delgada, também conhecido por Convento da Esperança. Quando se fala em património edificado religioso, uma das referências é o Mosteiro da Esperança; quando se pretende expressar as manifestações religiosas, pensamos na devoção ao Senhor Santo Cristo. Portanto, identificamos duas das referências idiossincráticas do povo açoriano, que são inseparáveis. Como surgiu este livro? Este trabalho é o resultado da nossa investigação, no âmbito do mestrado em Património, Museologia e Desenvolvimento na Universidade dos Açores, desenvolvido entre 2015 e 2018. Para a publicação deste trabalho fizemos a necessária revisão e ampliação, introduzindo vários pontos referentes ao património integrado. Na atualidade o Mosteiro de Nossa Senhora da Esperança de Ponta Delgada, fundado em 1541, é um local onde podemos apreciar um rico património artístico, seja móvel ou imóvel, de diferentes períodos e estilos, entre esculturas, pinturas, azulejaria, retábulos e joalharia devocional. É nesta antiga casa monástica feminina que se venera a célebre e icónica Imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres – Ecce Homo, que possibilitou que o mosteiro seja uma referência única no panorama nacional e regional. Foi o propósito da investigação, revelar e valorizar o património cultural deste complexo mona-


cal, procurando perceber o modus vivendi das religiosas Clarissas, num percurso pelos séculos XVI ao XIX, materializado em espaços e objetos, realizando a sua interpretação e valorização, quer nos seus aspetos funcionais, quer devocionais.

Um ideal de vida

Compreender a existência destes imóveis só é possível e compreensível se os enquadrarmos numa mentalidade religiosa e em estratégias sociais dos séc. XVI, XVII e XVIII. Na época moderna, deu-se a proliferação dos mosteiros femininos na lógica da época de redução da mulher ao espaço privado. A casa, para a mulher casada, e o mosteiro, para a solteira e a viúva, constituíram-se como lugares exemplares na consecução dos ideais relacionados com a preservação da honra feminina e, consequentemente, da família. Todavia, não podemos esquecer que o ideal de santidade feminino, à luz da mentalidade vigente, somente era possível ser alcançado no recato dos mosteiros. Portanto, a mulher que desejasse esta especial configuração à pessoa de Jesus, tinha, necessariamente, de ingressar numa casa religiosa. Os mosteiros eram locais onde as mulheres professavam uma determinada regra, enquadrando as suas ações, as suas vontades e o seu quotidiano numa total dedicação a Deus, prezando as virtudes da humildade, penitência e pureza com o necessário afastamento do mundo secular e o despojamento da materialidade. As religiosas que ingressavam na vida religiosa professavam, após algum tempo de preparação, o chamado noviciado, fazendo os três votos: pobreza, obediência e castidade. O dia em que professavam era aquele em que morriam para o mundo, cele-

brando o seu casamento com Cristo. Quantas mulheres viveram no Mosteiros da Esperança no tempo das clarissas? Eram todas freiras? No séc. XVIII, o número foi fixado em 84 religiosas, um valor que terá sido suplantado. Com efeito, Francisco Afonso Chaves e Melo e Joaquim Cândido Abranches, relativamente ao ano de 1723, apresentam o Mosteiro como tendo o maior número de religiosas na cidade de Ponta Delgada, contando com 102 religiosas professas e sendo a restante população composta por noviças, pupilas e servas, perfazendo 57 no total. José Torres recolheu um documento não datado no qual constam 105 religiosas professas, havendo 11 noviças e pupilas. Numa outra nota, o mesmo autor referencia 101 religiosas professas, 15 noviças e pupilas, 40 servas particulares e comuns, perfazendo um total de 156 mulheres no Mosteiro. Em 1766, detinha 97 religiosas e 22 fâmulas. Já no séc. XIX, no ano de 1812, o número de religiosas era de 61 e 30 fâmulas. Quanto ao ano de 1860, o Mosteiro tinha 26 religiosas e 29 famulas. O número decresceu até à extinção do Mosteiro, em 1894, com o falecimento da última religiosa. Os locais de culto eram uma necessidade, pois, em torno dos mesmos, girava toda a vida espiritual da comunidade religiosa. O aperfeiçoamento espiritual, objetivo último dos fiéis, exigia uma prática continuada de virtudes que favoreciam o estado de perfeição no seguimento de Cristo. Assim, a escuta e a leitura da Palavra de Deus, de obras hagiográficas e a participação nos sacramentos e nos atos de piedade favoreciam esta comunhão com Deus. O santo convertia-se em herói, sendo reconhecido e admirado por toda a comunidade dentro e fora dos muros Novembro 2021 -

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monacais como ideal humano a atingir na vida terrena. É a partir deste quadro religioso, que o mesmo vai materializar e favorecer a conceção de um património diverso, que visa alimentar a espiritualidade e antecipar, no mundo terreno, a vida eterna, isto é, a comunhão com Deus.

Um património a descobrir

Na impossibilidade de apresentar a variedade de exemplos, escolhemos o Retábulo de Belém, localizado no coro alto. Peça única ao nível regional e, provavelmente, a nível nacional, porque reproduz uma cidadela. O retábulo disposto verticalmente em madeira entalhada, dourada e policromada. Possui um recetáculo central envidraçado e de formato circular na parte superior que encerra esculturas de vestir representativas da Sagrada Família. Possui um emolduramento dourado e querubins segurando um listel na parte superior. A talha envolvente constitui um vasto casario cuidadosamente entalhado, emoldurado por uma arquivolta ornamentada por elementos florais e vegetalistas. A sua encomenda é atribuída à madre Apolónia Francisca da Conceição, séc. XVIII. Na dimensão devocional, é imprescindível não esquecer a devoção à Imagem do Senhor Santo Cristo, com o seu tesouro e as suas festas anuais, congrega os açorianos das ilhas e das comunidades emigrantes, gerando um conjunto de ritos individuais e coletivos. Será lenda ou história verídica a ida de duas clarissas a Roma no séc. XVI? O suposto percurso da Imagem do Senhor Santo Cristo antes do ingresso da madre Teresa da Anunciada no Mosteiro da Esperança somente é conhecido através da narrativa do Pe. José Clemente (1720-1798), biógrafo desta religiosa, na obra Vida da venerável Madre Thereza da Annunciada escripta e dedicada ao Santo Christo com invocação do Ecce Homo, cuja primeira edição foi publicada em 1763. Os cronistas Gaspar Frutuoso e Frei Diogo das Chagas descrevem com grande detalhe o processo de fundação do Mosteiro de Vale de Cabaços (Caloura), na década de vinte do séc. XVI, mas nem uma palavra sobre a ida a Roma de duas religiosas e muito menos da oferta da Imagem. Em termos de mentalidade da época era praticamente impossível que ocorresse esta jornada. As mulheres que fugiram para Vale da Cabaços optaram pela fuga ao mundo; a tutela masculina sobre a mulher era muito forte; os transportes e comunicações eram inseguros e a instabilidade política grassava no mediterrâneo, pejado de corsário muçulmanos; em termos estilísticos, a Imagem insere-se numa tipologia

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que proliferou na Península Ibérica no séc. XVII. Finalmente, um argumento muito forte, em nosso entender, é a constatação de a própria madre Teresa da Anunciada, na sua Autobiografia, nunca referir este acontecimento. Simplesmente encontrou a Imagem no coro baixo da Igreja da Esperança. Portanto, em nossa opinião, estamos perante uma lenda ou estória nascida para explicar o surgimento de uma devoção, a partir do viver e sentir das gentes micaelenses. É uma escultura de busto, executada em madeira policromada, que se enquadra nos denominados bustos relicários, típicos do séc. XVI e XVII em Itália, Espanha e Portugal. A madre Teresa da Anunciada entendeu dar mais dignidade à Imagem do Senhor, uma vez que estava sujeita ao pó que caía pelas frinchas do soalho do coro alto. Assim, decidiu construir a primeira capela. A obra teve início após o mês de julho de 1697. A madre Teresa da Anunciada não ficou satisfeita com a primeira capela. Por esse motivo, no ano de 1702, principiaram as obras da segunda capela, orientadas e patrocinadas pelos condes da Ribeira Grande, D. José Rodrigo da Câmara (1665-1724) e a sua esposa, a princesa Constança Emília de Rohan (16671709), assumindo este patrocínio como intendentes e tesoureiros da obra, e por esta causa vinham quase todos os dias ao convento para


darem providências ao que fosse necessário. A terceira e atual capela do Senhor Santo Cristo foi construída entre 1769 e 1771. A sua bênção ocorreu a 22 março de 1771 pelo Bispo da Diocese, D. António Caetano da Rocha (episcopado de 1758-1772), sendo zeladora da capela e Imagem a madre Quitéria Francisca de Santa Rosa. Portanto, está a celebrar 250 anos da sua inauguração. Para termos uma noção de algumas despesas, houve um custo de 41$170 reis de pedra da Villa Franca e fretes de Barcos, trabalhando na obra um M.e pedreyro e seus officiaes, scultor e seus officiaes, carpinteyro e seus officiaes, um serralheyro e um pintor. Este último, provavelmente, para dourar o retábulo, dado que houve um gasto de 104$800 reis em ouro p.ª dourar. A condessa da Ribeira Grande financiou diversas despesas, como, por exemplo, os quarenta e sinco vidros de diferentes tamanhos p.ª as vidraças com um custo 42$780 reis, embora se denote, analisando os donativos, que o círculo de amizades dos condes tenha financiado a construção da capela. Outro dado curioso é a pintura do teto da capela. A cobertura é desenvolvida sobre cornija com lambrequim, tem a inscrição Attendei Esposas minhas à minha lei, E prestai ouvidos às palavras da minha boca PS 77,VI. O teto da capela possui um conjunto decorativo inserido em painéis trapezoidais (sendo dois de dimensões superiores), formando uma composição octogonal, pintado sobre estuque, utilizando a técnica de pintura a têmpera. Ao centro, sobre um resplendor radiante, há um triângulo com o olho da providência, que representa a Santíssima Trindade e a omnisciência/omnipresença de Deus. Cada painel é decorado com albarradas (vasos floridos) com elementos fitomórficos e diversos elementos florais e vegetalistas. A extremidade possui lambrim com grinaldas de flores. O que torna curioso esta pintura do teto é a circunstância de existir, no arquivo do Mosteiro, há um desenho, sem assinatura e não datado, mas provavelmente executado no séc. XIX, num estilo neoclássico. O autor do desenho classifica o estilo como sendo no gosto moderno. Na nossa apreciação, este desenho foi o projeto inspirador para a execução do atual teto, com algumas alterações realizadas pelo pintor aquando da execução.

O Santuário do Senhor Santo Cristo dos Milagres

A especificidade do Mosteiro da Esperança é albergar a Imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres, como já referimos. Um busto de Cristo flagelado, com chagas, de mãos atadas e coroa-

do de espinhos, que representa o momento bíblico de apresentação de Cristo à multidão por Pilatos – o Ecce Homo. Uma devoção promovida a partir do final do séc. XVII pela religiosa Teresa da Anunciada (1658-1738), que transpôs os muros monacais, tocou todos os grupos sociais micaelenses, difundiu-se para as restantes ilhas e foi levado na bagagem pelos imigrantes açorianos. Perante a abrangência e a importância religiosa desta devoção e do seu culto, o bispo diocesano, D. Manuel Afonso de Carvalho, criou o primeiro Santuário Diocesano, em 22 de abril 1959, sediado na Igreja da Esperança, com a designação de Santuário do Senhor Santo Cristo dos Milagres. O que se espera do Santuário hoje? Numa perspetiva pastoral, seguindo as orientações da Igreja, é um lugar da memória da ação poderosa de Deus na história que está na origem do povo da aliança e da fé de cada um dos crentes. O Santuário recorda-nos que a Igreja nasce da iniciativa de Deus, que nos chama à união com Cristo e os irmãos. A resposta do crente é a oração, logo, os santuários constituem nesse sentido uma excecional escola de oração e reconciliação, de contemplação e de paz. Neste seguimento, o Santuário torna-se, também, num local de partilha e do empenho pelos outros. Assim, os fiéis são capazes de fazer uma experiência renovada da comunhão de fé e de santidade que é a Igreja, tornando-se num sinal profético de esperança. Na mesma perspetiva de serviço à evangelização, através da cultura, poder-se-á recorrer a iniciativas culturais e artísticas, tais como encontros, seminários, exposições, conferências, concursos e manifestações sobre temas religiosos. É neste enquadramento que no nosso livro, publicado pelas Letras Lavadas, fazemos uma proposta de musealização de alguns espaços, a partir da investigação arquivística e da reflexão realizada. Como nota final, caros leitores, espero que o nosso livro seja uma oportunidade para conhecerem e falarem aos outros deste velho Mosteiro, chamado de Convento no decurso do séc. XX. Transmitir conhecimento é um desafio, porque os públicos são diversos e os interesses são distintos. O nosso trabalho pretende ser um pequeno contributo para uma história mais vasta: a dos Açores. As nossas ilhas são detentoras de um vasto património edificado, sendo muito dele religioso, refletindo o ser e o sentir das gentes açóricas ao longo dos séculos. Novembro 2021 -

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A ilha Graciosa no despertar dos céus Maria das Mercês Coelho

Queda fulminante Corria o verão de 1929. Na sua curta dimensão territorial era sossegada a ilha Graciosa, curada dos sobressaltos da primeira guerra mundial cujos ecos se sentiam na razão indirecta dos abastecimentos e comunicações vindas do exterior com a escassez de informação de precisão, que ora corria boca a boca, ora era veiculada pelas informações nos púlpitos das igrejas e ermidas. Ou, através da imprensa escrita, escassa e inacessível para a maioria da população. As mulheres dentro de portas das casas limpavam, tratavam do jarro e do lume para acalmar os estômagos da família, cuidavam das hortas e galinheiros, acudiam os idosos a cargo e vigiavam as crianças mais pequenas, que numa liberdade desabrida corriam pelos poeirentos caminhos, ou pelos campos, entre milheirais e searas à espera de brincadeira encantatória ou dos irmãos mais velhos, muitos deles já atarefados nas contribuições do sustento familiar. O dia 13 de Julho, estava a semana pela metade, despertou ameno e soalheiro na ilha. Na véspera, ventanias sugadas por chuviscos intermitentes, impediram a normal azáfama agrícola da época. O sol já se despedia rutilante para os lados da Serra Branca para mergulhar na imensidão

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atlântica avistada da Ribeirinha. De súbito e do alto, um ruído estrepitoso, repetido, ora intenso, ora perdendo-se num movimento inusitado, indeterminado e algo ameaçador. Sobressaltaram-se as gentes, parando as rotinas, olhando incrédulas o céu azul pontilhado de nuvens. O que seria: catástrofe natural, uma aparição ou castigo divino? Nítido e baixando em aproximação à freguesia de Guadalupe, um aparelho voador que, pouco depois, se estanca capotando inanimado num terreno agrícola do lugar da Brasileira. Acorrem incrédulos os habitantes das redondezas entre a curiosidade e o pasmo. Dos destroços, sai um homem, que em linguagem verbal incompreensível se expressa gestualmente pedindo socorro para retirar um companheiro prisioneiro que gemia entre uma armadilha de aço, ferros e madeira. Os populares, de imediato, prestam-se a dar socorro com meios improvisados. Cai o crepúsculo, a lua ausente e as estrelas são insuficientes para desencarcerar o piloto ferido. Um fósforo para atear um archote que clareasse a acção de resgate, desencadeia perante o combustível derramado, o inevitável incêndio, consumindo o malogrado e experimentado piloto aviador polaco e os destroços do avião. O corpo do aviador Ludwik Idzikowski foi leva-


destroços do bombardeiro Amiot 123, na Brasileira, Guadalupe, Ilha Graciosa

do para a sede do Concelho em Santa Cruz da Graciosa, onde aguardou a chegada do veleiro polaco Iskra, ancorado ao largo do Faial. Dois dias depois, num imponente cerimonial civil e militar, o féretro percorre as ruas da Vila para ser embarcado no cais da Calheta com destino a Varsóvia, onde foi sepultado com honras de Estado. O seu companheiro navegador Kubala, com ligeiros ferimentos regressou à pátria, que com ele foi madrasta. Acusado e condenado a sete meses de prisão e expulso da ordem dos oficiais, emigrou depois para o Brasil onde viveu até à sua morte em 1976. Devido a uma avaria mecânica em pleno voo, o avião Amiot 123, adquirido pela Polónia, preparado para viagens de longo curso e já com cerca de 16h de voo, iniciado nos arredores de Paris com destino a Nova Iorque, não logrou trunfos na travessia do atlântico de leste para oeste. Passados cinquenta anos sobre a tragédia, o Embaixador polaco em Portugal, visitou o local do sinistro na Graciosa, homenageando o piloto que pereceu em resultado duma aterragem de emergência em piso desapropriado. Em 1989 e 2015, repetiram-se visitas de autoridades polacas para honrar a memória e a coragem dos dois aviadores. Ascenção fulgurante À época outro facto convergente com o relatado teria origem na ilha. Único filho varão, com bom desempenho escolar e disciplinada educação cívica, a família esperava do menino competências para que fosse o braço direito na gestão das propriedades que garantissem um futuro com dignidade e desafogo. Manuel Ortins de Bettencourt nasceu em 12 de Julho de 1892, na freguesia da Luz da ilha Graciosa, varanda privilegiada para abraçar com o olhar as quatro ilhas do grupo central açoriano. Tal visão alvoroçava nele o sonho de alcançar

mundos com coloridos diferentes da oferta ali à porta do imenso azul insular. E se a gesta portuguesa teve registos de desassombrada dimensão para dar novos mundos ao mundo, vencido adamastores, ventos e maresias, ele também o conseguiria alcançar. Com tenacidade, esforço e dedicação. O menino tinha fome de grandeza que a ilha pequena negava. Determinado, pede bênçãos paternais e parte para Angra fazer a 4ª classe para depois prosseguir estudos académicos. Nem o desamparo dos ausentes mimos da casa, nem as “pedras” que encontrou na caminhada, o demoveram do ambicioso rumo de vencer na vida. Ingressa na Marinha, onde frequenta a escola Naval, subindo progressivamente os patamares da hierarquia militar até ao topo. No início do séc. XX um clima de euforia vivencial atravessava toda a Europa, chegando a Portugal novos ventos e desafios individuais e colectivos, que a instauração da República estimulou, entre eles, o de aproveitar as potencialidades que a aviação se propunha alcançar. Sem arma autónoma é na Marinha que se agrega a formação de pilotos aéreos. O destemido graciosense lança-se nessa missão vanguardista, fazendo preparação técnica na Florida, EUA. Alcança o brevet de piloto aviador naval. Tal qualificação permite a aproximação das elites que trabalham ambiciosos projectos, como foi aquele apresentado ao Ministro da Marinha portuguesa, para a realização duma travessia aérea entre Lisboa e Rio de Janeiro com vista ao estreitamento das relações bilaterais e comerciais entre os dois países. Tal viagem pioneira será efectivada em 1922, data do centenário da independência do Brasil, demonstrando ao mundo a possibilidade de navegação aérea sobre o mar utilizando métodos astronómicos. Razões circunstanciais afastaram o graciosense dessa longa viagem inaugural protagonizada

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inauguração do aeródromo da Graciosa em 11 de Julho de 1981

pelos portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Certo é que aquele acompanha Sacadura Cabral à Inglaterra para a construção do avião com o desígnio de conjuntamente o treinarem e bem assim o de reunir planos de acção concertada nos demais preparativos da viagem, que incluía uma outra experimental entre Lisboa e Funchal. Esta concretizou-se há cem anos, na primavera de 1921, sendo Ortins de Bettencourt o responsável pela maior parte do voo inclusivamente da amaragem. A falta de mobilidade daquele tempo impunha limitações de diversa natureza. Na esfera privada, por exemplo, levou a que o pedido de casamento de Manuel Ortins Bettencourt ocorrido a 11 de Abril de 1923, (noticia do jornal “Graciosense” desse ano) tenha sido feito pelo Contra Almirante Gago Coutinho, portanto, fora do âmbito familiar. Até à sua morte em 1969, o Vice Almirante presta relevantes e prestigiados serviços de âmbito militar e civil em Portugal e no estrangeiro, recebendo reconhecimento com várias condecorações nacionais e internacionais. Ortins de Bettencourt foi Ministro da Marinha entre 1936 -1944, negociando a cedência aos ingleses da base dos Açores. É o segundo Chefe do Estado-Maior General das forças armadas portuguesas (de 1951 a 1955). A ele se deve a reorganização da defesa nacional pós 2ª guerra mundial e a formalização da adesão de Portugal à Nato. A partida da ilha berço foi irreversível e defini-

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tiva. Aconteceram pontuais visitas, particulares ou oficiais. O aeródromo, um sonho Por entre os ventos da história a ilha Graciosa tem um registo determinante e incontornável na história da aviação civil. Após a tragédia do biplano polaco, amplamente divulgada, foi reforçada a necessidade dum aeroporto no arquipélago açoriano, cujas obras se iniciam em 1929, no lugar da Achada na ilha Terceira, decorrendo durante um ano sob a égide das forças armadas portuguesas. Sessenta anos depois do triunfo da pioneira travessia aérea pelo filho da terra Manuel Ortins Bettencourt, a ilha Graciosa inaugura o seu aeródromo, com três voos semanais, cuja frequência foi progressivamente crescendo até ao padrão actual de voos diários. Alguns duplicados. A ilha branca, reconhecida pela Unesco como reserva da biosfera, continua a sua peregrinação em constantes rotações, numa invisível dialéctica de equilíbrios, mais magra de gentes, mais abastada nos ruídos. Não obstante, ciosos de silêncios os garajaus e outras aves marinhas procuram refúgio para nidificar nos ilhéus adjacentes (da Praia e Carapacho). As ligações aéreas insulares são um motor vital do desenvolvimento sócio-económico, um indispensável factor de mobilidade e conforto da contemporaneidade. As comunicações em todas as vertentes marcam a linha do tempo do séc. XXI.


Ananás dos Açores BoaFruta

Com mais de 150 anos de história, o Ananás dos Açores é um fruto de Denominação de Origem Protegida (DOP), produzido exclusivamente na Ilha de São Miguel. O Ananas Comosus (L.) Mert, variante “Smooth Cayenne” de “folha lisa”, é originário da América do Sul e afirmou-se na ilha de São Miguel durante o século XIX como substituto à cultura da laranja. A produção da laranja era, até à altura, a principal atividade económica da região. Após o declínio da sua produção devido à doença da “Gomose” (Phythophtora sp.), procuraram-se culturas alternativas, de entre as quais se destacam com sucesso a cultura do chá, do tabaco e a do ananás. A 12 de novembro de 1864, por iniciativa de José Bensaúde, tem lugar a primeira exportação de Ananás dos Açores com destino a Inglaterra. No século XX, o Melhor Ananás do Mundo era já exportado para países como Inglaterra, Alemanha e Rússia. Desde 1996 que o Ananás dos Açores é um fruto de Denominação de Origem Protegida (DOP), sendo que esta denominação é geográfica ou equiparada e permite designar e identificar um produto originário desse local ou região,

cuja qualidade ou características se devem essencial ou exclusivamente ao meio geográfico específico onde é produzido, incluindo fatores naturais e humanos. Isto significa que obedece a regras de produção e comercialização específicas que atestam a sua origem e qualidade. A marca D.O.P, o selo etiquetado na coroa do Ananás dos Açores, comprova que a produção foi controlada pelo Instituto da Alimentação e Mercados Agrícolas. O Ananás dos Açores diferencia-se dos restantes pelo seu modo de produção tradicional em estufa com solos ricos em matéria orgânica, não recorrendo a quaisquer inseticidas ou pesticidas. Sendo cultivado numa região com condições edafoclimáticas excecionais e num ambiente livre de poluição, o Ananás dos Açores é mais aromático, contém menos açúcares, é rico em potássio, magnésio, ferro e zinco, apresentando ainda uma grande concentração de bromelaína, um anti-inflamatório natural. O processo de cultivo do Ananás dos Açores é constituído por três fases distintas. Inicialmente, dá-se a plantação da toca para a produção do brolho, seguindo-se a fase da plantação do brolho para a produção do plantio e, por fim, a Novembro 2021 -

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plantação do plantio para a produção do fruto. O ciclo de produção e de plantação do Ananás dos Açores inicia-se com a com a extração e desfolha do Rizoma (ou “Toca”), das plantas que produziram frutos de qualidade no ciclo anterior. De seguida, esta toca é imediatamente colocada a abrolhar em “Camas Quentes”, solo onde é plantado o Ananás dos Açores. Este solo humedecido, rico em matéria orgânica, constituída pelo solo vulcânico de terra de produções anteriores, estilhas de ramada de incenso “Pittosporum Undulatum Vent” e serradura (Farelo) permite fomentar a produção de calor pelo seu elevado nível fermentação. Além disso, são solos extremamente férteis, o que permite assegurar as características ímpares do Melhor Ananás do Mundo, em aspetos que vão desde a sua aparência ao seu paladar distintivo. Esta primeira fase tem uma duração de cerca de 4 a 6 meses e ocorre numa estufa de plástico, os chamados “Estufins”. Passados cerca de seis meses após a plantação da Toca, os brolhos podem ser retirados da “Toca-Mãe” e transplantados para outra estufa. Neste processo, procede-se ao corte das suas raízes e à desfolha da base do caule, favorecendo a emissão de novas raízes. Cada uma das Tocas produz entre três a quatro brolhos, dos quais são geralmente selecionados, dois. Após seis a oito meses de cultura, considera-se que as plantas estão prontas para serem transplantadas para uma estufa definitiva, sendo esta construída em madeira e vidro. Nesta última fase de produção, as plantas são transplantadas para uma estufa definitiva, na qual permanecerão até ao momento da colheita. Passados seis meses da plantação definitiva da planta, são aplicados os “Fumos”. Esta prática de cultivo tradicional consiste em colocar ao longo da estufa latas com diversos materiais

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vegetais, entre eles, aparas de madeira, folhas de bananeira, palha de feijão, ervas secas e ramada de criptoméria japónica [Criptomeria japonica (L.F) D. Don]. O objetivo é proceder à queima destes materiais para que se produza elevadas quantidades de fumo no interior da estufa. Uma vez que este fumo contém etileno, hormona responsável pela floração, este processo de aplicação dos “fumos”, descoberto por acidente no ano de 1872, visa induzir a fase de floração da planta, garantindo uma colheita homogénea e planeada. Do fruto colhido, é retirado o seu Rizoma, cujo destino é dar origem a novas plantas, dando início ao novo ciclo de produção do Ananás dos Açores. Todo o processo de produção e cultivo do Ananás dos Açores tem a duração de cerca de vinte e quatro meses, desde o momento da plantação da Toca, até ao momento em que o fruto se encontra pronto a ser colhido. Quando a coroa do Ananás atinge aproximadamente 1/3 do tamanho final do fruto (essencialmente dois meses após o aparecimento da flor), suprime-se o meristema apical central livre da coroa. Este procedimento, além de alterar a aparência final do fruto, permite que a planta concentre a sua energia no crescimento do fruto, em detrimento do da coroa. Em adição, a técnica da supressão do meristema, executada com uma espátula de madeira, significa que passa a haver incidência de luz direta sob o fruto, realidade essa que favorecerá o seu amadurecimento natural. Por esta razão, o topo do fruto é mais redondo e menos afusado e a sua coroa é significativamente mais pequena do que a dos restantes ananases. As estufas onde este fruto é produzido são construídas em madeira e vidro, e têm o objetivo de proporcionar um clima tropical artificial, semelhante ao habitat natural da planta.


Adicionalmente, com a utilização de métodos como a abertura dos alboios, da caiação, e da rega, respetivamente, o estufeiro tem a possibilidade de controlar a temperatura, a humidade, e a luminosidade possibilitando, assim, uma produção contínua do fruto, ao longo de todo o ano. Consoante a época do ano, torna-se necessária a caiação dos vidros das estufas com leite de cal. Esta técnica é indispensável à produção do Melhor Ananás do Mundo, uma vez que permite proteger as folhas da planta de queimaduras provocadas pela luz direta do sol e controlar a temperatura dentro da estufa. A aplicação da cal, com recurso a escovas e girões em cada fila de vidros, é feita com mais frequência na primavera e no verão quando a incidência de luz solar é maior. O Ananás dos Açores requer um solo devidamente humedecido. Por esta razão, são efetuadas regas semanais durante o período da Primavera/Verão e quinzenais no período do Outono/Inverno. As estufas estão preparadas para a captação da água da chuva (abundante na região), que é armazenada em tanques interiores ou exteriores, para ser posteriormente utilizada na rega do fruto, tornando o processo de produção do Ananás dos Açores ainda mais sustentável. O Ananás é considerado um fruto não climatérico, ou seja, não amadurece após a colheita. O processo de acumulação dos açúcares no fruto ocorre nas últimas seis a oito semanas. Os frutos devem ser amadurecidos na planta e colhidos com pinhas (Frutilhos) cheias, tendo, pelo menos, 25% de pigmentação laranja, de forma a garantir o tom amarelo e o paladar doce. O Ananás dos Açores é mais aromático, mais doce e menos ácido nos meses de verão do que nos meses de inverno.

A forma mais correta para se cortar um Ananás é às fatias ao alto, pelo facto da grande concentração do açúcar do fruto encontrar-se na sua base. Assim sendo, o nível de doçura será igual a cada fatia de fruta, que irá conter uma parte mais doce e uma parte mais ácida. Para escolher um bom Ananás é necessário ter em consideração dois aspetos primordiais, nomeadamente, a pigmentação do fruto e o aroma do mesmo. Quanto mais laranja e mais aromático for o fruto, mais doce será. Em adição, outro aspeto a ter em consideração relaciona-se com o tamanho da pinha do ananás, sendo que, quanto maior esta for, melhor será o ananás. O Ananás dos Açores permanece bom para consumo até 15 dias. Em 2017, a Boa Fruta Lda. desenvolveu o Projeto “Pineapple Composite” com o intuito de valorizar e aproveitar os resíduos gerados durante a produção do Melhor Ananás do Mundo. Das folhas que resultam da desfolha dos “Rizomas” para o novo plantio, são extraídas as fibras para serem transformadas e valorizadas tecnicamente e, posteriormente, utilizadas com o reforço de materiais poliméricos. A iniciativa permitirá a criação de materiais compósitos de base para o desenvolvimento de Ecoprodutos, artigos não-poluentes, sustentáveis, direcionados para a arquitetura e mobiliário urbano. Anualmente, a ilha de São Miguel produz cerca de 700 a 1000 toneladas de ananás, o que equivale a cerca de 1500 estufas na ilha, sendo que, 80% dessa produção é exportada para Portugal Continental. No total, existem cerca de 230 produtores de Ananás dos Açores na ilha de São Miguel. As estufas da Plantação de Ananás dos Açores são datadas da década de 40 e, em cada uma das estufas, existem, pelo menos, 1000 plantas de Ananás. Novembro 2021 -

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Espaços Museológicos - Ribeira Grande SóniaMoniz - Divisão de Cultura da CMRG

Presépio movimentado do Prior Evaristo Carreiro Gouveia, obra centenária de grande valor religioso e artístico. Representação da Ribeira Grande enquanto vila e suas principais tradições.

Foi no século XVIII que surgiram os primeiros museus públicos. Na Europa, destacam-se, em 1735 a abertura do British Museum, na Grã- Bertanha e em 1793 abre o museu do Louvre, em Paris. A partir de então, muitos foram os museus criados, abrangendo as mais diversificadas temáticas que vão desde os domínios mais tradicionais como arte, arqueologia e história às temáticas da etnografia e antropologia e diferentes ramos das ciências. Nos Açores, o primeiro museu surge na cidade de Ponta Delgada, no ano de 1876, com a designação de Museu Açoreano, sendo o seu fundador Dr. Carlos Machado. Fruto de uma visão futurista e do conhecimento da importância dos museus para a comunidade. Todavia, é durante a segunda metade do século XX, em particular após a grande revolução do 25 de Abril, que os municípios iniciam os trabalhos de salvaguarda do património e cultura local. Museu Municipal No concelho da Ribeira Grande o primeiro equipamento cultural a surgir foi a Casa da Cultura, no ano de 1985, instalando no Solar de São Vicente Ferreira, em estilo arquitectónico conhecido por “chã” (XVII-XVIII). Permanece desconhecido quem mandou construir e quais os primeiros proprietários desta casa solarenga, tanto quanto se sabe, no primeiro quartel de

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setecentos, viveram aqui Francisco de Arruda e Sá, Capitão-mor [ou Sargento-mor?] da vila da Ribeira Grande e sua mulher Mariana Leite, filha de um bandeirante de terras brasileiro. De acordo com as pesquisas efetuadas, estes foram os fundadores da Ermida de São Vicente Ferreira,

Baús para transporte dos bens pessoais dos emigrantes açorianos


cuja escritura de doação data o dia 2 de janeiro de 1725. Em 1735, toda a propriedade incluindo a ermida, foi vinculada por Francisco de Arruda e Sá ao seu filho António de Botelho de Sampaio Arruda. O Solar sucedeu dentro da família do Capitão-mor até à sua permuta, em 1840, por António Francisco Botelho de Sampaio Arruda, seu bisneto e avô materno de José e de Ernesto do Canto, com o 1º Visconde da Praia. Em 31 de maio de 1976, o Solar de São Vicente Ferreira, no momento, propriedade da família do 3º Marquês da Praia e Monforte é adquirido pela Junta Geral do Distrito de Ponta Delgada. Já na posse da Região Autónoma do Açores, em Auto de Cessão, do dia 09 de setembro de 1980, o prédio é cedido, a título precário, à Câmara Municipal da Ribeira Grande com destino exclusivo à instalação de atividades culturais e para instalação duma casa etnográfica. Após o trabalho de uma Comissão Instaladora, criada em 1980, a 29 de junho de 1985 é inaugurada neste solar, a Casa da Cultura da Ribeira Grande. Em 1993, a então Divisão de Ação Sócio-Cultural, começou por contemplar um Núcleo Museológico, e em 2007 é criado o Museu Municipal da Ribeira Grande. No ano de 2010, o Museu Municipal da Ribeira Grande assume, ainda, um carácter de instituição polinucleada, inserida na Rede Portuguesa de Museus (RPM), sendo integrado por um

Arcano Místico - móvel em madeira e vidro (2/2metros), na forma de um quadrado, o seu interior encontra-se dividido em três níveis, no qual podem ser identificadas 92 cenas do Velho e Novo testamento, contendo cerca de 3900 figuras miniatura moldadas, à mão, pela Madre Margarida do Apocalipse, obra datada da segunda metade do séc. XIX.

conjunto de unidades museológicas autónomas, compostas pelo Museu da Emigração Açoriana, Casa do Arcano e Museu Vivo do Franciscanismo. O Museu Municipal apresenta, essencialmente, coleções de cariz etnográfico (sapataria, cantaria, cabouqueiro, tecelagem, barbearia, farmácia, cozinha tradicional). Acolhe o mais antigo presépio movimentado dos Açores. Possui, ainda, uma importante coleção de azulejaria, que abrange os séculos XVI a XX. A sua principal missão é apresentar a Ribeira Grande enquanto vila rural e as suas principais atividades económicas, oferecendo uma verdadeira viagem ao passado. Na primavera e verão, pode usufruir do jardim exterior para um momento de leitura relaxante. Museu Casa do Arcano O museu Casa do Arcano encontra-se instalado na casa que pertenceu à Madre Margarida Isabel do Apocalipse, conhecida, na tradição oral, como a casa da Freira do Arcano e apresenta a sua vida e a obra. Situa-se na rua João D’Horta, freguesia da Matriz. Em 1833, a Madre nela se instala como rendatária, procedendo á sua compra, no ano de 1837, onde permaneceu até à sua morte, a 6 de maio de 1858. Madre Margarida nasceu no seio de uma família influente do meio Ribeiragrandense a 23 de fevereiro de 1779, na freguesia da Conceição era ainda a Ribeira Grande uma vila. Em fevereiro de 1800, Margarida, adoptando o nome religioso de Madre Margarida do Apocalipse, toma o véu de Clarissa de Mosteiro do Santo Nome de Jesus da Ribeira Grande e nele permanece até à extinção dos Conventos, que decorreu nas ilhas, em 1832. A sua obra – o Arcano Místico foi considerada um tesouro regional, o primeiro dos Açores. Como se poderá ler no DLR n.º 9/2009/A de 3 de Junho de 2009, “Considerando a singularidade e a raridade que testemunha, quer pela originalidade do material e o processo produtivo quer por se tratar da mais importante obra de arte feminina de tradição conventual açoriana” É, sem qualquer dúvida, uma peça singular no contexto religioso e cultural do arquipélago. Trata-se um de um móvel em madeira e vidro (2/2metros), na forma de um quadrado, o seu interior encontra-se dividido em três níveis, no qual podem ser identificadas 92 cenas do Velho e Novo testamento, contendo cerca de 3900 figuras miniatura, moldadas, à mão, pela Madre Margarida. Uma verdadeira obra de arte erudita. Numa visita ao museu e para melhor compreensão da peça do Arcano Místico, todo o visitante Novembro 2021 -

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visualiza um vídeo de apresentação da vida e obra da Madre. Museu da Emigração Açoriana Localizado no antigo edifício do Mercado do Peixe (Séc. XIX), abriu portas a 9 de setembro de 2005. Apresenta a história dos nossos Emigrantes que partiram em busca de melhores condições de vida, essencialmente para o Brasil, Estados Unidos da América e Canadá. Este projeto nasce pela vontade do então Presidente de Câmara Dr. António Pedro Costa, com o grande contributo do primeiro presidente do Governo Regional do Açores, Dr. João Bosco Mota Amaral que oferece todo o seu espólio, resultante das inúmeras oferta e lembranças oferecidas pelos nossos emigrantes, na sequencia das suas visitas estatuárias às nossas comunidade emigrantes. O seu acervo é maioritariamente constituído por objetos oferecidos por emigrantes Açorianos a residir na América e Canada. Da sua coleção destacam-se a Bandeira e Coroa do Espírito Santo, as malas e baús de viagem. O museu possui, ainda, um importante acervo fotográfico e de vídeos com testemunhos de emigrantes. É um verdadeiro repositório de memórias e aventuras do povo açoriano. Contíguo ao museu encontra a Casa Lena Gal, pintora ribeiragrandense, reconhecida internacionalmente, que oferece uma coleção de quadro de pintura contemporânea alusiva à Mulher. Museu Vivo do Franciscanismo O Museu Vivo do Franciscanismo, outrora igreja conventual de Nª Srª da Guadalupe é um espaço que apresenta a história da vida de São Francisco e da Ordem Franciscana que tem vindo a contribuir para o conhecimento da identidade histórica do arquipélago dos Açores. Este espaço foi inaugurado a 14 de fevereiro de 2013 e é um núcleo que tem como objetivo contribuir para o conhecimento da dimensão evangelizadora e cultural da Ordem Franciscana e o seu papel junto das comunidades. De salientar que, embora seja uma estrutura de cariz museológico, mantém vivo o culto à imagem do Cristo amarrado à coluna, conhecido como o Cristo dos Terceiros e que todos os anos, no primeiro domingo da Quaresma, sai à rua em procissão. O espaço convida a uma leitura aprazível no claustro e uma visita à torre sineira que oferece uma vista deslumbrante para a Ribeira Grande, costa norte e montanha da Serra de Água de Pau. Importa referir que estas quatro unidades mu-

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seológicas, através dos seus planos de actividades acolhem ao longo do ano, diferentes exposições temporárias, sendo também um meio de divulgar os artistas e cultura local e promovem diferentes workshops, com o propósito de disseminar o conhecimento. Para além dos 4 nucleos museológico já referidos, a Divisão de Cultura da Câmara Municipal tem à sua guarda outros três pequenos núcleos

Concerto de música clássica na Capela mor da Igreja de Nossa Senhora da Guadalupe, museu Vivo do Franciscanismo

museológicos, como o Moinho do Vale, a Torre Sineira do edifício da Câmara e a Casa da Cavalhadas, projeto que se encontra em desenvolvimento, mas que já pode ser visitado e que possibilita a compreensão da mais genuína tradição profano-religiosa do concelho. Posto isto, e pela riqueza que estes espaços oferecem, os museus devem ser assumidos como elementos essenciais na promoção cultural e turística da Região, pelo que urge criar mecanismos de aproximação entres estes organismos e os nossos visitantes.


Rota dos Livros

Árvores dos Açores-lha de São Miguel

No passado mês de março foi publicada, pela “Letras Lavadas-edições”, a 2ª edição do livro “Árvores dos Açores- Ilha de São Miguel”, da autoria de Raimundo Quintal, doutorado em Geografia Física, pela Universidade de Lisboa, e de Teófilo Braga, mestre em Educação Ambiental, pela Universidade dos Açores. Na 2ª edição foram introduzidas 20 novas fotografias e indicados mais alguns locais onde podem ser encontradas as 175 árvores que são apresentadas no livro. Na seleção dos táxones (158 espécies, 1 subespécie, 2 variedades de origem natural, 2 formas naturais e 12 cultivares), os autores privilegiaram as árvores monumentais, as árvores com flores atraentes e as árvores endémicas e nativas dos Açores. Através do livro, que constitui também um importante recurso para a Educação Ambiental, os turistas e os açorianos poderão, não só ficar a conhecer o património botânico da ilha de São Miguel, mas também apreciar com outros olhos os jardins, parques e matas ajardinadas da ilha.

Angra em Revolução: O Levantamento Liberal de 2 de abril de 1821

No ano que se comemora o 2º centenário do levamento liberal na Terceira, o livro “Angra em Revolução: O Levantamento Liberal de 2 de abril de 1821” debruça-se sobre esta revolta que marcou o início da década de 20 do século XIX na Ilha. A obra de Francisco Miguel Nogueira centra-se, sobretudo, sobre um período de pouco mais de 48h, de 2 a 4 de abril de 1821, momento em que começou, decorreu e terminou o levantamento liberal, com especial enfoque em todos os momentos de revolução e contrarrevolução rápida que atingiram a Terceira durante estes dias. Os dois principais protagonistas da obra são Francisco António de Araújo e Azevedo (7º Capitão-General dos Açores) e Francisco de Borja Garção Stockler (8º Capitão-General dos Açores). A rivalidade destes dois homens que governaram os Açores será essencial em todo o desenvolvimento dos acontecimentos, com aliados de parte a parte a serem fundamentais no desenrolar dos acontecimenNovembro 2021 -

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tos da revolta. O livro procura fazer uma contextualização do que se passava no continente português, fruto da Revolução Liberal de agosto de 1820, para depois lembrar a conjuntura na Ilha Terceira, sobretudo em Angra, nos anos anteriores ao levantamento liberal, com a chegada dos deportados da Amazona (1810), o governo contestado do Capitão-General Araújo, a chegada do seu sucessor, o Capitão-General Stockler, e todo o desenrolar do levantamento liberal de 2 de abril. Falando-se, por isso, na tomada do Castelo de São João Batista por Araújo e seus companheiros, da criação da Junta Provisória do Governo Supremo das Ilhas dos Açores, do afastamento de Stockler para a Praia e preparação da sua resposta. Todo o ambiente de revolução e contrarrevolução está em todo o livro, demonstrando a realidade daqueles dias e da conjuntura da época, dando um tom mais “real” ao episódio. “Angra em Revolução: O Levantamento Liberal de 2 de abril de 1821” não procura criar a ideia de herói ou de vilão, mas de contar o que se passou, e como ambos os Capitães-Generais agiram e até lidaram com todos os entraves e obstáculos que foram surgindo. Os acontecimentos acabam por levar o leitor a entrar em uma história de aventura e desventura, com várias reviravoltas. Não deixa de ser interessante que os episódios deste capítulo da História da Terceira, acabem quase por seguir um rumo de uma história com um culminar intenso e até fatídico para um dos personagens reais.

Viajantes nos Açores O Olhar Estrangeiro sobre as Ilhas desde o Século XVI, de Maria das Mercês Pacheco

Pode ser uma viagem, à procura da nossa identidade, vista de fora e por quem nos visita desde o século XVI; ou uma possível resposta a «O que nos faz ser quem somos, tanto aos nossos olhos como aos olhos de quem nos visita?»; ou será encontrar o arquipélago em dimensões literárias ou científicas extraordinárias, porque inesperadamente curiosas e reveladoras?… Possivelmente, isto tudo. No embalo de nomes como Thevet, Bullar, Churchill, Drouet, Glockler, Jedina, Twain, Melville, Slocum, Darwin, Swindells, Chateaubriand, Tennyson, Cook, Trelease ou da Royal Geographic Society, vogamos ao longo de 5 séculos e 9 ilhas (um paraíso [re]encontrado) que, afinal, estão bem no centro da História e do Mundo.

Fotografia: uma arte ao serviço da promoção turística

Existe uma relação simbiótica entre o Turismo e a Fotografia cada vez mais relevante e determinante na promoção dos destinos turísticos. Se, há largos anos, os turistas vêem na fotografia uma forma de eternizar as suas memórias e experiências de viagem, actualmente, as fotografias desempenham um papel essencial na promoção turística, cativando e incentivando o cliente na escolha do destino. A internet e as redes sociais vieram facilitar a visualização e acesso a fotografias, por vezes, banalizando o seu valor artístico assim como o seu importante papel promocional no sector turístico. No sentido de homenagear e valorizar o excelente trabalho que os fotógrafos açorianos têm desenvolvido em prol dos Açores, apresentamos nesta edição uma breve galeria de fotografias com alma açoriana.

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Fotos de

Acácio Mateus

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Fotos de Paulo Melo

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Fotos de Rogério Mota

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Fotos de Marco Farias

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AGITAmentos

DIA MUNDIAL DA ÁRVORE Nas comemorações do Dia Mundial da Árvore, a AGITA - Associação de Guias de Informação Turística dos Açores procedeu à plantação de espécies endémicas, junto à sua sede na freguesia da Fajã de Cima, com o intuito de contribuir para a divulgação, conservação e valorização da flora endémica dos Açores.

DIA INTERNACIONAL DOS MONUMENTOS E SÍTIOS A AGITA e o Instituto Açoriano de Cultura organizaram um webinar intitulado “Angra do Heroísmo - Cidade Património Mundial”, que contou com a participação do historiador Francisco Maduro-Dias, da guia e autora, Maria das Mercês Pacheco e do Presidente da AGITA, Paulo Bettencourt, numa conversa moderada por Andreia Fernandes da direção do IAC.

PDL TV MAGAZINE A 16 de Abril dá-se o lançamento de uma série de 24 episódios, que percorreram as 24 freguesias do concelho de Ponta Delgada, com divulgação semanal online e também em canais televisivos da Diáspora. A AGITA teve o prazer de colaborar neste projeto cultural, dinamizado pela Câmara Municipal de Ponta Delgada, que contou com a participação de 24 associados da AGITA, assim como outros agentes culturais.

DIA MUNDIAL DO TRÂNSITO E DA CORTESIA AO VOLANTE A AGITA homenageou, através de um pequeno vídeo, todos os Motoristas de Turismo dos Açores, que desempenham um papel de extrema importância e colaboram diariamente com os Guias. É com o bom desempenho do motorista e a sua arte de manobrar o volante que o Guia consegue transformar a sua excursão numa experiência memorável para quem nos visita.

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DIA INTERNACIONAL DOS MUSEUS Celebramos esta importante data com a colaboração da Divisão de Cultura da Câmara Municipal da Ribeira Grande, que recebeu os nossos associados e os acompanhou em visitas guiadas à Casa do Município e ao Museu Municipal. Este foi um dia muito bem passado, dedicado à aquisição de novos conhecimentos em prol de uma maior e melhor qualificação dos Guias da nossa Região.

1º ANIVERSÁRIO DA AGITA A AGITA celebrou o seu primeiro aniversário de forma simbólica, no Jardim António Borges, com a oferta de bolo e algumas outras surpresas, que chegaram até aos seus associados nas várias ilhas do arquipélago. Infelizmente, com a situação pandémica que se viveu e vive, este primeiro ano de existência foi bastante atribulado, porém foram muitos os passos e conquistas que se deram em busca de um maior reconhecimento e qualificação dos Guias de Informação Turística.

Lançamento do site da AGITA Com o apoio da Câmara Municipal de Ponta Delgada foi possível criar um site para divulgação da AGITA, dos seus associados e actividades. Este é o primeiro site nos Açores dedicado à divulgação de Guias de Informação Turística, permitindo pesquisar os idiomas e tipo de serviços que cada guia associado presta.

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Homenagem Póstuma aos Guias Intérpretes: Armando Medeiros Custódio Silva Fernando A. Brum Fernando Rocha Gualter Bettencourt Helena Brandão Herailda Toledo João Pacheco Laura Neves de Sousa Luciano Mota Vieira Madalena Paiva Manuela Pereira Mª Gabriela Rebelo Gamboa Yolanda Falcão Afonso Ser Guia nos Açores: um acto de entrega, em que a pessoa se transcende e permite que em si ecoem nove ilhas. Embalar turistas num mar de estórias e tradições enquanto se visita e protege a terra que tanto se ama. Nos Açores, os Guias têm o privilégio de usar a bruma como um xaile sobre os ombros. Com cumplicidade cumprimentam o chuvisco como se de um amigo se tratasse. E, entre endemismos, estão em casa.

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AGITA – Associação de Guias de Informação Turística dos Açores Rua da Vila Nova, Anexo do Moinho da Tia Faleira 9500-506 Ponta Delgada São Miguel – Açores Email Geral: agitaacores@gmail.com https://www.facebook.com/AGITAACORES/ https://www.linkedin.com/in/agita-a%C3%A7ores-4363a01b1/?originalSubdomain=pt https://www.youtube.com/channel/UC9K92RY0YcbQFoWcKOPHNtg

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