Universidade do Minho Escola de Direito
TEMAS DE DIREITO PRIVADO NÚMERO 1
O direito privado na contemporaneidade: desafios e perspetivas
Coordenação: Maria Miguel Carvalho
Braga – Escola de Direito da Universidade do Minho Outubro de 2015
TEMAS DE DIREITO PRIVADO NĂšMERO 1
O direito privado na contemporaneidade: desafios e perspetivas
Universidade do Minho Escola de Direito
TEMAS DE DIREITO PRIVADO NÚMERO 1
O direito privado na contemporaneidade: desafios e perspetivas
Coordenação: Maria Miguel Carvalho
Braga – Escola de Direito da Universidade do Minho Outubro de 2015
FICHA TÉCNICA
Título: Temas de Direito Privado – Número 1 O direito privado na contemporaneidade: desafios e perspetivas Coordenação: Maria Miguel Carvalho Edição (suporte e-book): Escola de Direito da Universidade do Minho Campus de Gualtar – 4710-057 Braga Telefone: 253 601 800 / 1 | Fax: 253 601 809 e-mail: sec@direito.uminho.pt URL: http://www.direito.uminho.pt Autores: Anabela Gonçalves | Cristina M. A. Dias | Diana Sofia Araújo Coutinho | Elizabeth Fernandez | Fernando Gravato Morais | Francisco C. P. Andrade | Isabel Menéres Campos | Luís Couto Gonçalves | Marco Carvalho Gonçalves | Maria Miguel Carvalho | Rossana Martingo Cruz | Sónia Moreira | Teresa Coelho Moreira Revisão e arranjo gráfico: Ana Rita Silva ISBN: 978-989-97970-6-2 Data: Outubro de 2015
Salvo indicação expressa em contrário dos autores, os artigos desta publicação seguem as regras do novo acordo ortográfico.
Índice
Apresentação ……………………………………..............................………………………… 9 ANABELA GONÇALVES – A privacidade de dados na Internet através de fronteiras – alguns problemas de conflitos de leis e de jurisdições ........................ 11 CRISTINA M. A. DIAS – Da adoção do filho do cônjuge ou do unido de facto do mesmo sexo – o projeto de coadoção .................................... 29 DIANA SOFIA ARAÚJO COUTINHO – Responsabilidade Civil Médica: uma breve reflexão sobre o regime jurídico do consentimento informado no direito civil .................................................................. 53 ELIZABETH FERNANDEZ – O processo judicial do século XXI (A necessidade de um processo sem garantias processuais a fingir) ..................... 81 FERNANDO GRAVATO MORAIS – A insolvência do inquilino: da denúncia do contrato de arrendamento pelo administrador de insolvência à falta de pagamento da renda .................................................................................... 93 FRANCISCO C. P. ANDRADE – Questões de confiança e reputação: da Boa-Fé dos “Agentes” de Software aos “Smart Contracts” ............................. 105 ISABEL MENÉRES CAMPOS – O regime das obras em prédios arrendados e as alterações da Lei n.º 79/2014, de 19 de Dezembro ........................................... 117 LUÍS COUTO GONÇALVES – O Futuro Próximo da Patente na União Europeia ...................................................................................................... 135 MARCO CARVALHO GONÇALVES – O procedimento extrajudicial pré-executivo: breve análise do seu regime jurídico ......................................................................... 147
Índice (Temas de Direito Privado – N.º 1)
MARIA MIGUEL CARVALHO – O alcance da proteção conferida às marcas nos casos de dupla identidade na (projetada) reforma do sistema europeu de marcas .................................................................... 167 ROSSANA MARTINGO CRUZ – A figura do encarregado de educação e a sua (des)conformidade com o regime das responsabilidades parentais do Código Civil ........................................................................................................... 177 SÓNIA MOREIRA – Breves considerações sobre os deveres pré-contratuais de informação na Diretiva do Crédito Hipotecário ................................................ 211 TERESA COELHO MOREIRA – Crise e desemprego jovem em Portugal ............................ 227
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Apresentação
O Departamento de Ciências Jurídicas Privatísticas, com vista à transmissão de conhecimentos estatutariamente consagrada à Universidade e, em especial, a esta subunidade da Escola de Direito, deliberou publicar uma obra de natureza científica, seguindo padrões de elevada qualidade académica, com periodicidade anual e aberta à participação de todos os Docentes do Departamento. O título da publicação – Temas de Direito Privado – pretende que os trabalhos abarcados respeitem aos mais variados domínios deste ramo do Direito, objetivo indubitavelmente conseguido no número que agora se apresenta e que versa sobre «O direito privado na contemporaneidade: desafios e perspetivas».
Universidade do Minho, julho de 2015 Maria Miguel Carvalho
A privacidade de dados na Internet através de fronteiras – alguns problemas de conflitos de leis e de jurisdições Anabela Gonçalves*
Resumo: Com a evolução tecnológica e a massificação do uso da Internet, a transferência de dados através de fronteiras tornou-se regular e a recolha, a troca e a partilha de dados no plano internacional tornou-se frequente. O direito à privacidade de dados é garantido pelo regime jurídico instituído pela Directiva 95/46/CE. Todavia, a necessidade de segurança jurídica determina a necessidade de resolver alguns problemas de conflitos de leis e de jurisdições relacionados com a privacidade de dados através de fronteiras. Desde logo, é importante estabelecer em que situações será aplicável o padrão de protecção da Directiva 95/46/CE. Outra questão de conflitos de leis que é analisada prende-se com o tratamento ilícito de dados: qual a lei aplicável a situações de natureza transnacional ao direito de ressarcimento por danos resultantes da violação dos direitos previstos na Directiva. Adicionalmente, a existência de uma verdadeira protecção de dados exige o exercício efectivo dos direitos que resultam das normas de protecção de dados e, por esta razão, é essencial determinar qual o tribunal que tem jurisdição e como podem as decisões dos tribunais nacionais ser reconhecidas e executadas em outros países. Estes problemas serão analisados de acordo com a legislação actual. Palavras-chave: Privacidade de dados – Responsabilidade civil – Lei aplicável – Conflitos de leis – Tribunal competente – Reconhecimento de decisões estrangeiras – Conflitos de jurisdições – Direito Internacional Privado
Abstract: With the technological evolution and the mass use of the Internet, the transfer of data across borders has become regular, and collecting, exchanging and sharing of data in a global level has become frequent. The right to data privacy is guaranteed by the legal framework established by Directive 95/46/EC. However, the need for legal certainty determines the importance of solving some problems of conflict of laws and conflict of jurisdictions related to data privacy across borders. First, it is important to establish in which situations shall be applied the standard of protection of the Directive 95/46/EC. Another issue of conflict of laws analyzed concerns the unlawful processing of data: under which law is possible to claim compensation for damages resulting from the infringement of rights provided for in the Directive in transnational situations. Additionally, the existence of a real data protection requires the effective exercise of rights arising from the data protection rules and, therefore, it is essential to determine which court has jurisdiction and how can the decisions of national courts be recognized and enforced in other countries. These problems will be analyzed in the light of current legislation. Keywords: Data protection – Torts – Applicable law – Conflict of laws – Jurisdiction – Recognition and enforcement of foreign judgments – Private International Law
* Professora Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho.
Anabela Gonçalves
Sumário: 1. A privacidade de dados; 1.1. O direito ao respeito pela vida privada e dados pessoais; 1.2. A circulação online de dados através de fronteiras; 2. A lei aplicável à transferência de dados pessoais através de fronteiras na Directiva 95/46/CE; 3. Responsabilidade por prejuízos devido ao tratamento ilícito de dados; 4. Jurisdição, reconhecimento e execução nas violações online da privacidade de dados; 5. Conclusões
1. A privacidade de dados 1.1. O direito ao respeito pela vida privada e dados pessoais Não é possível encontrar uma noção universal de direito ao respeito pela vida privada, todavia, esta é uma noção de Direitos Humanos e de Direito da União Europeia. O direito ao respeito pela vida privada é um direito humano fundamental reconhecido no art. 12.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que estabelece que «[n]inguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei». O direito ao respeito da vida privada é reconhecido em idênticos termos por vários instrumentos internacionais sobre direitos humanos, como é o caso do art. 17.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, do art. 8.º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais1, do art. 11.º, n.os 2 e 3, da Convenção Americana de Direitos Humanos. No Direito da União Europeia, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia distingue o direito ao respeito pela vida privada e familiar (no art. 7.º) e o direito à protecção de dados pessoais (no art. 8.º). Esta distinção resulta da preocupação da União em implementar uma protecção efectiva dos dados pessoais e de regular a transmissão destes dados, sendo esta frequentemente identificada como uma consequência das experiências traumáticas da Segunda Guerra Mundial 2 . No núcleo da legislação da União Europeia sobre a protecção de dados pessoais está a Directiva 95/46/EC do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Outubro de 1995, relativa à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados. A Directiva 95/46/CE veio harmonizar a legislação sobre dados pessoais na União, pois a diferença entre a legislação dos Estados-Membros sobre a protecção de dados pessoais era um obstáculo à livre circulação de Ainda do Conselho da Europa relativa ao tratamento automatizado de dados pessoais, a Convenção para a Proteção das Pessoas Relativamente ao Tratamento Automatizado de Dados de Carácter Pessoal (Convenção n.º 108). 2 DAN SVANTESSON, Extraterritoriality in Data Privacy Law, Ex Tuto Publishing, Denmark, 2013, p. 43. 1
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dados e ao desenvolvimento do mercado interno. O objectivo da Directiva resulta de forma clara do seu considerando 9, onde se estabelece que a aproximação das legislações europeias nesta matéria garantiria um nível mínimo de protecção de dados na União Europeia. O sistema harmonizado instituído pela Directiva baseia-se em certos princípios estruturais como: o princípio do tratamento lícito; o princípio da especificação e da limitação da finalidade; princípios relativos à qualidade dos dados (nomeadamente, o princípio da pertinência dos dados, o princípio da exactidão dos dados; o princípio da limitação da conservação dos dados); o princípio do tratamento leal; e o princípio da responsabilidade3. Este sistema harmonizado favoreceria a livre circulação de dados pessoais (considerando 9 da Directiva 95/46/CE). 1.2. A circulação online de dados através de fronteiras Com a evolução tecnológica, a transferência de dados através de fronteiras tornou-se regular. A utilização em massa da Internet e as características desta rede, nomeadamente o seu alcance global e a sua natureza difusa, facilita a propagação da informação através de fronteiras e permite de forma simples a recolha, a troca e a partilha de dados. Também a evolução tecnológica, como a computação em nuvem, torna difícil a localização dos dados, uma vez que a eles se pode aceder em qualquer local do mundo. O aumento transfronteiriço de dados pessoais chamou a atenção para a necessidade de protecção da vida privada dos indivíduos como um direito fundamental, por um lado, e para a importância da circulação de dados pessoais para fins económicos, por outro lado. Também se tornou claro que a harmonização na União estava longe do nível que seria desejável. A complexidade do processamento de dados pessoais como resultado da evolução das tecnologias da comunicação e da informação mostrou que existem diferenças relevantes entre as legislações dos Estados-Membros e que o nível
Para uma explicação destes princípios, v. AGÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROManual da Legislação Europeia sobre Proteção de Dados, Serviços de Publicações da União Europeia, Bélgica, 2014, pp. 65-81. 3
PEIA/CONSELHO DA EUROPA,
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de harmonização é deficiente4. Também fora da União Europeia, a abordagem à protecção da privacidade de dados é variada e com diferenças profundas5. A necessidade de segurança jurídica determina a importância de estabelecer em que situações será aplicável o padrão de protecção da Directiva 95/46/CE e qual a lei que será aplicável nas situações plurilocalizadas6 ao direito de pedir o ressarcimento por danos resultantes da violação dos direitos previstos na Directiva. Adicionalmente, a existência de uma verdadeira protecção de dados exige o exercício efectivo dos direitos que resultam das normas de protecção de dados e, por esta razão, é essencial determinar que tribunal tem jurisdição e como podem as decisões dos tribunais nacionais ser reconhecidas e executadas em outros países. São estes problemas que tentaremos responder à luz da legislação actual. Utilizando a expressão privacidade de dados, pretendemos abranger o uso e tratamento de dados pessoais, protegidos pela Directiva, que podem pôr em causa o direito à vida privada dos indivíduos7.
2. A lei aplicável à transferência de dados pessoais através de fronteiras na Directiva 95/46/CE É importante para os indivíduos e para os agentes económicos saber qual a lei que vai regular o processamento de dados pessoais através de fronteiras. Para isso, é necessário recorrer às normas de conflitos8 que nos dizem a que situações plurilocali-
Constatando e demonstrando a deficiência de harmonização na legislação dos Estados-Membros, v. PAUL DE HERT/VAGELIS PAPAKONSTANTINOU, «The proposed data protection Regulation replacing Directive 95/46/EC: A sound system for the protection of individuals», in Computer Law & Security Review, Vol. 28, 2012, pp. 132-141; REBECCA WONG, «Data Protection: The Future of Privacy», in Computer Law & Security Review, Vol. 27, 2011, pp. 54-55. 5 Sobre as diferenças na protecção do direito à vida privada a partir de uma perspectiva comparatística, v. LEE A. BYGRAVE, «Privacy Protection in a Global Context – A Comparative Overview», in Scandinavian Studies in Law, Vol. 47, 2004, pp. 320-338. 6 Sobre o conceito de relações jurídicas plurilocalizadas, v. ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO, Direito Internacional Privado, Vol. I, AAFDL, Lisboa, 1966, p. 16; ANABELA SUSANA DE SOUSA GONÇALVES, Da Responsabilidade Extracontratual em Direito Internacional Privado, A Mudança de Paradigma, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 27; ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, Direito Internacional privado, Sumários, Reimpressão, AAFDL, Lisboa, 1999, pp. 3-7; idem, Direito Internacional Privado, Introdução, Vol. I, AAFDL, Lisboa, 2001, pp. 7 e ss. 7 Sobre este conceito de privacidade de dados, v. DAN SVANTESSON, Extraterritoriality in Data Privacy Law, cit., pp. 25-26. A violação do direito à privacidade de dados pessoais já foi reconhecido em diversos casos pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, como é referido por G ORDON NARDELL, «Levelling up: Data Privacy and the European Court of Human Rights» in Data Protection in a Profiled World, Ed. Serge Gutwirth, Yves Poullet, Paul De Hert, Springer, Dordrecht, Heidelberg, London, NewYork, 2010, pp. 43-52. 8 Nas relações privadas em contacto com mais do que uma ordem jurídica, as normas de conflitos indicam qual a lei que deve ser aplicada e em que sistema jurídico a solução deve ser procurada. Sobre a questão dos conflitos de leis, v. BERNARD AUDI, Droit International Privé, 4ème ed., Economica, 2006, Paris, 4
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zadas vamos aplicar o padrão de protecção do direito da União Europeia e que está presente nas diversas leis dos Estados-Membros que procederam à transposição da Directiva 95/46/CE. Ainda assim, há diferenças entre as legislações dos Estados-Membros que são relevantes. Um exemplo da relevância das diferenças entre as diversas ordens jurídicas é dado pela Comissão Europeia, em 2012, nos seguintes termos: «[u]ma empresa multinacional com vários estabelecimentos no território da UE desenvolveu um sistema de cartografia em linha na Europa que recolhe imagens de todos os edifícios, públicos e privados, e que também pode fotografar pessoas na via pública. Num Estado-Membro, a inclusão de fotografias não desfocadas de pessoas que ignoravam estar a ser fotografadas foi considerada ilícita», já em outros países esta conduta não violava a protecção de dados pessoais9. Antes de mais, porém, é importante determinar quais as situações que estão incluídas no âmbito de aplicação material da Directiva 95/46/CE. A Directiva é aplicável, de acordo com o disposto no seu art. 1.º, ao processamento de dados pessoais com vista a garantir o direito à vida privada. O art. 2.º, alínea a), define dados pessoais como a informação que identifica a pessoa singular, como um número de identificação ou outros elementos da identidade física, psicológica, económica, cultural ou social do indivíduo. Já o tratamento de dados pessoais são as operações que têm por objecto esses dados, podendo ser automatizados ou não, exemplificando o art. 2.º, alínea b), algumas dessas operações, como: a recolha, o registo, a organização, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a comunicação por transmissão, a difusão ou qualquer outra forma de colocação à disposição, com comparação ou interconexão, bem como o bloqueio, o apagamento ou a destruição. Por vezes, os dados pessoais são recolhidos através de e-mail e cookies; outras vezes, os sujeitos voluntariamente colocam os seus dados pessoais online, por exemplo, em redes sociais como o Facebook ou o Google Plus. Os dados pessoais podem ser recolhidos sem o conhecimento e consentimento da pessoa pelo simples rastreio do comportamento dos indivíduos online e, tendo valor comercial, podem ser objecto de negócios jurídicos. Devido à natureza global da Internet, muitas vezes, estas situações estão em contacto com mais do que um ordenamento jurídico, circulando estes dados facilmente através
pp. 81-83; BERND VON HOFFMAN/KARSTEN THORN, Internationales Privatrecht einschlieβlich der Grundzüge des Internationalen Zivilverfahrensrechts, Verlag C.H. Beck, München, 2005, pp. 177-178; JAMES FAWCETT/JANEEN M. CARRUTHERS, Cheshire, North & Fawcett Private International Law, 14th ed., Oxford University Press, Oxford, 2008, pp. 8-9. 9 COMISSÃO EUROPEIA, Proteção da privacidade num mundo interligado, Um quadro europeu de proteção de dados para o século XXI, Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social europeu e ao Comité das Regiões, COM 9 final, Bruxelas, 2012, p. 8. 15
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de fronteiras. A questão será saber de acordo com que lei poderemos apurar a legalidade de tais comportamentos. A norma de conflitos que define o âmbito de aplicação da Directiva 95/46/CE está prevista no art. 4.º deste instrumento legislativo. Esta norma foi identificada num estudo submetido à Comissão Europeia, de 2010, como sendo complexa, difícil de aplicar a um mundo digital global e geradora de incertezas, não sendo aplicada de forma idêntica nos diversos Estados-Membros10. Passemos, então, à análise desta disposição legal. De acordo com o art. 4.º, n.º 1, alínea a), a aplicação da protecção da Directiva verifica-se quando o tratamento de dados for efectuado no contexto das actividades de um estabelecimento do responsável pelo tratamento situado num Estado-Membro, independentemente do local onde o tratamento dos dados ocorre. Quando o responsável pelo tratamento tiver estabelecimento no território de mais do que um Estado-Membro, cada um dos estabelecimentos deve cumprir as obrigações que resultam da ordem jurídica da sua situação. Desta norma resulta que o elemento de conexão que determina a aplicação da lei de um Estado-Membro é o lugar do estabelecimento que, no contexto das suas actividades, efectua o tratamento de dados, seja este um estabelecimento principal ou secundário. Se o responsável pelo tratamento tem vários estabelecimentos situados em diversos Estados-Membros, cada um deve estar de acordo com as normas do lugar da sua situação em relação à sua actividade (considerando 19, 2.ª parte). O responsável pelo tratamento, de acordo com o art. 2.º, alínea d), é a pessoa singular ou pessoa colectiva ou qualquer outra entidade que, individualmente ou em conjunto com outros, decide qual o objectivo do tratamento dos dados pessoais e os meios usados para esse fim. O considerando 47 ajuda a preencher esse conceito, dando o exemplo de mensagens que contêm dados pessoais e que são transmitidas, por e-mail ou outras tecnologias de comunicação, por serviços que têm como único objectivo a transmissão daquela mensagem: «[...] será a pessoa de quem emana a mensagem, e não quem propõe o serviço de transmissão, que será em regra considerada responsável pelo tratamento dos dados pessoais contidos na mensagem». Todavia, quem propõe o serviço de transmissão será responsável pelo tratamento daqueles dados pessoais suplementares exigíveis para o funcionamento do serviço11 (considerando 47).
10 COMISSÃO EUROPEIA, Comparative study of different approaches to new privacy challenges, in particular in the light of technological developments, submetido por LRDP KANTOR Ltd e Centre for Public Reform, 20 de Janeiro de 2010, pp. 24-25. 11 O responsável pelo tratamento não deve ser confundido com o subcontratante, que é definido no art. 2.º, alínea e), da Directiva 95/46/CE como aquela pessoa, entidade ou serviço que «[...] trata os dados pessoais por conta do responsável pelo tratamento». Para mais esclarecimentos sobre o conceito de responsável pelo tratamento e subcontratante, v. ARTICLE 29 DATA PROTECTION WORKING PARTY, Opinion 1/2010 on the concepts of "controller" and "processor", WP169, 16.02.2010, pp. 7-31.
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No que diz respeito à circulação de dados online, pode ser difícil determinar o lugar do estabelecimento, porque a actividade do responsável pelo tratamento pode estar espalhada na Internet através de vários países. No entanto, o conceito de estabelecimento previsto na Directiva 95/46/CE ajuda a ultrapassar este problema, pois o estabelecimento é definido de forma ampla no considerando 19 como uma instalação estável através da qual se verifica o exercício efectivo e real de uma actividade, independentemente da forma jurídica assumida – sucursal, filial com personalidade jurídica... Resulta deste considerando a necessidade da existência de um estabelecimento estável e um exercício real e efectivo de uma actividade. Quanto à noção de estabelecimento estável, podemos socorrer-nos da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) que, para efeitos do art. 50.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, tem defendido um entendimento de estabelecimento estável como apresentando «[...] um grau suficiente de permanência e uma estrutura apta, do ponto de vista do equipamento humano e técnico, a tornar possíveis, de modo autónomo, as prestações de serviços consideradas»12. Esta é a noção adoptada pelo Grupo de Trabalho sobre a Protecção de Dados do Art. 29.º, o que significa que um simples servidor ou computador é um mero instrumento técnico de tratamento de informação, não sendo um estabelecimento13. Já um escritório com apenas uma pessoa, que faça mais do que representar o responsável pelo tratamento localizado em outro Estado e efectivamente esteja envolvido nas actividades no âmbito das quais se verifica o tratamento de dados, configurará um estabelecimento estável14/15. Outro elemento essencial para a aplicação do art. 4.º, n.º 1, alínea a), é que o tratamento de dados se verifique no contexto das actividades do estabelecimento. Logo, se o responsável pelo tratamento tem um estabelecimento estável em certo Estado (Estado X) e case se verifique no contexto das actividades desse estabelecimento o tratamento de dados, a essa actividade de tratamento será aplicável a lei desse Estado (a lei do Estado X)16. Se, no mesmo exemplo, a recolha de dados for feita através da Inter-
12 TJUE, Welmory sp z.o.o. contra Dyrektor Izby Skarbowej w Gdańsku, Processo C‑605/12, de 15.05.2014, § 33. Esta noção está presente em outras decisões do TJUE, v.g.: Gunter Berkholz contra Finanzamt Hamburg-Mitte-Altstadt, Processo 168/84, de 04.06.1985, CJ 1985, p. 02251, §18; Lease Plan Luxembourg SA contra Belgische Staat, Processo C-390/96, de 07.05.1998, CJ I – 2571, §1; Planzer Luxembourg Sàrl contra Bundeszentralamt für Steuern, Processo C-73/06, de 20.06.2007, CJ 2007 I-05655, §54. 13 ARTICLE 29 DATA PROTECTION WORKING PARTY, Opinion 8/2010, WP179, 16.12.2010, p. 11. 14 Idem, p. 12. 15 Esta noção está também de acordo com o afirmado pelo TJUE no caso Google Spain SL, Google Inc. v. Agencia Española de Protección de Datos (AEPD), Mario Costeja González, Processo C-131/12, 13.05.2014, §28 e §49: de acordo com o TJUE, a Google Spain era dotada de personalidade jurídica própria, sendo uma filial da Google Inc. no território espanhol e, por conseguinte, era um estabelecimento para efeitos do art. 4.º, n.º 1, alínea a), da Diretiva 95/46. 16 ARTICLE 29 DATA PROTECTION WORKING PARTY, Opinion 8/2010, WP179, 16.12.2010, p. 13.
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net junto de utilizadores localizados em vários países, continuará a ser aplicável a lei do Estado X: local da situação do estabelecimento que trata os dados no contexto das suas actividades17. Voltando ao mesmo exemplo, mas agora o responsável pelo tratamento cujo estabelecimento está localizado no Estado X abre uma sucursal no Estado Y, sucursal que passa a desenvolver actividades de tratamento de dados relativamente a utilizadores residentes em Y: será aplicável a lei de Y às actividades de tratamento de dados desta sucursal18. Num último exemplo, se o responsável pelo tratamento tem o estabelecimento no país X e subcontrata o tratamento de dados a um subcontratante localizado em Y, o tratamento de dados em Y verifica-se no contexto das actividades do estabelecimento em X, pois, como esclarece o Grupo de Trabalho sobre a Protecção de Dados do Art. 29.º, «[...] the processing is carried out for the business purposes of, and on instructions from the [...] [X] establishment»19. Será aplicável ao processamento de dados a lei do Estado X20. Destes exemplos, podemos retirar a conclusão que não é relevante nem a localização dos utilizadores, nem dos dados, mas apenas a localização do estabelecimento estável em cujo contexto de actividade se verifique o tratamento dos dados. Além disso, resulta do caso Google Spain que dois elementos preenchem o conceito de tratamento de dados no contexto das actividades do estabelecimento na acepção do art. 4.º, n.º 1, alínea a): a ligação indissociável entre as actividades em análise e a direcção das actividades do estabelecimento para um Estado-Membro21. De acordo com o art. 4.º, n.º 1, alínea b), o padrão de protecção da Directiva também é aplicável quando o lugar do estabelecimento do responsável pelo tratamento está situado num terceiro Estado onde seja aplicável a lei de um Estado-Membro em resultado do Direito Internacional Público. Nesta situação, o estabelecimento do responsável pelo tratamento não se localiza num Estado-Membro, não sendo por isso possível a aplicação do regime da Directiva, por força da alínea a) do art. 4.º. Tem, todavia, de existir um acordo internacional que implique a aplicação nesse Estado da lei de um Estado-Membro. Por fim, nos termos da alínea c) do n.º 1 do art. 4.º, a Directiva também é aplicável quando o responsável pelo tratamento não está estabelecido no território da União, mas recorre a meios, automatizados ou não, localizados no território da União para
Idem, ibidem. Idem, ibidem. 19 Idem, ibidem. 20 Note-se, todavia, que relativamente às obrigações relativas à segurança do tratamento o subcontratante está sujeito à lei do Estado-Membro onde está estabelecido, nos termos do art. 17.º, n.º 3, da Directiva 95/46/CE. 21 TJUE, Google Spain SL, Google Inc. v Agencia Española de Protección de Datos (AEPD), Mario Costeja González, Processo C-131/12, 13.05.2014, §55-57. 17 18
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tratar os dados pessoais – a lei aplicável será a lei do Estado-Membro da localização desses meios. Só não será assim se esses meios forem utilizados unicamente para o trânsito de dados22. Também nesta alínea, o estabelecimento relevante para as actividades de tratamento de dados do responsável pelo tratamento não está localizado num Estado-Membro, ou seja, pressupõe-se que não seja possível aplicar a lei de um Estado-Membro, por força da alínea a)23. Para aplicar esta alínea c), é necessário esclarecer o conceito de recurso a meios para o tratamento de dados. De acordo com o Grupo de Trabalho sobre a Protecção de Dados do Art. 29.º, o recurso a meios implica a conjugação de dois elementos: por um lado, a existência de uma actividade por parte do responsável pelo tratamento; por outro lado, a intenção deste em proceder ao tratamento de dados pessoais24. Note-se que, para este conceito, é irrelevante a propriedade sobre os meios ou se o responsável pelo tratamento tem o controlo total sobre os meios utilizados25. Quanto à noção de meios de tratamento de dados, deve ser adoptada uma noção ampla, de forma a abarcar qualquer equipamento, automatizado ou não, usado no tratamento de dados pessoais, como a recolha de informações através de questionários26. Segundo o Grupo de Trabalho sobre a Protecção de Dados do Art. 29.º, na concretização deste conceito teremos de analisar se o meio é efectivamente utilizado para recolher e proceder ao tratamento de dados pessoais, podendo preencher este conceito a utilização de cookies ou de Javascript banners para recolher dados pessoais em computadores27. As situações descritas no art. 4.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2 da mesma norma impõem uma obrigação do responsável pelo tratamento de designar um representante no território do Estado-Membro onde se situam os meios para o tratamento de dados, «[...] sem prejuízo das acções que possam ser intentadas contra o próprio responsável pelo tratamento». A possibilidade de responsabilizar o representante em lugar do responsável pelo tratamento, seja por via civil seja por via penal, depende das leis nacionais de cada Estado-Membro, como reconhece o Grupo de Trabalho sobre a Protecção de
22 Esta expressão deve ser objecto de uma interpretação restritiva, segundo o Grupo de Trabalho sobre a Protecção de Dados do Art. 29.º: Opinion 8/2010, cit., p. 23. 23 De acordo com a indicação do Grupo de Trabalho sobre a Protecção de Dados do Art. 29.º: Opinion 8/2010, cit., p. 19. Esta interpretação tem a vantagem de impedir a aplicação conjunta da alínea a) e da alínea c) e sobrecarregar o responsável do tratamento de dados ao respeito pela lei do lugar do estabelecimento e da localização dos meios. 24 ARTICLE 29 DATA PROTECTION WORKING PARTY, Working document on determining the international application of EU data protection law to personal data processing on the Internet by non-EU based websites, WP56, 30.05.2002, p. 9. 25 Idem, ibidem. 26 De acordo com a indicação do Grupo de Trabalho sobre a Protecção de Dados do Art. 29.º: Opinion 8/2010, cit., p. 20. 27 Idem, p. 21.
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Dados do Art. 29.º28, o que não nos parece a opção mais acertada. Numa perpectiva de segurança, certeza jurídica e defesa dos direitos relativos ao tratamento de dados previstos na Directiva, parece-nos que esta questão deveria ser alvo de harmonização. A justificação da alínea c) do art. 4.º encontra-se no considerando 20 da Directiva, onde se estabelece que, no caso de o responsável pelo tratamento estar estabelecido num país terceiro, a protecção que é conferida pela Directiva pode ter aplicação, pois «[...] nesses casos, o tratamento deverá ser regido pela legislação do Estado-Membro onde se encontram os meios utilizados para o tratamento dos dados em causa [e] [...] deverão oferecer-se garantias de que os direitos e as obrigações estabelecidos na persente directiva serão efectivamente respeitados». Através desta norma, são aplicáveis disposições jurídicas da União Europeia a situações em que o processamento de dados não é feito no território da União ou o responsável pelo tratamento está estabelecido fora da União Europeia. No exemplo do indivíduo que faz o upload de dados pessoais numa rede social operada por um servidor localizado num país terceiro29, é possível a aplicação das normas protectoras da Directiva 95/46/CE, através do art. 4.º, n.º 1, alínea c), porque, mesmo que o estabelecimento do responsável pelo tratamento esteja situado fora da União, o tratamento dos dados pessoais é feito através de meios localizados no território de um Estado-Membro. De igual modo, as normas protectoras da Directiva serão aplicadas naquelas situações, por exemplo, em que a rede social é gerida a partir de um servidor localizado na União, que permite o upload de dados pessoais em terceiros Estados, por força do art. 4.º, n.º 1, alínea a). Através destas normas, a aplicação do regime jurídico de protecção de dados pessoais da União é ampliada. Estes são exemplos de aplicação extraterritorial de legislação da União, o que pode levantar problemas de reconhecimento e execução dos direitos protegidos pela Directiva 95/46/CE. Note-se, todavia, que o Grupo de Trabalho sobre a Protecção de Dados do Art. 29.º já assinalou a necessidade de clarificação do art. 4.º da Directiva 95/46/CE e dos seus requisitos de aplicação, sobretudo da alínea c) do n.º 1, como condição necessária para reforçar a certeza e segurança jurídica do regime jurídico do tratamento de dados30. A Directiva 95/46/CE, sendo um instrumento de harmonização, tem várias lacunas e não regula de forma completa a protecção de dados pessoais. Naqueles aspectos não regulados pela Directiva, é necessário recorrer ao direito nacional dos Estados-Membros. Especificamente, nas situações jurídicas plurilocalizadas, temos de recorrer às normas de conflitos nacionais. Sendo estas diferentes nos vários Estados-Membros,
Idem, p. 23. Exemplo presente em CHRISTOPHER KUNER, Regulation of Transborder Data Flows under Data Protection and Privacy Law: Past, Present and Future, OECD Digital Economy Papers 187, 2011, p. 25. 30 Grupo de Trabalho sobre a Protecção de Dados do Art. 29.º: Opinion 8/2010, cit., pp. 23-25. 28 29
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os tribunais dos diversos Estados vão aplicar a situações tendencialmente idênticas leis diversas e obterão soluções diferentes. Consequentemente, as diferenças das leis dos Estados-Membros no plano da protecção de dados pessoais introduzem distorções no mercado interno e um tratamento diferenciado de situações idênticas. Como já foi reconhecido pela Comissão Europeia, esta fragmentação do regime relativo à protecção de dados pessoais gera insegurança jurídica, o tratamento desigual dos indivíduos, custos e é um factor de desincentivo da internacionalização de empresas nacionais31. A proposta de regulamento da União Europeia sobre a protecção de dados visa eliminar as diferenças no nível de protecção da privacidade de dados na União, com o objectivo de eliminar a fragmentação legal que existe na União, obter certeza jurídica, eliminar distorções na concorrência e criar condições de confiança entre operadores económicos e indivíduos para permitir o desenvolvimento da economia digital32. Para a Comissão Europeia, era óbvia a necessidade de ajustar o regime legal existente ao desenvolvimento de novas tecnologias que facilitam a globalização da informação e a transferência de dados pessoais no plano internacional (não só na União, mas também entre esta e países terceiros)33. A proposta de regulamento reforça a protecção dos titulares dos dados pessoais, amplia as obrigações dos responsáveis pelo tratamento34 e tenta eliminar as diferenças de protecção dentro da União, para que haja um tratamento equivalente de dados pessoais dentro da União35. Todavia, também será importante apurar quais as situações a que serão aplicáveis as normas do futuro regulamento, uma vez que os problemas de lei aplicável permanecerão naquelas questões não disciplinadas pelo regulamento ou relativamente a Estados terceiros36.
COMISSÃO EUROPEIA, Proteção da privacidade num mundo interligado, cit., p. 7. COMISSÃO EUROPEIA, Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados (regulamento geral sobre a protecção de dados), COM 11 final, Bruxelas, 2012, pp. 1-126. 33 COMISSÃO EUROPEIA, Proteção da privacidade num mundo interligado, cit., pp. 8-9. 34 Para uma análise detalhada, v. PAUL DE HERT/VAGELIS PAPAKONSTANTINOU, «The proposed data protection Regulation replacing Directive 95/46/EC...», cit., pp. 132-141. 35 COMISSÃO EUROPEIA, Proteção da privacidade num mundo interligado, cit., p. 13. 36 Problema reconhecido pela Comissão Europeia em 2010: COMISSÃO EUROPEIA, Uma abordagem global da protecção de dados pessoais na União Europeia, Comunicação da Comissão ao parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, COM 609 final, Bruxelas, 2010, p. 4. 31 32
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3. Responsabilidade por prejuízos devido ao tratamento ilícito de dados A Directiva 95/46/CE assim como a proposta do Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados estabelecem um conjunto de princípios relativos ao tratamento de dados pessoais, direitos subjectivos, deveres dos responsáveis pelo tratamento de dados e subcontratantes. Na sequência deste quadro normativo, o art. 23.º, n.º 1, da Directiva 95/46/CE determina que a pessoa que tenha sofrido um dano em resultado do tratamento ilícito de dados ou de qualquer acção incompatível com as disposições nacionais que transpõem a Directiva terá o direito de obter a reparação desse prejuízo do responsável pelo tratamento. O mesmo resulta do art. 77.º, n.º 1, da proposta do Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados37. Apesar de a Directiva 95/46/CE e a proposta de Regulamento preverem a possibilidade de o lesado pedir uma indemnização pelos danos causados em violação dos direitos subjectivos neles estabelecidos, ambas têm lacunas, uma vez que não têm normas relativas à natureza e avaliação dos danos ou reparação exigível, sobre as medidas que os tribunais podem tomar para prevenir ou fazer cessar o dano ou assegurar a sua reparação, a transmissibilidade do direito de exigir a indemnização ou reparação, a extinção da obrigação de indemnização, incluindo a prescrição, as causas de exclusão ou limitação da responsabilidade... O Regulamento n.º 846/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais (Roma II) contém o regime legal das obrigações extracontratuais em matéria civil e comercial que envolvam um conflito de leis (art. 1.º, n.º 1). Neste regulamento, encontramos o regime conflitual da responsabilidade civil extracontratual resultante de factos ilícitos, de factos lícitos e pelo risco (art. 2.º, n.º 1), através do qual conseguimos determinar a lei aplicável a estas situações de responsabilidade civil. O Regulamento Roma II integra-se na política de cooperação judiciária em matéria civil da União Europeia (art. 81.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia) e teve como objectivo aumentar a segurança jurídica e a previsibilidade na resolução dos litígios transnacionais que envolvem obrigações extracontratual, assim como promover a igualdade de tratamento entre indivíduos e agentes económicos na União38. Desta forma, procedeu à unificação do regime conflitual relativo às obrigações extracontratuais, para que a questões plurilocalizadas idênticas julgadas pelos tribunais de
Onde se estabelece a obrigatoriedade de indemnização dos danos resultantes do tratamento ilícito de dados por parte do responsável pelo tratamento ou do subcontratante. 38 Sobre os objectivos do Regulamento Roma II, v. ANABELA SUSANA DE SOUSA GONÇALVES, Da Responsabilidade Extracontratual em Direito Internacional Privado, cit., pp. 107-127 e 226-232. 37
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diferentes Estados-Membros fossem aplicadas as mesmas normas de conflitos e, através delas, fossem reguladas pela mesma ordem jurídica. Na proposta inicial do Regulamento Roma II, datada de 2003, era possível encontrar uma norma de conflitos relativa à violação do direito à vida privada e dos direitos de personalidade39. Todavia, a versão final do regulamento exclui do seu âmbito de aplicação material as obrigações extracontratuais que resultem da violação do direito à vida privada e dos direitos de personalidade (art. 1.º, n.º 2, alínea g)). Resulta dos trabalhos preparatórios do Regulamento Roma II que a exclusão destas matérias do seu âmbito de aplicação material foi consequência da ausência de consenso quanto à norma e das críticas dos meios de comunicação social que temiam acções de responsabilidade civil sujeitas a lei estrangeira e consequentes restrições à liberdade de imprensa40. Uma interpretação literal do art. 1.º, n.º 2, alínea g), do Regulamento Roma II significa que, apesar das normas da Directiva 95/46/CE e de esta estabelecer um direito de reparação pelo tratamento ilícito de dados, todas aquelas questões que a Directiva não prevê serão reguladas pelas normas de conflitos nacionais e situações plurilocalizadas similares julgadas em tribunais de diferentes Estados-Membros podem ter soluções diferentes41. Em consequência, tratamentos ilícitos de dados de acordo com a Directiva 95/46/CE e geradores de responsabilidade civil podem ter diferentes soluções pela aplicação das diferentes normas de conflitos nacionais. Isto põe em causa a segurança e certeza jurídica e a igualdade de tratamento de indivíduos e agentes económicos, porque duas pessoas domiciliadas em diferentes países que tenham a mesma disputa no seus próprios Estados contra o mesmo lesante podem obter diferentes resultados pela violação da mesma legislação europeia, em resultado da aplicação das diferentes normas de conflitos do Estado-Membro que julga o litígio. O resultado prático é a possibilidade de se obter vantagens competitivas em consequência da aplicação de diferentes leis a litígios idênticos. Esta realidade é agravada pelo sistema do Regulamento n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, relativo
39 COMISSÃO EUROPEIA, Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho sobre a Lei Aplicável às Obrigações Extracontratuais ("Roma II"), COM 427 final, Bruxelas, pp. 18-20. 40 IVO BACH, «Article 1», in Rome II Regulation, Pocket Commentary, ed. by Peter Huber, Sellier European Law Publishers, Munich, 2011, p. 53; ANDREW DICKINSON, The Rome II Regulation: The Law Applicable to Non-Contractual Obligations, Oxford University Press, Oxford, 2008, pp. 234-235; STEFAN LEIBLE/ MATTHIAS LEHMANN, «Die neur EG-Verordnung über das auf auβervertragliche Schuldverhältnisse anzuwendende Recht („Rom II‟)», in Recht der Internationalen Wirtschaft, 53-10, 2007, p. 723; JOHAN MEEUSEN, «Rome II: A True Piece of Community Law», in The Rome II Regulation on the Law Applicable to Non-Contractual Obligations, A New International Litigation Regime, ed. by John Ahern & William Binchy, Martinus Nijohff Publishers, Leiden & Boston, 2009, p. 15. 41 Para uma eventual interpretação sistemática do art. 1.º, n.º 2, alínea g), do Regulamento Roma II, v. ANABELA SUSANA DE SOUSA GONÇALVES, Da Responsabilidade Extracontratual em Direito Internacional Privado, cit., pp. 265-267.
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à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (Bruxelas I bis)42. A forma mais simples de ultrapassar a insegurança jurídica e o tratamento diferenciado de situações idênticas na União é a revisão do Regulamento Roma II e a inclusão de uma norma sobre a violação do direito à vida privada e de direitos de personalidade43.
4. Jurisdição, reconhecimento e execução nas violações online da privacidade de dados O Regulamento Bruxelas I bis também se integra na política de cooperação judiciária em matérias civis da União e visa reforçar a cooperação entre as autoridades judiciais dos Estados-Membros para facilitar o exercício efectivo de direitos através de fronteiras. Um dos elementos estruturais desta política é o princípio da confiança que deve existir entre as autoridades judiciais dos diferentes Estados-Membros e o princípio do reconhecimento automático e execução de decisões estrangeiras (art. 36.º e art. 39.º) em matérias civis e comerciais (art. 1.º). De facto, o art. 36.º prevê um reconhecimento automático das decisões proferidas nos outros Estados-Membros e, em relação ao efeito executório, de acordo com o art. 39.º, uma decisão que seja proferida num Estado-Membro e que aí tenha força executória pode ser executada em qualquer Estado-Membro sem declaração prévia de exequibilidade 44 . Todavia, este sistema está baseado num conjunto de normas de competência internacional. O Regulamento Bruxelas I bis é aplicável à violação de direitos de personalidade, o que inclui a violação do direito à vida privada e ao tratamento ilícito de dados pessoais. A norma geral de competência internacional (art. 4.º, n.º 1) prevê o princípio do sequitur forum rei, segundo a qual a jurisdição pertence ao tribunal do domicílio do réu. Todavia, em relação a matérias extracontratuais, existe uma jurisdição alternativa, prevista no art. 7.º, n.º 2, a favor do tribunal onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto da-
42 Este regulamento veio substituir o Regulamento n.º 44/2001 (Bruxelas I) depois de 10 de Janeiro de 2015, de acordo com o estabelecido no seu art. 66.º. 43 O Parlamento Europeu já avançou com algumas iniciativas de forma a concretizar este propósito: Relatório que contém recomendações à Comissão sobre a alteração do Regulamento (CE) n.º 864/2007 relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais (Roma II), A7-0152, de 02.05.2012, pp. 2-9. 44 Sobre as alterações do Regulamento n.º 1215/2012 face ao Regulamento n.º 44/2001, v. ANABELA SUSANA DE SOUSA GONÇALVES, «A revisão do regulamento Bruxelas I relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial», in Estudos em Comemoração dos 20 Anos da Escola de Direito, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pp. 39-59.
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noso. Os factores atributivos de competência, previstos no art. 7.º, são baseados no princípio de proximidade, uma vez que se presume que os tribunais aí indicados são aqueles que têm uma maior ligação com o litígio, o que facilita a condução do mesmo e a produção da prova. Sendo uma jurisdição alternativa, isto implica que aquele que previne a jurisdição pode escolher propor a acção perante os tribunais do domicílio do réu (art. 4.º, n.º 1) ou perante os tribunais designados no art. 7.º, n.º 2. Esta opção que é dada ao autor gera uma situação de forum shopping, pois a parte que previne a jurisdição pode escolher o tribunal, em função daquele que vai aplicar a lei que substancialmente é mais favorável às suas pretensões. Todavia, a dispersão de foros que resulta do art. 7.º, n.º 2, do Regulamento Bruxelas I bis45 é elevada. Chamado a interpretar a expressão lugar da ocorrência do facto danoso, o TJUE decidiu que este conceito abrangia o lugar do evento que deu origem ao dano, assim como o lugar onde o dano ocorreu46. Para o efeito de determinar o tribunal competente, o dano relevante seria o dano directo47, como o lugar onde os resultados directos da acção ou omissão ilícita ocorreram. Todavia, enquanto o tribunal do lugar do evento que deu origem ao dano teria competência para decidir o ressarcimento de todos os danos resultantes daquela conduta, o tribunal do lugar do dano apenas teria competência para decidir sobre os danos ocorridos no seu território. Esta interpretação da norma está presente no caso Shevill que envolvia a violação de direitos de personalidade, nomeadamente, difamação por artigo de imprensa48. Nesta decisão, o TJUE considerou que o lugar do evento causal que deu origem ao dano seria o lugar do estabelecimento do editor da publicação, uma vez que seria «o lugar de origem do facto danoso, a partir do qual a difamação foi expressa e posta em circulação»49. Já o lugar do dano (cujo tribunal teria apenas jurisdição para decidir sobre os danos ocorridos no território daquele Estado) seria o lugar onde o prejuízo se materializou, ou seja, onde se produziram efeitos danosos relativamente ao lesado, que numa situação plurilocalizada de difamação «[...] o atentado feito por uma publicação difamatória à honra, à reputação e à consideração de uma pessoa singular ou colectiva manifesta-se nos luga-
45 46
Corresponde ao art. 5.º, n.º 3, do Regulamento n.º 44/2001. V., v.g., Handelskwekerij G. J. Bier B.V. contra Mines de Potasse d'Alsace S.A., Processo 21/76, CJ 1976,
p. 1735. 47 Como foi decidido pelo TJUE em diversos casos: v.g., Zuid-Chemie contra Philippo´s Mineralenfabriek NV/SA, Processo C-189-08, CJ 2009, p. I-06917; Rudolf Kronhofer contra Marianne Maier e Outros, Processo C-168/02, CJ 2004, p. I-06009; Dumez France SA e Tracoba SARL contra Hessische Landesbank e Outros, Processo C-220/88, CJ 1990, p. I-00049. 48 TJUE, Fiona Shevill, Ixora Trading Inc., Chequepoint SARL e Chequepoint International Ltd contra Presse Alliance SA., Processo C-68/93, de 07.05.1995, CJ 1995 I-00415. 49 Idem, ibidem, § 24.
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res onde a publicação é divulgada, quando a vítima é aí conhecida»50. Nestes casos, o lesado, querendo recorrer ao tribunal do lugar do dano, deve propor uma acção perante os tribunais de cada um dos Estados-Membros em cujo território o dano ocorreu (Mosaikbetrachtung). No caso eDate, em que se colocou uma questão de violação online de direitos de personalidade e de privacidade de dados, o TJUE reconhece a ubiquidade proporcionada pela Internet e o seu alcance universal, permitindo que qualquer conteúdo que aí seja colocado possa ser consultado «[...] instantaneamente por um número indefinido de internautas em todo o mundo, independentemente de qualquer intenção da pessoa que os emitiu, relativa à sua consulta para além do seu Estado-Membro de estabelecimento e fora do seu controlo»51. São estas características específicas das novas tecnologias (Internet, cloud computing) e o impacto do tratamento de dados através das mesmas que impõem uma adaptação da interpretação das tradicionais normas de competência internacional52. No caso eDate, o TJUE pesou o impacto nos direitos de personalidade de um indivíduo de um conteúdo que foi colocado online numa página da Internet e a grande extensão de danos que poderia causar, devido ao alcance mundial daquela. Neste caso, o TJUE manteve a interpretação que já tinha feito anteriormente para efeitos de aplicação do art. 7.º, n.º 2. Assim sendo, o autor poderia propor a acção, pedindo o ressarcimento de todos os danos contra o editor no tribunal do lugar do evento causal, que no caso seria lugar de estabelecimento do editor da publicação difamatória. Em alternativa, podia dirigir-se aos tribunais do lugar onde o dano ocorreu, que no caso seria em cada Estado-Membro em cujo território esteja ou tenha estado acessível o conteúdo em linha, limitando-se, todavia, a competência desse tribunal à apreciação dos danos ocorridos naquele território53. Todavia, o TJUE adaptou a interpretação da norma à natureza da Internet, sublinhando que o conteúdo daquilo que é colocado online pode ser consultado em qualquer local do mundo, o que aumenta o impacto do dano, independentemente da intenção da pessoa que colocou esse conteúdo na Internet, e reconhecendo que «[...] nem sempre é possível, no plano técnico, quantificar essa difusão com certeza e fiabilidade relativamente a um Estado-Membro em particular, nem, por conseguinte, avaliar o dano exclusivamente causado nesse
Idem, ibidem, § 29. eDate Advertising GmbH contra X, e Olivier Martinez, Robert Martinez contra MGN Limited, Processos apensos C-509/09 e C-161/10, CJ 2011, p. I-10269, § 45. 52 V., sobre esta interpretação, ANABELA SUSANA DE SOUSA GONÇALVES, «The application of the general rule of the Rome II Regulation on the internet torts», in Masaryk University Journal of Law and Technology, Vol. 9, Number 1, summer 2014, pp. 57-68. 53 eDate Advertising GmbH contra X, e Olivier Martinez, Robert Martinez contra MGN Limite, cit., § 42. 50 51
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Estado-Membro»54. Tendo em conta esta realidade, considerou-se que outro tribunal deveria ter competência para apreciar o ressarcimento de todos os danos causados – o tribunal do lugar onde o pretenso lesado tem o centro dos seus interesses55. O lugar do centro de interesses do lesado será, regra geral, o lugar da sua residência habitual, porém o TJUE admitiu que este local pode resultar de outros indícios que revelem a existência de uma conexão particularmente estreita com certo Estado, como o lugar onde o lesado desenvolve a sua actividade profissional56. A competência do tribunal do lugar do centro dos interesses do lesado é justificada pelo TJUE, além do princípio da boa administração da justiça e da organização útil do processo, com base no princípio de previsibilidade, quer do demandante quer do demandado, que está subjacente às regras de competência internacional57, uma vez que a pessoa que coloca ilicitamente o conteúdo online está, nesse momento, em condições de conhecer o centro de interesses da pessoa que sofrerá o dano58. A referida interpretação do TJUE criou outra jurisdição relativamente à violação online de direitos de personalidade e à privacidade de dados, perfazendo quatro foros possíveis. Esta situação favorece o autor, que pode escolher o tribunal que vai aplicar a lei substantiva mais favorável à sua pretensão. Para obviar a esta desigualdade processual entre as partes, consideramos que é urgente a unificação das normas de conflitos relativamente à violação de direitos de personalidade e da privacidade de dados, para que, independentemente do tribunal que vai julgar a questão, seja aplicável a mesma lei.
5. Conclusões Propusemo-nos analisar alguns problemas de conflitos de leis e de jurisdições relativos à privacidade de dados através da Internet. Sendo o direito à privacidade de dados garantido pelo regime jurídico que resulta da Directiva 95/46/CE, há diferenças entre as ordens jurídicas dos Estados-Membros, algumas resultando da própria transposição da Directiva. Começamos, por isso, por apurar o âmbito de aplicação da Direc-
Idem, ibidem, § 46. Idem, ibidem, § 48. 56 Idem, ibidem, § 49. 57 A importância do princípio da previsibilidade no âmbito das regras de competência internacional tem sido afirmada por diversas vezes pelo TJUE. V., v.g., Berliner Verkehrsbetriebe (BVG) contra JPMorgan Chase Bank NA, Frankfurt Branch, Processo C-144/10, de 12.05.2011, §33; Falco Privatstiftung, Thomas Rabitsch contraGisela Weller Lindhorst, Processo C-533/07, de 23.04.2009, CJ 2009, p. I-3327, § 22. 58 eDate Advertising GmbH contra X, e Olivier Martinez, Robert Martinez contra MGN Limite, cit., § 50. 54 55
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tiva 95/46/CE, pela análise do seu art. 4.º. Além de esta norma ser complexa e difícil de aplicar ao mundo digital global, verificámos que conduz a uma aplicação extraterritorial da legislação da União Europeia, o que pode levantar problemas de efectividade dos direitos reconhecidos pela Directiva 95/46/CE. Outra questão relacionada com a lei aplicável prende-se com o tratamento ilícito de dados em violação das normas da Directiva 95/46/CE. Nestas situações, nos termos do art. 23.º, n.º 1, da Directiva 95/46/CE, tem o lesado o direito de obter o ressarcimento dos danos sofridos, todavia a Directiva é lacunosa em relação aos termos em que essa indemnização pode ser pedida. Logo, em situações transnacionais, é necessário recorrer às normas de conflitos dos Estados-Membros para completar o regime da Directiva. Não existindo normas de conflitos unificadas na União Europeia aplicáveis à violação do direito à privacidade de dados, será necessário recorrer a normas de conflitos nacionais, o que significa que os tribunais dos Estados-Membros vão aplicar diferentes leis a casos similares. A situação é mais grave porque, através da aplicação do Regulamento Bruxelas I bis, verifica-se uma dispersão de foros competentes, o que gera uma situação de forum shopping que põe em causa o princípio da igualdade processual entre as partes, a previsibilidade da resolução destes litígios na União e é um factor de perturbação no funcionamento do mercado interno. Desta desigualdade de tratamento de situações similares, resulta incerteza e insegurança jurídica para as partes envolvidas, dificultando a previsibilidade na resolução de eventuais litígios. Assim sendo, torna-se premente a revisão do Regulamento Roma II para incluir, de forma clara, no seu âmbito de aplicação material a violação de direitos de personalidade e de privacidade de dados. O tratamento igual de situações idênticas que resultassem da adopção de normas de conflitos uniformes na União quanto a estas questões seria uma forma de garantir um equilíbrio entre a posição das partes e de obter soluções mais justas.
(Este artigo segue as regras anteriores ao novo acordo ortográfico.)
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Da adoção do filho do cônjuge ou do unido de facto do mesmo sexo – o projeto de coadoção* Cristina M. A. Dias**
Resumo: Um problema que tem vindo a ser discutido em alguns países, independentemente até do reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo, é o da adoção por casais do mesmo sexo. Pretendemos aqui refletir o atual estado legislativo no nosso país perante tal questão, ou seja, saber se, do ponto de vista jurídico, duas pessoas do mesmo sexo podem ou não adotar e, podendo, qual a modalidade da adoção. O Projeto de Lei n.º 278/XII, que não chegou a ser aprovado, apenas esclarecia que a adoção singular (e plena) pelo cônjuge ou unido de facto do filho do outro cônjuge ou unido de facto, já prevista no Código Civil, seria admitida para os casais do mesmo sexo, abrindo uma brecha no instituto da adoção e da sua proibição aos casais do mesmo sexo. É evidente que a adoção por casais homossexuais, como qualquer processo de adoção, não deve servir interesses egoísticos dos adotantes, mas o interesse da criança adotável. Mas isso não constitui qualquer particularidade da adoção por homossexuais, já que qualquer adoção deve visar isso mesmo: permitir que a criança cresça e se desenvolva no seio de uma família, que lhe dê afeto, que a eduque, que assuma a responsabilidade de a fazer feliz. Palavras-chave: Adoção – Coadoção – Casais do mesmo sexo Abstract: Regardless of the recognition of unions between people of the same sex as marriage or not, another issue that has been discussed is the adoption by same-sex couples. We will analyse this matter within the scope of the current state of legislation in our country, namely, whether, from a legal point of view, two persons of the same sex may or may not adopt. The Bill n.º 278/XII clarified that the singular (and full) adoption by the spouse or the cohabitant of the other spouse or cohabitant’s child, already foreseen by the Civil Code, was allowed for same-sex couples, reflecting a gap at the prohibition of adoption by same-sex couples. It is clear that the adoption by same-sex couples, like in any adoption process, should not only serve adopters interests, but the best interests of the child. But this does not constitute any peculiarity of adoption by same-sex couples, since any adoption should aim just that: to allow the child to grow and develop within a family that will give him affection, that educates him, that takes the responsibility to make the child happy.
* O presente texto corresponde em parte ao nosso estudo sobre este tema apresentado no Congresso Nacional “Realidades e Desafios no 25.º Aniversário da Convenção sobre os Direitos da Criança: o caso português”, nos dias 25 e 26 de setembro de 2014, organizado pelo Instituto de Educação e pela Escola de Direito da Universidade do Minho, cujas atas se encontram em preparação. Não tem, por isso, em consideração as recentes alterações legislativas, ou seja, a Lei n.º 143/2015, de 8 de setembro (altera o Código Civil e o Código de Registo Civil e aprova o Regime Jurídico do Processo de Adoção), a Lei n.º 141/2015, de 8 de setembro (altera o Regime Jurídico do Apadrinhamento Civil), e a Lei n.º 142/2015, de 8 de setembro (altera a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo). De igual modo não se ponderou a alteração introduzida no domínio do exercício das responsabilidades parentais pela Lei n.º 137/2015, de 7 de setembro, e que, de certa forma, se apresenta como uma versão alternativa ao projeto de adoção que aqui se analisa. ** Professora Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho.
Cristina M. A. Dias
Keywords: Adoption – Co-adoption – Same-sex couples
Sumário: I. Introdução; II. Notas legais sobre o instituto da adoção: a) Da adoção; b) Interpretação do art. 7.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio (alterada pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto), e do art. 3.º da Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, e a possibilidade de adoção por pessoas do mesmo sexo; c) Outras referências legais (o recurso a técnicas de PMA, o acolhimento familiar à luz da LPCJP e o apadrinhamento civil); d) A coadoção – Projeto de Lei n.º 278/XII; III. Considerações finais. Referências bibliográficas
I. Introdução O ordenamento jurídico português, como a generalidade dos países europeus, reconheceu progressivamente as uniões entre pessoas do mesmo sexo. A legislação nacional de cada um dos Estados varia na forma de encarar e regular essas uniões, sendo que na maioria das legislações as uniões entre pessoas do mesmo sexo são qualificadas como uniões de facto (reservando a expressão “casamento” para os casais heterossexuais). Tal não acontece em Portugal onde o casamento entre pessoas do mesmo sexo está juridicamente reconhecido (desde a Lei n.º 9/2010, de 31 de maio) a par da legislação que atribui efeitos jurídicos às uniões de facto (Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, alterada pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto). É evidente que se questionará sempre se deverá haver uma total equiparação entre as uniões hetero e homossexuais, seja como casamento seja como uniões de facto. Como referiam KATHARINA BOELE-WOELKI e ANGELIKA FUCHS, enquanto na década de 90 do século XX a discussão girava em torno da questão de saber se se deveria reconhecer legalmente as uniões entre pessoas do mesmo sexo, o debate futuro incidirá, na maioria dos Estados europeus, sobre se será adequada uma total equiparação entre uniões hetero e homossexuais1. A consagração legal do casamento entre pessoas do mesmo sexo verifica-se já, nesta data, em alguns países. De referir a Holanda, Bélgica, Espanha, Portugal, Noruega, Suécia, Islândia, Dinamarca, França e, mais recentemente, Inglaterra, País de Gales e Escócia; e fora da Europa, na África do Sul, no Canadá, na Argentina, no Uruguai bem como em alguns estados dos EUA, do Brasil, na cidade do México e na Nova Zelândia.
V. prefácio da obra Legal recognition of same-sex couples in Europe, sob a direcção de KATHARINA BOELE-WOELKI/ANGELIKA FUCHS, Antwerp – Oxford – New York, Intersentia, 2003, p. v. 1
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Mas, independentemente da consagração da união entre pessoas do mesmo sexo como casamento ou não, um outro problema que tem vindo a ser discutido é o da adoção por casais do mesmo sexo. Pretendemos aqui refletir o atual estado legislativo no nosso país perante tal questão. Aquilo que me proponho aqui trazer é, portanto, saber se, do ponto de vista jurídico, duas pessoas do mesmo sexo podem ou não adotar e, podendo, qual a modalidade da adoção.
II. Notas legais sobre o instituto da adoção a) Da adoção A adoção visa o superior interesse da criança e só deverá ser decretada se efetivamente tal interesse for alcançado. O processo de adoção inclui uma fase administrativa (no organismo competente da segurança social) e uma fase judicial (no tribunal). A apreciação das candidaturas cabe aos serviços de segurança social e é aqui que se apreciará a idoneidade dos candidatos a adotantes. Por si só, a inclinação sexual dos adotantes deveria ser irrelevante. Mas o legislador português considera que assim é no caso de adoção singular quando os adotantes (do mesmo sexo) vivam em união de facto, mas já não no caso de adoção conjunta. E se os adotantes homossexuais forem casados um com o outro a adoção está afastada qualquer que seja a sua modalidade. O art. 1586.º do Código Civil2 define a adoção, no âmbito das relações familiares, como o vínculo que, à semelhança da filiação natural, mas independentemente de laços de sangue, se estabelece legalmente entre duas pessoas nos termos dos arts. 1973.º e ss. O seu regime jurídico está, assim, previsto nos arts. 1973.º a 2002.º-D do Código Civil, com as alterações introduzidas por legislação avulsa (Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 maio, Decreto-Lei n.º 120/98, de 8 de maio, Leis n.º 135/99, de 28 de agosto, n.º 7/ /2001, de 11 de maio, e n.º 23/2010, de 30 de agosto, Lei n.º 31/2003, de 22 de agosto, e Lei n.º 28/2007, de 2 de agosto). A evolução legislativa do instituto da adoção, além de denotar as dificuldades na sua regulamentação, procurou equilibrar os interesses em jogo, sempre no sentido de facilitar o processo de adoção: por um lado, os interesses dos pais biológicos e, por outro lado, os dos adotantes, sendo certo que é sempre o su-
Sempre que no texto sejam citados artigos, sem indicação expressa do diploma a que pertencem, a menção reporta-se ao Código Civil. 2
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perior interesse da criança que deve prevalecer3. De facto, a reintrodução do instituto da adoção no Código Civil de 1966 implicou uma alteração no espírito do instituto: deve visar sempre o superior interesse da criança e não o do(s) adotante(s). A lei distingue duas modalidades de adoção: a plena e a restrita (art. 1977.º, n.º 1). Qualquer uma delas pode ser conjunta ou singular, isto é, feita por duas pessoas casadas ou a viver em união de facto ou por uma só pessoa, respetivamente. Não pretendemos aqui fazer uma análise dos pressupostos da adoção, mas convém, em todo o caso, referir que a adoção, independentemente da modalidade, está sujeita a pressupostos gerais, previstos nos arts. 1973.º a 1978.º-A. A adoção visa realizar o superior interesse da criança e será decretada quando apresente reais vantagens para o adotando, se funde em motivos legítimos, não envolva sacrifício injusto para os outros filhos do adotante e seja razoável supor que entre o adotante e o adotando se estabelecerá um vínculo semelhante ao da filiação (art. 1974.º, n.º 1)4. Além disso, o adotando deverá ter estado ao cuidado do adotante durante prazo suficiente5 para se poder avaliar da conveniência da constituição do vínculo (art. 1974.º, n.º 2). Quem pretender adotar deve apresentar candidatura no organismo de segurança social da área da sua residência (art. 5.º do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de maio), que procederá ao estudo da pretensão no prazo máximo de seis meses. Concluído o estudo da pretensão do candidato (que deverá incidir, nomeadamente, sobre a personalidade, a saúde, a idoneidade para criar e educar o menor e a situação familiar e económica do candidato a adotante e as razões determinantes do pedido de adoção), o organismo da segurança social profere decisão fundamentada sobre a pretensão e notifica-a ao interessado (art. 6.º do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de maio). Da decisão que rejeite a candidatura, recuse a entrega do menor ao candidato a adotante ou não confirme a permanência do menor a cargo, cabe recurso, a interpor no prazo de 30 dias, para o tribunal competente em matéria de família e menores da área da sede do organismo da segurança social (art. 7.º do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de maio).
3 Como refere ELIANA GERSÃO, «Adopção – mudar o quê?», in AAVV, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 833, poucos “institutos jurídicos terão sido objecto de tantas e tão significativas alterações legislativas num período de tempo relativamente curto”. Acrescenta ainda que todas as reformas foram no sentido do alargamento das situações em que pode ter lugar, muito embora o número de adoções decretadas não tenha sofrido uma alteração muito significativa. 4 Para a compreensão de cada um destes requisitos, v. M.ª CLARA SOTTOMAYOR, «Quem são os “verdadeiros” pais? Adopção plena de menor e oposição dos pais biológicos», in AAVV, Abandono e Adopção, Coimbra, Almedina, 2005, pp. 61-66. 5 Apesar de a lei não referir esse prazo, não podemos esquecer o período de seis meses da fase de pré-adoção a que se refere o art. 9.º do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de maio, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2003, de 22 de agosto.
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Se o adotando for filho do cônjuge do adotante, à comunicação prevista no art. 6.º do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de maio, seguir-se-á o período de pré-adoção, que não excederá três meses (art. 13.º do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de maio). Nos restantes casos, o candidato a adotante só pode tomar o menor a seu cargo, com vista a futura adoção, mediante confiança administrativa, confiança judicial ou medida de promoção e proteção de confiança a pessoa selecionada para adoção (art. 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de maio). A confiança administrativa resulta de decisão que entregue o menor6 ao candidato a adotante ou confirme a permanência do menor a seu cargo e só pode ser atribuída se não houver oposição, ou seja, se, após audição do representante legal e de quem tiver a guarda de direito e de facto do menor e, ainda, do menor com idade superior a 12 anos, resultar, inequivocamente, que estes não se opõem a tal decisão (art. 8.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de maio). O organismo de segurança social deve comunicar, em cinco dias, ao Ministério Público junto do Tribunal de Família e Menores da área de residência do menor a decisão relativa à confiança administrativa e os respetivos fundamentos (bem como a oposição que tenha impedido a confiança); efetuar as comunicações necessárias à Conservatória do Registo Civil onde estiver lavrado o assento de nascimento do menor, para efeitos de preservação do segredo de identidade previsto no art. 1985.º do Código Civil; emitir e entregar ao candidato a adotante certificado da data em que o menor lhe foi confiado (art. 8.º, n.º 6, do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de maio). O candidato a adotante que, mediante confiança administrativa, haja tomado o menor a seu cargo com vista a futura adoção pode requerer ao tribunal a sua designação como curador provisório do menor até ser decretada a adoção [art. 163.º da Organização Tutelar de Menores (OTM)]. Por seu lado, o tribunal pode confiar, com vista a futura adoção, o menor a casal, a pessoa singular ou a instituição quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, pela verificação de qualquer das situações previstas no art. 1978.º, n.º 1, do Código Civil: a) se o menor for filho de pais incógnitos ou falecidos; b) se tiver havido consentimento prévio para a adoção; c) se os pais tiverem abandonado o menor; d) se os pais, por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave7 a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento do menor; e) se os pais do menor acolhido por um particular ou por uma instituição tiverem reve-
Que, nos termos do art. 1982.º, n.º 3, e do n.º 2 do referido art. 8.º, terá de ter idade superior a seis semanas. 7 Considera-se que o menor se encontra em perigo se se verificar alguma das situações assim qualificadas pela Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP – Lei n.º 147/99, de 1 de setembro). 6
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lado manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade daqueles vínculos, durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança. Têm legitimidade para requerer a confiança judicial do menor o Ministério Público, o organismo de segurança social da área de residência do menor, a pessoa a quem o menor tenha sido administrativamente confiado e o diretor do estabelecimento público ou a direção da instituição particular que o tenha acolhido, bem como o candidato a adotante selecionado pelos serviços competentes, quando, por virtude de anterior decisão judicial, tenha o menor a seu cargo, e o candidato a adotante selecionado pelos serviços competentes, quando, tendo o menor a seu cargo e reunidas as condições para a atribuição da confiança administrativa, o organismo de segurança social não decida pela confirmação da permanência do menor, depois de efetuado o estudo da pretensão para a adoção ou decorrido o prazo para esse efeito (art. 1978.º, n.os 5 e 6, do Código Civil). Requerida a confiança judicial do menor, são citados para contestar, salvo se tiverem prestado consentimento prévio8, os pais e, sendo caso disso, os parentes ou o tutor referidos no art. 1981.º do Código Civil, e o Ministério Público, quando não for o requerente (art. 164.º, n.º 1, da OTM). Uma vez requerida a confiança judicial, o tribunal, ouvidos o Ministério Público e o organismo de segurança social da área da residência do menor, quando não forem requerentes, poderá atribuir a guarda provisória do menor ao candidato à adoção, sempre que for de concluir pela probabilidade séria de procedência da ação (art. 166.º da OTM). O juiz procederá às diligências que considerar necessárias à decisão sobre a confiança judicial, sendo o processo de confiança judicial apensado ao de adoção (art. 165.º, n.os 1 e 4, da OTM). Na sentença que decida a confiança judicial, o tribunal designa curador provisório ao menor, que exercerá funções até ser decretada a adoção ou instituída a tutela, que será a pessoa a quem o menor tiver sido confiado (art. 167.º da OTM). Repare-se que, nos termos do art. 1978.º-A do Código Civil, decretada a confiança judicial (ou a medida de promoção e proteção de confiança a pessoa selecionada para a adoção ou a instituição com vista a futura adoção), os pais ficam inibidos do exercício das responsabilidades parentais. Com efeitos semelhantes à confiança judicial, a medida de confiança a pessoa selecionada para a adoção ou a instituição com vista a futura adoção, aplicável nas situações em que a criança ou o jovem se encontram numa situação de perigo, à luz dos arts. 3.º e 35.º, alínea g), da LPCJP, e quando se verifique alguma das situações previstas 8
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A que se refere o art. 162.º da OTM.
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no art. 1978.º do Código Civil, a que já fizemos referência supra, consiste na colocação da criança ou do jovem sob a guarda de candidato selecionado para a adoção pelo competente organismo de segurança social ou na colocação da criança ou do jovem sob a guarda de instituição com vista a futura adoção (art. 38.º-A da LPCJP). Trata-se de uma medida de promoção e proteção que apenas pode ser decretada pelo tribunal e não pelas comissões de proteção (art. 38.º da LPCJP), seguindo a tramitação prevista nos arts. 100.º e ss. da LPCJP. O processo de promoção e proteção onde tenha sido aplicada a medida de promoção e proteção de confiança a pessoa selecionada para a adoção ou a instituição com vista a futura adoção é apensado ao de adoção (art. 173.º-G da OTM). Estabelecida a confiança administrativa, a confiança judicial ou a confiança a pessoa selecionada para a adoção, o organismo de segurança social procede ao acompanhamento da situação do menor durante um período de pré-adoção não superior a seis meses e à realização de inquérito que incidirá, nomeadamente, sobre a personalidade e a saúde do adotante e do adotando, a idoneidade do adotante para criar e educar o adotando, a situação familiar e económica do adotante e as razões determinantes do pedido de adoção (art. 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de maio, e art. 1973.º, n.º 2, do Código Civil). Quando considere verificadas as condições para ser requerida a adoção, ou decorrido o período de pré-adoção, o organismo de segurança social elabora, em 30 dias, o relatório do inquérito, notificando o candidato a adotante do seu resultado (art. 9.º, n.os 2 e 3, do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de maio). Após tal notificação, ou decorrido o prazo de elaboração do relatório, a adoção pode ser requerida, devendo sê-lo dentro do prazo de um ano (art. 10.º do Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de maio). O processo judicial de adoção segue a tramitação prevista nos arts. 168.º e ss. da OTM. Uma vez definidos os requisitos gerais e o processo de adoção, a lei distingue os pressupostos e efeitos específicos de cada uma das modalidades de adoção. Não pretendemos, também aqui, proceder a uma análise de tais requisitos e efeitos, mas apenas aqueles que relevam para a nossa análise. Assim, veremos os requisitos quanto à capacidade dos adotantes. De acordo com os arts. 1979.º do Código Civil e 7.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio (com as alterações introduzidas pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto), podem adotar plena e conjuntamente duas pessoas casadas há mais de quatro anos, e não separadas de pessoas e bens ou separadas de facto, ou a viver em união de facto por igual
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período de tempo, se ambas tiverem mais de 25 anos e menos de 60 anos9. Por seu lado, qualquer pessoa que tenha mais de 30 anos ou, se o adotando for filho do cônjuge do adotante, mais de 25 anos, e menos de 60 anos, pode adotar singularmente. A criança adotada plenamente10 adquire a situação de filho do adotante e integra-se com os seus descendentes na família deste, rompendo os laços com a sua família biológica. Todavia, se um dos cônjuges adota o filho do outro, mantêm-se as relações entre o adotado e o cônjuge do adotante e os respetivos parentes (art. 1986.º do Código Civil). Por outro lado, e quanto à adoção restrita, dispõe o art. 1992.º do Código Civil que pode adotar quem tiver mais de 25 anos e menos de 60 anos à data em que o menor lhe tenha sido confiado11, salvo se o adotando for filho do cônjuge do adotante. Os efeitos da adoção restrita são muito mais limitados, circunscrevendo-se aos previstos nos arts. 1994.º a 2002.º-A do Código Civil, mantendo o adotado os laços com a família biológica. Como podemos comprovar das breves notas em torno do regime jurídico da adoção, a lei admite a adoção (singular) por um dos cônjuges ou unido de facto do filho do outro cônjuge ou unido de facto. Não havendo aí qualquer menção à orientação sexual dos candidatos a adotantes, devemos, todavia, articular tais normas com a noção de casamento e de união de facto e, em especial, com os arts. 3.º da Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, e 7.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio (com as alterações introduzidas pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto).
9 A partir dos 50 anos, a diferença de idades entre o adotante e o adotando não pode ser superior a 50 anos, a não ser quando, a título excecional, motivos ponderosos o justifiquem, nomeadamente por se tratar de uma fratria em que relativamente apenas a algum ou alguns dos irmãos se verifique uma diferença de idades superior àquela (art. 1979.º, n.os 3 e 4, do Código Civil). 10 Nos termos do art. 1980.º do Código Civil, podem ser adotados plenamente os menores filhos do cônjuge do adotante e aqueles que tenham sido confiados ao adotante mediante confiança administrativa, confiança judicial ou medida de promoção e proteção de confiança a pessoa selecionada para a adoção, que tenham menos de 15 anos à data da petição inicial de adoção. Poderá, no entanto, ser adotado quem, a essa data, tenha menos de 18 anos e não se encontre emancipado quando, desde idade não superior a 15 anos, tenha sido confiado aos adotantes ou a um deles ou quando for filho do cônjuge do adotante. 11 Quer na adoção plena quer na restrita, o adotante que tiver mais de 60 anos só pode adotar se a criança lhe tiver sido confiada antes de perfazer os 60 anos ou se for filho do cônjuge (arts. 1979.º, n.º 5, e 1992.º, n.º 2).
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b) Interpretação do art. 7.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio (alterada pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto), e do art. 3.º da Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, e a possibilidade de adoção por pessoas do mesmo sexo Na Europa, a adoção por casais do mesmo sexo começou por ser permitida na Holanda (desde 2001), na Suécia (desde 2003) e em Espanha (desde 2005). Entretanto, a admissibilidade de adoção por casais do mesmo sexo foi também aceite noutros países, como na Bélgica e Islândia, na Noruega, na Dinamarca, em França, em Andorra e no Reino Unido. Fora da Europa, o Canadá admite-a, desde 2005, o Uruguai, desde 2009, a Argentina e a cidade do México, desde 2010, alguns estados dos EUA e da Austrália e a África do Sul. Por outro lado, há ordenamentos jurídicos que, afastando a adoção, admitem a coadoção por casais do mesmo sexo. É o caso da Alemanha, da Áustria, da Finlândia, da Gronelândia e da Tasmânia. Entre nós, é admitida a adoção singular sem distinguir a orientação sexual do candidato a adotante. Tal não invalida que isso seja tomado em consideração pelos serviços de segurança social que apreciam os pedidos de adoção. Mas já não é permitida a adoção conjunta de casais homossexuais que vivam em união de facto (v. art. 7.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto), tal como não é permitida a duas pessoas do mesmo sexo casadas (art. 3.º da Lei n.º 9/2010, de 31 de maio). O art. 7.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio (com as alterações introduzidas pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto, mas que nesta matéria nada alterou), abriu a possibilidade de adoção conjunta, tal como se fossem casadas, a duas pessoas, de sexo diferente, que vivam em união de facto12. Determina o artigo que é reconhecido às pessoas de sexo diferente que vivam em união de facto o direito de adoção em condições análogas às previstas no art. 1979.º do Código Civil (relativo à adoção plena, conjunta ou singular), sem prejuízo das disposições legais respeitantes à adoção por pessoas não casadas (abrangendo a adoção singular, plena ou restrita). Portanto, só podem adotar plena e conjuntamente duas pessoas de sexo diferente, mas nada impede que uma pessoa que viva em união de facto com outra pessoa do mesmo sexo possa adotar singularmente uma criança. Assim, e considerando-se a adoção por um cônjuge do filho do outro cônjuge como adoção singular, a lei não parece proibir que esta ocorra no caso de uniões entre pessoas do mesmo sexo.
No caso de união de facto entre pessoas do mesmo sexo, qualquer um dos conviventes pode adotar singularmente. Não podem é os dois conviventes do mesmo sexo adotar como casal. 12
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Por seu lado, o art. 3.º da Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, que veio permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo, exclui a possibilidade de adoção, em qualquer das suas modalidades, por pessoas casadas com cônjuge do mesmo sexo. A ressalva que é feita no art. 7.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, não aparece aqui, ou seja, a lei parece excluir que duas pessoas do mesmo sexo possam adotar conjuntamente bem como que qualquer uma delas possa adotar singularmente, incluindo a adoção singular do filho do cônjuge13. O que é correto afirmar é que, quer estejam casadas quer vivam em união de facto, duas pessoas do mesmo sexo não podem adotar conjuntamente. O processo de candidatura dos adotantes, a apreciar pelo organismo da segurança social competente, não refere o sexo dos adotantes como critério a ponderar. Por outro lado, o processo de adoção em si deve visar os requisitos previstos no art. 1974.º do Código Civil, e já referidos. Se a adoção deve centrar-se na criança, sujeito de direitos, e no seu superior interesse, talvez fosse de condicionar a adoção a esse mesmo interesse e aferir, no caso concreto, se aquele casal, composto por pessoas do mesmo sexo, assegurará as melhores condições de vida e de crescimento àquela criança. Talvez seja de olhar o instituto numa outra perspetiva, ou seja, quererá a criança adotar aqueles pais? Como refere EDUARDO SÁ, é profundamente difícil para uma criança adotar os pais14. E, nesta perspetiva, o que releva é saber se teremos verdadeiros pais ou mães e não se são do mesmo sexo ou de sexo diferente. c) Outras referências legais (o recurso a técnicas de PMA, o acolhimento familiar à luz da LPCJP e o apadrinhamento civil) As limitações impostas à adoção, pelos arts. 7.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, e 3.º da Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, são pretensamente justificadas pelo próprio interesse da criança: não seria no interesse da criança ser educada por um casal do mesmo sexo, não teria as necessárias referências de um pai e de uma mãe, viria a assumir os comportamentos homossexuais dos adotantes, etc. Mas essas razões não implicaram que aquelas limitações se estendessem, pelo menos expressamente, a outros institutos onde a criança será também educada por um casal composto por pessoas do mesmo sexo. Na verdade, a lei refere-se apenas à ado-
Se um casal do mesmo sexo pretendesse adotar uma criança, não o podendo fazer conjuntamente, sempre poderia um dos membros adotar singularmente se viver em união de facto, mas já não se fosse casado. 14 EDUARDO SÁ, «A adopção e o nascimento da família», in AAVV, Abandono e Adopção, Coimbra, Almedina, 2005, p. 48. 13
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ção, não tendo havido qualquer alteração, por força do reconhecimento do casamento ou da união de facto entre pessoas do mesmo sexo, às normas reguladoras dos beneficiários das técnicas de procriação medicamente assistida (PMA), do acolhimento familiar ou do apadrinhamento civil. De facto, o art. 6.º da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho (Lei da PMA), determina que só as pessoas casadas que não se encontrem separadas de pessoas e bens ou separadas de facto ou as que, sendo de sexo diferente, vivam em condições análogas às dos cônjuges há pelo menos dois anos podem recorrer às técnicas de PMA. Apesar de outras questões poderem suscitar-se a este propósito, nomeadamente, o acesso a técnicas de PMA por mulheres sós15, restringimo-nos aqui à questão do acesso à procriação medicamente assistida por casais homossexuais. Os requisitos da PMA devem ser, senão mais exigentes16, semelhantes aos da adoção, no sentido de salvaguarda do superior interesse da criança que, no caso da PMA, será ainda gerada por força de tais técnicas e que deverá nascer no seio de um ambiente familiar dito normal (com um pai e uma mãe e não órfã à nascença de um deles). Repare-se que, apesar de o art. 6.º da LPMA não o dizer expressamente (não tendo sido objeto de alteração legislativa na sequência do reconhecimento jurídico do casamento entre pessoas do mesmo sexo), aos casais homossexuais, casados ou em união de facto, está vedado o acesso às técnicas de PMA. Em primeiro lugar, por força de uma interpretação extensiva e atualista do próprio art. 6.º. De facto, se se exclui o recurso a técnicas de PMA a casais do mesmo sexo que vivam em união de facto, o mesmo valerá para tais casais que estejam casados um com o outro. Aliás, o legislador não o terá dito na medida em que, na altura, o casamento estava vedado aos casais do mesmo sexo. Em segundo lugar, o estabelecimento da filiação, natural ou por recurso a técnicas de PMA, assenta na biparentalidade heterossexual, além de que, e em terceiro lugar, como vimos, a adoção conjunta está vedada a casais homossexuais17. Finalmente, sempre se poderia chegar à mesma conclusão por força do art. 4.º da LPMA, relativo às condições de admissibilidade. De facto, a uti-
15 V. JORGE DUARTE PINHEIRO, O Direito da Família Contemporâneo, 3.ª ed., 2.ª reimpressão, Lisboa, AADFL, 2012, pp. 246-248. CARLOS PAMPLONA CORTE-REAL/JOSÉ SILVA PEREIRA, Direito da Família – tópicos para uma reflexão crítica, Lisboa, AAFDL, 2008, pp. 135, 156 e 157, consideram que o art. 6.º da LPMA, ao excluir o recurso às técnicas de PMA a mulheres sós e aos casais homossexuais, é inconstitucional, por violação dos arts. 13.º, n.º 2, 26.º e 27.º da Constituição da República Portuguesa (CRP). 16 JORGE DUARTE PINHEIRO, O Direito da Família Contemporâneo, cit., pp. 248-251, considera mesmo que os requisitos devem ser mais rigorosos do que os da adoção e, por isso, as exigências feitas na lei para a adoção conjunta (idade mínima de 25 anos e duração mínima de quatro anos do casamento ou da união de facto) deveriam aplicar-se à PMA. 17 V. JORGE DUARTE PINHEIRO, O Direito da Família Contemporâneo, cit., p. 249.
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lização das técnicas só pode verificar-se mediante diagnóstico de infertilidade, o que pode não acontecer (e na generalidade dos casos não acontecerá) com casais homossexuais. Quanto ao acolhimento familiar, trata-se de uma medida de promoção e proteção, prevista nos arts. 35.º, alínea e), e 46.º a 48.º da LPCJP, e cujo regime de execução consta do Decreto-Lei n.º 11/2008, de 17 de janeiro. Consiste na atribuição da confiança da criança ou do jovem a uma pessoa singular ou a uma família, habilitadas para o efeito, visando a sua integração em meio familiar e a prestação de cuidados adequados às suas necessidades e bem-estar e a educação necessária ao seu desenvolvimento integral (art. 46.º, n.º 1, da LPCJP). Podem constituir-se famílias de acolhimento em lar familiar ou em lar profissional (art. 47.º, n.º 1, da LPCJP). A família de acolhimento em lar profissional é constituída por uma ou mais pessoas com formação técnica adequada (art. 47.º, n.º 3, da LPCJP), destinando-se a crianças e jovens com problemáticas e necessidades especiais relacionadas, nomeadamente, com situações de deficiência, doença crónica e problemas do foro emocional e comportamental, que exijam uma especial preparação e capacidade técnica (art. 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 11/2008, de 17 de janeiro). Relevante para o tema aqui em estudo são as famílias de acolhimento em lar familiar. Considera-se que constituem uma família, para efeitos do lar familiar, duas pessoas casadas entre si ou que vivam uma com a outra há mais de dois anos em união de facto ou parentes que vivam em comunhão de mesa e habitação (art. 46.º, n.º 2, da LPCJP). Ora, a lei não exclui, assim, que possam habilitar-se como família de acolhimento duas pessoas do mesmo sexo casadas ou a viver em união de facto. Na verdade, o legislador não veio especificar se as pessoas casadas ou que vivam em união de facto devem ser de sexo diferente, abrindo, portanto, a possibilidade de serem do mesmo sexo. Pensamos, todavia, que é necessário, mais uma vez, uma interpretação atualista da norma. De facto, a LPCJP regulou o acolhimento familiar, reportando-se à realidade existente na altura, ou seja, a casamento ou uniões de facto entre pessoas de sexo diferente. Ao admitir-se o casamento e a união de facto entre pessoas do mesmo sexo, a omissão do legislador à matéria do acolhimento familiar como medida de promoção e proteção (não procedendo a qualquer alteração legislativa) poderá, no contexto legislativo global, considerar-se esquecimento do legislador18. Mas mesmo que assim não seja, o acolhimento familiar, como medida de proteção, não é permanente nem visa a consti-
Em todo o caso, não parece errado, atendendo à omissão da lei, admitir a habilitação de casais do mesmo sexo para efeitos da medida de acolhimento familiar. 18
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tuição de laços afetivos entre a criança ou o jovem e a família de acolhimento, ao contrário do que acontece com a adoção ou o apadrinhamento civil. A Lei n.º 103/2009, de 11 de setembro, aprovou o regime jurídico do apadrinhamento civil. O seu art. 2.º define o apadrinhamento civil como “uma relação jurídica, tendencialmente de carácter permanente, entre uma criança ou jovem e uma pessoa singular19 ou uma família que exerça os poderes e deveres próprios dos pais e que com ele estabeleçam vínculos afectivos que permitam o seu bem-estar e desenvolvimento, constituída por homologação ou decisão judicial e sujeita a registo civil”20. O novo instituto terá sido criado tendo em vista fundamentalmente as crianças e jovens em perigo (à luz do art. 3.º da LPCJP), colocadas em instituições de acolhimento, que não se encontrem em situação de adotabilidade, seja por não serem encaminhados para adoção, seja por não serem adotados. De facto, as crianças encaminhadas para a adoção (plena) são normalmente as de pouca idade, para as quais existem candidatos a adotantes, e em relação às quais não é de todo viável a inserção na família biológica. Em relação àquelas crianças ou jovens cujo vínculo com a família biológica não esteja completamente comprometido ou que, por motivos vários, como sejam a idade, o passado problemático, não haja candidatos a adotantes que tornem provável a adoção das mesmas, a lei não previa qualquer outra solução que não a institucionalização21. O apadrinhamento civil visa dar uma resposta alternativa a essas mesmas crianças e jovens. O apadrinhamento civil permite a criação de laços afetivos entre a criança ou jovem e uma pessoa singular ou uma família, que passa a exercer as responsabilidades parentais em relação à criança ou jovem (salvo a existência de limitações previstas no compromisso de apadrinhamento civil ou na decisão judicial – art. 7.º, n.º 1, da Lei n.º 103/2009, de 11 de setembro), sem que a criança ou jovem seja adotado e sem que se quebrem os laços com a sua família biológica22. O objetivo é, nestas condições, permitir
A relação de apadrinhamento civil pode ser alargada ao cônjuge ou à pessoa que viva em união de facto com quem tenha apadrinhado civilmente uma criança ou jovem, desde que efetuada a respetiva habilitação. O alargamento corre no processo em que foi constituída a relação de apadrinhamento inicial, por decisão ou homologação (art. 6.º do Decreto-Lei n.º 121/2010, de 27 de outubro). 20 O vínculo de apadrinhamento civil é sempre constituído pelo tribunal a quem cabe homologar o compromisso de apadrinhamento civil ou proferir decisão a constituir tal relação (arts. 13.º e 18.º da Lei n.º 103/2009, de 11 de setembro). 21 V. HELENA GOMES DE MELO/JOÃO VASCONCELOS RAPOSO/LUÍS BAPTISTA CARVALHO/MANUEL DO CARMO BARGADO/ANA TERESA LEAL/ FELICIDADE D’OLIVEIRA, Poder paternal e responsabilidades parentais, 2.ª ed., Lisboa, Quid Juris, 2010, pp. 226 e 227. 22 De facto, e conforme resulta da anotação do Observatório Permanente da Adoção, embora os padrinhos substituam, no exercício das responsabilidades parentais, os pais, o apadrinhamento não aspira a igualar-se à relação de parentalidade. Assim, “os padrinhos assumirão o papel que geralmente lhes está associado na linguagem corrente: são pessoas que não se confundem com os pais, que não assumem o estatuto de pais, mas que desempenham as funções de pais sempre que estes não possam fazê-lo. No fundo, em linguagem corrente, o padrinho identifica-se com ‘aquele que acolhe’ ou ‘aquele que protege’” 19
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o bem-estar e desenvolvimento da criança num ambiente familiar alternativo à sua família biológica, mas sem romper os laços com esta. Por isso, o vínculo que se gera é permanente (art. 24.º da Lei n.º 103/2009, de 11 de setembro) ou tendencialmente permanente, uma vez que não implica adoção plena da criança ou do jovem e admite revogação (art. 25.º da Lei n.º 103/2009, de 11 de setembro). Por outro lado, assentando o apadrinhamento civil no estabelecimento de vínculos afetivos, enquanto subsistir um apadrinhamento civil não pode constituir-se outro quanto ao mesmo afilhado, exceto se os padrinhos viverem em família (art. 6.º da Lei n.º 103/2009, de 11 de setembro). Como resulta da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 253/X, o apadrinhamento civil é uma relação jurídica nova que se acrescenta à adoção e à tutela, constituindo um minus em relação à adoção e um plus relativamente à tutela23. De facto, o apadrinhamento não implica um corte com a família biológica do afilhado, como na adoção plena (art. 1986.º do Código Civil), nem sequer se exigem os mesmos pressupostos da adoção restrita (quer em relação ao adotado como em relação ao adotante, quer ainda em relação aos requisitos e forma de constituição), nem produz alguns dos efeitos atribuídos à mesma adoção (como em matéria de apelidos, efeitos sucessórios e administração do património da criança ou do jovem – arts. 1995.º a 1999.º do Código Civil)24. Por outro lado, o apadrinhamento visa a integração familiar do afilhado junto dos padrinhos e constitui, em princípio, um vínculo permanente (arts. 2.º e 24.º da Lei n.º 103/2009, de 11 de setembro), ao contrário da tutela que, visando suprir as responsabilidades parentais, termina com a maioridade (art. 1961.º, alínea a), do Código Civil)25. Tendo essencialmente em vista as crianças e jovens institucionalizados e cujo projeto de vida não passa pela adoção, o apadrinhamento civil procura dar resposta alternativa a essas mesmas crianças e jovens, pela integração familiar normal do afilhado junto dos padrinhos (art. 20.º, n.º 4)26. E, estando em causa o projeto de vida destas
(OBSERVATÓRIO PERMANENTE DA ADOÇÃO, Regime Jurídico do Apadrinhamento Civil Anotado, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 8). 23 JORGE DUARTE PINHEIRO, O Direito da Família Contemporâneo, cit., p. 771. No mesmo sentido, v. TOMÉ D’ALMEIDA RAMIÃO, Apadrinhamento Civil. Anotado e Comentado, Lisboa, Quid Juris, 2011, p. 10. 24 O apadrinhamento civil não tem qualquer consequência ao nível dos apelidos do afilhado nem produz efeitos sucessórios entre padrinhos e afilhado. Por outro lado, as limitações ao exercício das responsabilidades parentais em matéria de administração dos bens do afilhado são maiores do que na adoção restrita, aplicando-se as restrições previstas para o tutor (art. 7.º da Lei n.º 103/2009, de 11 de setembro). 25 No mesmo sentido, v. JORGE DUARTE PINHEIRO, O Direito da Família Contemporâneo, ibidem. 26 Apesar de visar essencialmente a criança ou o jovem institucionalizado, o apadrinhamento civil pode ser usado noutras situações. De facto, e como referem HELENA GOMES DE MELO/JOÃO VASCONCELOS RAPOSO/LUÍS BAPTISTA CARVALHO/MANUEL DO CARMO BARGADO/ANA TERESA LEAL/ FELICIDADE D’OLIVEIRA, Poder paternal e responsabilidades parentais, cit., p. 251, o apadrinhamento visa dar resposta a certas situações até agora sem cobertura legal, como sejam os casos de pais que pretendem que os seus filhos vão estudar para o estrangeiro, para casa de familiares, e pretendem que estes cuidem dos filhos e os representem ou o caso de pais que emigram para o estrangeiro, não podendo levar consigo os filhos por não terem condições 42
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crianças ou jovens, o superior interesse da criança impõe a existência de um processo de habilitação dos padrinhos tendente a aferir a idoneidade e a autonomia de vida das pessoas que pretendem apadrinhar. A primeira dúvida que aqui pode surgir é se o conceito de família abrange todas as formas de constituição de família, ou seja, se, à luz do art. 1576.º do Código Civil e do art. 36.º, n.º 1, da CRP, além do casamento, abrange também o parentesco, a afinidade e a adoção. Ora, pela noção dada do apadrinhamento civil, não especificando o legislador em que consiste a família, nada obsta a que as pessoas unidas por qualquer uma dessas relações familiares sejam padrinhos. De facto, ao contrário do que se dispõe quanto ao acolhimento familiar, como medida de promoção e proteção, no art. 46.º, n.º 2, da LPCJP, o legislador não veio considerar, no apadrinhamento civil, que constituem uma família duas pessoas casadas entre si ou que vivam uma com a outra há mais de dois anos em união de facto ou parentes que vivam em comunhão de mesa e habitação. Assim, qualquer das formas referidas de constituição de família está incluída, para efeitos de habilitação, no apadrinhamento civil. Além disso, tal noção de família abrange também as novas formas de família, onde podem incluir-se as famílias de facto (assentes numa união de facto ou numa relação não matrimonial hetero ou homossexual), as famílias monoparentais, as famílias recombinadas ou pluriparentais, etc.27. Sendo assim, ao falarmos no apadrinhamento civil como a relação constituída entre uma família e uma criança ou um jovem, abrangemos todas estas formas de constituição de família. Por outro lado, e centrando-nos no problema em análise, quer o casamento quer a união de facto são definidos como um contrato ou uma situação jurídica entre duas pessoas independentemente do sexo. Podemos, assim, ter uma família constituída por duas pessoas do mesmo sexo casadas ou que vivam em união de facto. Poderá tal família apadrinhar?
económicas para o fazer, e deixam-nos a cargo de familiares. Não se verificando os pressupostos do instituto da tutela (art. 1921.º do Código Civil), é normalmente através de procuração que estes pais dão poderes a terceiros para exercerem as responsabilidades parentais relativas aos filhos e os representarem junto de diversas entidades públicas e privadas. O problema é que estas entidades não têm aceitado os poderes conferidos por tal procuração. “O instituto do apadrinhamento civil, através de compromisso homologado pelo tribunal poderá, nos referidos casos, colmatar o vazio legal existente [...]” (p. 252). É evidente que tudo isto será possível dada a faculdade conferida no art. 11.º, n.º 2, de os pais poderem escolher os padrinhos, mas sempre sem prejuízo da devida habilitação destes últimos. 27 V. SUSANA ALMEIDA, O respeito pela vida (privada e) familiar na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem: a tutela das novas formas de família, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pp. 155 e ss. Apresentando os resultados de uma associação americana com o elenco das relações do tipo família, v. também, HELENA BOLIEIRO/PAULO GUERRA, A Criança e a Família – uma Questão de Direito(s), Coimbra, Coimbra Editora, 2009, pp. 531 e ss. 43
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A Lei n.º 103/2009, de 11 de setembro, nada refere a este propósito, uma vez que remete a regulamentação da habilitação dos padrinhos para outro diploma (art. 33.º). Ora, o diploma regulamentador, o Decreto-Lei n.º 121/2010, de 27 de outubro, definindo os procedimentos para a habilitação dos padrinhos, considera, no n.º 4 do art. 3.º, que, para efeitos de ponderação, além dos fatores de habilitação referidos no n.º 1 do mesmo artigo, deve ter-se em consideração o disposto no art. 3.º da Lei n.º 9/2010, de 31 de maio28, e no art. 7.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, que já foram objeto de análise. Ao remeter para a referida legislação, o n.º 4 do art. 3.º vem apenas considerar que o facto de uma pessoa estar casada ou viver em união de facto com outra do mesmo sexo não proíbe a habilitação de tais pessoas, enquanto família, como padrinhos, com vista à constituição de uma relação de apadrinhamento civil. Apenas se ponderará o facto de serem do mesmo sexo (casadas ou a viver em união de facto) como mais um fator de habilitação ao lado de outros como a personalidade, maturidade, situação económica e profissional, etc. Tal solução levará a que seja admitida a habilitação de tais pessoas como padrinhos nuns casos e recusada noutros. Mas, a interpretação que mais se articula com o art. 3.º da Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, e com o art. 7.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, talvez seja a de que a ponderação a que se refere o n.º 4 do art. 3.º deverá ser negativa, isto é, verificando-se que o casal é constituído por pessoas do mesmo sexo, a habilitação como padrinhos deverá ser recusada, tal como não é admitida a adoção conjunta das mesmas pessoas. De facto, não vemos diferença, do ponto de vista dos interesses da criança, entre a atribuição da confiança da criança a tais casais para adoção e a constituição de uma relação de apadrinhamento civil que se traduzirá na entrega da criança aos mesmos casais. Os vínculos afetivos estabelecidos serão os mesmos29. Não que sejamos contra a adoção por pessoas
O n.º 4 em análise refere-se à Lei n.º 9/2010, de 31 de março, o que terá sido lapso do legislador, uma vez que a lei que veio permitir o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo é de 31 de maio. 29 E não parece ser argumento afirmar que, no caso do apadrinhamento civil, sempre existirá uma referência a casal de sexo diferente, uma vez que os pais mantêm o contacto com a criança, apresentado por quem encontra aspetos negativos na adoção por casais do mesmo sexo. É que também no apadrinhamento civil os padrinhos são as pessoas de referência da criança ou do jovem. Sobre a figura primária de referência, ou seja, a pessoa que cuida da criança no dia a dia e com quem a criança estabelece uma relação emocional mais significativa, v. M.ª CLARA SOTTOMAYOR, Regulação do exercício das responsabilidades parentais nos casos de divórcio, 5.ª ed., Coimbra, Almedina, 2011, pp. 57 e ss., e «Quem são os “verdadeiros” pais?...», cit., pp. 62 e 63. Afastando claramente a possibilidade de casais homossexuais, casados ou a viverem em união de facto, poderem apadrinhar, pronunciam-se HELENA GOMES DE MELO/JOÃO VASCONCELOS RAPOSO/LUÍS BAPTISTA CARVALHO/MANUEL DO CARMO BARGADO/ANA TERESA LEAL/ FELICIDADE D’OLIVEIRA, ob. cit., p. 231. TOMÉ D’ALMEIDA RAMIÃO, Poder paternal e responsabilidades parentais, cit., pp. 15 e 51, vai ainda mais longe nessa exclusão, considerando que não é possível uma pessoa casada ou a viver em união de facto com outra do mesmo sexo apadrinhar singularmente ou como casal uma criança ou um jovem. 28
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do mesmo sexo30, mas se esta não é permitida, o apadrinhamento civil, traduzindo uma relação afetiva idêntica, também não deverá sê-lo. A solução apresentada para o apadrinhamento civil, no n.º 4 do art. 3.º do Decreto-Lei n.º 121/2010, de 27 de Outubro, é a que deveria ter sido encontrada para a adoção por casais do mesmo sexo e não a sua absoluta proibição. Porém, e por uma questão de coerência, se se proíbe a adoção não se percebe a possibilidade de apadrinhamento conferida aos mesmos casais. Ou será tal solução uma porta aberta a uma futura alteração no sentido de admissibilidade também da adoção conjunta? d) A coadoção – Projeto de Lei n.º 278/XII “Nos últimos anos tem-se tornado cada vez mais claro o aumento do número de casais do mesmo sexo, casados ou unidos de facto, que constituem família e cujos filhos, biológicos ou adotados, crescem num contexto familiar desprovido de proteção jurídica adequada. Com vista a dar uma resposta clara ao problema, o presente projeto de lei destina-se a oferecer um quadro jurídico mais seguro a situações residuais não solucionadas por institutos conhecidos como o da adoção”31. O Projeto de Lei n.º 278/XII, discutido e aprovado na generalidade na Assembleia da República, procurou dar resposta a casos reais “já consumados” de famílias homoparentais onde apenas um dos membros está biologicamente ou por adoção ligado a uma criança que vive com esse casal. “Todos conhecem estas famílias, famílias em que alguém adota singularmente, casando mais tarde ou vivendo em união de facto, sendo este cônjuge ou este unido de facto, na realidade, tão pai ou tão mãe de facto e nos afetos como quem detém o vínculo jurídico da parentalidade”32. Trata-se, portanto, de traduzir para a realidade jurídica, com os respetivos efeitos, uma situação que já existe na realidade de facto. Consagra-se, assim, a possibilidade de coadoção pelo cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo do filho, biológico ou
30 Já tivemos oportunidade de manifestar a nossa opinião quanto aos casamentos entre pessoas do mesmo sexo, no estudo «O casamento como contrato celebrado entre duas pessoas (de sexo diferente ou do mesmo sexo (!)», in AAVV, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, vol. III, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 353 e ss., afirmando-nos contra tal alteração legislativa. Mas temos posição diferente em matéria de adoção. De facto, o que deve pautar a adoção é o superior interesse da criança e tudo dependerá da análise concreta dos candidatos a adotantes. 31 Projeto de Lei n.º 278/XII, aprovado na generalidade na Assembleia da República, a 17 de maio de 2013, e rejeitado na especialidade (não chegando, assim, à votação final global) a 14 de março de 2014. 32 Projeto de Lei n.º 278/XII.
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adotivo, do outro cônjuge ou unido de facto33. Pretende-se acautelar determinadas situações que ponham em causa a segurança, o bem-estar e o superior interesse da criança, nomeadamente, no caso da morte do pai/mãe. Prevê-se, assim, que, quando duas pessoas do mesmo sexo sejam casadas ou vivam em união de facto, exercendo uma delas responsabilidades parentais em relação a um menor, por via da filiação ou adoção, o cônjuge ou unido de facto possa coadotar o referido menor, desde que não exista um segundo vínculo de filiação estabelecido em relação ao menor, aplicando-se subsidiariamente as regras sobre adoção do filho do cônjuge previstas no Código Civil (art. 2.º do Projeto de Lei n.º 278/XII). Repare-se que se trata de uma adoção singular e plena34 (v. art. 4.º do Projeto de Lei n.º 278/XII), adquirindo a criança o estatuto jurídico de filho do adotante, mantendo, todavia, e nos termos do art. 1986.º, n.º 2, do Código Civil, os laços com o cônjuge do adotante. O que se veio admitir foi a adoção singular por um dos membros do casal do mesmo sexo do filho (biológico ou adotivo) do outro, o que já estava previsto no regime de adoção (v. arts. 1979.º e 1992.º, n.º 2, do Código Civil). Veio apenas interpretar-se
“Não há, pois, que paralisar perante as perguntas habituais: como vai ser educada uma criança por um homem gay? Num casal de pessoas do mesmo sexo, quem faz “de pai” e “de mãe”? Como é que uma criança reage se o pai ou a mãe for transexual? Como podem duas mulheres lésbicas criar bem um rapaz? Todas estas questões, e muitas outras, já foram enfrentadas — e bem enfrentadas — por milhões de famílias de pessoas LGBT, ao longo dos tempos e um pouco por todo o mundo. E, baseadas em toda a investigação científica existente, as academias de profissionais das mais diversas áreas (como a Pediatria, Medicina, Psicologia e Serviço Social, entre outras) mais respeitadas mundialmente, afirmam, sem margem para dúvida, que as crianças criadas por pessoas LGBT ou por casais de pessoas LGBT têm um desenvolvimento emocional e social em tudo semelhante ao das crianças que integram as restantes famílias. Mas, voltando ao ponto fundamental, nada melhor do que responder a todas estas questões com a realidade: vidas concretas de casais, pais, mães e crianças. Em suma, famílias. Muitas vezes há quem se esqueça de que as pessoas LGBT são pessoas. Partilham as mesmas vontades básicas que os fazem seres humanos: amar e ser amado, cuidar das suas famílias. De facto, estamos a pensar no que já existe e o que já existe não é a família, mas famílias: aquela expressão não passa de um pretenso ideal-tipo que nada tem de ideal: ainda ninguém conseguiu provar que um determinado formato de família gera mais bem-estar nos seus elementos do que outro. E nada tem de típico: dados estatísticos, por menos informação desagregada que contenham, comprovam a diversidade das estruturas familiares atuais [...]. Cada um de nós tem a sua própria ideia de família, resultante diretamente da experiência de vida pessoal. Mas há um mínimo denominador comum a quase todas estas noções e um deles é o pretendido por este projeto: o do refúgio e da segurança que esperamos receber e dar no nosso núcleo familiar. Faça-se um teste à coerência do nosso sistema jurídico à luz do princípio da justiça e das realidades familiares já existentes: num casal de sexo diferente recém-casado, por exemplo, o cônjuge – mesmo que conheça o filho há um mês – pode coadotar, caso a criança só esteja legalmente registada no nome da mãe. Mas numa família em que duas mães planearam e levaram a bom termo a gravidez, a criança não tem, nem pode ter em Portugal, um vínculo legal de qualquer espécie à mãe não biológica. Isto não faz sentido. Salta aos olhos. O projeto que apresentamos faz apenas isto: introduz coerência valorativa no sistema jurídico português, reconhecendo as famílias diversas com crianças cujos interesses superiores não estão acautelados; permite a coadoção por parte do cônjuge ou unido de facto do pai ou mãe da criança, desde que não exista outra parentalidade anteriormente estabelecida” (Projeto de Lei n.º 278/XII). 34 Que não deve confundir-se com adoção conjunta. 33
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a lei à luz da alteração da noção de casamento e da consagração legal das uniões entre pessoas do mesmo sexo. Na realidade, nada de novo se introduziu; apenas se esclareceu. Aliás, tal já seria permitido no caso da união de facto, permitindo-se agora o mesmo para os que estão casados. E, sendo assim, o art. 3.º da Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, perdia força e teria de ser objeto de uma interpretação restritiva. O que não seria permitida era a adoção conjunta, enquanto se mantivesse o art. 3.º da Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, e o art. 7.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, atrás referidos. Em todo o caso, não podemos deixar de mencionar que estava apenas a encobrir-se a adoção conjunta, ou seja, admitindo-se a adoção singular, pelo menos em relação aos unidos de facto, nada impedia que um dos membros do casal homossexual adotasse singularmente uma criança35 e depois viesse o outro membro coadotar. O que teríamos aqui seria uma adoção conjunta encapotada por uma adoção singular seguida de uma coadoção, o que não deixaria de ser uma fraude à lei. E por que razão se mantém ainda a proibição da adoção conjunta? Por outro lado, também não vemos qualquer diferença, de facto, entre a adoção (conjunta) por um casal homossexual e a vida em comum entre um casal homossexual (casado ou em união de facto) e o(s) filho(s) biológico(s) ou adotado(s) de um dos membros do casal. Não podemos deixar de fazer referência, antes de terminarmos, à recente jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) nesta matéria. Como se sabe, o TEDH tem realizado uma interpretação evolutiva do direito ao respeito pela vida privada e familiar, estendendo o conteúdo do direito contemplado no art. 8.º da Convenção dos Direitos do Homem. De facto, é com uma interpretação dinâmica e evolutiva que o Tribunal Europeu tem conseguido abranger no âmbito do art. 8.º certas realidades que não foram inicialmente pensadas pelos redatores da Convenção. Desta forma, a jurisprudência do Tribunal Europeu inclui na noção de vida familiar as relações matrimoniais, mas também as famílias de facto, hetero ou homossexuais, assentes noutras formas de convivência afetiva constitutivas de laços familiares. Recentemente, e tendo em conta o escopo deste estudo, o TEDH, no acórdão X e outros c. Áustria, de 19 de fevereiro de 2013, condenou este país, por violação dos arts. 14.º e 8.º da Convenção, por discriminar um casal do mesmo sexo (mulheres), que vive em união de facto, ao proibir a adoção por um dos conviventes do filho do outro. De facto, considerou que a situação das requerentes, não sendo igual à das pessoas casadas, é idêntica à de casais de sexo diferente que vivem em união de facto e aos quais se
Sem prejuízo da apreciação da candidatura do adotante pelo organismo da segurança social competente. 35
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permite a adoção por um dos conviventes do filho do outro. A companheira da mãe pretendia adotar o filho desta, fruto de uma relação anterior, o que foi recusado pelo ordenamento jurídico austríaco que, todavia, reconhece esse direito a pessoas de sexo diferente que vivam em união de facto. Considerando que as duas mulheres viviam em família e que a rejeição da adoção apenas assentava na orientação sexual das requerentes, sem qualquer outra justificação, o TEDH condenou a Áustria ao pagamento de uma indemnização de dez mil euros, por danos não patrimoniais, às requerentes (além das despesas judiciais). Ora, a legislação austríaca, nesta matéria, é semelhante à nossa36. Assim, e na sequência desta decisão do TEDH, o legislador português procurou antecipar-se com o Projeto de Lei n.º 278/XII, criando uma nova figura, a da coadoção, que não deixava de ser a adoção singular plena por um dos cônjuges ou unido de facto do filho do outro.
III. Considerações finais Sendo a adoção o vínculo que à semelhança da filiação natural se estabelece, por sentença judicial, entre duas pessoas, e assentando a filiação natural numa relação heterossexual e biparental, a adoção conjunta seria a modalidade preferida e dominante. Mas, desde a Reforma do Código Civil de 1977 que o nosso país admite a adoção singular. A “ideia apriorística e aparentemente evidente, segundo a qual uma família biparental é sempre melhor para a criança, pode ser posta em causa, na perspectiva do interesse da criança, entendido como a estabilidade da família, a qualidade do cuidado e do afecto”37. Por outro lado, e como vimos, a noção de família mudou ao longo dos últimos anos, abrangendo outras e novas formas, onde podem incluir-se as famílias de facto (assentes numa união de facto ou numa relação não matrimonial hetero ou homossexual), as famílias monoparentais, as famílias recombinadas ou pluriparentais, etc. Se o superior interesse da criança exige que ela se desenvolva no seio de uma família, estável e de qualidade, estarão aqui incluídas todas essas formas de família, incluindo as compostas por casais homossexuais casados ou que vivam em união de facto.
Aliás, o TEDH refere Portugal como um dos países com legislação violadora das normas da Convenção por discriminar os casais homossexuais em matéria de adoção. 37 V. M.ª CLARA SOTTOMAYOR, «A adopção singular nas representações sociais e no Direito», in Lex Familiae – Revista Portuguesa de Direito da Família, ano 1, n.º 1, 2004, p. 42, e Abandono e Adopção, cit., p. 205. 36
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Não deixamos de ter um modelo social estereotipado em que a criança tem que ter um pai e uma mãe38. Se a criança não pode ter um pai e uma mãe, como acontecerá nos casais homossexuais, a lógica do legislador encaminha esses casos para a adoção singular ainda que, na realidade de facto, a vivência daquela criança seja com dois pais ou duas mães. Não será uma hipocrisia excluir, assim, a adoção conjunta, já que é isso que, de facto, acontece em muitos casos? O Projeto de Lei n.º 278/XII não trouxe, a nosso ver, nada de novo. Apenas esclareceu que a adoção singular (e plena) pelo cônjuge ou unido de facto do filho do outro cônjuge ou unido de facto, já prevista no Código Civil, é admitida para os casais do mesmo sexo. O que fez foi abrir uma brecha no instituto da adoção e da sua proibição aos casais do mesmo sexo. O que permitiu foi olhar para uma realidade de facto e dar-lhe relevância jurídica. O que traduziu foi uma abertura a uma ulterior alteração em matéria de adoção conjunta. Além disso, “o argumento de que a criança precisa de um pai e de uma mãe, para ter modelos de identificação e socialização masculinos e femininos, não colhe, pois, os factores avaliados nos processos de selecção, devem estar ligados à capacidade dos adultos para amar, cuidar e assumir responsabilidade pela criança, os quais existem ou não nas pessoas, independentemente do seu estado civil ou do seu sexo. A família é um lugar de afecto e a qualidade do afecto não depende do número de pessoas que a compõem mas da potencialidade afectiva da pessoa que cuida da criança no dia-a-dia, a qual é perfeitamente avaliável a priori por critérios científicos e verificável durante o período de pré-adopção”39. “Fará sentido o pressuposto de que são necessários um pai e uma mãe ao desenvolvimento de uma criança quando a maioria das pessoas que se assumem homossexuais tiveram, regra geral, um pai e uma mãe?”40.
E esse mesmo modelo leva a que o organismo da segurança social competente para selecionar os candidatos a adoção exclua os candidatos, mesmo de adoção singular, homossexuais. M.ª CLARA SOTTOMAYOR, «A adopção singular nas representações sociais e no Direito», cit., p. 46, e Abandono e Adopção, cit., p. 213, ainda que se pronuncie quanto à comparação entre a família biparental e a monoparental, refere que o processo de “selecção dos candidatos a adoptantes baseados no estado civil, na idade dos adoptantes ou nos bens materiais, tornam o sistema injusto, burocrático e desumanizado, criando [...] uma discriminação adicional: a preferência pela família fundada na imitação da biologia – o casal heterossexual [...]”. Acrescenta ainda («A adopção singular nas representações sociais e no Direito», cit., p. 47, e Abandono e Adopção, cit., p. 214) que se faria “um melhor serviço às crianças se abandonássemos o sistema actual de selecção, caracterizado por categorias tipificadas de candidatos a adoptantes e de crianças adoptáveis, e se flexibilizássemos os critérios de selecção, analisando directamente as qualidades humanas que realmente são significativas para cuidar de uma criança, como o amor e o respeito pela criança como pessoa diferente dos pais”. 39 M.ª CLARA SOTTOMAYOR, «A adopção singular nas representações sociais e no Direito», cit., p. 43, e Abandono e Adopção, cit., pp. 207 e 208. 40 EDUARDO SÁ, “A adopção e o futuro”, in AAVV, Abandono e Adopção, cit., p. 238. 38
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É evidente que a adoção por casais homossexuais, como qualquer processo de adoção, não deve servir interesses egoísticos dos adotantes ou meros caprichos, mas o interesse da criança adotável. Mas isso não constitui qualquer particularidade da adoção por homossexuais, já que qualquer adoção deve visar isso mesmo: permitir que a criança cresça e se desenvolva no seio de uma família, que lhe dê afeto, que a eduque, que assuma a responsabilidade de a fazer feliz.
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Responsabilidade Civil Médica: uma breve reflexão sobre o regime jurídico do consentimento informado no direito civil Diana Sofia Araújo Coutinho*
Resumo: Este artigo versa sobre o regime jurídico do consentimento informado, no direito civil, no âmbito da responsabilidade civil médica. No nosso ordenamento jurídico, a figura do consentimento informado tem, de forma gradual, vindo a adquirir um papel de destaque na relação médico-paciente com consequentes repercussões para o direito: o médico pode ser responsabilizado civilmente por praticar um ato sem o consentimento informado do paciente. Recai sobre o médico a obrigação de prestar ao paciente a informação necessária e suficiente para que este possa decidir e consentir sobre a prática do ato médico. E, simultaneamente, o médico tem, em regra, o dever de obter do paciente o consentimento informado antes da prática de qualquer ato médico. É no âmbito civil que analisaremos o regime jurídico do consentimento informado, abordando algumas questões que consideramos mais pertinentes, como a sua regulamentação no Código Civil, a natureza do ato de consentir, os tipos, as modalidades, as formas e revogabilidade do consentimento. Palavras-chave: Responsabilidade Civil Médica – Consentimento informado – Direitos de personalidade – Regime jurídico
Abstract: This paper concerns the legal framework in civil law for informed consent in the context of medical liability. In our legal system, the figure of informed consent has gradually acquired a prominent role in the doctor-patient relationship with consequent repercussions on civil law: the doctor may be held civilly liable for practicing an act without patient’s informed consent. The doctor has an obligation to provide the patient with the necessary and sufficient information to enable his decision and consent on the practice of the medical act. And simultaneously, as a general rule, the doctor has a duty to obtain the patient's informed consent before practicing any medical act. We will review the legal framework for informed consent in the civil context addressing some of the most relevant issues for us, such as its regulation in the Civil Code, the nature of the consent act, the types, the modalities, the methods, and the revocability of the consent. Keywords: Medical liability – Informed consent – Personality rights – Legal framework
Sumário: I. Enquadramento do consentimento informado na Responsabilidade Civil Médica; II. O consentimento informado enquanto direito de personalidade e a sua regulamentação no Código Civil; III. Os tipos de consentimento; IV. A natureza jurídica do consentimento; V. Modalidades do consentimento; VI. A revogação do consentimento; VII. Considerações finais
* Mestre em Direito dos Contratos e das Empresas pela Universidade do Minho e Advogada.
Diana Sofia Araújo Coutinho
I. Enquadramento do consentimento informado na Responsabilidade Civil Médica O exercício negligente ou erróneo da atividade médica, a violação de direitos dos pacientes1 ou a violação de deveres dos médicos são temas alvo de discussão e controvérsia na sociedade, em muito devido à divulgação nos meios de comunicação social e, com uma importância gradualmente crescente na doutrina e jurisprudência portuguesas. O médico pode ser responsabilizado juridicamente, a nível civil, penal e disciplinar2 pelos atos praticados ou omissões verificadas, no exercício da sua atividade profissional, decorrentes de imperícia, imprudência, desatenção, negligência ou dolo e que provoquem danos aos pacientes. Como afirma ESPERANÇA PINA “O médico é responsável pelos seus atos como resultado do exercício da sua profissão, como todo o cidadão”3. No que concerne à responsabilidade civil médica, seguindo LESSEPS LOURENÇO DOS REYS “a responsabilidade civil do médico não deriva de um direito específico da profissão médica mas do conceito genérico de responsabilidade decorrente do direito civil: a obrigação, imposta por lei, a quem causa prejuízo a terceiros, de colocar o ofendido na situação que estaria se não fosse a lesão. Transpondo para o âmbito da medicina: a responsabilidade civil do médico é a obrigação legal em que se constitui o médico que causa prejuízo ao doente de reparar o dano ou indemnizar a vítima (ou os seus familiares) quando esse prejuízo resulta da conduta faltosa”4. Nesta medida, e em termos amplos, afirmamos que a responsabilidade civil médica mais não é do que a concretização da figura da responsabilidade civil focada no exercício da atividade médica, constituindo o médico na obrigação de indemnizar o ofendido (doente) ou os seus herdeiros, caso o requeiram5. Da medicina paternalista ao primado do princípio da dignidade de pessoa humana, ao reconhecimento dos direitos fundamentais dos cidadãos com destaque para os princípios da autodeterminação, da liberdade individual, do direito à vida e do respeito pelos direitos de personalidade nasce e ganha relevo a figura do consentimento informado no âmbito da relação médico-paciente. O consentimento informado refle-
Ao longo do presente artigo, utilizamos indistintamente o termo paciente e doente. A responsabilidade médica encontra a sua regulamentação em cada um destes institutos jurídicos. 3 ESPERANÇA PINA, A Responsabilidade dos Médicos, 3.ª ed., Lisboa, Lidel, 2003, p. 113. 4 LESSEPS LOURENÇO DOS REYS, «Ética Médica – Responsabilidade Civil dos Médicos», in Revista da Faculdade de Medicina de Lisboa, Série III, Vol. 5, n.º 5, setembro/outubro de 2000, pp. 305 e ss. 5 ESPERANÇA PINA, A Responsabilidade dos Médicos, cit., p. 109. 1 2
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te-se num verdadeiro e efetivo direito do paciente e elemento fulcral da relação médico-paciente, tendo o seu regime jurídico acompanhado a evolução daquela relação6. O consentimento do paciente é muito mais do que o mero ato de autorizar a prática de um ato médico: traduz-se numa verdadeira consagração de princípios fundamentais, entre os quais destacamos os princípios já referidos anteriormente: o princípio da autodeterminação e o princípio da liberdade e do direito à integridade física e moral. No direito civil, encontra a sua consagração legal no art. 70.º do Código Civil (CC) o qual estipula que os direitos de personalidade, refletindo-se no direito à autodeterminação do paciente e ao respeito pela sua integridade física e moral. O consentimento informado constituiu ainda uma causa justificativa da ilicitude, nos termos do arts. 340.º e 81.º do CC. E, apesar de a violação do consentimento informado configurar a violação de um direito de personalidade e consequentemente ser fundamento de responsabilidade civil, nos termos do art. 483.º, n.º 1, 1.ª parte do CC, podemos avançar que o direito ao consentimento informado e a sua exigibilidade são independentes da natureza da relação estabelecida entre o médico e o paciente. Sobre o médico recai a obrigação de prestar ao paciente (ou, em certos casos, ao representante legal) a informação necessária e essencial, sobre a doença, o tratamento, alternativas, riscos, entre outros aspetos. Em grande medida, é no respeito pela autonomia que se deve basear a relação médico-paciente. A autonomia exige que o médico preste todas as informações necessárias ao paciente, de forma clara, e que consiga entender a informação que lhe é transmitida. Pois, só assim o paciente poderá decidir de forma consciente e livre, manifestando autonomamente o seu consentimento para a prática do ato médico. Não basta informar o paciente. É preciso esclarecê-lo devidamente para que este manifeste o seu consentimento de modo livre e autónomo.
Para maiores desenvolvimentos sobre a relação médico-paciente, responsabilidade civil do médico e a história do consentimento informado, ver RUTE TEIXEIRA PEDRO, A Responsabilidade Civil do Médico – Reflexões sobre a Noção da Perda de Chance e a Tutela do Doente de Lesado, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pp. 23 a 43; PAULA LEMOS PEREIRA, Relação Médico-Paciente: O Respeito pela autonomia do paciente e a responsabilidade do médico pelo dever de informar, Rio de Janeiro, Leumen Iuris Editora, 2011, pp. 5 a 13; DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente: Estudo do Direito Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, pp. 27 a 30; P. VICTOR FEYTOR PINTO, JORGE BISCAIA, JOSÉ CONDE, «Ética da relação médico-doente, Conselho Nacional de Ética para as ciências da vida», in O Consentimento Informado – Actas do I Seminário promovido pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1995, pp. 31 a 54; MARIA DE LURDES PINTASILGO e DANIEL SERRÃO, «Uma perspetiva sócio-cultural do consentimento informado», in O Consentimento Informado – Actas do I Seminário promovido pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, cit., pp. 57 a 70; PAULA MARTINHO DA SILVA, GUILHERME DE OLIVEIRA e ANDRÉ PEREIRA COELHO, «Estrutura jurídica do ato médico, consentimento informado e responsabilidade civil da equipa de saúde ou do médico», in Consentimento Informado – Actas do I Seminário promovido pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, cit., pp. 71 a 97; e JOSEFA CANTERO MARTINEZ, La autonomia del paciente del consentimento informado al testamento vital, Editorial Bomarzo, 2010, pp. 7 a 10. 6
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O consentimento do paciente é a legitimação e o limite da intervenção médica7. Para o consentimento prestado pelo paciente ser válido, é necessário o preenchimento de três elementos ou requisitos8: a capacidade, a informação e a voluntariedade9. Estes requisitos são cumulativos e a sua ausência ou incorreta verificação invalidam o consentimento prestado pelo paciente. Por um lado, o paciente tem de ser capaz de consentir. A pessoa que presta o consentimento tem de ser capaz, na aceção jurídica da palavra. Será capaz para consentir quem tem a faculdade de entender, de forma autónoma aos seus interesses, seja diretamente ou por outra pessoa, por força da sua competência volitiva e intelectual/natural a quem a ordem jurídica reconhece o estatuto jurídico para agir. O capaz necessita de compreender o alcance da intervenção médica, os seus efeitos, as possibilidades de tratamentos alternativos, entre outros aspetos. Diferentemente, a pessoa será incapaz quando não possa atuar autónoma e pessoalmente, tornando-se necessário recorrer à representação legal ou assistência para suprir a ausência da mesma. A representação garante àquele que não seja capaz de tomar decisões autonomamente e por si que os seus melhores interesses sejam protegidos e garantidos, nomeadamente no que diz respeito à prestação do consentimento, com especial destaque para os atos médicos. Embora se confira, cada vez mais, relevância à vontade dos incapazes que têm o discernimento necessário à avaliação do sentido e alcance da respetiva manifestação da vontade. A capacidade para consentir no âmbito do exercício da atividade médica não é um reflexo da capacidade negocial do CC. Mais uma vez, atendendo à natureza deste ato de consentir e aos bens jurídicos tutelados, impõe-se alguma adaptabilidade na exigência do requisito da capacidade. Por seu turno, para que o consentimento seja voluntário, é necessário que o paciente esteja livre de toda a espécie de pressões e de coações. O paciente tem de ser esclarecido devidamente sobre o diagnóstico e a índole, alcance, envergadura e consequências possíveis do teste bem como da eventual intervenção. E, por fim, mas com uma importância significativa, surge o requisito informação. Na verdade, tal requisito assume-se como o elemento essencial consentimento infor-
7 KOPETZKI, «Einwillingung und Einwilligungsfashigkeit», in Einwillingung und Einwilligungsfashigkeit, Wien, Manz, 2002, p. 1, “Die Einwilligun des Patienten ist Legitimation und Scharanke arztlichen Handelns”, apud DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente..., cit., p. 147, nota de rodapé 322. 8 Sobre a análise dos pressupostos do consentimento informado no ordenamento jurídico espanhol, cfr. JÚLIO CÉSAR GALLÁN CORTÉS, Responsabilidade Médica y Consentimento, Madrid Civitas, 2001, pp. 73 a 109. 9 Não podíamos falar em consentimento informado sem deixar de referir os seus requisitos. No entanto, no presente artigo, não é possível um estudo desenvolvido do mesmo. Nessa medida, limitamo-nos apenas a enunciar os requisitos e destacar um ou outro aspeto mais relevante.
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mado. Sobre o médico recai a obrigação de prestar a informação necessária e adequada ao paciente. O conteúdo do dever de informação é amplo e diversificado. Vai desde a informação referente ao diagnóstico, tratamento, meios, prognóstico, efeitos, riscos, benefícios, urgência do tratamento, entre outros aspetos. O que não significa a obrigação de o médico informar tudo ao mais ínfimo pormenor. Não, não é essa a obrigação do médico e que o paciente-leigo poderia compreender. Significa que, de toda a informação que constitui o conteúdo do dever de informar, o médico deverá transmitir ao paciente numa linguagem acessível a informação necessária, pertinente e suficiente para que o paciente entenda o que está em causa e, posteriormente, possa consentir (atenção que esta obrigação de informar terá de ser sempre prestada mesmo quando não seja para obter o consentimento do paciente). Reconhecemos que, em termos práticos e em certos casos, sobretudo a transmissão dos riscos, poderá ser difícil aferir qual a informação relevante e suficiente a transmitir. Por isso, devem ser seguidos os critérios da necessidade terapêutica, da frequência da verificação dos riscos, da gravidade dos riscos e comportamento. E, como todos os pacientes são diferentes e não devem ser feitos juízos de valor prévio e generalistas, o médico, no cumprimento do seu dever de informação, deve seguir um critério do paciente em concreto. O dever de informar dos médicos não é absoluto, comportando exceções que afastam a obrigação do médico informar o paciente, por exemplo, as situações de urgência médica, o direito de não saber do paciente ou do privilégio terapêutico. Além disso, em oposição ao direito de consentir, está o direito de dissentir, ou seja, de recusar a prática do ato médico. É um direito lícito conferido ao paciente no âmbito da sua autodeterminação e liberdade que, por vezes, colide com o dever de o médico tratar o paciente. E, casos há em que o médico não tem de obter o consentimento do paciente, novamente nas situações de urgência médica em que, face à situação médica com que se depara, não há tempo ou possibilidade de obter o consentimento, sob pena de colocar em risco a vida do paciente, ou ainda nos casos em que existe autorização legal para a intervenção médica. Assim, e apesar de a importância e reconhecimento da figura do consentimento informado ser ainda pouco significativo no nosso ordenamento jurídico – quando comparado com outros ordenamentos jurídicos e com outras questões médico-jurídicas –, é inequívoca a importância na relação médico-jurídica e as consequências jurídicas da sua violação (além de responsabilidade civil, pode originar também responsabilidade penal e disciplinar do médico), tornando, assim, o consentimento informado um dos desafios do direito privado contemporâneo e sobre o qual procuramos traçar as princi-
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pais características do seu regime jurídico no direito civil, analisado à luz do instituto da responsabilidade civil10.
II. O consentimento informado enquanto direito de personalidade e a sua regulamentação no Código Civil No direito civil, como referimos supra, o consentimento informado está intrinsecamente ligado ao direito geral de personalidade11 previsto no art. 70.º do CC, o qual determina que todo o indivíduo tem direito a ver protegida a sua personalidade física e moral12. Segundo Professor HEINRICH HÖRSTER, Capelo de Sousa classifica os direitos de personalidade como “direitos subjectivos, privados, absolutos, gerais, extrapatrimonais, inatos, percutis, intransmissíveis, relativamente indisponíveis, tendo por objeto os bens e as manifestações interiores da pessoa humana, visando tutelar a integridade e o desenvolvimento físico e moral dos indivíduos e obrigando todos os sujeitos de direito a absterem-se de praticar ou deixar de praticar actos que ilicitamente ofendam ou ameacem ofender a personalidade alheia sem o que incorrerão em responsabilidade civil e/ou sujeição às providências cíveis adequadas a evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa cometida”13. Seguindo a posição do Professor HÖRSTER, a definição anterior apenas pode valer para efeitos civis, pois, os direitos de personalidade têm um campo de atuação mais vasto. No entanto, apesar de algumas divergências doutrinais, esta definição tem sido, em moldes mais ou menos próximos, acolhida pela doutrina14/15.
Para um estudo mais aprofundado sobre o regime do consentimento informado na Responsabilidade Civil Médica, cfr. DIANA SOFIA ARAÚJO COUTINHO, O Consentimento Informado na Responsabilidade Civil Médica, dissertação de Mestrado em Direito dos Contratos e das Empresas, janeiro de 2014, Universidade do Minho. 11 Para um estudo aprofundado sobre os direitos de personalidade, veja-se ANTÓNIO MAIA M. PINHEIRO TORRES, Acerca dos Direitos de Personalidade, Lisboa, Rei dos Livros, 2000, e LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à disposição do próprio corpo: a relevância da vontade na configuração do seu regime, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, pp. 142 e ss. 12 Sobre a evolução histórica dos direitos de personalidade, veja-se LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à disposição do próprio corpo..., cit., pp. 148 ss. 13 HEINRICH EWALD HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português: Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, Almedina, 2007 p. 259. 14 Em sentido parecido, ORLANDO CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil, sumários desenvolvidos para uso dos alunos do 2.º ano (1.ª turma) do curso jurídico de 1980/1981, Coimbra, Centelha, 1981, p. 90. Em sentido contrário, por exemplo, OLIVEIRA DE ASCENSÃO, Direito Civil – Teoria Geral, 2.ª ed., Vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 2000, pp. 86 e ss., tem dúvidas em se classificar o direito geral de personalidade como direito absoluto, autónomo. 15A doutrina estrangeira classifica os direitos de personalidade como sendo direitos individuais (KOLHER), direitos de estado (MUHLENBRUCH), direitos sobre a própria pessoa (WINDSCHEID), direitos pessoais (WACHTER). A classificação dos direitos de personalidade apresentada por P EREAU aproxima-se das características apontadas pela doutrina portuguesa: a eficácia erga omnes, a extrapatrimonialidade, impres10
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O direito geral de personalidade previsto no n.º 1 do art. 70.º do CC “visa a realização da autodeterminação e defende contra intervenções ou limitações injustificadas, abrange todos os casos dos direitos de personalidade que não são especialmente protegidos pelos arts. 72.º a 80.º. Assim, refere-se ao direito à vida, ou seja, o direito a não ser privado da vida contra a vontade, à liberdade e integridade de consciência, à integridade física e psíquica (!), à liberdade, à honra, à imagem social e de carácter, à saúde e aos repouso, à autodeterminação quanto aos dados pessoais no contexto da informática, à protecção contra a manipulação genética e, por fim, a uma morte digna”16. O consentimento informado enquanto direito de personalidade, enquadrando-se nesta realização pela autodeterminação, na defesa contra intervenções injustificadas que colocam em causa o direito à vida e à liberdade e integridade física e moral. O direito geral de personalidade é protegido duplamente, ou seja, a norma consagra a proteção contra qualquer ofensa ilícita, sem necessidade de existir culpa e/ou intenção de prejudicar o ofendido. Basta a ocorrência da ofensa que viola o direito geral de personalidade. E protege também a ameaça de ofensa ao direito geral de personalidade17. Exige-se um consentimento livre e esclarecido, sob pena de incorrer-se na violação do art. 70.º, n.º 1, do CC e consequentemente originar responsabilidade civil18 extracontratual19, nos termos do art. 483.º do CC20 e do art. 70.º, n.º 2, do CC. Acresce ainda que a violação do consentimento informado é motivo para a adoção de providências adequadas, nos termos da 2.ª parte do n.º 2 do art. 70.º e arts. 1045.º e ss. do Código de Processo Civil, na versão dada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.
critibilidade, intransmissibilidade, vitaliciedade e necessariedade. M AGGIORE nega a existência de direitos de personalidade, pois defende que não podem existir direitos sobre a própria pessoa porque o homem não pode ao mesmo tempo ser sujeito e objeto – LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à disposição do próprio corpo..., cit., p. 146. 16 HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português..., cit., pp. 259 e 260. 17 Neste sentido, HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português..., cit., p. 260. 18 Para um estudo aprofundado sobre a Responsabilidade Civil Médica, veja-se LESSEPS LOURENÇO DOS REYS, «Ética Médica – Responsabilidade Civil dos Médicos», cit., pp. 305-312; RUTE TEIXEIRA PEDRO, A Responsabilidade Civil do Médico..., cit.; ESPERANÇA PINA, A Responsabilidade dos Médicos, cit., pp. 116 e ss.; GUILHERME DE OLIVEIRA, Temas de Direito da Medicina, Coimbra, Coimbra Editora, 2005; FIGUEIREDO DIAS e SINDE MONTEIRO, «Responsabilidade Médica em Portugal», in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 332, janeiro de 1984, pp. 6 a 65; J. C. MOUTINHO DE ALMEIDA, «A responsabilidade civil do médico e o seu seguro», in Scientia Iuridica, XXI, 1972, pp. 327 e ss., e FILIPE DE ALBUQUERQUE MATOS, «Responsabilidade civil médica: breves reflexões em torno dos respetivos pressupostos – Ac. do TRP de 11. 9. 2012, Proc. 2488/02», in Cadernos de Direito Privado, n.º 43, julho/setembro de 2013, pp. 48 a 71. 19 Para um estudo sobre a responsabilidade civil, veja-se, a título meramente exemplificativo: MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 12.ª ed., Coimbra, Almedina, 2009; ANTUNES VARELA, Direito das Obrigações em geral, 10.ª ed., Vol. I, Coimbra, Almedina, 2000; PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito das Obrigações – Programa2010/2011 – Apontamentos, 3.ª ed., Lisboa, AAFDL, 2011; EDUARDO DOS SANTOS JÚNIOR, Direito das Obrigações 1: sinopse explicativa e ilustrativa, Lisboa, AAFDL, 2010. 20 Uma vez preenchidos os requisitos cumulativos da Responsabilidade Civil: facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade. 59
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No direito civil, o consentimento do paciente tem relevo nos termos do art. 340.º do CC que se refere expressamente ao consentimento do lesado, como causa de exclusão da ilicitude ou causa de justificação. Os direitos de personalidade, pela sua natureza, não estão à disposição do seu titular, sendo irrenunciáveis21. Apenas se pode consentir algumas limitações ao seu exercício. E são essas limitações que encontramos no art. 340.º do CC. De acordo com o n.º 1, “o acto lesivo dos direitos de outrem é lícito, desde que este tenha consentido na lesão”. A contrario sensu, significa que o ato lesivo dos direitos de outrem é ilícito se não se obtiver o consentimento do titular do direito. Adaptando à matéria do consentimento informado na relação médico-paciente: será considerada lícita a conduta do médico que atue após ter obtido o consentimento do doente para determinado tratamento ou intervenção (e mesmo que tenha provocado uma lesão), salvo nos casos em que a prestação de consentimento seja contrária à lei ou aos bons costumes (n.º 2 e art. 81.º do CC). O n.º 3 do art. 340.º do CC, “tem-se por consentida a lesão, quando esta se deu no interesse e de acordo com a sua vontade presumível”, regula os casos em que é impossível obter o consentimento do doente, por exemplo, nos casos em que está inconsciente. Assim, podemos afirmar que também a nível civil é conferido ao titular do direito uma certa margem de disponibilidade (voluntária e lícita) do seu direito e desde que não se consubstanciem em comportamentos contrários à lei e aos bons costumes e coloquem em causa o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. A ligação entre os direitos de personalidade e os direitos fundamentais é muito próxima e, muitas vezes, difícil de separar. Citando LUÍSA NETO, “a afinidade entre os direitos de personalidade e os direitos fundamentais emerge de parcial sobreposição ao nível da pessoa humana de dois planos jurídico-gnoseológicos: o de direito civil, onde se fundam os direitos de personalidade, e o de direito constitucional, de onde irradiam os direitos fundamentais. A confusão é frequente e haverá largas zonas de coincidência, mas são claros os termos de distinção”22. Sem desenvolver esta matéria, dizemos apenas que esta autora, seguindo Jorge Miranda, encontra os traços distintivos destes direitos no facto de, por um lado, existirem direitos consagrados na Constituição que extravasam o âmbito dos direitos de personalidade e, por outro lado, pelo facto de se distinguirem no sentido, projeção e perspetiva. Pois, os direitos de personalidade estão inseridos no direito civil, regulando relações de igualdade, e os direitos fundamentais estão inseridos no direito constitucional, pressupondo relações de poder23.
HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português..., cit., p. 267. LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à disposição do próprio corpo..., cit., p. 143. 23 Cfr. LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à disposição do próprio corpo..., cit., p. 143. 21 22
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É certo que o consentimento informado, ao assentar no direito à integridade física e moral do paciente, constitucionalmente consagrados, e no direito de personalidade previsto no art. 70.º do CC, transporta a questão do dever de informar que recai sobre o médico para além da mera responsabilidade contratual24. Mas isso não significa que se aplique de forma imediata os direitos constitucionais nas relações entre os privados [por força da aplicação imediata do art. 18.º da Constituição da República Portuguesa (CRP)]. Na verdade, é importante esclarecer que a proteção do direito ao consentimento informado e o dever de informação em matéria civil estão suficientemente protegidos pelas normas previstas no CC, não sendo necessário a aplicação imediata das normas constitucionais. Sabemos que do art. 18.º da CRP25 resulta a aplicação imediata de direitos, liberdades e garantias, vinculando quer as entidades públicas, quer as entidades privadas. No entanto, na linha de pensamento defendida pelo Professor HÖRSTER26, defendemos que não se deve fazer uma interpretação literal deste artigo, sob pena de a aplicação imediata, sem mais, dos direitos, liberdades e garantias em matéria de direito privado colocar em causa o princípio da autonomia privada27. É facto que o art. 18.º da CRP vincula as entidades privadas e públicas, mas não da mesma forma 28 . Pois é necessário ter em consideração as funções subjacentes à sua criação29. Por um lado, a sua função conservadora que assenta na proteção dos cidadãos contra o Estado. Por outro lado, a sua função renovadora: a proteção dos cidadãos contra outras entidades que não sendo o Estado tem um poder ou força equiparável30. Ora, as funções subjacentes à criação deste artigo não passam pela limitação da autonomia privada. Por conseguinte, a vinculação imposta pelo art. 18.º da CRP deve ser feita no sentido de uma vinculação diferente entre as entidades: as entidades públicas vinculam-se de forma geral e as entidades privadas vinculam-se de forma especial31. Isto significa que, por via de regra, os direitos, liberdades e garantias não têm aplicação imediata nas relações privadas (no nosso caso, no direito civil), apenas têm aplicação quando a entidade priSegundo DIAS PEREIRA, “para responsabilidade civil são protegidos bens jurídicos como a integridade física, a saúde e a liberdade, encontrando-se estes bens jurídicos à distância do seu titular. Assim, em caso de intervenção médica arbitrária (sem consentimento esclarecido) são violados esses bens jurídicos (a integridade física, a saúde e a liberdade) e não apenas o direito de personalidade liberdade ou autodeterminação” – DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente..., cit., p. 115. 25 Para um estudo aprofundado sobre o art. 18.º da CRP, veja-se JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, maio de 2010, pp. 310 a 404. 26 Para maiores desenvolvimentos sobre este tema, cfr. HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português..., cit., pp. 94 a 104. 27 Cfr. HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português..., cit., p. 97. 28 Cfr. HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português..., cit., p. 96. 29 Cfr. HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português..., cit., pp. 95 e 96. 30 Cfr. HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português..., cit., p. 96. 31 Cfr. HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português..., cit., p. 96. 24
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vada se encontra numa “situação de poder, ameaçadora de liberdade e igualdade jurídica [...] o art. 18.º, n.º 1, não se aplica às relações normais e habituais entre particulares no tráfico jurídico privado, onde aquela ameaça faltar, visto que tal solução – tendo em conta as intenções da disposição – nem sequer fazia sentido [...]. Isto resulta, desde já, da subordinação hierárquica do direito privado: os direitos fundamentais são, em primeira linha, direitos de defesa do cidadão contra o Estado; contudo, neles está expressa também uma ordem objectiva de valores, a qual abrange, naturalmente, todos os domínios de direito e que actua no direito privado, sem mais, de uma maneira mediata através das disposições de carácter obrigatório, por meio de cláusulas gerais e por intermédio dos conceitos jurídicos indeterminados [...]. Como no âmbito da autonomia privada apenas fica vinculado por uma regulamentação jurídico-negocial aquele que nela consentiu, podem ser estabelecidas, de uma maneira limitada, por via negocial, vinculações relativas àqueles valores que não podiam ser impostas ao indivíduo pelo poder estadual por causa dos direitos fundamentais”32. Podemos assim concluir que a aplicação direta dos direitos, liberdades e garantias no domínio privado só se dá por força compatível com o caráter dos direitos, liberdades e garantias como defesa do cidadão contra o Estado ou entidades equiparadas e também só acontece se a lei privada (que está imbuída dos princípios e valores constitucionais) não for suficiente para encontrar uma resposta adequada, o que faz com que o regime do art. 18.º, n.º 1, seja considerado um regime subsidiário33 em matéria civil. Face ao exposto, apesar de reconhecermos a importância dos princípios constitucionais e da proteção do consentimento informado no âmbito da CRP 34, podemos afirmar que, no domínio das relações privadas, a proteção conferida pelo CC é suficiente, bastando a aplicação dos arts. 70.º, 81.º e 340.º do CC. E, quando afirmamos que o direito ao consentimento informado vai para além da relação contratual, queremos dizer que o direito ao consentimento e dever de obter o consentimento informado existe antes de a própria relação médico-paciente se estabelecer e independentemente desta. É verdade que da relação contratual estabelecida entre o médico e o paciente resulta o dever de informar o paciente (os próprios deveres deontológicos do médico assim o exigem). Contudo, este direito é inerente a qualquer pessoa (é certo que, ao ter fundamento em direitos constitucionais, é garantida também a defesa dos direitos do pacien-
Cfr. HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português..., cit., pp. 96 e 97. Cfr. HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português..., cit., p. 97. 34 Para que haja prestação de consentimento informado, pressupõe-se que o paciente seja prévia e devidamente informado pelo médico, para que possa tomar a sua decisão de forma autónoma e livre. A autodeterminação do paciente, apesar de não estar consagrada diretamente na Constituição da República Portuguesa, pode, atendendo às suas características, natureza e/ou valores em causa, inserir-se num dos princípios fundamentais constitucionalmente consagrados, adquirindo assim também um estatuto de direito fundamental e de proteção constitucional. 32 33
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te), devendo ser respeitado e cumprido, quer seja a atividade médica exercida no domínio público, quer seja a atividade médica exercida no domínio privado35, independentemente da estrutura em que possa assentar a relação médico-paciente36/37 e que se pratica o ato médico38. É um verdadeiro direito inerente a qualquer paciente e uma verdadeira obrigação do médico e que, no domínio das relações privadas, está protegido pelas normas do CC. Concluímos assim que o direito ao consentimento informado vai para além da relação contratual estabelecida entre o médico e o paciente. E que tal não terá influência na necessidade de obter-se o consentimento informado do paciente
35 Para um estudo aprofundado sobre a questão da atividade médica exercida no privado vs. público, veja-se NUNO OLIVEIRA, «Responsabilidade Civil em Instituições Privadas de Saúde: Problemas de Ilicitude e de Culpa», in Responsabilidade Civil dos Médicos, Coimbra, Coimbra Editora, 2005; CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, «Os Contratos Civis de Prestação de Serviços Médicos», in Direito da Saúde e da Bioética, Lisboa, AFFDL, 1996, pp. 85 e ss.; RUTE TEIXEIRA PEDRO, A Responsabilidade Civil do Médico..., cit., p. 65; ESPERANÇA PINA, A Responsabilidade dos Médicos, cit., p. 115; DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente..., cit., p. 40; MARGARIDA CORTEZ, «Responsabilidade Civil das Instituições Públicas de Saúde», in Responsabilidade Civil dos Médicos, Coimbra, Coimbra Editora, 2005; FREITAS DO AMARAL, «Natureza da Responsabilidade Civil por atos médicos praticados em estabelecimentos públicos de saúde», in Direito da Saúde e da Bioética, Editora Lex, Lisboa, 1991; FIGUEIREDO DIAS e SINDE MONTEIRO, «Responsabilidade Médica em Portugal», cit., pp. 32 e ss.; SINDE MONTEIRO, «Aspetos Particulares de Responsabilidade Médica», in Direito da Saúde e Bioética, Lisboa, 1991, pp. 138 a 145; ANA MORIZ, Responsabilidade Civil extracontratual por danos resultantes da prestação de cuidados de saúde em estabelecimentos públicos: o acesso à justiça administrativa, Coimbra, Coimbra Editora, 2003; SÉRVULO CORREIA, «As Relações Jurídicas de Prestação de Cuidados pelas Unidades de Saúde do Serviço Nacional», in Direito da Saúde e Bioética, Lisboa, 1996, pp. 11 a 74; MARCELO REBELO DE SOUSA, «Responsabilidade dos Estabelecimentos Públicos de Saúde: A Culpa do Agente ou Culpa da Organização?», in Direito da Saúde e Bioética, Lisboa, 1996, pp. 145 a 186; e ainda NOGUEIRA DA ROCHA e PEDRO MADEIRA DE BRITO, «Cessão de Exploração de Instituições Públicas na Lei de Base da Saúde», in Direito da Saúde e Bioética, Lisboa, 1996, pp. 263 a 296. E, ainda, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 5/2005, disponível em www.dgsi.pt. 36 Quando aqui se fala da estrutura em que possa assentar a relação médico-paciente, estamos a referir-nos à natureza da relação jurídica estabelecida entre o médico e o paciente, isto é, se tem natureza contratual ou não. Ora, a relação jurídica estabelecida entre o médico e o paciente e a consequente responsabilidade civil é um dos temas mais discutidos no que se refere à matéria da Responsabilidade Civil Médica, a qual, face à limitação do nosso estudo, não a podemos desenvolver. Portanto, apenas afirmamos que, independentemente da natureza da relação estabelecida entre o médico e o paciente, a obrigação de informação existirá sempre e como pressuposto prévio a essa mesma relação. 37 Para um estudo aprofundado sobre a questão da estrutura da relação médico-paciente e da natureza da responsabilidade civil, veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa, de 19.04.2005, disponível em www.dgsi.pt, e ainda DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente..., cit., pp. 31 e ss.; J. C. MOUTINHO DE ALMEIDA, «A responsabilidade civil do médico e o seu seguro», cit.; ESPERANÇA PINA, A responsabilidade dos médicos, cit., pp. 112 e ss.; FERREIRA DE ALMEIDA, «Os Contratos Civis de Prestação de Serviços Médicos», cit., pp. 75 a 121; JOSÉ MANUEL FERNÁNDEZ HIERRO, Sistema de Responsabilidade Médica, Terceira Edicion, Granada, Comares Editorial, 2000, p. 30; MANUEL NUNES, O ónus da prova nas acções de responsabilidade civil por actos médicos, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2007, p. 91; e RUTE TEIXEIRA PEDRO, A Responsabilidade Civil do Médico..., cit., pp. 47 a 56 38 Quando aqui se fala em modo como o ato é praticado, queremos referir-nos à distinção entre a atividade médica exercida no domínio privado vs. domínio público. Este é também um tema que seria merecedor de um estudo autónomo, o qual não nos é permitido fazer na nossa dissertação. Salientando também aqui que, independentemente do local onde o médico exerce a sua atividade, o dever de informar o paciente impenderá sempre sobre si.
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e no dever de o médico prestar a informação necessária e esclarecida para que o paciente possa tomar a sua decisão39. É posição doutrinária predominante, em matéria do consentimento informado no direito civil, que a intervenção médica sem consentimento do paciente (ou consentimento viciado), mesmo que não provoque danos ao doente, é causa justificada de responsabilidade civil. Por conseguinte, são os danos ressarcíeis, nos termos civis, que resultam da prática de um ato sem consentimento do paciente, bem como as dores, os incómodos e a lesão referente à intromissão na esfera pessoal do paciente40. Tal posição decorre do entendimento maioritário de que, no direito civil, face ao caráter geral do direito de personalidade do art. 70.º do CC, a intervenção médica, sem o consentimento do paciente, implica não só a violação do direito à liberdade mas também consubstancia-se na prática de ofensas à integridade física e moral do paciente. Como refere ORLANDO DE CARVALHO41,“com lesão da incolumidade pessoal (noli ne tangere) a par da infração ao direito de autodeterminação ou liberdade de decisão, abrangendo-se os danos, não apenas a lesão da liberdade de vontade, mas também as dores, os incómodos físico-psíquicos e os riscos sofridos pelo paciente”42. Tais danos verificam-se mesmo que a saúde do paciente não tenha piorado ou tenha até melhorado mas ocorreu uma intervenção sem o seu consentimento ou com um consentimento inválido ou viciado. Quanto ao cálculo da indemnização, seguindo DIAS PEREIRA43 (que aqui segue de perto a doutrina civil austríaca), há direito à indemnização civil quando a intervenção médica ocorreu sem o consentimento do paciente, mesmo nos casos em que o estado clínico do paciente possa até ter melhorado. Contudo, se a saúde do paciente melhorar, deve-se ter em consideração esse facto para o cálculo da indemnização. Na esteira de DIAS PEREIRA, “as dores e tristezas causadas pela intervenção devem ser ponderadas com as dores e sentimentos de infelicidade que o paciente sofreria se não se realizasse a operação – deve-se realizar-se uma ponderação dos danos”44. Na prática, é esta ponderação de valores que determina se há ou não lugar a indemnização. Deve-se colocar na balança os benefícios e os prejuízos da intervenção médica sem consentimento do paciente. Não devem ser considerados os lucros cessantes, ou seja, aquilo que o paciente deixou de poder fazer
39 Neste sentido, GUILHERME OLIVEIRA, «Estrutura Jurídica do Ato Médico, Consentimento Informado e Responsabilidade Civil da Equipa de Saúde ou do Médico», in Temas do Direito da Medicina, Coimbra, Coimbra Editora, pp. 80 a 87. 40 Neste sentido, DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente..., cit., p. 121. 41 Com opinião semelhante, RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, Direito Geral de Personalidade, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, p. 219, e GUILHERME DE OLIVEIRA, Temas do Direito da Medicina, cit., p. 99. 42 ORLANDO DE CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil..., cit., p. 193. 43 Cfr. DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente..., cit., p. 195. 44 DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente..., cit., p. 124.
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em consequência da intervenção médica. Recorrendo ao exemplo utilizado pelo autor, “o facto de a pessoa ter ficado impossibilitada de trabalhar, se não tivesse sido operada; mas isto não leva a que se exclua o prazer de a pessoa se sentir em melhores condições de vida porque, por exemplo, está capaz de trabalhar. Ora, após esta ponderação de danos, poderá não haver lugar a indemnização. [...] no caso de uma histerectomia que, embora elimine um risco de cancro, causou comprovadamente danos morais gravíssimos à mulher; ou seja, se se provar que a mulher nunca teria consentido e que padece de graves sofrimentos morais, nomeadamente, o facto de nutrir o sentimento de ter menos valor enquanto mulher, então merece direito a uma compensação com base na intervenção arbitrária”45. Como suporte legal, DIAS PEREIRA, aponta o art. 496.º, n.º 3, do CC conjugado com os arts. 494.º e 566.º, n.º 2, do CC (aplicada por analogia aos danos não patrimoniais). Nos casos em que a intervenção médica sem consentimento não obteve êxito ou foi prejudicial para o paciente, consideramos que estamos perante um caso de responsabilidade civil, nos termos supracitados (arts. 483, n.º 1, e 70.º do CC), devendo ser indemnizados, quer os danos patrimoniais, quer os danos não patrimoniais. Por exemplo, as despesas com novos tratamentos, intervenções ou mesmo a diminuição da capacidade de trabalho. Contudo, a integração dos danos patrimoniais nesta indemnização não é unânime na doutrina. Há quem defenda que só devem ser considerados os danos morais sofridos pelo paciente: quando se entende que apenas foi violado o direito de personalidade do art. 70.º do CC46. No entanto, discordamos que apenas sejam indemnizados os danos morais, pois, da violação do consentimento informado, podem resultar efetivos danos patrimoniais para o paciente e que nunca se teriam verificado se não fosse a intervenção médica por violação do consentimento informado do paciente. Imagine-se a seguinte situação: o doente X sofre de dores nas costas, dirige-se a uma clínica privada onde, após algumas consultas, é submetido a uma cirurgia à coluna vertebral. Dias após a intervenção médica, fica paralisado, deixando de exercer qualquer atividade profissional. O doente sente-se revoltado, pois o médico não o informou da possibilidade de a intervenção médica provocar a sua paralisia. Nesta situação, além dos danos morais provocados pela violação do consentimento informado, o paciente sofreu danos patrimoniais, pois não voltará a trabalhar, terá despesas com tratamentos, medicação, etc. Ou seja, a violação do consentimento informado, traduzindo-se na violação do direito à autodeterminação e à integridade física, provocou danos não patrimoniais e patrimoniais que devem ser indemnizados ao doente. Além disso, em matéria de direito civil, a prática de um ato médico
DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente..., cit., p. 124. SINDE MONTEIRO, Responsabilidade por Conselhos, recomendações ou informações, Coimbra, Almedina, 1989, p. 273. 45 46
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sem consentimento constitui não só a violação da autodeterminação, da liberdade do paciente, mas também a violação da integridade física e moral, cujo conceito de ofensas à integridade física é mais amplo do que no direito penal. Ora, por isso mesmo, como no direito civil a prática de um ato médico sem o consentimento do paciente traduz-se na violação do art. 70.º e num ato suscetível de originar responsabilidade civil nos termos do art. 483.º, n.º 1, 1.ª parte (em virtude da violação do direito de outrem), defendemos que tal violação poderá incluir não só a indemnização de danos não patrimoniais, mas também a indemnização de danos de natureza patrimonial.
III. Os tipos de consentimento Seguindo ORLANDO DE CARVALHO, o consentimento, mais não é do que “o comportamento mediante o qual se concede a alguém algo, como seja uma determinada atuação, no caso do consentimento para o ato médico, uma atuação do agente médico na esfera físico-psíquica do paciente com o sentido de proporcionar saúde em benefício próprio, benefício alheio ou em benefício geral”47. ORLANDO DE CARVALHO48 divide o consentimento em três tipos ou categorias: o consentimento tolerante, o consentimento autorizante e o consentimento vinculativo. O consentimento tolerante, nos termos do art. 340.º do CC, ocorre quando alguém, prestando o seu consentimento, exclui a ilicitude de um ato ou omissão praticado por outrem. Ou seja, estamos perante aquelas situações em que a prática do ato ou omissão pode consubstanciar-se num ilícito, salvo se o lesado prestar o seu consentimento. Pois, o lesado, ao consentir, afasta a ilicitude do ato. O que não significa que o lesado está a conferir um direito de agressão49 a outrem: não se atribui qualquer poder jurídico a outrem. Significa apenas que, perante uma agressão, a sua ilicitude pode ser afastada mediante a prestação do consentimento. Por sua vez, a prestação do consentimento autorizante traduz-se na atribuição de um poder jurídico de agressão a uma outra pessoa. Com a ressalva de que a pessoa que consente tem o poder e legitimidade de, a qualquer momento, revogar livremente o consentimento prestado, sem prejuízo da obrigação de indemnizar, nos termos do art. 81.º, n.º 2, do CC. ORLANDO CARVALHO
47 ORLANDO DE CARVALHO, apud JOÃO VAZ RODRIGUES, O Consentimento para o acto médico no ordenamento jurídico português: elementos para o estudo da vontade do paciente, Coimbra, Coimbra Editora, março de 2011, p. 24, nota de rodapé n.º 7. 48 ORLANDO DE CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil..., cit., pp. 183 e 198 e ss. 49 O termo agressão deve ser entendido num sentido amplo. Agressão deve aqui ser interpretada como o ato ou a omissão que, praticado sem consentimento (do paciente), pode lesar a sua integridade física e moral, o seu direito a dispor sobre o seu próprio corpo, a sua autodeterminação e liberdade pessoais.
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inclui neste tipo de consentimento os casos das intervenções médicas em benefício alheio, como são os casos, dos ensaios clínicos, doações de órgãos, entre outros. Veja-se o exemplo50 de alguém que presta o seu consentimento no sentido de participar em experiências a realizar por um psicanalista, conferindo-lhe um poder de agressão (de atuar, agir). Como o consentimento foi autorizante, se o paciente revogar o seu consentimento poderá ter de indemnizar o psicanalista, no caso de, terem sido criadas legítimas expetativas, nos termos do art. 81.º, n.º 2, do CC. Contrariamente à posição defendida por ORLANDO DE CARVALHO, DIAS PEREIRA discorda no que concerne a integrar no consentimento autorizante as intervenções médicas que implicam benefício alheio ou geral51. Refere DIAS PEREIRA52 que este consentimento, ao ser livremente revogável e essa revogabilidade, nos casos de afetar as legítimas expetativas que foram criadas, originar a obrigação de indemnizar, limitará fortemente a revogabilidade do consentimento. Ou seja, a pessoa que consentiu ficará limitada, na sua liberdade e autonomia, de voltar atrás naquilo que autorizou, a partir do momento que soubesse que poderia ter como consequência a obrigação de indemnizar a outra parte. Nessa medida, DIAS PEREIRA53 defende que os casos de intervenções em benefício alheio não devem ser incluídos no consentimento autorizante, sob pena de limitarem a prestação do consentimento e a livre revogabilidade do mesmo. Acrescenta-se, ainda, que a legislação especial sobre esta matéria consagra a livre revogabilidade do consentimento prestado, sem obrigação de indemnizar. Estas intervenções médicas devem incluir-se, assim, no consentimento tolerante e não no consentimento autorizante. DIAS PEREIRA vai ainda mais longe e afasta totalmente o consentimento autorizante da prática dos atos médicos, aplicando-o a outros direitos de personalidade, como a direito à imagem ou o direito à privacidade54. Acolhemos quase no seu todo a posição de DIAS PEREIRA. Parece-nos que o paciente, seja para benefício próprio, seja enquanto sujeito que pretende ajudar outrem, não pode ficar limitado na sua vontade. Estamos a falar de consentir a prática de um ato médico que terá interferência, direta ou indireta, mais forte ou menos forte, sobre o corpo da pessoa que autoriza. Logo, deve-lhe ser conferido um direito de voltar atrás naquilo que decidiu, sem que com isso esteja obrigado a indemnizar, nos termos do art. 81.º, n.º 2, do CC. Está em causa a prática de um ato que pode lesar a integridade física e/ou moral do paciente, não é um simples ato material ou que incide sobre um objeto
Exemplo retirado de LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à disposição do próprio corpo..., cit., p. 358. Cfr. DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente..., cit., pp. 131 e 132. 52 Cfr. DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente..., cit., pp. 132. 53 Cfr. DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente..., cit., p. 132. 54 Cfr. DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente..., cit., p. 132. 50 51
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físico. Deve prevalecer este direito de revogar o consentimento sem limitações: os interesses e bens jurídicos em causa devem prevalecer face aos interesses económicos e limitações deste género. No entanto, não excluímos a possibilidade, para certos atos médicos, de ser prestado o consentimento autorizante. Por fim, no consentimento vinculante, a pessoa que consente vincula-se juridicamente, atribuindo a outrem um direito subjetivo de um autêntico negócio jurídico. Como refere DIAS PEREIRA, “não há a atribuição de um poder de lesão, mas tão-só uma disposição normal e corrente de direitos de personalidade que não se traduzem numa limitação ao exercício desses direitos, nos termos do art. 81.º, n.º 2, do CC”55. Este consentimento tem um cariz excecional. Um exemplo da prestação deste consentimento é o caso do contrato de aleitamento que por recair sobre um elemento biológico regenerável (o leite) e o cariz altruísta que se prossegue é um contrato juridicamente vinculante.
IV. A natureza jurídica do consentimento Cumpre-nos agora falar sucintamente sobre a natureza 56 jurídica do consentimento. E qual é a natureza do consentimento? Será o consentimento um ato jurídico em sentido estrito? Ou é um negócio jurídico? Começamos por fazer o necessário enquadramento desta matéria no domínio da relação jurídica do direito civil, concretamente, no que se refere ao facto jurídico 57. Seguindo e citando HÖRSTER, “num sentido muito amplo, podemos dizer que factos jurídicos em geral são os que conduzem à produção de efeitos jurídicos. Como tais dão origem à constituição, modificação ou extinção de relações jurídicas ou, o que vai dar ao mesmo, à aquisição, modificação ou extinção de direitos subjectivos e correspondentes obrigações. Portanto, uma coisa é o próprio facto jurídico e uma outra são os efeitos jurídicos por ele produzidos ou provocados”58. A vontade assume um papel de destaque na matéria dos factos jurídicos. Os factos jurídicos podem ser voluntários ou involuntários, consoante dependam ou não da vontade humana. Os factos voluntários são ações ou omissões que resultam da vontade humana: é por vontade do sujeito que se verifica o facto jurídico. Já o facto jurídico
Crf. DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente..., cit., p. 133. Sobre a natureza jurídica do consentimento informado no ordenamento jurídico espanhol, cfr. JOSEFA CANTERO MARTINEZ, La autonomia del paciente del consentimento informado al testamento vital, cit., pp. 11 e 14. 57 Os outros elementos da relação jurídica são: o sujeito, o objeto e as garantias. 58 HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português..., cit., p. 202. 55 56
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involuntário produz-se independentemente da vontade humana (factos legais, factos naturais). Os factos voluntários podem ser lícitos (conforme a ordem jurídica) ou ilícitos (contrários à ordem jurídica). Quanto aos efeitos dos factos jurídicos voluntários ilícitos, consubstanciam-se numa sanção que é contrária à vontade do agente porque, por regra, o sujeito que pratica o ato ou omissão não quer a aplicação de uma sanção. E mesmo que queira essa sanção, a sua vontade é irrelevante, pois, por si só, a verificação de um facto voluntário ilícito tem como efeito jurídico a verificação de uma sanção. A contrario sensu, nos factos voluntários lícitos59, os efeitos jurídicos nunca se traduzem numa sanção. Os factos jurídicos lícitos englobam os negócios jurídicos60 (arts. 217.º a 294.º do CC) e os simples atos jurídicos (ou atos em sentido estrito ou restrito) (art. 295.º do CC). A principal diferença entre os factos voluntários lícitos reside no “alcance e significado da vontade no que diz respeito aos efeitos produzidos”61. Assim, no negócio jurídico, quem manifesta a vontade pretende que sejam produzidos os correspondentes efeitos jurídicos: os efeitos jurídicos são queridos pela(s) parte(s) mesmo que não se tenha previsto todos os efeitos. O negócio jurídico pode ser unilateral (há apenas uma manifestação de vontade), por exemplo, um testamento, ou bilaterais (duas ou mais declarações de vontade contrapostas), por exemplo, um contrato de compra e venda. Contrariamente, no ato jurídico em sentido restrito há a produção de efeitos independentemente da vontade, embora, possa acontecer, em certos casos, uma coincidência entre efeitos produzidos e a vontade do agente. Contudo, no ato jurídico em sentido restrito falta o elemento volitivo, ou seja, a vontade de querer ver produzidos esses efeitos. Pois os efeitos de um ato jurídico em sentido restrito resultam da lei e produzem-se seja qual for a vontade do agente (exemplo do art. 805.º do CC). Os atos em sentido restrito podem dividir-se em quase-negócios (que também podem derivar do negócio jurídico) ou atos reais. Nos atos reais, basta uma simples e natural vontade de agir para que o ato seja praticado (exemplo: art. 1324.º do CC). Já no quase-negócios, é necessário que o sujeito queira entender o ato a produzir (exemplos: arts. 583.º, n.º 1, 1287.º, 1289.º, n.º 2, do CC). Após esta breve exposição sobre o facto jurídico e as principais diferenças entre o negócio jurídico e o ato jurídico em sentido estrito, cumpre-nos determinar a natureza
Também designados de atos jurídicos em sentido amplo. Para mais desenvolvimentos sobre o negócio jurídico, veja-se também LUÍS FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica, 5.ª ed. revista e atualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2010, pp. 31 a 179. 61 HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português..., cit., p. 206. 59 60
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do consentimento. Tal questão não é unânime na doutrina. Na realidade, tem-se verificado uma divisão neste domínio, que vai entre a defesa do consentimento enquanto negócio jurídico e a defesa enquanto ato jurídico em sentido estrito. A doutrina europeia, em parte, ainda atribui ao consentimento a natureza de um negócio jurídico “já que a limitada disponibilidade dos bens jurídicos em causa (vida e integridade física) apenas justifica algumas desviantes da doutrina geral do negócio jurídico, entendendo, que, em geral, se harmoniza com as regras gerais”62. Outra parte da doutrina atribui ao consentimento a natureza de um quase-negócio jurídico. A doutrina nacional atribui ao consentimento vinculante e autorizante a natureza de negócio jurídico. Ora, sendo o consentimento para a prática de um ato médico o consentimento tolerante, não está incluído nesta qualificação enquanto negócio jurídico. GUILHERME DE OLIVEIRA diz que “a declaração de consentimento para a prática de um acto médico é uma manifestação de vontade do paciente que consubstancia um acto jurídico, inserindo-se na disciplina geral dos negócios jurídicos, em tudo o que não for objecto de regulamentação especial”63. Já CAPELO DE SOUSA refere que o consentimento é “um acto jurídico unilateral, meramente integrativo da exclusão da ilicitude, ou seja, constitutivo, na medida que não cria qualquer direito para o agente da lesão”64. Há ainda doutrina que em matéria de consentimento para a prática do ato médico defende que é necessário analisar a sua natureza de um ângulo diferente: têm entendido65 que o consentimento prestado pelo paciente é um consentimento duplo que deve ser analisado em dois momentos distintos. Num primeiro momento, temos o chamado consentimento-aceitação66. Este é prestado aquando da celebração do contrato de prestação de serviços médicos, no qual o paciente manifesta a sua vontade de ver produzidos os efeitos daquele contrato. Num segundo momento, temos o consentimento ou assentimento exigido antes de cada intervenção, tratamento ou qualquer outro ato médico, necessário para que haja o respeito pelos direitos à integridade física e disposição sobre o seu próprio corpo. Ora, ao fazer-se esta distinção, parece-nos que o consentimento-aceitação não é um consentimento tolerante, pois tem a natureza de um negócio jurídico ao qual serão aplicadas as
62 REINHARD RESCH, «Die Fahigkeit zur Einwilligung», in Einwilligung und Einwilligungsfahigkeit, p. 52, apud DIAS PEREIRA, ob cit. p. 135. 63 GUILHERME DE OLIVEIRA, «Prática médica, informação e consentimento», in Coimbra Médica, 14, 1993, p. 168, apud DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente..., cit., p. 136. 64 CAPELO DE SOUSA, Direito Geral de Personalidade, cit., p. 412, apud DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente..., cit., p. 136. 65 No seguimento da doutrina e jurisprudência francesa, nomeadamente, após a decisão da Cour de Cassation, em 29 de maio de 1951, LELEU/GENICOT, Le droit médical, p. 52, apud DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente..., cit., p. 137. 66 LELEU/GENICOT, Le droit médical, em nota de rodapé 297, p. 138, menciona uma outra distinção do consentimento: consentimento vs. acordo, efetuada por Costa Andrade.
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regras dos arts. 217.º e ss. do CC. Há uma declaração de vontade cujos efeitos jurídicos são pretendidos pelo declarante que celebra esse contrato de prestação de serviços. Daí que se possa aqui falar do tipo de consentimento autorizante ou do consentimento vinculante. Por sua vez, o segundo refere-se ao consentimento ou assentimento prestado antes de cada ato médico, constituindo uma verdadeira causa justificativa que afasta comportamentos ilícitos, nos termos do art. 340.º. Não é um negócio jurídico mas antes um ato jurídico em sentido estrito, em que, independentemente da vontade de quem consente, os efeitos são produzidos por via da lei. Sendo aplicado, com as devidas e necessárias adaptações, as regras dos negócios jurídicos (art. 295.º do CC). Tem características próprias, como, a revogabilidade a todo o tempo (art. 81.º, n.º 2, do CC) e a obediência aos princípios da ordem pública e bons costumes (arts. 81.º, n.º 1, 280.º, n.º 2, e 340.º, n.º 2, do CC)67. O que nos levaria – pela descrição – a afastar o consentimento tolerante. No entanto, e na esteira de DIAS PEREIRA e como tivemos oportunidade de referir no ponto anterior, o consentimento tolerante é um conceito elástico. O facto de se defender o consentimento tolerante para a prática de um ato médico não é motivo, por si, excludente da aplicação dos artigos suprarreferidos. A aplicação destes artigos e princípios não entra em confronto com a principal característica da não ressarcibilidade dos prejuízos causados às legítimas expetativas da outra parte. Aliás, DIAS PEREIRA68 frisa a diferença entre a obrigação de ressarcibilidade à outra parte por incumprimento do contrato de prestação de serviços (por exemplo, se o cliente não paga a consulta) da ressarcibilidade resultante da revogabilidade do consentimento para a prática do ato médico. Além disso, não nos podemos esquecer que, em matéria de direito civil, na falta de consentimento, os bens jurídicos lesados são a liberdade e autodeterminação pessoal e a integridade física e/ou moral, ou seja, bens que pela sua própria natureza são estritamente pessoais e disponíveis. O que significará sempre aceitar-se, mesmo o consentimento sendo tolerante, a sua revogabilidade. Apesar disso, é certo que esta disponibilidade terá sempre limites que são os bons costumes e a ordem pública69. Parecendo-nos assim adequada, em matéria de consentimento para a prática do ato médico, esta distinção entre o consentimento-aceitação e consentimento-assentimento.
Cfr. DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente..., cit., p. 138. DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente..., cit., p. 139. 69 Estamos perante conceitos indeterminados e com algumas diferenças no ramo do direito civil e do direito penal. Para maiores desenvolvimentos, veja-se DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente..., cit., pp. 140 a 146, e VAZ RODRIGUES, O Consentimento para o acto médico no ordenamento jurídico português..., cit., pp. 259 a 273. 67 68
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V. Modalidades do consentimento Concluímos anteriormente que o consentimento para a prática de um ato médico é do tipo tolerante e tem natureza de um simples ato jurídico. Centramo-nos agora nas modalidades do consentimento. Qual é a modalidade exigida para o consentimento para a prática de um ato médico? Para tal, precisamos de fazer um breve enquadramento sobre a matéria das modalidades das declarações negociais no Código Civil. Já vimos que o consentimento se traduz numa manifestação de vontade. Só que não basta existir essa manifestação de vontade. É necessário que a mesma se traduza numa declaração, ou seja, adaptando à matéria em causa, não basta que o paciente, por si mesmo, tenha consentido, é necessário exteriorizar o seu consentimento: é, assim, necessária uma declaração. Como refere LUÍS FERNANDES, “a declaração, ou comportamento declarativo, implica sempre, portanto, um ato exterior adequado a comunicar e dar a conhecer a outrem – declaratário ou destinatário – uma certa intenção ou conteúdo de pensamento do seu autor, uma vontade dirigida à regulamentação autónoma de interesses. [...] Em sentido próprio, a declaração é o comportamento através do qual se dá a conhecer a outrem certa vontade”70/71. Neste domínio, vigora o princípio geral da liberdade declarativa previsto no art. 217.º do CC72: o declarante, por regra, dispõe de todos os meios que lhe servem para se fazer entender73. Segundo o n.º 1 deste artigo, a declaração pode ser expressa ou tácita. A declaração é expressa quando “é feito por palavras, escrito ou qualquer outro meio direto de manifestação da vontade”74 e é tácita75 “quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam”. No primeiro caso, estamos perante uma manifestação direta da vontade do paciente. No segundo caso, estamos perante uma manifestação indireta da vontade do paciente. Como refere o Professor HÖRSTER, “uma declaração de vontade tácita é portanto uma manifestação indireta de vontade que se baseia num comportamento concludente do declarante. O
LUÍS FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, cit., pp. 277 e 278. A doutrina distingue da declaração de vontade a atuação de vontade. Neste último caso, não há uma declaração de vontade, apenas um simples ato de execução, que não se destina a ser comunicado ou dirigido a alguém. Vale por si, pela sua materialidade. Por exemplo, abandono de bens móveis. Neste sentido, cfr. LUÍS FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 278. 72 Para maiores desenvolvimentos sobre as modalidades de declaração negocial, veja-se LUÍS FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, cit., pp. 279 a 288. 73 Neste sentido, HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português..., cit., p. 434. 74 Por exemplo, gestos ou sinais. 75 LUÍS FERNANDES divide a declaração tácita em declaração tácita em sentido estrito (quando há uma presunção judicial ou de facto), a declaração presumida (em que a lei atribui certo valor de expressar a determinada vontade mas admite que este nexo seja afastado) e a declaração ficta (a lei não admite prova em contrário da vontade atribuída ao comportamento humano, pelo que necessariamente corresponde certa vontade) – cfr. LUÍS FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 285. 70 71
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comportamento destina-se principalmente (ou simultaneamente) a outro fim, mas permite a conclusão no sentido da existência da vontade negocial”76. A declaração ainda pode resultar do valor declarativo atribuído ao silêncio, art. 218.º do CC. Nestes casos, apesar da vontade, não chega a haver a manifestação dessa vontade. O silêncio só vale como declaração quando tal seja atribuído por lei, uso ou declaração77/78. Aplicando o exposto à manifestação do consentimento do paciente para a prática do ato médico, podemos concluir que o consentimento pode ser expresso ou tácito79, nos termos do art. 217.º do CC. Será expresso quando o paciente, por escrito80 ou oralmente81 (ou, ainda, gestos, sinais), manifesta o seu consentimento para a prática do ato médico. O consentimento será tácito quando, com toda a probabilidade, se pode deduzir que o paciente prestaria o seu consentimento. É fácil constatar que, em matéria de consentimento informado para a prática do ato médico, se exigirá, por regra, o consentimento expresso. Pois, sendo o consentimento um requisito essencial para a prática do ato médico, parece-nos que a regra deverá ser a manifestação expressa do consentimento, para que não haja dúvidas sobre a real e efetiva vontade de quem consente. É importante não confundir o consentimento expresso com um consentimento informado. Não são conceitos sinónimos. Efetivamente, o ideal é que o consentimento expresso seja sempre informado, pois significará o cumprimento do dever de esclarecimento do médico e traduzir-se-á na real vontade do paciente. No entanto, não é por ser expresso que é informado. São conceitos distintos: o expresso refere-se à modalidade de manifestação do consentimento, o informado refere-se a uma característica ou pressuposto exigível para prática do ato médico, ao respetivo cumprimento do dever
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Cfr. HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português..., cit., p. 434. Para maiores desenvolvimentos, veja-se LUÍS FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, cit., pp. 286 a
288. HÖRSTER, além de distinguir as modalidades das declarações de vontade (chamado elemento objetivo ou externo), distingue o elemento subjetivo ou interno: a vontade de ação, a vontade (ou consciência) de declaração e a vontade negocial. A vontade de ação traduz-se na vontade dirigida à execução da própria ação através da qual se manifesta a vontade negocial (exemplo: vontade de falar, de escrever de fazer gestos). A vontade negocial traduz-se na vontade dirigida a um certo efeito (exemplo: comprar aquele carro e não outro) e que não deve ser confundida com os motivos. A vontade de consciência traduz-se, como o nome indicia, na consciência de que a sua manifestação de vontade irá criar uma vinculação jurídica – HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português..., cit., pp. 436 e 437. 79 Crf. VAZ RODRIGUES, O Consentimento para o acto médico no ordenamento jurídico português..., cit., pp. 423 e 424. 80 Sobre o consentimento escrito, VAZ RODRIGUES, O Consentimento para o acto médico no ordenamento jurídico português..., cit., pp. 423 a 458. 81 O consentimento oral poderá ser ainda testemunhado e/ou confirmado, conforme a manifestação do consentimento seja presenciada por alguém ou, apesar de a pessoa não estar presente no momento da prestação do consentimento, posteriormente é confirmado junto do paciente a manifestação do consentimento prestado. 78
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de informação do médico e ao direito do paciente a ser informado. Por isso, não devemos pressupor que o consentimento, por ser expresso, ou seja, por ter sido consentida oralmente ou por escrito a prática do ato médico, foi informado. Imagina-se o caso em que paciente por escrito assina um documento que autoriza o médico a continuar uma operação, na hipótese de, no decurso desta, surgirem complicações que podem colocar o paciente em risco de paralisia. O paciente assina a declaração sem ser informado desse risco. Estamos perante um caso de consentimento expresso mas não informado. Há uma clara violação do direito à informação do paciente. Por isso, chamamos a atenção para esta distinção. A informação e o dever de esclarecer o paciente são pressupostos prévios da manifestação do consentimento. Ou seja, só depois de ser informado é que o paciente deverá manifestar a sua vontade que, na maior parte das vezes, será por escrito ou oralmente, atendendo ao facto de se tratar de consentimento para a prática de um ato médico. Assim, o consentimento expresso, desde que informado, traduzir-se-á na obtenção da vontade inequívoca do paciente através de um meio expresso e claro. Em determinados casos, é a própria lei que exige o consentimento expresso. Como refere DIAS PEREIRA, “nos casos de intervenções mais graves, que correspondem, em grande parte, a intervenções não terapêuticas, ou que se revestem de riscos graves ou possíveis consequências laterais muito desvantajosas”82, de forma a garantir-se a segurança jurídica da relação estabelecida. Aliás, o mesmo raciocínio pode ser aplicado à exigência, na maior parte das vezes, do consentimento expresso na forma escrita. Tal decorre da ideia de existir um suporte físico que assegure a estabilidade e segurança da relação estabelecida entre o médico e o paciente, protegendo a real vontade do paciente e também a própria atuação médica. No direito português, sobretudo no caso de intervenções mais complexas ou mais graves, exige-se o consentimento expresso. Por exemplo, para a participação em ensaios clínicos, tal como decorre do art. 6.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 46/2004, de 19 de agosto, que refere que deve ser “obtido o consentimento livre e esclarecido, nos termos previstos na presente lei, devendo a correspondente declaração escrita conter a informação sobre a natureza, o alcance, as consequências e os riscos do ensaio”. Sendo que, também no caso dos incapazes, se exige o consentimento expresso para a participação em ensaios clínicos (art. 7.º), no entanto, basta o consentimento tácito dos incapazes para vetar a participação nos ensaios clínicos. Isto é, decorre do art. 17.º, n.º 2, alínea v), da Convenção Europeia sobre os Direito do Homem e a Biomedicina (CEDHBio) que os menores ou inca82
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DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente..., cit., p. 478.
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pazes têm o direito de veto, podendo recusar-se a participar em ensaios clínicos, e tal recusa pode ser deduzida de factos que, com toda a probabilidade a revelam83. Também para a doação de órgãos ou tecidos é exigido o consentimento expresso, nos termos do art. 19.º, n.º 2, da CEDHBio, que estipula que “o consentimento seja prestado de forma expressa e específica, quer por escrito quer perante instância oficial”84, e também se exige a concordância expressa dos menores (com capacidade de entendimento e manifestação de vontade)85. O consentimento expresso é também exigido para as intervenções psicocirúrgicas (art. 5.º, n.º 2, da Lei da Saúde Mental), para a realização de testes genéricos 86 , para a realização do diagnóstico pré-natal 87/88 ou ainda para a esterilização voluntária89. Do delineado até agora, podemos constatar que uma das formas mais comuns da prestação do consentimento expresso é a forma escrita. Ora, em direito civil, e mais uma vez aplicando as regras dos negócios jurídicos, nos termos do art. 219.º do CC90, vigora o princípio da liberdade de forma. Segundo este artigo, “a validade da declaração negocial não depende da observância de forma especial, salvo quando a lei o exigir”. Por regra, as partes para a celebração de um negócio não estão vinculadas a uma forma 91. O que, em matéria do consentimento para a prática do ato médico, se traduz na liberdade de as partes prestarem o seu consentimento, expresso ou tácito, de forma livre, sem a obrigação de estar sujeito a forma escrita. Por isso, podemos afirmar que vigora a regra da oralidade. São também admitidas outras formas como a gravação da imagem e som, nos termos do art. 368.º do CC. Como refere VAZ RODRIGUES, “muito embora a lei se refira a estes meios como meios probatórios, tudo nos indica que seja tendencialmente equivalentes ser
“A CEDHBio fala em manifestar a sua oposição, mas essa manifestação pode ser feita por qualquer meio e até por pessoas ‘sem capacidade de entendimento e de manifestação de vontade’”, DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente..., cit., nota de rodapé 1099, p. 480. 84 Também já decorria da Lei n.º 12/93, de 22 de abril, a exigência de consentimento inequívoco. 85 Nos termos do art. 8.º, n.º 1, da lei anterior. E também aqui o direito de veto pode ser tácito (art. 20.º, n.º 2, alínea v), da CEDHbio). 86 Cfr. alínea d) do n.º 2 do art. 3.º, alínea a) do n.º 2 do art. 4.º e n.º 1 do art. 7.º do Despacho n.º 9108/97, de 13 de outubro. 87 A alínea c) do art. 3.º do Despacho n.º 5411/97, de 6 de agosto, refere que o consentimento, sempre que possível, deve ser por escrito, logo, é pressuposto que o consentimento seja expresso na forma escrita. 88 Sobre o diagnóstico pré-natal veja-se, GUILHERME DE OLIVEIRA, «O Direito do Diagnóstico Pré-Natal», in Temas de Direito da Medicina, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, pp. 217 a 235. 89 Também aqui a lei fala em consentimento escrito, o que pressupõe o consentimento expresso (art. 10.º, n.º 1, da Lei n.º 3/84). 90 Para maiores desenvolvimentos sobre esta matéria, cfr. HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português..., cit., pp 439 a 446, e LUÍS FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, cit., pp. 289 a 306. 91 A forma não deve ser confundida com as formalidades. As formalidades são as solenidades ou exigências (anteriores ou posteriores) à manifestação da vontade. Por exemplo, exigência de a assinatura do documento ser acompanhada de testemunhas ou o reconhecimento perante notário. 83
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feita a colheita da vontade em documento escrito ou qualquer um destes meios que se afigure como alternativo à declaração escrita, ainda que a norma jurídica que impõe a forma ou a formalidade da declaração refira expressamente a redução a escrito. Todavia, as diferenças entre os registos e a determinação equivalente exigem ponderação caso a caso” 92 . No entanto, por razões de segurança jurídica e atendendo à própria natureza do ato médico e gravidade da intervenção, exige-se a forma escrita93 para a prestação do consentimento do paciente. Como exemplos desta exigência temos94: o caso das técnicas invasivas e os testes de biologia molecular para diagnóstico pré-natal, nos termos da alínea c) do n.º 3 do Despacho do Ministério da Saúde n.º 5411/97 e do n.º 51 do Despacho do Ministério da Saúde n.º 9108/97, respetivamente95; a cessação voluntária da gravidez, nos casos permitidos por lei, exige sempre o consentimento por escrito da paciente ou a seu rogo96, sendo aplicadas as regras do Código Penal (art. 142.º, n.º 3, alíneas a) e b)), “a intervenção médica para salvar a vida da mãe que implique o risco de cessação da gravidez, segundo o CDOM (cfr. art. 47.º, n.º 3, e o art. 48.º), reconduz-se ao conceito de aborto terapêutico prevenido no art. 142.º, n.º 1, al. a) e b), do Código Penal e terá que se conter nos parâmetros consignados neste preceito, mais concretamente, na imposição de o consentimento ser prestado exclusivamente pela mulher grávida, ou, se não for possível, pelo próprio médico (cfr. n.º 3, al. a), e n.º 4 deste art. 142.º)97. É também exigido o consentimento escrito para a esterilização voluntária, nos termos do art. 10.º da Lei n.º 3/84, de 24 de março, quer a mesma seja efetuada por motivos terapêuticos, quer seja efetuada com outras finalidades a maiores de 25 anos. É sempre exigido o consentimento escrito, atendendo à natureza do ato médico e consequentes efeitos da esterilização. Para a participação em ensaios clínicos98, também se exige o consentimento escrito, nos termos do n.º 1 do art. 10.º do Decreto-Lei n.º 97/94, de 9 de abril, referindo expressamente o n.º 2 a ineficácia do consentimento informado VAZ RODRIGUES, O Consentimento para o acto médico no ordenamento jurídico português..., cit., p. 425. O conceito de documento encontra-se consagrado na 2.ª parte do art. 362.º, “diz-se documento qualquer objeto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto”. 94 Seguindo o esquema de VAZ RODRIGUES, O Consentimento para o acto médico no ordenamento jurídico português..., cit., pp. 428 a 432. 95 Publicado no Diário da República, II, série, de 06.08.1997 e de 13.10.1997, respetivamente. 96 Só é admitida quando a paciente não possa ou não saiba assinar o documento, pressupondo-se que, antes de ser assinado pelo rogado, seja lido à paciente. A lei impõe que o rogo seja dado ou confirmado perante notário (cfr. art. 373.º, n.os 1 e 4, do Código Civil e art. 154.º, n.os 1 e 2, do Código do Notariado). 97 VAZ RODRIGUES, O Consentimento para o acto médico no ordenamento jurídico português..., cit., nota de rodapé 35, p. 429. 98 Os incapazes, sempre que possível (por exemplo, quando não sejam menores de tenra idade, doentes mentais), devem também prestar o seu consentimento para a participação nos ensaios clínicos. Nestes casos, como é prestado o consentimento do representante legal, a falta de consentimento do incapaz não impede a prática do ato, pois não é considerado um requisito essencial. 92 93
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quando não é manifestado de forma escrita e não contenha o conteúdo enunciado no art. 9.º do mesmo diploma, “que consiste nos elementos de identificação do promotor, investigador responsável e seus colaboradores, bem como do técnico responsável pela qualidade dos medicamentos que irão ser utilizados nos ensaios, denominação dos medicamentos, características, duração e objetivos do ensaio; precauções a tomar e reações previsíveis”99. O consentimento escrito é também exigido no caso das intervenções médicas de saúde mental, por exemplo, a submissão do paciente a eletroconvulsoterapia ou a qualquer intervenção psicocirúrgica, conforme resulta das alíneas a) e d) do n.º 1 e n.º 2 do art. 5.º da LSM. O consentimento escrito é ainda exigido (aos pais ou outros representantes legais) para a realização de exames com recurso a técnicas de biologia molecular em menores, conforme n.º 7.1 e alínea a) do n.º 7.2 do Despacho do Ministério da Saúde n.º 9108/97; no caso da procriação medicamente assistida, também é exigido o consentimento por escrito. Ainda sobre a exigência da forma escrita para o consentimento médico, veja-se os arts. 39.º, 45.º e 48.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos. Há ainda casos em que se exige a autorização judicial para a prática do ato médico, por exemplo, no caso de doação intervivos de substâncias regeneráveis quando o dador é um incapaz adulto (art. 8.º, n.º 5, da Lei n.º 12/93, de 22 de abril, e alínea iv) do n.º 2 do art. 20.º da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina Alternativa), envolvendo também outras entidades ou outros elementos do estabelecimento de saúde, hospital ou clínica, além do médico100. Por exemplo, imagina-se a situação de um paciente com insuficiência renal. O sujeito X, incapaz, dador compatível vai doar-lhe um rim. São informados da intervenção e do tratamento médico. Os pacientes autorizam oralmente a realização da intervenção. Pode o paciente prestar o seu consentimento apenas oralmente? Ou teria de ser reduzido a escrito? Na doação do rim, seria exigido o consentimento por escrito pois o dador é incapaz.
VAZ RODRIGUES, O Consentimento para o acto médico no ordenamento jurídico português..., cit., p. 430. Para maiores desenvolvimentos, veja-se DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente..., cit., pp. 485 a 490. 99
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VI. A revogação do consentimento O consentimento prestado pelo paciente é revogado, sem sujeição a formalidades. Tal decorre do art. 5.º, n.º 3, da CEDHBio, “em qualquer momento, a pessoa afetada poderá retirar livremente o consentimento”, e do art. 81.º, n.º 2, do CC, que prevê a livre revogabilidade da limitação aos direitos de personalidade. Como o consentimento para a prática médica é tolerante, não há obrigação de indemnizar o médico em consequência da revogabilidade.
VII. Considerações finais A natureza da responsabilidade civil médica não é condição, nem pressuposto do consentimento informado. O direito ao consentimento informado existe independentemente de a relação médico-paciente ser estabelecida no domínio privado ou público e de existir ou não uma relação contratual. É um direito natural de qualquer paciente, em qualquer tipo de relação que seja estabelecida com o médico, não sendo a natureza da relação estabelecida entre o médico e o paciente que fixa a responsabilidade civil por violação do consentimento informado. Na realidade, essa responsabilidade resulta da violação dos bens jurídicos tutelados pelo direito ao consentimento informado: a autodeterminação, a integridade física e moral e liberdade do paciente, nos termos dos arts. 70.º e 483.º, n.º 1, 1.ª parte, do CC. É, por isso, a violação do consentimento informado mais do que a mera violação de um dever deontológico do médico (para o qual poderá ser chamado a responder disciplinarmente) ou de uma obrigação que nasce com relação contratual estabelecida com o paciente. É um direito de personalidade inerente a qualquer cidadão/paciente que tem o direito e liberdade de decidir por si e tomar as suas escolhas. Tem o direito à sua autodeterminação e a que seja respeitada a sua integridade física e moral. Por isso, mesmo que o paciente tenha uma relação contratual com o médico, o direito ao consentimento informado configurará sempre um direito de personalidade cuja violação e ressarcibilidade dos danos não patrimoniais causados pela violação da autodeterminação, liberdade e/ou violação à sua integridade física e moral consubstanciará fundamento de responsabilidade civil por violação de um direito de outrem, nos termos do art. 483.º, n.º 1, 1.ª parte, do CC, em que o ónus de prova incidirá sobre o médico. É também na sequência da tutela destes bens jurídicos e na exclusão da ilicitude da intervenção médica através da prestação do consentimento informado, nos termos
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do art. 340.º do CC e, subsidiariamente, do art. 81.º do CC, que podemos atribuir, por via de regra, ao consentimento informado o âmbito de consentimento tolerante. E deve ser entendido como um ato jurídico em sentido estrito, ao qual, por força do art. 295.º do CC, podem ser aplicadas, sempre que possíveis, as regras dos negócios jurídicos. A prestação do consentimento informado tem de ser expressa, seja de forma oral, seja de forma escrita. Vigora o princípio da liberdade de forma, apesar de, em certas intervenções e casos médicos, se exigir a forma escrita. No entanto, há uma questão que importa retirar: independentemente da forma que é prestado o consentimento, essa forma não traduz de per si a certeza da prestação de um consentimento informado. É certo que, por vezes, a forma escrita pode transmitir uma maior segurança e certeza jurídica, sobretudo para os médicos que veem nesse documento a autorização expressa à prática do ato médico e uma prova de que o paciente consentiu. Porém, como se poderá compreender, não será pura e simplesmente pelo facto de se assinar um papel que o consentimento prestado pelo paciente será informado, pois o paciente pode assinar sem perceber o alcance da intervenção médica ou do tratamento É por isso que não devemos fazer um juízo conclusivo no sentido de que, se o paciente assinou, o paciente consentiu. Somos da opinião que, sempre que possível, o paciente deve prestar o seu consentimento de forma dupla: por escrito e oralmente. Mais uma vez, atendendo aos bens jurídicos tutelados pelo regime do consentimento informado, aos princípios inerentes a este direito, a prestação do consentimento informado será sempre revogável nos termos do art. 81.º, n.º 2, do CC. Outra hipótese não seria de aceitar, a extrema pessoalidade deste ato e de tudo aquilo que representa não permitiria aceitar que o paciente ficasse impedido de voltar atrás na sua palavra e tivesse de indemnizar o médico por isso.
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O processo judicial do século XXI (A necessidade de um processo sem garantias processuais a fingir) Elizabeth Fernandez*
O legislador deve pensar como um filósofo, mas falar como um camponês. JEHRING
Resumo: Partindo de um caso concreto e de um inquérito levado a cabo para aferir da literacia judiciária dos cidadãos, do qual resultou que grande percentagem dos inquiridos não compreende o teor das notificações e citações judiciais que lhe são dirigidas, discute-se se a garantia do contraditório – considerada pedra angular do processo equitativo e do Estado de Direito Democrático – não estará apenas transformada numa falsa imagem com que o legislador presenteia os seus cidadãos, mas que, realmente, na prática, se desvanece, colocando, precisamente, em silencioso perigo o due process. Palavras-chave: Linguagem – Citação – Notificação – Contraditório – Processo equitativo
Abstract: Starting from a case, a survey was carried out to ascertain the citizens' literacy (knowledge) of legal terms, which resulted in a high percentage of respondents answering that they do not understand the content of the notifications and summonses addressed to them. The debate is if the assurance of the adversarial procedure – considered the cornerstone of due process and the rule of democratic law – isn't being transformed into a false image that the legislator presents its citizens, that, indeed, due process is fading, being put precisely in silent danger. Keywords: Language – Service – Notice – Adversarial procedure – Due process
Sumário: 1. O caso concreto e a necessidade de confirmação: o caso da Verónica; 2. Citações e notificações; 3. O texto tipo de citações e notificações; 4. Como resolver?
1. O caso concreto e a necessidade de confirmação: o caso da Verónica Uma sexta-feira ao fim da tarde, já em tempo de férias judiciais de verão, Verónica, divorciada, portadora de habilitações literárias mínimas, cidadã cabo-verdiana residente em Lisboa, onde presta serviços de limpeza, introduziu o seu cartão de débito num ATM da capital, com vista a retirar dinheiro com que se governaria a si e à sua
* Professora Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho.
Elizabeth Fernandez
filha menor, durante o fim de semana. Apesar de várias insistências não o logrou. Na segunda-feira seguinte, ao balcão do banco uma Verónica confusa e preocupada foi informada que a sua conta de depósito à ordem estava penhorada. Contando-nos a sua preocupação e relatando-nos (a mim e a outra jurista para a qual trabalha, prestando serviços de limpeza) o que lhe havia sucedido, rapidamente lhe perguntámos se não teria ela recebido qualquer notificação, qualquer “papel” do tribunal. Ela respondeu que não, mas no dia seguinte sacou do bolso da bata que veste para trabalhar um papel amarrotado que havia guardado numa gaveta há meses atrás. Desdobrando-o, logo percebemos nós – que somos juristas – tratar-se de uma injunção. Compelida a explicar porque é que não nos tinha dado o papel a ler quando o recebeu, respondeu que não achou importante porque não vinha de um tribunal, que não tinha percebido nada do que ali estava escrito. Explicando-lhe de seguida nós do que se tratava e perguntando-lhe se devia ou não algo àquela empresa que se dizia dela credora, disse que nunca lhe havia adquirido nada. Viemos mais tarde a saber que a empresa em causa tinha adquirido aquele crédito – que tentava, agora, cobrar de Verónica – de uma outra com quem o ex-marido desta havia, em tempos, contratado e que aquele não havia cumprido. Dado que o limite da penhora eletronicamente efetuada em férias judiciais tinha sido excedido, tornava-se imperioso reagir à mesma, ou seja, deduzir-lhe oposição. Sabíamos, porém, de antemão, que a pretensão defensiva da Verónica só chegaria a ser apreciada pelo juiz depois do decurso daquelas férias, atenta a natureza não urgente do processo1. A uma penhora que lhe foi imposta eletronicamente em plenas férias judiciais a Verónica só poderia reagir cerca de 40 dias depois. Evidentemente não faltam Verónicas por aí. Situações como esta sucedem mais vezes do que gostamos de pensar. Segundo a nossa experiência, um universo considerável de pessoas não compreende a linguagem empregue nas comunicações que recebem dos tribunais ou de outros remetentes, como é o caso dos balcões de injunção e de arrendamento.
1 Num processo em que vigora o princípio da igualdade efetiva das partes, a facilidade com que indevidamente os agentes de execução promovem penhoras em férias judiciais introduz uma flagrante diminuição nas garantias de defesa dos executados e de terceiros, uma vez que o prazo para estes deduzirem, se para tal tiverem fundamento, oposição à penhora ou embargos de terceiro, respetivamente, só começa a contar depois do término das férias judiciais, dada a natureza não urgente do processo. A nosso ver, a apreciação a posteriori da incorreção desta conduta (os atos processuais não se praticam em férias judiciais) não é suficientemente eficaz para neutralizar a violação do princípio da igualdade, pelo que a única medida que teria este efeito seria a atribuição de natureza urgente ao mecanismo de defesa apropriado, após a prática desse ato e por causa dele.
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Mesmo quase certos desta nossa intuição, baseada no empirismo das nossas relações com o mundo real, decidimos submeter esta nossa perceção à prova de um inquérito e, foi assim que, entusiasmando um grupo de alunos do Mestrado em Direito Judiciário, estes levaram a cabo o mesmo junto de uma amostra de 292 pessoas em regiões do Minho. Os resultados obtidos são devastadores. Demonstraram que, desse universo de inquiridos, 214 não compreendiam a notificação da injunção, 117 não compreendiam o texto normalizado da citação e 190 desconheciam, mesmo, o que significa mandatário judicial2. Esses mesmos resultados são ainda representativos de que as mais elevadas habilitações literárias reveladas por alguns dos inquiridos nem sempre ajudam – ao contrário do que se poderia à partida intuir – no entendimento correto da mensagem judicial que pretende ser transmitida por aqueles atos de comunicação (citação em ação declarativa e notificações de injunções).
2. Citações e notificações Como é comummente sabido, as citações3 e as notificações judiciais (ou mesmo as emitidas por entidades administrativas, mas com fins judiciais) são atos de comunicação de uma mensagem processual (habitualmente relacionada com a necessidade ou faculdade da prática de um ato, substantivo ou processual) e necessária ao curso e avanço do processo, que, por conseguinte, têm natureza receptícia. Os atos processuais de comunicação que submetemos a pessoas que deles poderiam ser os naturais destinatários destinam-se, de uma forma geral, a facultar o exercício do contraditório no processo judicial ou injuntivo em curso, de modo a que aquele contra o qual foi deduzida uma qualquer pretensão possa influenciar o juiz ao qual foi submetida a apreciação da mesma, mediante a dedução de factos e a solicitação da produção de provas, com vista a desta forma tentar impedir a prolação de uma decisão desfavorável ou a imediata constituição de um título executivo contra si.
2 Os resultados completos deste trabalho podem ser consultados diretamente na página da Escola de Direito da Univeridade do Minho (www.edum.uminho.pt), ficando desde já aqui publicamente um sentido reconhecimento aos alunos envolvidos que, sem qualquer auxílio, se dispuseram a prestar este serviço à justiça nacional. 3 Dispõe o n.º 1 do art. 219.º do Código de Processo Civil (CPC) que a citação é o ato pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação e se chama ao processo para se defender, embora se empregue a mesma expressão para o ato do primeiro chamamento de um determinado interessado na causa ao processo.
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Convém, no entanto, ter presente que, no sistema processual nacional, aqueles atos não se destinam apenas a dar a conhecer a possibilidade (faculdade) de exercício tempestivo de um dado ato processual. De um modo geral, num sistema processual que, como o nacional, divide as formas processuais em compartimentos bastante estanques e transforma a generalidade das faculdades processuais em verdadeiros ónus processuais, o réu, regulamente citado, não tem a faculdade de contestar, mas o ónus de o fazer, sob pena de, não o fazendo, os factos alegados contra si, pelo autor, ficarem admitidos ou confessados, permitindo que o tribunal profira a sua decisão partindo em exclusivo da versão dos factos ou da narrativa do autor4. Do mesmo modo, o devedor notificado pelo credor mediante o Balcão Nacional de Injunções não tem a faculdade de deduzir oposição, mas o ónus de o fazer, sob pena de, não o fazendo, permitir a constituição contra si de um título executivo que representa o acertamento da obrigação e do montante da mesma e legitima aquele a, de imediato, praticar atos coativos no património deste destinados a efetivar o referido direito de crédito. Portanto, se, na maioria das vezes, exercer o contraditório não é uma faculdade, mas um ónus, haveremos de convir que os atos de comunicação de um dado ato processual a um sujeito determinado se revestem de particular importância5. A realidade normativa do processo demonstra que o legislador reconhece, de uma maneira geral, a importância central de tais atos para o exercício do contraditório. Com efeito, e no que em especial ao ato de citação diz respeito, esta vem detalhadamente regulada entre os arts. 219.º e 246.º do CPC. É, aliás, um dos atos, senão mesmo o ato, mais especificamente regulado no CPC, estando pormenorizadamente tratados, entre outros, a forma da citação, o seu conteúdo e as várias modalidades, bem como as diferenças a observar entre a citação efetuada a uma pessoa singular e a uma pessoa coletiva. O legislador preocupa-se mesmo com as regras a seguir com a citação de pessoas incapazes de exercício de direitos, quer essa incapacidade tenha sido já objeto de reconhecimento, quer seja meramente acidental6.
Vigora, entre nós, o sistema da ficta confessio. Mesmo nos casos em que o exercício do contraditório não é configurado como ónus, mas como mera faculdade processual – como é o caso das situações em que a revelia do réu é inoperante –, a citação deve pautar-se pela mesma exigência, pois que o réu tem o direito de poder influenciar com o exercício daquele contraditório a decisão a proferir pelo julgador. 6 De facto, basta atentar para este efeito no que está disposto no art. 234.º do CPC, segundo o qual a notória anomalia psíquica ou outra que impeça o destinatário de receber e compreender a citação obsta a que a mesma seja levada a efeito, devendo o agente que executa essa mesma diligência dar conta dessa circunstância ao juiz para que este, após contraditório, possa decidir da existência daquela incapacidade e, caso esta se confirme, seja nomeado curador ad hoc que possa receber aquela comunicação. 4 5
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E, no que se refere especificamente ao conteúdo da citação – que aqui particularmente nos interessa, atentos os propósito destas linhas –, dispõe o n.º 1 do art. 227.º que esse mesmo ato implica a remessa ou entrega ao citando do duplicado da petição inicial e da cópia dos documentos que a acompanhem, comunicando-se-lhe que fica citado para a ação a que o duplicado se refere e indicando-se o tribunal, juízo e secção por onde corre o processo, se já tiver havido distribuição. Acrescenta o n.º 2 do preceito que se indica ao citando, ainda nesse mesmo ato, o prazo dentro do qual pode oferecer defesa, a necessidade de patrocínio judiciário e as comunicações em que incorre no caso e revelia. O preceito em causa estabelece, em suma, o conjunto de informações essenciais que deve ser transmitido ao citando para que a citação não enferme de nulidade que possa ser arguida nos termos do art. 191.º do CPC: o teor da pretensão que contra ele é deduzido (factos e provas); o prazo para exercer essa defesa, onde deve a mesma ser exercida, a necessidade de se fazer ou não representar por advogado e as consequências para o citado de optar por não apresentar contestação7. Mas será que, apesar de todos estes cuidados, a citação consegue cumprir sempre a sua função? É o que veremos de seguida.
3. O texto tipo de citações e notificações Desde que exercemos a advocacia que conhecemos quase de cor o texto formal inserido nas citações e notificações, reconhecendo nele, de modo imediato, o preciso texto normativo constante dos agora arts. 227.º e 569.º, n.º 1, do CPC. Confessamos que, durante muito tempo – talvez demasiado tempo –, esta fidelização absoluta do texto dos atos de comunicação à lei não nos apoquentou. Analisando, agora, porém, em retrospetiva este facto, concluímos que, inconscientemente, aceitamos a linguagem usada naqueles atos como “natural” apesar de verdadeiramente esta ser “legal”, vendo-a, egoisticamente, apenas no prisma do jurista e do advogado e dos conhecimentos técnicos habitualmente associados a que comparte essas profissões.
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Ainda: o modelo de citação postal está regulamentado pela Administração da Justiça, nos termos
da Portaria n.º 275/2013, de 21 de agosto, que alterou a Portaria n.º 953/2003, de 9 de setembro, que aprovou os modelos oficiais de carta registada e de aviso de receção para citação pessoal, a efetuar por via postal, bem como os modelos a adotar nas notificações via postal.
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Confessamos ter julgado, até, em dado momento, que algum regulamento vertido em portaria regulasse o específico texto da citação. Após aturada busca, descobrimos que tal portaria não existe. O que existe é o conteúdo mínimo contantes do art. 227.º do CPC que o desconhecido autor que terá preparado os primeiros textos de citação copiou de modo fiel, convencido de que assim e – e só assim – cumpriria, sem desvios, o sagrado conteúdo que aquele preceito desenhou para aquele ato. Dito de outro modo, a citação e, mais tarde, também, a notificação (na injunção) incluem o conteúdo legalmente previsto, mas nos precisos termos legais constantes da norma, o que quer dizer simplesmente que, no ato de comunicação, não está empregue uma “plain language”, mas uma “legal language”. Por isso, em vez de se comunicar que deve ser constituído advogado, se diz que se deve constituir mandatário; e que, em vez de se dizer que se sofre uma dada consequência caso não se conteste, se refere o termo cominação e, é também por causa disso que, onde se podia escrever que a falta de oposição dentro do prazo legal pode determinar penhoras de bens, salários, saldos de depósitos bancários, etc. do notificado, se escreve, em seu lugar, que aquela mesma falta determina a aposição, no requerimento de injunção, da fórmula executória. Portanto, a comunicação destinada ao réu ou ao devedor para aqueles fins está escrita numa linguagem que, por ser legal, este – a menos que seja jurista – não está habilitado a entender. Esse aspeto nunca foi objeto de qualquer preocupação, julgando-se que a garantia do contraditório estava suficientemente assegurada pelos cuidados legais exigidos para qualquer um destes atos. Pensará o leitor destas linhas: mas se o citado ou o notificado não entende a linguagem legal que vá ao advogado para que este lha “traduza”. Cremos, porém, que este pensamento não é consentâneo com a ideia de processo devido que os juristas interiorizaram e que está plasmada na Lei Fundamental. A citação/notificação têm de, por si próprias – sem sujeição a qualquer técnica de tradução –, levar ao conhecimento do sujeito delas destinatário todos os elementos necessários para que este possa optar entre contestar ou não contestar, pagar ou deduzir oposição ou, pura e simplesmente, nada fazer. Se o citado ou notificado, para perceber a carta que recebeu, tem de ir a um advogado, então o ato de comunicação não exerceu a sua função – fracassou rotundamente – ou, melhor dizendo, só formal e aparentemente a exerceu. Não podemos esquecer o evidente: a comunicação visa comunicar, ou seja, transmitir uma mensagem.
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Convém termos presentes esta realidade: em Portugal, comunicam-se atos processuais destinados pessoalmente aos sujeitos processuais (autor/réu) nos precisos termos em que se escrevem normas jurídicas. Ora, se esta constatação já é estranha – embora perplexamente aceite, sem oposição ou repúdio, por todos os operadores judiciários –, os níveis de preocupação aumentam, consideravelmente, quando estes atos de comunicação já não têm apenas como origem um tribunal, mas antes um balcão, e quando é patente que, apesar da elevada taxa de alfabetização da população, se terá de convir que (tirando a pedagógica mediatização judiciária dos termos da justiça o âmbito do processo penal) as expressões e conceitos legais utilizados nas citações e notificações em causa ainda não entraram no vocabulário comum dos cidadãos e não são por estes compreendidas de todo, como, aliás, bem o ilustram os resultados do inquérito supra referido. O comum do cidadão não sabe o que é um mandatário. Do mesmo modo: não sabe o que é a fórmula executória. E se isto é assim quando o remetente é um tribunal – e isso de algum modo possa alertar para a existência de um processo judicial e, assim, alavancar a procura de um auxílio, mesmo desconhecendo-se para quê –, a possibilidade de omissão involuntária de contraditório é elevada (e propiciada) quando o remetente é um mero balcão, que não é tradicionalmente um termo judiciário, mas tem um significado na linguagem comum que tem o efeito inverso, induzindo, inclusive, despreocupação8. A Verónica, tal como a descrevemos no início deste texto, não percebeu a responsabilidade e o perigo decorrentes daquela notificação, pois para ela (como para uma grande maioria dos cidadãos, mesmo os mais letrados) nenhum mal pode vir de um balcão, desconhecendo que a omissão em que involuntariamente se incorrem fará com que ao requerimento de injunção (termo também ele desconhecido) venha a ser aposta uma fórmula executória que legitimou que, naquele fim de sexta-feira à tarde, esta tivesse ficado sem o único sustento da sua família. Conferir efeitos cominatórios a uma citação feita nestes termos ou que um património possa ser agredido nestas circunstâncias é admitir que a efetivação do due process (processo equitativo) se basta entre nós com uma camada superficial e formal. É ignorar que o sistema se encontra estruturado no pressuposto de que as atuações dos sujeitos processuais são voluntários.
Acrescentamos não se registar qualquer interesse por parte da administração da justiça em elucidar, mediante publicidade adequada junto dos cidadãos, a descodificação da terminologia usada, de modo a fazê-la entrar paulatinamente na linguagem comum. 8
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O que interessa para aqueles efeitos é que o destinatário tenha efetivamente recebido em suas mãos a citação/notificação, mas já é irrelevante para a concretização desses graves efeitos que a tenha efetivamente percebido. Dito de outro modo: a suscetibilidade de a mensagem essencial vertida no texto da notificação ser compreendida pelo seu destinatário é perfeitamente irrelevante ou só acidentalmente releva. Um sistema em que o citado/notificado, apenas por mero acidente de percurso, compreende a mensagem que o tribunal ou uma outra qualquer entidade lhe quiseram transmitir só hipocritamente pode ser integrado no podium dos processos equitativos. De notar que a situação que temos vindo a tratar – a da utilização de linguagem legal nas notificações/citações – não é a única onde este deficit de due process se pode apreciar. Basta pensarmos na citação dos réus/devedores analfabetos (não prevista em qualquer hipótese das normas que no CPC se dedicam à citação), ou mesmo, da citação/notificação dos réus/devedores estrangeiros que residam (ou esteja temporariamente) em Portugal ou dos que residem no estrangeiro9. Também estes – ainda que nem sequer percebam que o documento que recebem tem origem num tribunal, por desconhecer o significado de tal palavra na língua portuguesa –, consideram-se citados (alguns deles sem qualquer dilação adicional), mesmo quando aquela comunicação vem escrita em idioma que lhes é completamente desconhecido e que não têm dever de conhecer. E, do mesmo modo, estes sofrem, sem merecer perdão as cominações derivadas da sua eventual omissão processual, ainda que esta tenha sido involuntária10. Note-se
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O direito processual europeu vertido no Regulamento n.º 1393/2007, relativo à citação e notifica-
ção de atos judiciais e extrajudiciais em matéria civil e comercial nos Estados-Membros, distancia-se do direito processual português, uma vez que, nos termos do art. 8.º, a entidade e requerida avisa o destinatário de que pode recusar a receção do ato, quer no momento da citação ou notificação, quer devolvendo o ato à entidade requerida no prazo de uma semana, se este não estiver redigido ou não for acompanhado de uma tradução em língua que o destinatário compreenda ou em língua oficial do Estado-Membro do requerido, caso em que, devolvendo-se o expediente ao remetente, este deverá prover pela tradução, caso pretenda. 10
Apesar de “estranha”, esta conceção de processo equitativo (assim deficitário) parece estar “en-
tranhada” na jurisprudência como pode confirmar-se pelo recente acórdão da Relação de Lisboa de 18.06.2015 (processo que comece a correr o prazo de defesa para o citando ou notificando feita a citação de réu em estado da união em que se aplique o dito regulamento pode devolver a mesma por não compreender a linguagem em que esta lhe foi apresentada. Paradoxalmente se esse mesmo réu for estrangeiro e residir em Portugal receberá citação e a petição inicial ou a notificação e o requerimento executivo em língua portuguesa, porque é nesta língua que se praticam os atos. Proc. n.º 1821-14.2T8CSC-B.L1-6), consultado em www.dgsi.pt, segundo o qual, pese embora não devam descurar-se as relevantes funções atribuídas à citação, nomeadamente a de dar “conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada acção” e de chamar o réu “ao processo para se defender” (cfr. n.º 1 do art. 219.º do CPC) e, nessa medi-
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que das exceções legalmente previstas à operacionalidade da revelia11 não adquirem relevância qualquer uma destas situações referidas e nem sequer existe – a não ser em caso de justo impedimento – uma previsão geral que admita a possibilidade de não se verificarem os efeitos próprios daquelas omissões quando se demonstre que as mesmas não foram voluntárias.
4. Como resolver? Se a concretização do processo equitativo se compadecesse com o tempo necessário para formar os cidadãos desde tenra idade na aproximação ao significado da linguagem judiciária, que diretamente pode determinar o exercício de direitos humanos, poderíamos começar por aqui. Mas, sem prejuízo de se valorar esta forma de resolução, o problema exige, sob pena de inconstitucionalidade12 e de violação do art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, uma medida mais urgente. E a mesma passa por transformar para linguagem comum a linguagem legal, refazendo desde o início os longamente estandardizados conteúdos das comunicações, de modo a que, sem se perder de vista a exatidão do conteúdo essencial querido por lei, este se faça compreensível por qualquer cidadão. As citações e as notificações têm rapidamente de deixar de ser um copy paste dos preceitos legais, para cuja compreensão e interpretação os cidadãos não estão habilitados ou preparados, desde logo porque não são licenciados em Direito. Isto tem de acontecer, sobretudo, porque os operadores judiciários que têm responsabilidades nesta matéria sabem – ou então desconhecem o país – que estas comunicações desde há muito tempo só aparentemente cumprem a sua função. E para demonstrar que não se conformam com este resultado devem, como já se fez em tem-
da, as cautelas de que a mesma se deve rodear, a verdade é que o art. 239.º do CPC não exige que os réus nacionais ou sediados num estado estrangeiro tenham de ser citados na língua desse estado e com tradução para essa língua dos atos judiciais, nomeadamente a petição inicial. Continua: a exigência contida no n.º 3 do art. 239.º do CPC, da necessidade de plena compreensão do objeto da citação, reporta-se à exigência de a citação dever ser acompanhada “de todos os elementos e de cópias legíveis dos documentos e peças do processo necessárias à plena compreensão do seu objecto”, ou seja, não basta apenas a peça processual petição inicial, mas todos os documentos e elementos juntos com a mesma, concluindo que não padece de qualquer irregularidade, maxime nulidade, a citação de uma pessoa coletiva de direito panamiano, com sede no Panamá, sem a tradução da nota de citação e da petição inicial em língua espanhola. Art. 568.º do CPC. Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional de 17.11.99 (n.º 632/99), o qual, ainda que com votos de vencido, nega a inconstitucionalidade de a citação de réus estrangeiros se fazer em língua portuguesa, mas apenas pelo circunstancialismo específico do caso concreto. 11 12
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pos entre nós no domínio estrito dos textos legais, e já o desenvolveu, também, a administração Obama com o Plain Writing Act13, criar um texto substitutivo do legal a transferir para as comunicações judiciais em linguagem comum. Até lá, a nossa atenção deve voltar-se para a cláusula geral de salvaguarda contra os efeitos das omissões involuntárias que no nosso sistema jurídico corresponde ao instituto do pelo justo impedimento14. Muito se tem escrito e falado sobre as preocupações com a celeridade da justiça ou, se se preferir, com a circunstância de os tribunais demorarem mais do que o que se julga ser o tempo razoável para decidir. Inversamente, muita preocupação se deteta no que à efetivação de outras dimensões igualmente importantes do due process diz respeito (art. 20.º da Constituição da República Portuguesa – CRP). O desafio do processo do séc. XXI estará em lograr que aquela dimensão temporal se cumpra sem que, consciente ou inconscientemente se atropelem garantias processuais – em especial, a do contraditório –, o que significa que, apesar de o interesse do credor (e, portanto, também da economia nacional) poder beneficiar da rapidez com que se obtém um título ou uma decisão judicial e de o direito de ação deste exigir que o tempo razoável constitucionalmente previsto se cumpra, tais nobres desideratos não poderem ser conseguidos através do aproveitamento de omissões processuais involuntárias que permitem a formação daquele título ou conduzem a uma decisão desfavorável por falta de contestação. Dito de outro modo, o direito de ação não pode ser logrado à custa do direito de defesa, pois ambos são direitos fundamentais. De resto, se se aprecia tanto como se invoca e apregoa a procura da verdade material (não importa agora o que quer que seja que se entenda por esta expressão), o processo não pode ser permeável à produção e proliferação de decisões tomadas com base em omissões de comportamento dos sujeitos processuais envolvidos em que a vontade dos mesmos não ocorreu para a sua verificação. Quando a citação não cumpre ou não atinge (de facto) os fins a que estava destinada (por inadequação completa da linguagem nela empregue para o seu fim) não é a
13 Aprovada em 13 de outubro de 2010 e que tem como objetivo to improve the effectiveness and accountability of Federal agencies to the public by promoting clear Government communication that the public can understand and use”, definindo a mesma lei que the term ‘‘plain writing’’ means writing that is clear, concise, well-organized, and follows other best practices appropriate to the subject or field and intended audience. 14 Como refere PAULA COSTA E SILVA, Acto e Processo – O dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do acto postulativo, Coimbra Editora, 2003, pp. 313 a 315, ao considerar que o justo impedimento que a jurisprudência e doutrina excessivamente restringem é demonstrativo que o sistema não quer viver com uma realidade cuja conformação escapou ao domínio da vontade dos sujeitos adjetivos. Concluindo que a omissão processualmente relevante tem de fundar-se num comportamento voluntário do sujeito.
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ausência de uma regra processual expressa que nos inibirá de concluir pela nulidade desse ato de comunicação. Basta que, perante situações como estas, os Tribunais se atrevam, apesar dessa ausência de previsão, a desconsiderar os efeitos processuais assim obtidos, aplicando diretamente – como lhes compete – a garantia de defesa prevista no art. 20.º da CRP, como componente central do processo equitativo. De facto, como escreve PAULA COSTA E SILVA15, o sistema não quer viver com uma realidade cuja conformação escapou ao domínio da vontade dos sujeitos adjetivos, pois o esgotamento das faculdades processuais, que têm vida breve no processo, depende da possibilidade de a parte as ter exercido. Não queremos mais Verónicas.
PAULA COSTA E SILVA, Acto e Processo – O dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do acto postulativo, cit., p. 314. 15
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A insolvência do inquilino: da denúncia do contrato de arrendamento pelo administrador de insolvência à falta de pagamento da renda Fernando Gravato Morais*
Resumo: O texto em apreço trata da insolvência do locatário. Em primeiro lugar, cura do regime geral dos efeitos da declaração de insolvência no contrato de arrendamento. Seguidamente, aborda os efeitos da declaração de insolvência no contrato de arrendamento habitacional, em especial. Nesta sede, trata da falta de pagamento da renda e da resolução do contrato pelo locador. Palavras-chave: Insolvência – Locatário – Arrendamento – Falta de pagamento da renda – Resolução do contrato
Abstract: The text under consideration deals with the insolvency of the lessee. First, healing the general arrangements for the purpose of declaration of insolvency in the lease. Then, it discusses the effects of the declaration of insolvency in the housing lease in particular. This area deals with the default of payment of rent and termination of the contract by the lessor. Keywords: Insolvency – Lessee – Lease – Default of payment of rent – Termination of the contract
Sumário: § 1. A insolvência do arrendatário: enquadramento legal; § 2. Efeitos da declaração de insolvência no contrato de arrendamento: regime geral; 1. Considerações gerais; 2. O direito de escolha do administrador da insolvência; 2.1. Manutenção do contrato de arrendamento; 2.2. Denúncia do contrato de arrendamento; 2.2.1. Caracteres da denúncia; 2.2.2. A denúncia e o tipo de contrato; 2.2.3. Em especial, o prazo de pré-aviso; 2.2.4. O período de pendência da denúncia; 2.2.5. O período que medeia entre a data da produção dos efeitos da denúncia e o termo (convencionado ou possível) do contrato; 2.2.6. Outros efeitos da denúncia; § 3. Efeitos da declaração de insolvência no contrato de arrendamento habitacional: regime especial; § 4. Falta de pagamento da renda e resolução do contrato pelo senhorio; 1. Falta de pagamento da renda anterior à declaração de insolvência; 1.1. Resolução do contrato depois da declaração de insolvência por rendas vencidas em data anterior àquela; 1.2. Resolução do contrato antes da declaração de insolvência por rendas vencidas em data anterior àquela; 2. Falta de pagamento da renda posterior à declaração de insolvência.
* Professor Associado com Agregação da Escola de Direito da Universidade do Minho.
Fernando Gravato Morais
§ 1. A insolvência do arrendatário: enquadramento legal A matéria da insolvência do arrendatário encontrava expressão no art. 169.º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF)1 e, recuando ainda mais no tempo, no art. 1197.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil (CPC)2. A temática está atualmente regulada no art. 108.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)3, que não é dirigido especificamente ao arrendatário4, mas, em termos mais amplos, a um qualquer locatário. São seus pressupostos, no que toca especificamente à matéria que nos ocupa: – a existência de um contrato de arrendamento válido e em vigor; – a declaração de insolvência do arrendatário.
Sob a epígrafe “arrendamento em que o falido é arrendatário “, determinava o preceito o seguinte: “a declaração de falência não faz cessar o contrato de arrendamento em que o falido seja arrendatário, mas o liquidatário judicial pode denunciá-lo de acordo com os interesses da massa falida, ficando ao senhorio o direito de reclamar as rendas em dívida até à denúncia e ainda a indemnização devida por incumprimento do contrato, como créditos comuns” (n.º 1); “tendo o senhorio requerido a resolução do contrato só após a declaração de falência, por falta de pagamento de rendas, não tem direito a indemnização pela mora anterior a ela” (n.º 2); “não tendo o prédio arrendado sido ainda entregue ao arrendatário à data da declaração de falência deste, tanto o liquidatário judicial como o senhorio podem desistir da execução do contrato, mediante indemnização pelo incumprimento que, quando devida pelo falido, constitui para a outra parte crédito comum” (n.º 3); “tanto o senhorio como o liquidatário judicial podem fixar um ao outro um prazo razoável para a declaração de resolução do contrato, findo o qual cessa o direito de resolução” (n.º 4). 2 Tendo como título “subsistência dos contratos bilaterais do falido”, dispunha o normativo que “a declaração da falência não importa a rescisão dos contratos bilaterais celebrados pelo falido, os quais serão ou não cumpridos, consoante, ouvido o síndico, for julgado mais conveniente para a massa. No segundo caso, deve o administrador notificar o outro contraente, a quem fica salvo o direito de exigir à massa, no processo de verificação de créditos, a correspondente indemnização de perdas e danos” (n.º 1); “no caso de ser mantido o arrendamento da casa, estabelecimento ou armazém do falido, as rendas serão pagas integralmente pelo administrador da falência” (n.º 2). 3 O CIRE (cujo regime consta do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 28 de março, com as alterações constantes do Decreto-Lei n.º 200/2004, de 18 de agosto, do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março, do Decreto-Lei n.º 282/2007, de 7 de agosto, do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho, do Decreto-Lei n.º 185/2009, de 12 de agosto, da Lei n.º 16/2012, de 20 de abril, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, e do Decreto-Lei n.º 26/2015, de 6 de fevereiro). 4 Ao contrário do que sucedia no art. 169.º do CPEREF. 1
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§ 2. Efeitos da declaração de insolvência no contrato de arrendamento: regime geral 1. Considerações gerais Verificados os pressupostos assinalados, atua, em princípio, o regime do mencionado preceito. A declaração de insolvência do inquilino, ao contrário do princípio aplicável aos contratos em geral, estabelecido no art. 102.º do CIRE, não suspende o contrato de arrendamento (art. 108.º, n.º 1, do CIRE)5. Portanto, aqui a regra é a da execução (ou, dito de outro modo, da continuidade) do contrato. No entanto, essa regra não é absoluta, já que o administrador da insolvência pode sempre denunciá-lo, a todo o tempo, com um dado prazo de pré-aviso. No fundo, também aqui se confere um direito de escolha ao administrador da insolvência: entre a continuidade do contrato ou a sua denúncia6 (e já não, como sucede no art. 102.º, n.º 1, do CIRE, entre a execução e a recusa do cumprimento). O que releva para esta disciplina é a tutela dos credores da massa insolvente que se pretende: se a manutenção do bem (o direito ao arrendamento) for do interesse daqueles, então dá-se prevalência à continuidade do contrato; se não o for, proceder-se-á à denúncia. Deve referir-se ainda que se estabelece um regime geral e um regime específico para o caso de insolvência do arrendatário. 2. O direito de escolha do administrador da insolvência 2.1. Manutenção do contrato de arrendamento A manutenção do contrato de arrendamento significa que este deve continuar a ser cumprido integralmente. Assim, o senhorio, v.g., permanece adstrito a proporcionar o gozo da coisa, tendo o direito a receber a correspondente remuneração.
5 O art. 169.º, n.º 1, do CPEREF referia similarmente que “a declaração de falência não faz cessar o contrato de arrendamento em que o falido seja arrendatário”. 6 MENEZES LEITÃO entende que se trata aqui, “em bom rigor, [de] uma recusa do seu cumprimento” (Direito da Insolvência, 5.ª ed., Coimbra, 2013, p. 186). A nosso ver, trata-se de uma modalidade especial de recusa, pois esta não opera imediatamente, sendo que o contrato aqui não está suspenso, antes se continua a executar, seguindo os efeitos gerais da denúncia do arrendamento, ressalvada a particularidade do prazo de pré-aviso e as deduções indemnizatórias consagradas.
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Do lado do arrendatário, é agora o administrador da insolvência que ingressa na posição daquele7, pelo que lhe cabe especificamente proceder ao pagamento da renda8, depois de declarada a insolvência9. 2.2. Denúncia do contrato de arrendamento 2.2.1. Caracteres da denúncia Nada se refere no art. 108.º do CIRE quanto aos caracteres da denúncia, pelo que se segue o regime geral desta. Assim, a denúncia é, por natureza, imotivada, ad nutum, não havendo que alegar nenhuma razão justificativa para extinguir o contrato. Pode tal declaração ser efetuada a todo o tempo, e não apenas logo após a declaração da insolvência. No entanto, só o administrador da insolvência pode exercer o direito em apreço (cfr. art. 108.º, n.º 1 e n.º 3, parte inicial, do CIRE10). Não o podem fazer nem o arrendatário, nem o senhorio. Quanto ao modo do exercício, dado que a disciplina específica é omissa, cremos que se devem aplicar as regras arrendatícias quanto à extinção do contrato, ou seja, o art. 9.º, n.os 1 a 6, do Novo Regime de arrendamento Urbano (NRAU). Realce-se, por último, que a finalidade desta denúncia não é a mesma que emerge do quadro geral privatista, ou seja, a de evitar vinculações perpétuas. O seu propósito é o de proteger os interesses da massa insolvente e dos credores da insolvência11.
Embora com algumas restrições. Ver Acórdão da Relação do Porto, de 03.12.2009 (TELES DE MENEZES), www.dgsi.pt [questionou-se se “as rendas em dívida desde a declaração da insolvência constituem um crédito sobre a insolvência ou uma dívida da massa insolvente, atento o disposto no n.º 2 do art. 89.º do CIRE”; o tribunal considerou que se tratava “de uma dívida da massa insolvente, porque a A. exercita um direito relacionado com a manutenção do contrato de arrendamento pelo administrador da insolvente, que o não denunciou, como podia fazer (art. 108.º, n.º 1), e com o não pagamento da contraprestação devida pela disponibilização do locado, as rendas que, assim, constituem dívidas da massa (n.º 3 do art. 108.º, a contrario, e art. 51.º, n.º 1, alíneas c), d) e e)”; por isso, a reclamação de créditos deve ser feita “em ação própria (declarativa ou executiva) que corre por apenso ao processo de insolvência, nos termos do art. 89.º, n.º 2 [do CIRE]”, e não “pelo meio previsto no art. 128.º do CIRE, na medida em que este meio processual apenas se destina à reclamação e verificação dos créditos sobre a insolvência”; de resto, o tribunal apoiou-se no Acórdão da Relação do Porto, de 18.06.2009 (MARIA CATARINA), www.dgsi.pt]. 9 Ver ROSÁRIO EPIFÂNIO, Os efeitos substantivos da falência, Porto, 2002, p. 353. 10 Assinala-se no n.º 1 que “o administrador da insolvência pode sempre denunciá-lo” e no n.º 3 que “a denúncia do contrato pelo administrador da insolvência [...]”. 11 A isso aludia expressamente o antigo art. 169.º, n.º 1, do CPEREF (“[...] pode denunciá-lo de acordo com os interesses da massa falida [...]”). 7 8
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2.2.2. A denúncia e o tipo de contrato Importa igualmente destacar que a denúncia pelo administrador de insolvência pode operar independentemente do tipo de contrato em vigor, seja ele de duração indeterminada ou seja ele com prazo certo (e, nesta hipótese, não sendo relevante a duração deste). O que se pretende aqui é evitar encargos locatícios, o que redundaria em especial prejuízo para a massa insolvente. 2.2.3. Em especial, o prazo de pré-aviso a) Dos interesses subjacentes à fixação do prazo de pré-aviso Caso o administrador da insolvência escolha a via da denúncia, o art. 108.º, n.º 1, do CIRE fixa um prazo de pré-aviso de 60 dias para o efeito. Tal prazo atende em especial aos interesses dos credores da insolvência, sendo igualmente determinado, mas aqui reflexamente, em razão das legítimas expectativas da outra parte (o senhorio) na continuidade do contrato. b) Prazo de pré-aviso insolvencial inferior ou igual ao prazo civilista Importa, em seguida, destacar os distintos prazos de pré-aviso locatícios e confrontá-los com o prazo de pré-aviso insolvencial. Nos contratos com duração certa, o prazo de pré-aviso é mais curto que o homólogo prazo (regra) civilista, que é de 120 dias (nos termos do art. 1098.º, n.º 3, alínea a), do Código Civil), embora possa ser semelhante se aplicável a alínea b) do n.º 3 do art. 1098.º do Código Civil. De todo o modo, não se aplica, em sede insolvencial, o “prazo de não denúncia”, correspondente a um terço do prazo de duração inicial do contrato (ou da sua renovação) (art. 1098.º, n.º 3, proémio do Código Civil). Note-se que este regime é aplicável, supletivamente, se nada tiver sido estipulado no contrato de arrendamento não habitacional. Tratando-se de um contrato de duração indeterminada, o prazo de pré-aviso é igualmente mais curto – já que o prazo regra locatício é de 120 dias (art. 1100.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil)12.
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De todo o modo, também aqui pode ser semelhante, à luz do art. 1100.º, n.º 1, alínea b), do Código
Civil. Note-se que, em qualquer dos casos, em sede arrendatícia, o prazo em causa só opera, esgotado tal período no final do respetivo mês civil (art. 1098.º, n.º 5, e art. 1100.º, n.º 4, do Código Civil). 97
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De todo o modo, deve assinalar-se que, num contrato de cariz não habitacional, pode legitimamente estipular-se um prazo superior para a denúncia do respetivo arrendatário13. Aliás, há mesmo uma hipótese em que é a própria lei que fixa um prazo de pré-aviso muito superior aos 120 dias, prazo máximo resultante da lei civil: assim, sendo omisso o contrato quanto à duração do arrendamento não habitacional, este deve considerar-se com prazo certo de 5 anos, “não podendo o arrendatário denunciá-lo com antecedência inferior a um ano” (art. 1110.º, n.º 2, do Código Civil). Em qualquer destas duas situações, o prazo de pré-aviso da denúncia é reduzido também a 60 dias. c) Prazo de pré-aviso insolvencial superior ao prazo civilista No entanto, não se esqueça que pode estar em causa um prazo de pré-aviso inferior – o que se mostra admissível, v.g., no arrendamento para fins não habitacionais –, pelo que, sendo o caso, é esse o regime a considerar (art. 108.º, n.º 1, parte final do CIRE). d) Início da contagem do prazo e cessação do contrato Embora o preceito não o refira, o prazo (geral) de pré-aviso de 60 dias deve começar a contar-se a partir do momento da receção ou do conhecimento da declaração de denúncia pelo senhorio e esgota-se no termo do referido período. Desta sorte, o contrato apenas se extingue no final do prazo mencionado. Assinale-se que este prazo não sofre nenhuma ampliação quanto ao momento do seu termo. Assim, após o exercício do direito, contam-se 60 dias de calendário, findos os quais se considera extinto o contrato. 2.2.4. O período de pendência da denúncia Decorre do regime geral da denúncia, por omissão do próprio art. 108.º, n.º 1, do CIRE, mas também a contrario sensu do regime do art. 108.º, n.º 3, do mesmo texto legal, que, na pendência da denúncia, o contrato de arrendamento continua a produzir todos os seus efeitos. Assim, a obrigação de pagamento da renda mantém-se, pelo que a renda deve continuar a ser paga na totalidade.
E isso é possível, pois o art. 1110.º, n.º 1, do Código Civil permite a fixação de prazos de pré-aviso de denúncia diversos, ao abrigo do princípio da liberdade contratual. 13
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2.2.5. O período que medeia entre a data da produção dos efeitos da denúncia e o termo (convencionado ou possível) do contrato A data da produção dos efeitos da denúncia tem um especial significado, já que a partir daí se modifica o quadro obrigacional do pagamento da renda, estabelecendo-se um regime próprio que cumpre descrever. Por um lado, “obriga ao pagamento [...] das retribuições correspondentes ao período intercedente entre a data da produção dos seus efeitos e a do fim do prazo contratual estipulado, ou a data para a qual de outro modo teria sido possível a [extinção do contrato] pelo insolvente14 [...]” (art. 108.º, n.º 3, 1.ª parte, do CIRE). Mas a esta importância há que deduzir dois valores, a saber: – o “[d]os custos inerentes à prestação do locador durante esse período”; – o “[d]os ganhos obtidos através de uma aplicação alternativa do locado, desde que imputáveis à antecipação do fim do contrato, com atualização de todas as quantias, nos termos do número 2 do artigo 91.º, para a data da produção dos efeitos da denúncia” (art. 108.º, n.º 3, 2.ª parte, do CIRE). O pagamento a efetuar, nos termos descritos, é qualificado como “crédito sobre a insolvência” (art. 108.º, n.º 3, 2.º trecho, do CIRE). 2.2.6. Outros efeitos da denúncia A denúncia do contrato de arrendamento, que gera a sua extinção no termo do período de 60 dias assinalado, importa a obrigação de restituição do imóvel ao senhorio. Assim, há que aplicar o art. 1081.º do Código Civil, especialmente o seu n.º 1, pelo que “a cessação do contrato torna imediatamente exigível [...] a desocupação do local e a sua entrega [...]”.
Há que ver aqui qual o regime estabelecido pelas partes quanto à denúncia do arrendatário, que no arrendamento não habitacional pode ser bem diverso do regime geral (art. 1110.º, n.º 1, do Código Civil). 14
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§ 3. Efeitos da declaração de insolvência no contrato de arrendamento habitacional: desvio à regra No caso de o imóvel se destinar à habitação do insolvente, a disciplina é parcialmente diversa. Tal resulta da primeira frase do art. 108.º, n.º 2, do CIRE15. Tal como na hipótese-regra, o contrato de arrendamento não se suspende. Mas, ao contrário dela, afasta-se o direito de denúncia do administrador da insolvência (art. 108.º, n.º 2, 1.ª parte, do CIRE). No entanto, mantém-se um direito de escolha do administrador, que pode: – continuar com o contrato de arrendamento habitacional (regime que se emprega na omissão de declaração do administrador); ou – em vez disso, “declarar que o direito [do senhorio] ao pagamento de rendas vencidas depois de transcorridos 60 dias sobre tal declaração não será exercível no processo de insolvência [...]” (art. 108.º, n.º 2, 1.ª parte, do CIRE). A previsão desta possibilidade ao alcance do administrador da insolvência permite retirar algumas conclusões e atender a vários cenários. Por um lado, mantém-se a obrigação de pagamento da renda, conquanto se criem agora dois regimes, a saber: – se ocorrer a tal declaração, as rendas vencidas (mas não pagas) até que finde o prazo de 60 dias (após a declaração) podem ser feitas valer no processo de insolvência; – já o direito ao pagamento das rendas que se vençam depois do citado prazo de 60 dias – mas que não tenham sido pagas – fica à margem do processo de insolvência. Caso se verifique este último circunstancialismo (e em razão da declaração do administrador), o senhorio tem o “direito de exigir [...] [uma] indemnização dos prejuízos sofridos em caso de despejo por falta de pagamento de alguma ou algumas das referidas rendas, até ao montante das correspondentes a um trimestre” (art. 108.º, n.º 2, parte final, do CIRE). Tal indemnização baseia-se na existência de um duplo fator: por um lado, a falta de pagamento da renda; por outro, o despejo com base nesse fundamento. Acresce que se estabelece um teto máximo para essa indemnização correspondente ao valor de 3 rendas. Este é havido, nos termos da parte final do número em causa, como “um crédito sobre a insolvência”.
Note-se que o CPEREF não regulava a questão, sendo que à luz do anterior regime do CPC, a questão era muito discutida. Ver, sobre o assunto, ROSÁRIO EPIFÂNIO, Os efeitos substantivos da falência, cit., pp. 350 e ss. 15
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§ 4. Falta de pagamento da renda e resolução do contrato pelo senhorio 1. Falta de pagamento da renda anterior à declaração de insolvência 1.1. Resolução do contrato depois da declaração de insolvência por rendas vencidas em data anterior àquela Determina o art. 108.º, n.º 4, do CIRE o seguinte: – “o locador não pode requerer a resolução do contrato após a declaração de insolvência do locatário [...] [por] falta de pagamento das rendas respeitantes a período anterior [àquela]” (sublinhado nosso). Esta proibição de “requerer a resolução” tem suscitado várias considerações da doutrina. Por exemplo, MENEZES LEITÃO acha criticável que se obrigue o senhorio a manter um contrato quando há fundamento para o resolver, o que não fazia com que saísse alterada a qualificação do crédito em causa16. Já CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA sustentam que esta imposição “surge como um corolário da razão que domina a não suspensão do contrato, enquanto solução, em regra, mais favorável aos interesses da massa”, afirmando ainda que “dificilmente se justificaria conferir ao senhorio, enquanto credor do insolvente, uma situação mais favorável que a dos demais”. Todavia, entendem que não se deve aplicar ao n.º 217. A situação jurídica do senhorio, nos termos da lei, sofre um revés considerável com a insolvência do arrendatário. A partir daí, o locador perde o direito de resolver o contrato por falta de pagamento da renda vencida em data anterior à referida declaração. Assim, é agora ao administrador da insolvência que compete decidir do destino do contrato, no quadro legal estabelecido.
MENEZES LEITÃO, Direito da Insolvência, cit., p. 187 e Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Coimbra, 7.ª ed., 2013, p. 148. 17 CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa Anotado, Lisboa, 2009, p. 407. 16
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1.2. Resolução do contrato antes da declaração de insolvência por rendas vencidas em data anterior àquela O art. 108.º, n.º 4, do CIRE tem também a seguinte leitura, utilizando um argumento a contrario sensu: – “o locador [...] pode requerer a resolução do contrato antes da declaração de insolvência do locatário [...] [por] falta de pagamento das rendas respeitantes a período anterior [à declaração de insolvência]”. Assim, se o senhorio utilizou, em momento prévio à declaração de insolvência, quaisquer das vias resolutivas ao seu dispor (a judicial ou a extrajudicial), nada impede que o processo prossiga legitimamente, não perdendo o senhorio o direito à resolução já exercido. 2. Falta de pagamento da renda posterior à declaração de insolvência Pressupondo agora que o contrato de arrendamento se mantém, é possível que não seja cumprido e, portanto, a renda paga. Nesse caso, o senhorio tem a possibilidade de se socorrer do regime resolutivo, em caso da falta de pagamento da renda. Tal resulta a contrario sensu do art. 108.º, n.º 4, do CIRE: – “o locador [...] pode requerer a resolução do contrato após a declaração de insolvência do locatário [...] [por] falta de pagamento das rendas respeitantes a período posterior [à declaração de insolvência]” – sublinhado nosso18.
Cfr. o Acórdão da Relação do Porto, de 14.01.2008 (ABÍLIO COSTA), www.dgsi.pt (embora se trate de um aluguer de um automóvel, a solução é a mesma; assim, observou o tribunal que “resulta provado que a A. resolveu os contratos de aluguer celebrados com a sociedade C, Unipessoal, Lda., com fundamento na falta de pagamento dos alugueres vencidos após a data da declaração de insolvência. Em conformidade, portanto, com aquele preceito legal”). À luz do regime anterior, ver o Acórdão da Relação do Porto, de 01.03.1999 (GONÇALVES FERREIRA), www.dgsi.pt (“declarada a falência, a massa substitui-se ao falido nos respetivos direitos e obrigações. O contrato de arrendamento de que o falido seja arrendatário pode ser mantido ou denunciado pelo liquidatário. Sendo mantido, está este obrigado a pagar a renda devida ao senhorio. Não o fazendo, pode ser intentada ação de despejo contra a massa. Demandado e condenado o falido no despejo do locado, a sentença é insuscetível de ser executada contra ele, por a tanto se opor o art. 154.º, n.º 3, do CPEREF”). Ver ainda o Acórdão da Relação do Porto, de 26.01.1999 (RAPAZOTE FERNANDES), www.dgsi.pt (“se o senhorio pretender a resolução de contrato de arrendamento urbano e o pagamento de rendas em dívida, com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas antes e depois de decretada a falência do arrendatário, o meio processual adequado é a ação de despejo e não a reclamação de créditos por apenso ao processo de falência”). 18
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Aqui, o senhorio pode seguir qualquer das duas vias do regime geral arrendatício: a extrajudicial ou a judicial19. Esta possibilidade permanece em aberto, ao contrário daquela outra mencionada, dado que, em primeira linha, cabe ao administrador averiguar se deve manter o contrato ou se deve recusar o cumprimento. Caso fracasse a escolha do administrador (que pesou mal as circunstâncias e que não procedeu ao pagamento da renda), não se anteveem razões para impedir o senhorio de exercer o direito de lhe pôr termo.
Aqui a declaração resolutiva ou a ação de despejo, consoante o caso, deve ser dirigida ao administrador da insolvência [Acórdão da Relação do Porto, de 13.03.2008 (CARLOS PORTELA), CJ, 2008, pp. 181 a 183]. Cfr. ainda o Acórdão da Relação do Porto, de 03.12.2009 (TELES DE MENEZES), cit., www.dgsi.pt. 19
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Questões de confiança e reputação: da Boa-Fé dos “Agentes” de Software aos “Smart Contracts” Francisco C. P. Andrade*
Resumo: A utilização de “agentes” de software requer um ambiente de confiança, tanto técnica como jurídica. A intencionalidade dos “agentes” coloca-nos perante a questão de a sua atuação poder estar (ou não) de acordo com standards objetivos de comportamento correto (boa-fé). A utilização dos “agentes” poderá depender em boa medida da confiança que possa ser transmitida aos utilizadores, quer uma confiança individual, quer uma confiança sistêmica. A este respeito, será importante termos em atenção o desenvolvimento de uma nova figura contratual originada a partir do conhecimento informático – a figura dos “smart contracts” –, bem como o relevante papel das entidades terceiras de confiança. Palavras-chave: “Agentes” de software – Intencionalidade – Confiança – Reputação – Boa-fé – Terceiros de confiança – “Smart contracts”
Abstract: The use of “software agents” requires an environment of technical and legal trust. The intentionality of “software agents” raises the issue of these being (or not) in accordance with objective standards of good behaviour (good faith). The use of “software agents” will depend on the trust users may have in them, both at individual and at systemical level. In this regard, it will be important to pay attention to the development of a new contractual figure originated from computational knowledge – the figure of “smart contracts” – as well as the relevant role of trusted third parties. Keywords: Software agents – Intentionality – Trust – Reputation – Good faith – Thirds of trust – Smart contracts
Sumário: 1. Confiança técnica, confiança jurídica; 2. A questão da boa-fé dos agentes de software; 3. Que garantias? As questões da confiança e da reputação e os “smart contracts”; 4. Conclusão
1. Confiança técnica, confiança jurídica
Um aspecto importante a ter em conta na decisão de utilizar (ou não) “agentes” inteligentes de software prende-se com a necessária confiança que os utilizadores depositem nestes dispositivos, confiança que se traduzirá necessariamente numa dupla
* Professor Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho.
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vertente. Confiança técnica, por um lado, manifestada numa crença de que o processo é suficientemente seguro e fiável 1 . Mas também – necessariamente – um mínimo de confiança jurídica, traduzida numa crença de que os contratos são válidos, de que as regras sobre o erro e vícios da vontade se poderão aplicar e de que aplicação das regras da responsabilidade civil não se revelará demasiado onerosa, quer para os programadores e detentores do software, quer para os utilizadores. No que respeita à confiança técnica, vem sendo proposto o desenvolvimento de um novo tipo de serviço da sociedade da informação, uma espécie de certificação de “agentes” eletrônicos, de acordo com específicos critérios (e standards) de segurança2. Claro que o recurso a este tipo de serviço poderia ser encarado como algo de obrigatório, ou meramente facultativo (ou aconselhável), mas seria sempre possível que determinado tipo de “agentes” inteligentes, na sua atuação comercial, interagissem apenas com “agentes” registados e que ostentassem um rótulo certificador da qualidade das suas intervenções, o que poderia ser interessante em termos de potenciar a confiança dos utilizadores3. A questão da reputação dos “agentes”, fundamental para a confiança dos utilizadores, pode ser contemplada através, por exemplo, do recurso a rótulos eletrônicos de qualidade4. Também será essencial para o estabelecimento de uma relação utilizador – “agente” baseada na confiança a ideia que os potenciais utilizadores deverão ter de que os “agentes” são eficientes, verdadeiros e confiáveis5. No entanto, esta confiança terá de ser necessariamente relacionada com uma clara percepção de que o “agente” tem capacidades de que os humanos não dispõem. O que leva a ter de considerar a atuação dos “agentes” numa perspectiva totalmente nova, mesmo em termos de assunção de res-
Cfr. EMILY WEITZENBOECK, «Electronic Agents and the formation of contracts», in ECLIP – Electronic Commerce Legal Issues Platform, International Journal of Law and Information Technology, 2001 9(3): 204-234, p. 27: “[...] it appears clearly that issues of security, proper functioning and reliability of intelligent agents are very important for the users of electronic agents”. 2 EMILY WEITZENBOECK, «Electronic Agents and the formation of contracts», cit., p. 27, refere uma sugestão nesse sentido, apontada por K. STUURMANN e H. WIJNANDS, «Intelligent agents: a curse or a blessing? A survey on the legal aspects of the application of intelligent software systems», in Computer Law and Security Report, 2001 17(2): 92-100. Também JEAN FRANÇOIS LEROUGE, «The use of electronic agents questioned under contractual law. Suggested solutions on a European and American level», in John Marshall Journal of Computer & Information Law, 18, in http://www.droit.fundp.ac.be/textes/lerouge2.pdf, se refere a esta possibilidade, apontando para uma espécie de rotulagem dos agentes (“electronic agents labelling”). 3 Cfr. EMILY WEITZENBOECK, «Electronic Agents and the formation of contracts», cit., p. 27, e C.E.A. KARNOW, Future Codes: Essays in Advanced Computer Technology and Law, Artech House, 1997, p. 178. 4 Cfr. JEAN FRANÇOIS LEROUGE, «The use of electronic agents questioned under contractual law...», cit., p. 41. 5 Cfr. KATRYN HEILMANN, DAN KIHANYA, ALASTAIR LIGHT e PAUL MUSEMBWA, «Intelligent Agents: a Technology and business application», in http://haas.berkeley.edu/~heilmann/agents/, Haas, University of California, Berkeley, 1995, pp. 7-8. 1
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ponsabilidades.6 Por outro lado, revestirá um interesse evidente a consideração, a este respeito, dos aspectos relacionados com o risco e a confiança nos “agentes”, com a credibilidade e a reputação que for possível ir verificando em relação à atuação de cada “agente”7. É que, como bem refere GIOVANNI SARTOR8, pode ser assumido que os “agentes” de software atuam com base em estados intencionais, sendo o seu comportamento determinado por um conjunto de raciocínios efetuado a partir de informação incompleta9. Pelo que, os agentes fazem opções e o seu comportamento não pode ser inteiramente previsto.
2. A questão da boa-fé dos “agentes” de software
Questão que se coloca é, desde logo, a da possibilidade (ou não) de existência de confiança, dos utilizadores, relativamente a estes entes eletrônicos. A questão torna-se mais complexa se considerarmos o que acima ficou referido sobre a possibilidade de os “agentes” mentirem ou omitirem informação. Para o utilizador, torna-se importante saber com que “agente” estabelecer uma relação comercial, até porque não pode ser assumido como uma evidência que o “agente” (ou que todo e qualquer “agente”) se vá comportar de acordo com regras de honestidade e correção. O que nos leva a ter de considerar aqui a possibilidade de os “agentes” de software atuarem com boa-fé ou com má-fé.
A questão da responsabilidade pelos atos dos “agentes” torna-se uma questão fulcral para uma análise da contratação eletrônica e para a definição do estatuto jurídico dos “agentes” de software. Há que não perder de vista o facto de as decisões dos “agentes” de software poderem efetivamente escapar ao controlo dos utilizadores. “[...] responsibility for outcomes and actions resulting from decisions which are out of the user’s control, and which may indeed relate to capacities of the program of which the user had no knowledge at all”, cfr. CAROLYN DOWLING, «Intelligent agents: some ethical issues and dilemmas», Proceedings of 2nd Australian Institute of Computer Ethics Conference (AICE2000), Canberra, 2000, CRPIT, 1. Weckert, J. Ed. ACS, pp. 28-32. 7 “A reputation for credibility in most fields is contingent on a verifiable history demonstrating qualities such as accuracy, reliability, efficiency and so on”, cfr. CAROLYN DOWLING, «Intelligent agents: some ethical issues and dilemmas», cit. 8 GIOVANNI SARTOR, «Cognitive Automata and the Law: electronic contracting and the intentionality of software agents», in Artificial Intelligence and Law, Springer Science+Business Media B.V. 2009, 10.1007/s10506-009-90810. 9 Cfr. F. ANDRADE, J. NEVES, P. NOVAIS, J. MACHADO, «Software agents as legal persons», in Virtual Enterprises and Collaborative Networks, L. CAMARINHA MATOS (Ed.), Kluwer Academic Publishers, 2004, pp. 123-132, e ainda F. ANDRADE, P. NOVAIS, J. MACHADO, J. NEVES, «Intelligent Contracting: software agents, corporate bodies and virtual organisations», in Establishing the Foundations of Collaborative Networks, L. CAMARINHA MATOS, H. AFSARMANESH, P. NOVAIS, C. ANALIDE (Eds.), Springer-Verlag, Series IFIP – International Federation for Information Processing, 2007, pp. 217-224. 6
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Como se sabe, a ideia de boa-fé está ligada às “ideias de fidelidade, lealdade, honestidade e confiança na realização e cumprimento de negócios jurídicos”10. A boa-fé pode ser entendida tanto num sentido psicológico e subjetivo como num sentido objetivo e ético11. Num sentido objetivo, a boa-fé consiste na consideração de um comportamento correto e não nas atitudes mentais do “agente”12. Já no sentido subjetivo, a boa-fé assenta em crenças e conhecimento, nomeadamente a crença sincera do “agente” de que não estará a violar os direitos de terceiros13. A boa-fé decorre da aplicação de critérios gerais objetivos relacionados com uma noção de lealdade e cooperação. A boa-fé pode considerar-se um arquétipo de comportamento social e pressupõe a lealdade nas relações sociais, um procedimento honesto, a fidelidade, a fiabilidade e a proteção da confiança de terceiros14. Uma atuação de má-fé pode ter por consequências a invalidação de contratos (ou de algumas das suas cláusulas) ou até dar lugar a uma obrigação de indemnização por aplicação dos mecanismos da responsabilidade civil15. A questão, no que toca à atuação dos “agentes” de software, até já nem é a de se saber se é ou não possível que estes atuem com boa-fé ou com má-fé ; a verdadeira questão é a de assumirmos que os “agentes” de software que intervêm em relações juridicamente relevantes presumivelmente irão negociar (e pautar a sua atuação) de acordo com determinados standards de comportamento. No entanto, uma vez que o comportamento dos “agentes” poderá basear-se quer no conhecimento adquirido, quer nas suas próprias experiências 16 , fica claro que existe sempre a possibilidade de o “agente” de software atuar estrategicamente, procurando a melhor resposta para cada situação com que é confrontado, tendo até em atenção as possíveis respostas das contrapartes17.
Cfr. FERNANDO ANDRADE PIRES DE LIMA e JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 1987, anotação ao art. 762º. 11 Idem. “12 Cfr. A. ROTOLO, G. SARTOR, C. SMITH, «Formalization of a normative version of good-faith», Proceedings of LEA – Law and Electronic Agents, A. OSKAMP e C. CEVENINI (Eds.), Nijmegen, Wolf Legal Publishers, 2005: “considering correct behavior and not actor’s mental attitudes”. 13 Idem: “It regards the actor’s sincere belief that s/he is not violating other people’s rights”. 14 “And it comprises the protection of reasonable reliance”, cfr. EMILY WEITZENBOECK, «Good faith and fair dealing in the context of contract formation by electronic agents», Proceedings of the AISB – Symposium on Intelligent Agents and Virtual Markets, Imperial College – London, April 2002. 15 Cfr. JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, Almedina, 1973. 16 “An agent’s behavior can be based on both its experience and the built-in-knowledge used in constructing the agent for the particular environment in which it operates”, cfr. S. RUSSEL e P. NORVIG, Artificial Intelligence: a modern approach, Prentice Hall, 1995. 17 “Able to act strategically by calculating their best response given their opponents possible moves”, cfr. K. BINMORE, Fun and Games: A Text on Game Theory, D.C. Heath and Company, 1992. 10
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Claro que a consideração da possibilidade de uma atuação de “agentes” de software com boa-fé (ou com má-fé) pressupõe a existência de standards objetivos de conduta18 a partir dos quais seja possível aferir se o “agente” cumpriu ou não os requisitos da boa-fé19 na negociação e na execução do contrato20. E a determinação de tais standards pode colocar algumas dificuldades. É que, relativamente às condutas de “agentes” de software, nas suas relações recíprocas, será sempre difícil estabelecer o que se entende por uma colaboração leal entre as partes21. Mas claro está que, para que se possa aqui falar de boa-fé ou de má-fé, haverá que estabelecer uma clara atribuição dos atos negociais e de execução dos contratos. E a questão passa, então, a ser a seguinte: devem os atos do “agente” eletrônico ser atribuídos ao utilizador que, de algum modo, o ativou22, considerando-se o “agente” de software como um mero instrumento ou ferramenta à disposição (e sob o controlo?) do utilizador? Ou deve a vontade do “agente” ser autonomamente considerada, uma vez que o utilizador pode não ter estado diretamente envolvido e nem sequer ter sido consultado, podendo nem sequer ter consciência de que o “agente” de software atuou23, e atuou de modo relevante para o direito?
3. Que garantias? As questões da confiança e da reputação e os “smart contracts” Outra relevante questão prende-se com a possibilidade de existência de garantias para os utilizadores. Até que ponto poderemos falar de “garantias” de utilização dos “agentes” de software?24 A questão das eventuais garantias ou da minimização do risco da utilização dos “agentes” de software passará necessariamente por uma clara definição do estatuto jurídico do agente de software e dos meios possíveis de reação contra atos dos “agentes”. Claro que uma primeira forma de garantia passaria necessaria-
Cfr. A. ROTOLO, G. SARTOR, C. SMITH, «Formalization of a normative version of good-faith», cit. Que podem, obviamente, ser positivos ou negativos. Cfr. A. ROTOLO, G. SARTOR, C. SMITH, «Formalization of a normative version of good-faith», cit.: “The form given to the correctness rules allows to impose both positive and negative requirements to be fulfilled”. 20 “Whether the agent has observed reasonable commercial standards of fair dealing in the negotiation and performance of the contract”, cfr. EMILY WEITZENBOECK, «Good faith and fair dealing in the context of contract formation by electronic agents», cit. 21 Cfr. JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, cit., vol. II, p. 11. 22 Sendo, no entanto, necessário não esquecer a possibilidade de atuação de “agentes” iniciadores, que tomam iniciativas, eventualmente até sem qualquer conhecimento por parte do utilizador. 23 Cfr. EMILY WEITZENBOECK, «Good faith and fair dealing in the context of contract formation by electronic agents», cit. 24 “[...] however, we must accept that there are no guarantees”, cfr. CAROLYN DOWLING, «Intelligent agents: some ethical issues and dilemmas», cit., p. 6. 18 19
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mente pela consideração da possibilidade de adaptação da doutrina civilística em matéria de erro na declaração e de vícios da vontade às declarações negociais emitidas por “agentes” de software. Mas é evidente que esta consideração, por si só, não resolve todos os problemas, sendo necessário equacionar questões como as da responsabilidade civil dos “agentes” de software e da resolução alternativa de litígios (preferencialmente resolução de litígios em linha)25 para casos em que o utilizador (humano) se sinta lesado por atos destes “agentes” 26 . De momento, a garantia mais eficaz será mesmo a que se prende com a própria reputação e credibilidade de cada “agente”27, decorrente do seu histórico, na medida em que o mesmo possa ser perceptível (ou monitorizado) pelos utilizadores humanos28. Torna-se assim evidente a necessidade de recurso a mecanismos que permitam estabelecer ou reforçar a confiança dos utilizadores dos “agentes” de software. A confiança, em sentido amplo, pode ser aqui entendida a dois níveis diferenciados: podemos falar de confiança num nível individual29, mas também a um nível sistêmico30. Neste nível sistêmico, ganha relevo a existência de específicos protocolos que impeçam certas atuações ou manipulações por parte dos “agentes”31. A este respeito, será interessante focarmos a nossa atenção para uma particular figura contratual que vem
Sobre resolução de litígios em linha (“on-line dispute resolution”), cfr., entre outros, (i) E. KATSCH, J. RIFKIN, A. GAITENBY, «E-commerce, e-disputes, and e-dispute resolution: in the shadow of “eBay law”», in Ohio State Journal on Dispute Resolution, vol. 15:3, 2000; (ii) J. RIFKIN, «Online dispute resolution: theory and practice on the fourth party», in Conflict Resolution Quarterly, vol. 19, number 1, Fall 2001; (iii) E. KATSCH, J. RIFKIN, Online dispute resolution: resolving conflicts in cyberspace, Jossey-Bass, San Francisco 2001; e (iv) J. GOODMAN, «The pros and cons of online dispute resolution: an assessment of cyber-mediation websites», in Duke Law & Technology Review, 0004, 2003. 26 Havendo já quem aponte para a utilização da Inteligência Artificial como instrumento mesmo de resolução de litígios em linha. Cfr. (i) G. PERUGINELLI e G. CHITI, «Artificial Intelligence in alternative dispute resolution», Workshop on the law of electronic agents (LEA 2002); e (ii) A. LODDER e E. THIESSEN, «The role of Artificial Intelligence in online dispute resolution», Proceedings of the UNECE Forum on ODR, 2003, http://www.odr.info/unece2003. 27 Embora confiança e reputação sejam conceitos intimamente relacionados, podemos estabeler uma distinção entre confiança (“trust”) e reputação (“reputation”), “in the sense that the former is derived from direct interactions, while the latter is mainly acquired (by an agent about another) from the environment or other agents and ultimately leads to trust”, cfr. D. SARVAPALI RAMCHURN, DONG HUYN e NICHOLAS R. JENNINGS, «Trust in Multi-Agent Systems», in The Knowledge Engineering Review, Cambridge University Press, 2004, vol. 19:1, pp. 1-25, nota 7. 28 A propósito da monitorização das atividades dos agentes pelos utilizadores, cfr. CAROLYN DOWLING, «Intelligent agents: some ethical issues and dilemmas», cit., p. 7. 29 “An agent has some beliefs about the honesty or reciprocative nature of its interaction partners”, cfr. D. SARVAPALI RAMCHURN, DONG HUYN e NICHOLAS R. JENNINGS, «Trust in Multi-Agent Systems», cit., pp. 1-25. 30 “The actors in the system are forced to be trustworthy by the rules of encounter (i.e., protocols and mechanisms) that regulate the system”, idem. 31 “[...] that they prevent agents from manipulating each other (e.g. through lies or collusion) so as to satisfy their selfish interests”, idem. 25
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sendo desenvolvida no mundo da informática com a designação de “Smart Contracts”32. Estes contratos são estabelecidos com base numa série de regras de acordo com as quais as partes terão necessariamente de pautar o seu comportamento33. Na verdade, trata-se de programas e códigos informáticos que “impõem” a celebração e execução do contrato nos termos pré-determinados34. Na verdade, uma das questões mais problemáticas que se levantam a respeito da contratação eletrônica inter-sistêmica inteligente prende-se com a própria executabilidade dos contratos. É também uma questão de segurança e de confiança no funcionamento do sistema e no cumprimento (ou nas possibilidades de reação ante o incumprimento) das partes. Neste tipo de contratação, a questão pode colocar-se a dois níveis diferentes: por um lado, nos termos tradicionais, através do recurso ao sistema judicial; por outro lado, na própria esfera privada dos contratantes. Relativamente a este último aspecto, obviamente que desempenhará um papel de primordial importância a própria reputação dos “agentes” de software35 e as relações de confiança que se estabeleçam com estes e entre estes. A perspectiva destes “smart contracts” torna-se interessante sobretudo por representar um modo de escapar às dificuldades inerentes à executabilidade destes contratos36. Deste modo, os “smart contracts”37 podem contribuir para aumentar a própria confiança dos utilizadores. Uma ideia interessante deste modelo é a de usar os contratos como se de jogos se tratassem, com regras que têm de ser seguidas para que o jogo
A propósito de “Smart Contracts”, ver (i) N. SZABO, «Smart Contracts: Building Blocks for Digital Markets», 1996, in http://szabo.best.vwh.net/smart.contracts.2.html; (ii) M. MILLER e M. STIEGLER, «The digital path: smart contracts and the third world», in Markets, information and communication – Austrian perspectives on the Internet Economy, Routledge, 2003; e (iii) D. FRIEDMAN, «Contracts in Cyberspace», in American Law and Economics Association, May 2000. 33 “Smart contracts are contracts as program code, where the terms of the contract are enforced by the logic of the program’s execution”, cfr. M. MILLER e M. STIEGLER, «The digital path: smart contracts and the third world», cit., p. 2. As claúsulas contratuais são aqui entendidas como “a set of promises, specified in digital form, including protocols in which the parties perform on these promises”, cfr. N. SZABO, «Smart Contracts: Building Blocks for Digital Markets», cit. 34 “Terms of the contract are enforced by the logic of the program’s execution”, cfr. M. MILLER e M. STIEGLER, «The digital path: smart contracts and the third world», cit. Esta imposição de regras contratuais pelo próprio programa irá tornar a violação das regras do contrato, senão impossível, pelo menos extremamente difícil e onerosa. 35 Cfr. D. FRIEDMAN, «Contracts in Cyberspace», cit. 36 “Instead of enforcement, the contract creates an inescapable arrangement”, cfr. M. MILLER e M. STIEGLER, «The digital path: smart contracts and the third world», cit. 37 “Many kinds of contractual clauses (such as collateral, bonding, delineation of property rights, etc.) can be embedded in the hardware and software we deal with, in such a way as to make breach of contract expensive (if desired, sometimes prohibitively so) for the breacher”, N. SZABO, «The idea of smart contracts», 1997, in http://szabo.best.vwh.net/smart_contracts_idea.html. 32
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possa ser jogado38. Trata-se, na verdade, de uma forma extremamente fiável e confiável de uma espécie de “contrato de adesão”39, sendo no entanto aqui o contrato entendido como um jogo eletrônico, orientado ou arbitrado por uma espécie de “árbitro eletrônico”40 (que pode ser um humano ou um “agente” de software) que não intervém no jogo enquanto jogador, mas que o arbitra, impedindo que os jogadores façam jogadas ilegais. O contrato pode assim conter cláusulas (ou regras contratuais) já previamente integradas, de tal modo que a violação contratual seja impossível ou, pelo menos, extremamente difícil e onerosa41. Na realidade, no que à contratação eletrônica inter-sistêmica inteligente respeita, a tradicional execução dos contratos por vias judiciais encontrará necessariamente dificuldades42. Pelo que a contratação no ciberespaço tenderá a utilizar outros mecanismos, sendo a reputação dos “agentes” um dos pontos fulcrais para a confiança dos utilizadores. Para este efeito, será importante o aparecimento de verdadeiras “Redes de Confiança”43, constituídas por verdadeiros terceiros de confiança que desempenharão um papel essencial para o desenvolvimento do comércio eletrônico44. Temos assim duas possibilidades distintas de encarar a questão da confiança ao nível sistêmico. Numa primeira abordagem, poderemos encarar a utilização dos referidos protocolos especiais de interação (ou regras dos “smart contracts”)45. Numa segunda abordagem, complementar àquela, poderemos encarar então a existência dos
“A basic metaphor for smart contracts is the board game. When two people negotiate a contract, they are jointly designing the rules of a game they would both be willing to play”, cfr. M. MILLER e M. STIEGLER, «The digital path: smart contracts and the third world», cit., p. 9. 39 Embora aqui se possa verificar uma bem maior flexibilidade, no que às possibilidades de escolha respeita, relativamente ao que se verifica nos contratos de adesão, a verdade é que há pontos de contato evidentes. “Most players will not program up their own custom contract, but will instead select a ‘boilerplate’ contract/program off the shelf and fill in the blanks”, cfr. M. MILLER e M. STIEGLER, «The digital path: smart contracts and the third world», cit., p. 11. 40 Ou “board manager”. 41 Cfr. N. SZABO, op. Citada, «Smart Contracts: Building Blocks for Digital Markets». 42 “Public enforcement will work less well and private enforcement better than for contracts in real space at present”, cfr. D. FRIEDMAN, «Contracts in Cyberspace», cit. 43 “Networks of trust syntethizes ideas from de Soto and Francis Fukuyama to suggest the strong role played by widely trusted intermediary institutions”, cfr. M. MILLER e M. STIEGLER, «The digital path: smart contracts and the third world», cit., p. 2. 44 Cfr. M. MILLER e M. STIEGLER, «The digital path: smart contracts and the third world», cit. 45 Regras perfeitamente estabelecidas a priori e que não viabilizam a sua violação e/ou manipulação pelos intervenientes. A este respeito, M. MILLER e M. STIEGLER, «The digital path: smart contracts and the third world», cit., p. 20, falam de “The rule of Law and not of Men”. Apesar de esta asserção poder chocar alguns puristas do direito, não deixa de ser interessante esta reflexão final dos Autores: “With smart contracts, the encoded rules themselves become the logic of their own enforcement, subject only to the honesty, not the judgement or skill, of a diverse market of competing contract hosts. This competition forms a vastly stronger and fully decentralized system of checks and balances”. 38
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chamados mecanismos de reputação. Estes mecanismos de reputação constituirão uma ferramenta imprescindível para cimentar a confiança nas transações eletrônicas46. Importante instrumento de segurança do sistema será a intervenção de uma autenticação através de entidades terceiras de confiança. Estas distribuirão informação constantemente atualizada sobre os participantes no sistema, o que conduzirá os “agentes” eletrônicos e os utilizadores humanos a atuarem de acordo com aquilo que poderão considerar como informação minimamente confiável. Cria-se aqui um novo domínio para o estabelecimento de relações de confiança e de mecanismos de segurança no comércio eletrônico. Aqui, tal como já acontece na contratação eletrônica em geral com a prestação dos serviços de assinatura eletrônica e de selo temporal (“timestamp”), a intervenção de uma entidade terceira de confiança será determinante para o estabelecimento da confiança dos utilizadores. A esta intervenção poderá vir a estar associada uma verdadeira prestação de serviços da sociedade de informação potenciadores da confiança dos utilizadores, como seja a rotulagem dos “agentes” de software em termos que possibilitem a existência, em cada momento, de um determinado estado de reputação para cada “agente” de software certificado47. Claro que esta intervenção não será por si só suficiente para assegurar que os “agentes” procedem, uns com os outros, de forma inteiramente honesta e confiável. Mas poderá representar uma barreira relativamente a determinados tipos de atuação dos “agentes”48.
Cfr. F. ANDRADE, J. NEVES, P. NOVAIS, J. MACHADO e A. ABELHA, «Legal security and credibility in agent based virtual enterprises», in Collaborative Networks and their Breeding Environments, L. CAMARINHA MATOS, H. AFSARMANESH e A. Ortiz (Eds.), Springer-Verlag, 2005, pp. 503-512 (6th Working Conference on Virtual Enterprises – PRO-VE’05), Valência, Espanha, 2005, pp. 501-512. 47 Sugestão apontada por JEAN FRANÇOIS LEROUGE, «The use of electronic agents questioned under contractual law…», cit., p. 41. 48 Sendo também aqui importante referir o papel das plataformas negociais eletrônicas e a importância de, através destas plataformas, poderem ser verdadeiramente sancionados “agentes” eletrônicos que não pautem a sua conduta pelas regras estabelecidas. Fica aqui mais uma vez bem evidente a importância do relacionamento dos agentes de software com as plataformas de comunicação. Cfr. F. BRAZIER, A. OSKAMP, C. PRINS, M. SCHELLEKENS, N. WIJNGAARDS, E. SCHREUDERS, M. APISTOLA, M. VOULON, O. KUBBE, «ALIAS – Analysing legal implications and Agent information systems», in Technical Report, n.º IR-CS-004, Faculty of Sciences, Vrije Universiteit Amsterdam, July 2003. Questão a considerar é a das possíveis sanções: uma possibilidade que surge com naturalidade é a de determinados “agentes” eletrônicos, ao infringirem certas regras, não mais serem admitidos naquela plataforma, sendo a partir do momento da infracção impedido o seu acesso ao sistema. Outra solução mais radical passará pela possibilidade de “condenar os “agentes” eletrônicos à morte”. Cfr., a este respeito, M. APISTOLA, F. BRAZIER, O. KUBBE, A. OSKAMP, J. PRINS, M. SCHELLEKENS, M. VOULON, «Migrating agents – Do sysadmins have the right to kill?», Proceedings of the 3rd International SANE Conference (SANE 2002), in http://www.iids.org/publications/sane2002.pdf. 46
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Claro que os novos modelos de comércio eletrônico, através do recurso a um novo ator eletrônico em relações juridicamente relevantes, não são isentos de riscos. A sociedade, seja ela constituída apenas por humanos ou através de interações entre humanos e “agentes” de software (ou apenas entre “agentes” de software), está eivada de riscos49. Será importante proceder-se a uma inventariação dos riscos associados a esta tecnologia e ter em conta essas mesmas preocupações na abordagem jurídica das matérias relacionadas com a utilização de “agentes” de software.
4. Conclusão Atentas as características e as possibilidades que se abrem à utilização de “agentes” de software em ambientes de comércio eletrônico, procurámos identificar as vantagens e inconvenientes da utilização de “agentes” de software, tendo concluído que, associada à utilização destes entes eletrônicos, aparece um elevado grau de insegurança jurídica face às atuais normas em vigor sobre contratação eletrônica e à total ausência de consideração, pelo direito positivo, da figura do “agente” de software e da sua atuação no comércio e contratação eletrônicos. Também nos apercebemos de que os aspectos relacionados com a confiança (quer técnica, quer jurídica) desempenham aqui um papel de primordial importância. Como possível contributo para um aumento da confiança, foi encarada a possibilidade de um sistema de certificação de “agentes” de software, através de entidades terceiras de confiança e do desenvolvimento de mecanismos de reputação50, tais como a rotulagem eletrônica de “agentes”. Por outro lado, foi também considerada a possibilidade de extensão à atuação dos “agentes” de software de conceitos jurídicos, como a boa-fé51. Mas também pudemos observar como a questão da confiança e reputação nos “agentes” ganha um enorme relevo, quer seja analisada a um nível individual,
49 Sobre alguns dos riscos tipo nos novos modelos de comércio eletrônico, cfr. LUÍS FILIPE QUINTAS BRITO, Uma abordagem Multiagente à problemática do comércio electrónico, Universidade do Minho, Braga, 2003 (Tese de Doutoramento), pp. 52 a 54. Entre estes riscos, aponta este Autor os seguintes: roubo (furto) de informação, questões relacionadas com a privacidade e uso indiscriminado de cookies, existência de sítios maliciosos ou falsos, roubo (furto) de identificação e palavras-chave, roubo (furto) de números de cartão de crédito, acesso indevido a dados e estruturas dos suportes de informação, roubo (furto) de dados, burla, ataques por negação de serviços. A estes riscos acrescentaremos os inerentes à utilização de assinaturas electrónicas pelos agentes de software. 50 Cfr. JEAN FRANÇOIS LEROUGE, «The use of electronic agents questioned under contractual law...», cit. 51 Neste ponto, revestem-se de fundamental importância os trabalhos de EMILY WEITZENBOECK, «Good faith and fair dealing in the context of contract formation by electronic agents», cit., e de A. ROTOLO, G. SARTOR, C. SMITH, «Formalization of a normative version of good-faith», cit.
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quer o seja a um nível sistêmico52. A este propósito, tivemos a oportunidade de abrir um olhar sobre um novo modelo de desenvolvimento de contratos eletrônicos intersistêmicos, os chamados “smart contracts” que, modelando o contrato como um jogo, impõem regras que têm de ser necessariamente seguidas pelos “agentes” de software53, quase como uma espécie de “contrato de adesão” da contratação eletrônica inter-sistêmica inteligente.
(Este artigo segue as regras brasileiras do acordo ortográfico.)
Cfr. D. SARVAPALI RAMCHURN, DONG HUYN e NICHOLAS R. JENNINGS, «Trust in Multi-Agent Systems», cit. 53 Cfr. M. MILLER e M. STIEGLER, «The digital path: smart contracts and the third world», cit. 52
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O regime das obras em prédios arrendados e as alterações da Lei n.º 79/2014, de 19 de Dezembro Isabel Menéres Campos*
Resumo: O texto versa sobre o regime jurídico das obras em prédios arrendados (RJOPA), a propósito das alterações trazidas pela Lei n.º 70/2014, de 19 de Dezembro. Faz-se uma cronologia da legislação aplicável actualmente ao arrendamento urbano, seguindo-se a análise do regime das obras em prédios arrendados à luz da nova lei. O RJOPA prevê um regime geral e um regime especial transitório, estabelecido para os contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU, tendo o regime geral sido substancialmente alterado com a nova Lei. Palavras-chave: Prédios arrendados – Obras – Arrendamento – RJOPA
Abstract: The text deals with the legal status of works in leased buildings (RJOPA), concerning the changes introduced by Law No. 70/2014, of 19 December. Chronology of legislation presently applicable to urban leases, followed by the analysis of the system of works on buildings leased under the new law. The RJOPA provides a general regime and a transitional special regime established for leases entered into for housing before the entry into force of the RAU, and the general regime has been substantially changed with the new law. Keywords: Leased buildings – Works – Lease – RJOPA
Sumário: 1. Introdução; 2. Legislação aplicável ao regime do arrendamento; 3. O regime jurídico das obras em prédios arrendados; 4. O RJOPA à luz da Lei n.º 79/2014, de 19 de Dezembro; 4.1. A denúncia para demolição ou realização de obra de remodelação ou restauro profundos que obriguem à desocupação do locado; 4.2. Demolição para efeitos de denúncia pelo senhorio; 4.3. Obra de remodelação ou de restauro profundos; 4.4. Obras de conservação; 5. Outras alterações da Lei n.º 79/2014; 5.1. A indeminização por obras feitas pelo arrendatário; 5.2. Comunicação para a actualização da renda e para a transição para o NRAU; 5.3. A possibilidade de o arrendatário reclamar da avaliação fiscal feita nos termos do CIMI; 5.4. A prova do rendimento anual bruto corrigido por parte do arrendatário; 5.5. O conceito de microempresa; 5.6. Outras pequenas alterações; 6. Considerações finais
* Professora Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho.
Isabel Menéres Campos
1. Introdução A oportunidade deste breve apontamento1, sobre o problema das obras em prédios arrendados, deve-se às alterações trazidas pela Lei n.º 70/2014, de 19 de Dezembro, as quais motivaram a nossa reflexão sobre este assunto. O sentido na nossa exposição será o seguinte: começamos por uma breve panorâmica da legislação aplicável ao arrendamento urbano, fazendo uma cronologia da legislação aplicável actualmente ao arrendamento urbano. Segue-se depois a análise, em pormenor, da Lei n.º 79/2014, de 19 de Dezembro, tendo em vista sobretudo as alterações do regime das obras em prédios arrendados, matéria atingida pela alteração legislativa. Assistimos, mais uma vez, a uma mudança legal no regime do arrendamento urbano, sem que tenhamos tido tempo para consolidar a grande reforma de 2012, o que nos leva a reflectir, com efeito, sobre a forma, por vezes atabalhoada, como se legisla em Portugal2.
2. Legislação aplicável ao regime do arrendamento Comecemos por revisitar a legislação aplicável ao regime do arrendamento. Em primeira linha, ao arrendamento urbano é aplicável o Código Civil: a matéria da locação está regulada nos arts. 1022.º e ss.3. Nem sempre foi assim, pois, como é sabido, entre 1990 e 2006, a matéria do arrendamento urbano constava de um diploma especial que aprovou o regime do arrendamento urbano (RAU) – o Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro. Em 2006, procedeu-se a uma grande reforma do arrendamento urbano, com a Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, e entendeu-se, e bem, fazer regressar a regulamentação do arrendamento ao Código Civil, de onde, de resto, nunca deveria ter saído. No entanto, algumas matérias permaneceram fora da lei civil, passando a haver, além desta,
1 O texto agora publicado corresponde, com adaptações, às notas que elaborámos para apoio à comunicação proferida na conferência organizada pela Associação Jurídica do Porto, em parceria com o Centro Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, realizada em 29 de Abril de 2015. 2 Para uma reflexão sobre o processo legislativo actual, vide o estudo Feitura das leis – Portugal e a Europa, de JOÃO CAUPERS, MARTA TAVARES DE ALMEIDA e PIERRE GUIBENTIF, Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2014. 3 Todos os preceitos mencionados, sem especial indicação do diploma a que pertencem, são do Código Civil.
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o chamado Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) que complementa e regulamenta o regime civilístico. Por sua vez, o diploma de 2006, mostrando-se insuficiente para os objectivos de dinamização do arrendamento, foi objecto de uma nova grande revisão que resultou da Lei n.º 31/2012 de 14 de Agosto, a chamada grande reforma. E agora temos, novamente, alterações ao regime com a Lei n.º 79/2014, de 19 de Dezembro, embora os aspectos revistos nesta última tenham sido muito mais limitados. Cabe enumerar também outros diplomas que se revelam importantes para o estudo dos temas do arrendamento. Elenquemos apenas os que nos parecem mais importantes: - o Decreto-Lei n.º 156/2006, de 8 de Agosto, que prevê a forma de determinação e verificação do coeficiente de conservação; - o Decreto-Lei n.º 157/2006, de 8 de Agosto, que consagra o regime jurídico das obras em prédios arrendados (RJOPA), alterado pelo Decreto-Lei n.º 306/2009, de 23 de Outubro, pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, e agora também pela Lei n.º 79/2014, de 19 de Dezembro; - o Decreto-Lei n.º 158/2006, de 8 de Agosto, que regula a determinação do rendimento anual bruto corrigido e a atribuição do subsídio de renda, alterado agora também pela Lei n.º 79/2014, de 19 de Dezembro; - o Decreto-Lei n.º 159/2006, de 8 de Agosto, que prevê o conceito fiscal de prédio devoluto; - o Decreto-Lei n.º 160/2006, de 8 de Agosto, que estabelece os requisitos formais do contrato de arrendamento; - a Lei n.º 32/2012, de 14 de Agosto (que altera o Decreto-Lei n.º 306/2009, de 23 de Outubro), onde consta o regime jurídico da reabilitação urbana; - a Portaria n.º 240/2012, de 10 de Agosto, que prevê a avaliação geral de prédios urbanos (os senhorios de prédios arrendados devem apresentar declaração das rendas nas Finanças para beneficiarem de um regime especial); - a Lei n.º 80/2014, de 19 de Dezembro, que regula o regime de renda condicionada dos contratos de arrendamento para fim habitacional; - a Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro, que estabelece o novo regime do arrendamento apoiado para habitação; - e ainda, recentemente, a Portaria n.º 98-A/2015, de 31 de Março, referente à obrigação de emissão e entrega do recibo de quitação referente às rendas recebidas pelos senhorios, que institui a declaração electrónica de participação do arrendamento ao Fisco e ainda estabelece o modelo oficial de declaração anual das rendas, para efei-
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tos do art. 115.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS). Para compreendermos melhor o alcance das medidas previstas na Lei n.º 79/2014, de 19 de Dezembro, centremo-nos nos motivos da reforma de 2012 que foi, de todas as alterações legislativas no regime do arrendamento, a mais significativa no que respeita ao impacto gerado na vida dos cidadãos, quer dos arrendatários, quer dos senhorios, pela liberalização do mercado que se anunciava. O contexto da reforma de 2012 é, por todos, conhecido: havia um consenso generalizado em torno da necessidade de revisão da lei do arrendamento urbano; estávamos cientes do problema que representava a manutenção dos arrendamentos anteriores a 1990 – os designados arrendamentos vinculísticos, problema este que a reforma de 2006 não conseguiu resolver. Os valores extremamente baixos das rendas dos contratos antigos levou a que muitos senhorios não tivessem possibilidades nem interesse em recuperar ou manter os prédios com a proliferação de situações flagrantemente injustas, em que alguns inquilinos beneficiavam de rendas sem qualquer correspondência com o valor de mercado e muitos residiam em locais sem as mínimas condições de habitabilidade. Este contexto conduziu a uma degradação do património edificado, com reflexos no ambiente urbano e na qualidade de vida dos cidadãos e, indirectamente, no turismo. Acresce que a reforma do arrendamento urbano foi um dos pontos negociados entre a troika e o Estado português, que consta do memorandum de entendimento assinado em 2011. Os objectivos da reforma eram claros e ressaltam do preâmbulo da Lei n.º 31/2012: pretendia-se dinamizar o mercado do arrendamento urbano, criando mais habitação para arrendar (aumentando a oferta) e a preços mais acessíveis; procurava-se com isso requalificar e revitalizar as cidades, favorecendo a mobilidade das pessoas, essencial para a criação de emprego; almejava-se também contribuir para a redução do endividamento das famílias e para a promoção da poupança, fazendo com que a procura de compra de habitação própria diminuísse em favor da procura de casa para arrendar. Para alcançar esses objectivos, a reforma assentava em quatro vectores: - flexibilização do regime do contrato de arrendamento, quer através de um regime de actualização das rendas, quer através da transição para o NRAU4, acabando-se progressivamente com os arrendamentos vinculísticos;
A expressão “transição para o NRAU”, utilizada na lei, significa que o contrato de arrendamento passa a ser livremente denunciável pelo senhorio – cfr. MARIA OLINDA GARCIA, Arrendamento urbano anotado – regime substantivo e processual, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2013, p. 137. 4
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- promoção de mecanismos expeditos e eficazes de cessação do contrato e de desocupação do imóvel; - conjugação do regime do arrendamento com a reabilitação urbana; e - melhoramento do enquadramento fiscal5. No que à actualização das rendas concerne, entendia-se ser necessário conciliar os interesses dos arrendatários com os interesses dos senhorios: quem é senhorio tem o legítimo direito a receber, pela locação da sua propriedade, um valor justo, que legitime e possibilite a exigência de cumprimento dos deveres de manutenção do prédio. Com base neste princípio, criou-se um mecanismo, alegadamente eficaz e objectivo, de actualização da renda e de transição para o novo regime. Reconhecia-se, porém, que, se o senhorio tinha direito à renda justa, o arrendatário teria direito à estabilidade da habitação, pelo que haveria que tutelar também a sua posição e sobretudo salvaguardar situações de carência ou debilidade como os casos dos arrendatários deficientes ou idosos. Segundo o esboço previsto na reforma de 2012, actualizadas as rendas, o contrato continuaria a vigorar, só havendo possibilidade de despejo com um dos fundamentos previstos na lei. Para a actualização das rendas, aproveitou-se o sistema de determinação do valor dos imóveis, nascido da reforma da tributação do património. O senhorio que pretendesse a actualização da renda deveria requerer a avaliação fiscal do imóvel, se esta ainda não tivesse ocorrido. Este valor seria depois conjugado com o coeficiente de conservação dos imóveis. Apurado o valor da renda, a sua aplicação aos arrendamentos antigos seria feita de forma faseada, de modo a minorar o impacto que representa no orçamento do arrendatário. Acresce que, em princípio, só poderia haver correcção extraordinária da renda quando o imóvel não se encontrasse degradado. O legislador pretendeu assim incentivar a realização de obras de conservação e de recuperação dos imóveis pelo senhorio. O sistema teria, portanto, em vista a protecção da posição do arrendatário e, supostamente, seria mais vantajoso para o Estado. Consta das motivações enunciadas no preâmbulo que, ao garantir que não haveria aumento de despejos, nem actualização brusca dos valores das rendas, as necessidades assistenciais seriam significativamente reduzidas. Por outro lado, entendeu-se que, ao conexionar o direito à actualização do valor da renda a uma avaliação fiscal, seriam potencialmente aumentadas as receitas em sede de IMI, penalizando-se no cálculo do imposto os prédios devolutos.
Vide, sobre as motivações da reforma de 2012, ASSUNÇÃO CRISTAS, «Opções políticas da reforma», in Temas de Direito do Arrendamento, Cadernos O Direito, n.º 7, 2013, pp. 17 e ss. 5
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Quanto ao arrendamento comercial, ambicionava-se com a reforma de 2012 preservar o comércio tradicional. No entanto, é de notar que este intuito acabou por se revelar, em certos aspectos, funesto, com o colapso de alguns estabelecimentos mercantis, de saúde financeira frágil, que não conseguiram acompanhar a subida abrupta das rendas. O que talvez explique esta alteração legislativa (a Lei n.º 79/2014) que vem modificar novamente o conceito de microempresa para efeitos de actualização da renda, como veremos adiante.
3. O regime jurídico das obras em prédios arrendados São várias as disposições do Código Civil que fazem referência às obras no locado, as quais, em princípio, devem ser levadas a cabo pelo locador, no âmbito da sua obrigação principal, que é a de proporcionar ao locatário o gozo da coisa locada para os fins a que a mesma se destina, quer se trate de um arrendamento para fins habitacionais, quer se trate de um arrendamento para fins não habitacionais. Isto resulta claramente da alínea b) do art. 1031.º. Todavia, a lei reconhece, no art. 1036.º, a possibilidade de o locatário levar a cabo reparações urgentes, no caso de o locador estar em mora quanto à obrigação de as fazer, quando, pela sua urgência, tais reparações não se compadecerem com a demora judicial. Refira-se, por seu turno, o art. 1038.º, alínea e), que prevê a obrigação do locatário tolerar reparações urgentes bem como aquelas que sejam ordenadas por autoridade pública. De acordo com o regime civilístico actual6, as regras relativas às obras no locado podem ser fixadas livremente pelas partes, sendo os preceitos dedicados às obras de natureza supletiva. Assim, para os arrendamentos habitacionais, o art. 1074.º, n.º 1, dispõe que é incumbência do senhorio levar a cabo todas as obras de conservação, ordinárias e extraordinárias7, que sejam impostas pelas leis em vigor ou pelos fins do contrato, salvo estipulação em contrário. Por seu turno, o n.º 2 prevê que o arrendatário
6 Os arts. 1074.º e 1111.º correspondem à redacção dada pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, não tendo sofrido alteração com a Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto. 7 Recorde-se que, no regime anterior, no RAU, era indiscutível que o senhorio estava incumbido de levar a cabo as obras de conservação ordinárias, mas já não era pacífico o entendimento de que lhe cabia igualmente realizar as obras extraordinárias, atendendo, sobretudo, ao facto de o senhorio estar, muitas vezes, incapacitado financeiramente de o fazer, em virtude de os valores recebidos a título de rendas serem extremamente baixos e não lhe permitirem realizar quaisquer investimentos na reabilitação dos locados. Neste sentido, veja-se LUÍS MENEZES LEITÃO, Arrendamento urbano, Lisboa, Almedina, 2012, pp. 201 e 202.
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apenas pode executar quaisquer obras quando o contrato o faculte ou quando seja autorizado, por escrito, pelo senhorio, exceptuando-se as reparações urgentes em que o arrendatário, se as realizar, tem direito a fazer compensação do crédito pelas despesas suportadas com a obrigação do pagamento da renda. Acresce que, de acordo com o n.º 5 do art. 1074.º, no final do contrato, o arrendatário tem direito a ser compensado pelas obras licitamente feitas, nos termos aplicáveis às benfeitorias realizadas por possuidor de boa-fé. No caso dos arrendamentos não habitacionais, determina-se, no n.º 1 do art. 1111.º, que as regras relativas à responsabilidade pelas obras são livremente estabelecidas por acordo das partes, sendo que, na falta de convenção, o senhorio deve realizar as obras de conservação, cabendo ao arrendatário levar a cabo as obras exigidas por lei ou pelos fins do contrato. Além destas disposições civilísticas sobre as obras no locado, conjugando-se as reformas de 2006 e de 2012 com o objectivo da reabilitação urbana, existem outras normas na legislação dispersa acima referida, especificamente dedicadas ao problema das obras e à reabilitação urbana. Sublinha ASSUNÇÃO CRISTAS que ao dever de o senhorio fazer obras corresponde também um direito de as fazer, sendo, nessa medida, um poder-dever quando se trate de “casos de obras de remodelação e restauro profundo e os casos de demolição”. Nessas situações, como refere, o senhorio tem, além do dever, o direito de fazer obras e, entretanto, suspender ou mesmo denunciar o contrato de arrendamento8. A matéria das obras em locais arrendados é regulada pelo Decreto-Lei n.º 157/ /2006, de 8 de Agosto, já alterado por diversas vezes, nomeadamente pelo Decreto-Lei n.º 306/2009, de 23 de Outubro, pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, e agora também pela Lei n.º 79/2014, de 19 de Dezembro. A este regime é costume chamar-se abreviadamente RJOPA (Regime Jurídico das Obras em Prédios Arrendados). Este diploma pretendeu, conforme resulta da exposição dos motivos, consagrar vários mecanismos legais, com vista a fomentar a efectiva reabilitação urbana dos prédios, estabelecendo, numa primeira parte, o regime aplicável aos contratos celebrados após a entrada em vigor do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, e ainda aos contratos anteriores a este em tudo o que não seja excepcionado na parte seguinte, e, numa segunda parte, prevê-se um regime transitório aplicável aos
ASSUNÇÃO CRISTAS, «Regime de obras e sua repercussão na renda e na manutenção do contrato de arrendamento», in Themis, ano IX, n.º 15, 2008, pp. 27 e ss. Refira-se que o preceito que previa a possibilidade de suspensão do contrato de arrendamento – o art. 9.º do Decreto-Lei n.º 157/2006, de 8 de Agosto – foi, entretanto, revogado. 8
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contratos antigos para fins habitacionais, isto é, os celebrados antes da entrada em vigor do RAU9. Consagra-se no RJOPA a possibilidade de suspensão ou de denúncia do contrato e da desocupação com vista à demolição ou à realização de obras de remodelação ou de restauro profundos da iniciativa do senhorio, a realização de obras coercivas, entre outros aspectos. Estabelece-se ainda, nos termos da redacção actual dada pela Lei n.º 79/2014, a possibilidade de desocupação temporária para realização de obras de conservação, como veremos com mais detalhe adiante. Como se disse, este diploma foi objecto de sucessivas alterações, desde 2006. A versão actual, já pouco tem a ver, sobretudo na parte inicial, com a versão original, uma vez que os artigos dessa primeira parte foram sendo sucessivamente alterados ou revogados. O RJOPA estabelece dois regimes: o primeiro, designado por regime geral, dedicado às obras da iniciativa do senhorio ou, se este incumprir a sua obrigação, da iniciativa do município ou da sociedade de reabilitação urbana; a outra parte é dedicada ao regime especial transitório, estabelecido para os contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU, em que a iniciativa das obras pode caber ao senhorio ou ao arrendatário, em determinadas circunstâncias10. A primeira parte, correspondente ao designado regime geral, foi agora substancialmente modificada, alterando-se também os conceitos de obras de remodelação ou restauro profundos e os pressupostos da denúncia do arrendamento nestes casos, consagrando-se um artigo específico para as obras de conservação.
4. O RJOPA à luz da Lei n.º 79/2014, de 19 de Dezembro Aqui chegados, vamos então analisar o RJOPA à luz desta a Lei n.º 79/2014, que entrou em vigor em 19 de Janeiro de 2015, sendo o respectivo regime aplicável, de acordo com a norma transitória, aos procedimentos de transição para o NRAU que se encontrem pendentes a 18 de Janeiro de 2015, sem prejuízo dos direitos e obrigações decorrentes dos actos já praticados no âmbito desses procedimentos.
9 Como salienta LUÍS MENEZES LEITÃO, Arrendamento urbano, cit., p. 201, “[é] compreensível a necessidade de um regime transitório em relação às obras. Efectivamente, o congelamento das rendas durante décadas veio provocar uma grande desactualização com graves distorções no mercado de arrendamento, levando a que os senhorios tivessem deixado de efectuar obras, já que não retiravam qualquer proveito desse investimento”. 10 ADELAIDE MENEZES LEITÃO, «Regime jurídico das obras nos locais arrendados», in Cadernos O Direito, 7 (2013), pp. 171 e ss.
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Contrariamente ao habitual, esta Lei não vem acompanhada de um preâmbulo com as motivações, que nos ajudaria a clarificar as disposições em função das intenções do legislador. Esta omissão adensa ainda mais as dificuldades de interpretação. 4.1. A denúncia para demolição ou realização de obra de remodelação ou restauro profundos que obriguem à desocupação do locado A primeira inovação a registar no diploma é a da alteração dos pressupostos para a denúncia do contrato de duração indeterminada justificada pela necessidade de demolição ou realização de obra de remodelação ou restauro profundos que obriguem à desocupação do locado11. Antes de examinarmos as inovações do diploma, vejamos, resumidamente, o conceito de denúncia no contrato de arrendamento. Esta forma de cessação consiste na desvinculação unilateral de um contrato de arrendamento de duração indeterminada. Nos termos do art. 1099.º, estes contratos podem ser denunciados pelo senhorio ou pelo arrendatário, mediante comunicação à outra parte, respeitando uma certa antecedência, prevista no art. 1100.º, quando o denunciante seja o arrendatário, e no art. 1101.º, para o caso de o denunciante ser o senhorio. O arrendatário pode desvincular-se sem qualquer motivo, desde que respeite um período de aviso prévio, como de resto sempre sucedeu. Os sucessivos regimes do arrendamento urbano sempre tiveram em vista a protecção do arrendatário, pelo que a desvinculação, por denúncia, por parte deste, nunca suscitou problemas de maior. Com a consagração dos prazos de aviso prévio, apenas se pretende tutelar, embora de forma limitada, a expectativa de rendimento por parte do senhorio. Todavia, se a denúncia for da iniciativa do senhorio, cumpre distinguir a denúncia motivada da denúncia imotivada, a chamada desvinculação ad nutum. A denúncia motivada deve ter como fundamento uma das causas elencadas no art. 1101.º, a saber: a) denúncia para habitação própria do senhorio ou dos seus descendentes, a qual depende da verificação dos requisitos enunciados no art. 1102.º; b) denúncia para demolição ou realização de obra de remodelação ou restauro profundos, a qual, por sua vez, depende dos requisitos enunciados no art. 1103.º, n.os 2 e ss. Diversamente, na denúncia imotivada, como o próprio nome sugere, o senhorio não tem de fundamentar a denúncia do contrato, bastando que respeite o prazo que, a
Repare-se que já antes a denúncia tinha carácter excepcional, na medida em que só seria possível se houvesse demolição ou se as obras em questão fossem, cumulativamente, estruturais e não se previsse que, após a obra, passasse a existir um local com características equivalentes às do locado – cfr. primitiva redacção do art. 4.º, n.º 2, revogado pela Lei n.º 30/2012. 11
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partir de 2012, passou a ser de dois anos de antecedência sobre a data da cessação, tendo deixado de ser necessária a confirmação da denúncia que antes teria de ser feita de acordo com o art. 1104.º, entretanto revogado. Dito isto, voltemos à Lei n.º 79/2014. Foram alterados o art. 1103.º do Código Civil e, paralelamente, o art. 8.º do RJOPA. Trata-se de alterações que dizem respeito sobretudo à forma de efectivar a denúncia para demolição ou realização de obra de remodelação ou restauro profundos que obriguem à desocupação do locado. De acordo com a nova redacção do n.º 2 do art. 1103.º, estabelece-se que, para a denúncia motivada de um contrato de arrendamento com fundamento na realização de demolição ou de obras de remodelação ou restauro profundos, prevista na alínea b) do art. 1101.º, é necessário juntar à comunicação para a denúncia, sob pena de ineficácia: - o comprovativo de que foi iniciado, junto da entidade competente, procedimento de controlo prévio da operação urbanística a efectuar no locado; e - termo de responsabilidade do técnico autor do projecto legalmente habilitado que ateste que a operação urbanística reúne os pressupostos legais de uma obra de demolição ou de uma obra de remodelação ou restauro profundos e as razões que obrigam à desocupação do locado. Nos termos do normativo anterior, previa-se a denúncia para demoliação ou restauro profundos quer a obra estivesse sujeita a controlo prévio, em que os documentos exigidos eram os mesmos, quer não estivesse sujeita a controlo prévio. Neste caso, o senhorio deveria juntar à sua comunicação o “descritivo da operação urbanística a efectuar no locado, indicando que a operação urbanística está isenta de controlo prévio e as razões pelas quais a mesma obriga à desocupação do locado”. Ou seja, com a alteração da Lei n.º 79/2014, deixam de estar abrangidas pela hipótese do art. 1101.º, alínea b), as situações em que a obra de remodelação ou restauro profundos não está sujeita a controlo prévio. De seguida, tal como sucedia anteriormente, é necessário que o senhorio confirme a denúncia. Os documentos que então devem instruir essa confirmação são agora diferentes. O senhorio deve juntar agora, sob pena de ineficácia: - o alvará de licença de obras ou o título de comunicação prévia; - o documento (certidão camarária) que ateste que a operação urbanística em causa constitui, nos termos da lei, uma obra de demolição ou de remodelação ou restauro profundos que obriga à desocupação do locado, quando tal não resulte do documento anterior. Repare-se que, até aqui, a lei exigia apenas o comprovativo de que havia sido iniciado junto da câmara o procedimento de controlo prévio e o termo de responsabilida-
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de do técnico (arquitecto ou engenheiro) autor do projeto. Mesmo a confirmação da denúncia dependia apenas de ser instruída com o comprovativo de deferimento do pedido ou, nos casos em que a operação estivesse sujeita tão-só a comunicação prévia, do comprovativo de que a pretensão não foi rejeitada. Nos termos do novo preceito, passa a haver sempre intervenção camarária, com as inerentes consequências: delongas e incertezas na concretização da denúncia motivada dos contratos de arrendamento nestes casos, considerando a dualidade de critérios tão comum nas decisões municipais. O aumento de obstáculos burocráticos, com esta exigência adicional, parece-nos claro: além dos requisitos anteriores, requer-se agora um documento camarário que será, por certo, difícil de obter ou, pelo menos, difícil de obter de forma célere. Repare-se que a Câmara tem de certificar que a obra em causa constitui uma obra de demolição ou de remodelação ou restauro profundos que obriga à desocupação do locado, o que nem sempre será fácil ou, pelo menos, não obedecerá a um critério idêntico em todos os municípios, porquanto o entendimento camarário acerca do que qualifica este tipo de obras será incerto. De relevar ainda a alteração do n.º 3 do art. 15.º do NRAU, que diz respeito ao procedimento especial de despejo, quanto aos documentos que podem servir de base a esse procedimento no caso de denúncia, passando a exigir-se que a comunicação para denúncia seja acompanhada de cópia da certidão a que se refere o n.º 7 do art. 8.º do Decreto-Lei n.º 157/2006, quando estejam em causa operações de reabilitação urbanística. 4.2. Demolição para efeitos de denúncia pelo senhorio É de sublinhar também, pela sua relevância, a alteração que vem prevista no art. 7.º do Decreto-Lei n.º 157/2006 (RJOPA). Anteriormente, o senhorio, no caso de denúncia para demolição, teria de realojar ou de indemnizar o arrendatário, de acordo com o método de cálculo previsto no art. 6.º do mesmo diploma, apenas estando dispensado de o fazer nas circunstâncias elencadas no anterior n.º 2, se a demolição fosse ordenada nos termos do regime jurídico da urbanização e da edificação ou do regime jurídico da reabilitação urbana (alínea a)), se fosse necessária por força da degradação do prédio, a atestar pelo município (alínea b)), ou se resultasse de plano de pormenor de reabilitação urbana (alínea c)). Ainda assim, haveria lugar à responsabilidade civil nos termos gerais, se a demolição tivesse como causa acção ou omissão culposa do proprietário ou de terceiro.
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Com a nova redacção do art. 7.º, redefinem-se as situações em que pode haver lugar à demolição do locado: a) se a demolição for ordenada nos termos do regime jurídico da urbanização e da edificação ou do regime jurídico da reabilitação urbana; b) se a demolição for necessária por força da degradação do prédio, a atestar pelo município; c) ou se a demolição resultar de plano de ordenamento do território aplicável, nomeadamente de pormenor de reabilitação urbana. A diferença reside no seguinte: a demolição, anteriormente, era possível para além das circunstâncias mencionadas, estabelecendo-se, nesses casos, regras quanto ao realojamento e à indemnização por parte do senhorio. Agora, a denúncia para demolição apenas pode ocorrer nas circunstâncias elencadas no preceito, determinando-se ainda que, ocorrendo a demolição, o senhorio está obrigado a indemnizar nos termos do art. 6.º, o qual permanece inalterado. O senhorio só não terá de suportar tal indemnização se a ordem ou a necessidade de demolição não resultar de acção ou omissão culposa da sua parte. Repare-se que o art. 6.º não foi revogado nem alterado, permanecendo, portanto, o seu regime, nomeadamente quanto às condições de realojamento do arrendatário ou à indemnização a pagar12. Fica-se na dúvida se, face à nova redacção do n.º 2 do art. 7.º, é de excluir a hipótese de o senhorio e o arrendatário acordarem no realojamento em vez da indemnização prevista no n.º 1 do art. 6.º. 4.3. Obra de remodelação ou de restauro profundos Paralelamente, altera-se o art. 4.º do referido Decreto-Lei n.º 157/2006, restringindo-se a definição de obras de remodelação ou restauro profundos, que podem fundamentar a denúncia do contrato de arrendamento para obras. São agora excluídas as obras que não estejam sujeitas a controlo prévio, licenciamento ou comunicação prévia junto da entidade camarária. Deixa, assim, de ser possível denunciar contratos de arrendamento relativos a imóveis para a realização de certo tipo de obras, tais como “obras de alteração no interior de edifícios ou suas frações que não impliquem modificações na estrutura de esta-
Nos termos do preceito referido, a denúncia pelo senhorio, para realização de obras de remodelação ou de restauro profundos, conduz à obrigação, em alternativa e mediante acordo, de pagar uma indeminização correspondente a um ano de renda ou de garantir o realojamento do arrendatário por um período não inferior a dois anos. Na falta de acordo das partes, o senhorio pagará a indemnização correspondente a um ano de renda – cfr. art. 6.º, n.º 1, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 30/2012. 12
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bilidade, das cérceas, da forma das fachadas e da forma dos telhados ou coberturas” e outras, isentas de controlo prévio da Câmara. Note-se que o art. 4.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação estabelece quais são as operações urbanísticas que dependem de licenciamento, comunicação prévia ou comunicação. Por seu turno, o art. 6.º do mesmo regime prevê que estejam isentos de controlo prévio: a) as obras de conservação; b) As obras de alteração no interior de edifícios ou suas frações que não impliquem modificações na estrutura de estabilidade, das cérceas, da forma das fachadas e da forma dos telhados ou coberturas; c) As obras de escassa relevância urbanística; d) Os destaques referidos nos n.os 4 e 5 do presente artigo. São consideradas obras de escassa relevância urbanística, entre outras mencionadas no art. 6.º-A, as obras como tal qualificadas em regulamento municipal, o que depende de município para município. Isto significa que qualquer Câmara pode, no exercício do seu poder regulamentar, fixar as obras e os critérios de que deve depender o controlo prévio camarário das mesmas. A conjugação destes preceitos com o agora alterado art. 4.º do Decreto-Lei n.º 157/2006 redunda numa enorme incerteza quanto àquilo que são as situações abrangidas pela norma e que permitem ao senhorio a denúncia do contrato de arrendamento para realização de obras. Não se compreende que o legislador tenha sido tão pródigo na reforma de 2012 e venha agora, surpreendentemente, impedir que os senhorios denunciem os contratos em tais circunstâncias. Se o que se pretendia com a reforma de 2012 era a reabilitação dos centros urbanos e a requalificação dos imóveis, coibindo os senhorios de denunciar nestes casos faz recuar na prossecução dos objectivos da reforma e, a nosso ver, sem qualquer justificação, a não ser, efectivamente, dar uns passos atrás nos objectivos a que se propôs. 4.4. Obras de conservação Não despicienda é também a alteração prevista no art. 3.º do Decreto-Lei n.º 157/ /2006. A epígrafe do artigo era anteriormente obras coercivas, passando agora a designar-se obras de conservação. O preceito anterior apenas se referia, de forma resumida, à possibilidade de o município intimar o senhorio para a realização das obras de manutenção e de conservação. A norma passou agora a fazer parte integrante do anterior art. 2.º. O art. 3.º alterado é, com efeito, uma disposição nova. Passa a dispor-se que, sendo as obras de manutenção e de conservação indispensáveis, o senhorio pode solicitar
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ao arrendatário a desocupação do locado, por um período máximo de 60 dias, estando obrigado a providenciar pelo seu realojamento em condições idênticas e a suportar as respectivas despesas. Trata-se de uma medida temporária, de curta duração, que não gera a cessação do contrato de arrendamento por denúncia. Nos termos do n.º 4 do novo art. 3.º, o arrendatário terá direito a ser indemnizado pelos danos (por certo patrimoniais e não patrimoniais) que possam advir do não cumprimento do prazo máximo da desocupação.
5. Outras alterações da Lei n.º 79/2014 Analisemos, por fim, as outras mudanças constantes da Lei que, embora nada tenham a ver com o regime das obras no locado, vieram a reboque desta pequena reforma. 5.1. A indeminização por obras feitas pelo arrendatário Na mesma trajectória de dificultar a vida aos senhorios, temos a matéria da compensação por benfeitorias feitas pelo arrendatário, se o contrato cessar por denúncia no caso de transição para o NRAU. O n.º 2 do art. 29.º do NRAU, na versão de 2012, previa que a denúncia potestativa do arrendatário, no caso de o senhorio proceder à transição para o NRAU e à actualização da renda, conferia ao arrendatário direito à compensação pelas obras licitamente feitas, nos termos aplicáveis à indemnização por benfeitorias realizadas por possuidor de boa-fé, independentemente do estipulado no contrato de arrendamento13. Com a nova redacção do preceito, o direito do arrendatário à compensação abrange também “as obras não tenham sido autorizadas pelo senhorio”. Note-se que a formulação legal já era criticável pela sua ambiguidade14. Agora, acrescentam-se ainda mais obstáculos para os senhorios denunciarem os contratos nestas condições, obrigando-os a compensar (utilizando a terminologia da lei), ainda que não tenham autorizado as obras, o que agrava de forma evidente o risco para qualquer investidor que pretenda actuar na área da reabilitação urbana de imóveis arrendados. A possibilidade de ter de indemnizar por obras não autorizadas e a surpresa que tal pode envolver gerará retracção das iniciativas de investimento na reabilitação e na recuperação de imóveis.
A norma só se aplica aos contratos de arrendamento de cariz vinculista – vide, neste sentido, GRAVATO MORAIS, Novo regime do arrendamento comercial, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 112 e ss. 14 Note-se que não era pacífico, por exemplo, o entendimento acerca do que seriam as obras licitamente feitas. 13
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5.2. Comunicação para a actualização da renda e para a transição para o NRAU No procedimento para a transição para o NRAU e para a actualização da renda, são também introduzidas alterações, as quais convergem igualmente no sentido de onerar o senhorio com mais deveres e cautelas a tomar. Assim, o novo art. 30.º introduz adicionais exigências na comunicação do senhorio ao arrendatário para efeitos de actualização da renda e transição para o NRAU. Foram aditados elementos que o senhorio deve indicar na sua comunicação, sob pena de a mesma não produzir efeitos. São eles, além dos elementos que já anteriormente teriam de constar: - a indicação de que o prazo de resposta é de 30 dias; - a indicação do conteúdo que pode apresentar a resposta (obrigando-se o senhorio a reproduzir o disposto no n.º 3 do art. 31.º, onde constam as várias opções que o arrendatário tem); - a indicação das circunstâncias que o arrendatário pode invocar nessa resposta, indicando-se-lhe ainda que tem de juntar comprovativos; - a indicação das consequências da falta de resposta, bem como as consequências da não invocação das circunstâncias impeditivas da actualização da renda. Note-se, portanto, o detalhe e o pormenor que o senhorio tem de imprimir na sua comunicação para a actualização da renda. A modificação parece revelar excesso de zelo e um certo paternalismo em relação ao arrendatário por parte do legislador, obrigando o senhorio a explicitar ao arrendatário todos os modos de reacção à proposta de actualização da renda. O significativo aumento das exigências na comunicação do senhorio dificulta, naturalmente, o processo de transição para o NRAU. 5.3. A possibilidade de o arrendatário reclamar da avaliação fiscal feita nos termos do CIMI Veja-se ainda o novo n.º 6 do art. 31.º do NRAU, que concede ao arrendatário a possibilidade de, no prazo de trinta dias após receber a comunicação do senhorio, reclamar junto do serviço de finanças competente de qualquer incorrecção na inscrição matricial do locado, por exemplo da avaliação fiscal do mesmo, ao abrigo do art. 130.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI). Esta reclamação não suspende a actualização imediata da renda e, caso seja deferida pelo serviço de finanças, o senhorio terá de devolver o valor em excesso das rendas entretanto recebidas, desde a data em que se considera devida a renda actualizada. Este montante não pode ultrapassar,
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em cada mês, metade da renda devida, salvo se houver acordo das partes ou se verifique a cessação. 5.4. A prova do rendimento anual bruto corrigido por parte do arrendatário Por outro lado, nos termos do novo n.º 5 do art. 35.º, o arrendatário deixa de estar automaticamente obrigado a fazer anualmente a prova do seu Rendimento Anual Bruto Corrigido. De acordo com esta nova alteração, para que tal obrigação exista, o senhorio tem de exigir ao arrendatário que faça essa prova, até ao dia 1 de Setembro de cada ano. Volta-se a pôr o ónus de “tomar conta” do arrendatário a cargo do senhorio, esquecendo o legislador que o senhorio pode, também ele, carecer de protecção, pois nem sempre representa a parte mais fraca – lembre-se os inúmeros casos de senhorios idosos de parcos rendimentos, situação, de resto, com enorme relevância social, tanto mais que foi um dos motivos da reforma de 2012. 5.5. O conceito de microempresa Uma nota ainda para os arrendamentos não habitacionais. São modificados os n.os 4 e 5 do art. 51.º, isto é, volta-se ao conceito de “microempresa” que já anteriormente havia sido previsto na reforma de 200615, o que nos parece correcto, alterando-se também os pressupostos em que o arrendatário pode adiar a transição do contrato para o NRAU, durante cinco anos: a) se existir no locado um estabelecimento comercial aberto ao público e que seja uma microempresa16, sendo considerada como tal aquela que não ultrapasse, à data do balanço, dois dos seguintes limites: a) total do balanço: € 2.000.000; b) volume de negócios líquido: € 2.000.000; c) número médio de empregados durante o exercício: 10; b) se no locado funcionar uma pessoa coletiva de direito privado sem fins lucrativos, regularmente constituída, que se dedica à atividade cultural, recreativa, de solidariedade social ou desportiva não profissional ou de interesse nacional ou municipal, ou uma pessoa colectiva de direito privado que prossiga uma actividade declarada de interesse nacional; c) se funcionar no local uma república de estudantes.
Cfr. antigo art. 53.º do NRAU que definia microempresa como aquela que “tem menos de 10 trabalhadores e cujos volume de negócios e balanço total não ultrapassa os dois milhões cada”. 16 A expressão é alterada de “microentidade” para “microempresa”. 15
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Ao substituir-se o conceito de microentidade por microempresa, não se olvidou as situações em que a entidade a funcionar no local não é uma empresa mas sim outro tipo de pessoa colectiva de direito privado sem fins lucrativos mas de interesse público. Alargou-se a duração do prazo de renovação do contrato das microempresas de dois para três anos, quando não haja acordo das partes relativamente à duração do mesmo, após o período transitório inicial de cinco anos. Note-se ainda que, nos termos da norma transitória constante do art. 6.º do diploma em análise, nos contratos de arrendamento não habitacional, em que já tenha ocorrido a actualização de renda nos termos do NRAU, se o arrendatário invocasse, até 17 de Fevereiro de 2015, preencher o conceito de microempresa a funcionar e comprovasse a realização de investimentos no locado ou em equipamentos para ele especificamente vocacionados, realizados entre 12 de Novembro de 2009 e 12 de Novembro de 2012, o senhorio não já poderá opor-se à renovação do contrato pelo período de três anos, embora com direito a actualização anual ordinária da renda, de acordo com os coeficientes de actualização anual. Esta possibilidade é, no mínimo, surpreendente, pelo abalo da confiança que gera no senhorio. Este, que já tinha uma perspectiva sustentada quanto à aplicação do novo regime da reforma de 2012 e que por certo já teria tomado as suas decisões de investimento em função disso, vê goradas, sem mais, as suas expectativas. 5.6. Outras pequenas alterações As alterações não se ficam por aqui: o legislador num excesso de preciosismo e de rigor a que não estamos habituados resolveu clarificar que as situações em que faz referência a um grau de incapacidade superior a 60% correspondem antes a um grau de incapacidade igual ou superior a 60%. Vejam-se as normas alteradas: a) o art. 1072.º: restrições à resolução por não uso efectivo do locado, deixando de ser fundamento da resolução o não uso do locado quando a ausência se deva ao acompanhamento de pessoas com deficiência ou grau de incapacidade igual ou superior a 60% (anteriormente apenas superior a 60%); b) o diferimento da desocupação – art. 15.º-N; c) o art. 26.º, n.º 4, e art. 8.º, n.º 5 – não aplicação da denúncia imotivada do arrendamento com antecedência não inferior a dois anos; d) o art. 31.º – actualização da renda e transição para o NRAU; e e) o art. 36.º.
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E o mesmo sucede com os preceitos em que se estabelecem limitações quando o arrendatário tenha mais de 65 anos de idade: passa a ser, isso sim, idade igual ou superior a 65 anos. Trata-se de ligeiras alterações. No entanto, não nos passa despercebida a intenção de dificultar e de restringir os direitos dos senhorios, quanto às possibilidades de cessação dos contratos. Por fim, sublinhe-se, como já foi acima referido, a possibilidade de recurso ao procedimento especial de despejo relativamente a contratos cujo imposto de selo não tenha sido liquidado, desde que o senhorio comprove ter incluído as rendas na sua declaração de rendimentos de IRS/IRC, através da aplicação da nota de liquidação.
6. Considerações finais É com algum desassossego que encaro mais esta alteração legislativa. Para além da instabilidade em que permanentemente vivemos, as normas comentadas evidenciam que a preocupação de estímulo à reabilitação urbana foi abandonada ou, pelo menos, terá passado para segundo plano. Enfim, vamos estar atentos à forma como os agentes económicos vão reagir a estas mudanças. De todo o exposto, resulta clara a intenção de o legislador dificultar aos senhorios as hipóteses de transição para o NRAU. Estamos, pois, perante mais um desafio para os próximos tempos: o de conciliar a tarefa de consolidação do novo regime do arrendamento urbano com as exigências que se nos colocam em resultado da crise económico-social, no plano da protecção dos mais desfavorecidos.
(Este artigo segue as regras anteriores ao novo acordo ortográfico.)
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O Futuro Próximo da Patente na União Europeia* Luís Couto Gonçalves**
Resumo: Na União Europeia, progressivamente, a propriedade industrial de fonte nacional, vai tendo a concorrência, cada vez mais forte, da propriedade industrial de fonte europeia. Afinal, é o funcionamento mais harmonioso do mercado interno que o justifica e impõe. Neste trabalho, analisamos a importância da criação próxima da patente europeia de efeito unitário. Palavras-chave: Propriedade industrial – União Europeia – Patentes
Abstract: In the European Union, industrial property from national sources will gradually have stronger competition from industrial property of European sources. After all, the smooth functioning of the internal market justifies and requires such action. We examine the importance of the imminent establishment of the unitary effect of European patents. Keywords: Industrial property – European Union – Patents
Sumário: Introdução; 1. A via europeia de protecção da patente vigente; 1.1. Procedimento; 2. A criação da patente europeia de efeito unitário; 3. Tribunal Unificado de Patentes; Abreviaturas
Introdução Neste século, os anos de evolução do projecto europeu têm sido marcados pelo aprofundamento do funcionamento do mercado interno, com reflexos relevantes no âmbito do direito da propriedade industrial. Progressivamente, a propriedade industrial de fonte nacional vai tendo a concorrência, cada vez mais forte, da propriedade industrial de fonte europeia. Afinal, é o funcionamento mais harmonioso do mercado interno de mercadorias e de serviços que o justifica e impõe1.
* Este artigo encontra-se actualizado até Março de 2015. ** Professor Catedrático da Escola de Direito da Universidade do Minho. 1 Sobre a propriedade industrial, para mais desenvolvimentos, cfr. o nosso Manual de Direito Industrial, 5.ª ed., 2014, Almedina, Coimbra.
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O primeiro passo, mais importante, foi dado com a aprovação da marca comunitária através do Regulamento (CE) n.º 40/94 de 20.12.19932 – entretanto substituído pelo Regulamento (CE) n.º 207/2009 de 26.02.2009 (versão codificada – RMC)3 – e a criação do IHMI, com sede em Alicante. Este Instituto assegura o registo unitário da marca comunitária válido para toda a UE. O sistema de marca comunitária pretendeu colocar um fim no potencial conflito entre a marca nacional e o princípio da livre circulação de produtos e serviços. No dia 5 de Janeiro de 2002, foi publicado o Regulamento (CE) n.º 6/2002, de 12.12.2001, relativo a desenhos ou modelos comunitários4. O IHMI também está em condições de conferir um título jurídico unitário sobre este direito de propriedade industrial. Tudo visto, podemos dizer que, neste momento, há vários direitos de propriedade industrial da União Europeia muito importantes: para além da marca comunitária e do desenho ou modelo comunitário (referidos), podemos acrescentar o direito comunitário de variedades vegetais5, o direito comunitário de denominações de origem e indicações geográficas sobre produtos agrícolas e géneros alimentícios6, as denominações de origem e indicações geográficas de vinhos7 e as indicações geográficas das bebidas espirituosas8. Uma referência ainda para os certificados complementares de protecção de medicamentos (um direito industrial sui generis), de grande interesse prático. Os medicamentos (como os produtos fitofarmacêuticos) carecem de autorização de introdução no mercado com vista à respectiva comercialização. Tendo em conta esta necessidade e que o período decorrente entre o pedido de patente para um novo medicamento ou um produto fitofarmacêutico e a autorização de introdução no mercado (AIM) reduz a protecção temporal efectiva conferida pela patente, com impacto no retorno dos investimentos efectuados, os Regulamentos (CEE) n.º 1768/92 do Conselho, de 18.06.1992 (JO n.º L 182, de 02.07.1992), revogado pelo Regulamento (CE) n.º 469/2009, de 06.05.2009
JO n.º L 11, de 14.01.1994. JO n.º L 78, de 24.03.2009. 4 JO n.º L 3, de 05.01.2002. 5 Regulamento (CE) n.º 2100/94 do Conselho, de 27.07.1994 (JO n.º L 227, de 01.09.1994). 6 Regulamento (UE) n.º 1151/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Novembro de 2012, JO n.º L 343, de 14.12.2012. 7 Regulamento (CE) n.º 479/2008 do Conselho, de 29.04.2008, que estabelece a organização comum de mercado vitivinícola (JO n.º L 148 de 06.06.2008). A protecção das denominações de origem e indicações geográficas de vinhos vem regulada nos arts 33.º e ss. 8 Regulamento (CE) n.º 110/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15.01.2008, relativo à definição, designação, apresentação, rotulagem e protecção das indicações geográficas das bebidas espirituosas (JO n.º L 39, de 13.02.2008). 2 3
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(JO n.º L 152, de 16.06.2009 – versão codificada), e (CE) n.º 1610/96 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23.06.1996 (JO n.º L 198, de 08.08.1996), criaram um certificado complementar de protecção, respectivamente para os medicamentos e os produtos fitofarmacêuticos, a solicitação do titular da patente. Em Portugal, desde 1992, é possível proteger a invenção não só pela via nacional, mas também pela via europeia, instituída pela CPE e pela via internacional concretizada pelo PCT. Neste escrito iremos dar relevância à protecção europeia para, essencialmente, destacar a importância da futura (iminente) patente europeia com efeito unitário.
1. A via europeia de protecção da patente vigente A CPE, de 1973, criou uma organização internacional (OEP) e estabeleceu um sistema centralizado para a apresentação de pedidos e a concessão de patentes dirigido pelo IEP e o Conselho de Administração, com sede em Munique e uma delegação em Haia. A OEP não é uma organização da UE, mas integram-na todos os seus Estados-membros9. A patente europeia não representa um título unitário para o conjunto dos Estados-membros. O significado da patente europeia é outro: permitir, com base num único pedido e num único processo de exame, que seja concedido um feixe de patentes nacionais. Mas a noção de patente europeia não é desprovida de alcance substancial, na medida em que o Estado-membro se vincula a aplicar o direito convencional, no que concerne a alguns aspectos essenciais do direito de patente (v.g. duração, direitos conferidos, alcance de protecção, causas de nulidade). Isto significa que a patente europeia não é um simples “entreposto” de patentes nacionais, apenas ligadas pelo facto de derivarem de um único procedimento de concessão, mas traduz a ideia de que incumbe ao direito convencional regular unitariamente (ex vi art. 2.º, n.º 2, parte final da CPE) pontos substanciais relevantes do regime jurídico do direito de patente. A patente europeia tem os mesmos efeitos de uma patente nacional, mas não é idêntica a uma patente nacional10.
9
Até ao momento, são 38 os Estados aderentes à OEP (incluindo, como vai dito, todos os Estados
da UE). Para citarmos SINGER/STAUDER, The European Patent Convention (Commentary), Thomson, Sweet & Maxwell, Heymanns Verlag, Germany, 2003, vol. I, p. 16. 10
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1.1. Procedimento a) O pedido de patente europeia, apresentado por um requerente domiciliado em Portugal é, por regra11, apresentado no INPI que o envia, no mais curto prazo, para o IEP (art. 76.º, n.os 1 e 2, do CPI). O pedido apresentado em Portugal deve ser redigido em qualquer das línguas oficiais (alemão, inglês e francês) acompanhado, normalmente, de uma tradução em português. Se um requerente já tiver apresentado um pedido nacional beneficia de um prazo de 12 meses a contar da data do pedido para estender o seu pedido à patente europeia. b) Após o pedido, segue-se uma 1.ª fase do processo de pesquisa sobre a sua regularidade formal, a cargo da Secção de Recepção do IEP12 (art. 90.º da CPE). c) Em simultâneo, o IEP elabora um relatório de pesquisa que pretende ser uma primeira indicação ao requerente do estado da técnica (art. 92.º da CPE), preparando o exame mais substancial dos requisitos de patenteabilidade. Este relatório é publicado juntamente com o pedido de patente ou posteriormente (art. 93.º da CPE). d) O pedido da patente é publicado, logo que possível, após a expiração do prazo de 18 meses a contar da data do depósito (art. 93.º da CPE). A requerimento do interessado, o prazo pode ser encurtado. Com esta publicação, é conferido ao pedido uma protecção provisória equivalente à conferida à publicação dos pedidos nacionais de patentes, a partir da data em que for acessível ao público, junto do INPI, uma tradução em português das reivindicações, acompanhada de uma cópia dos desenhos (arts. 67.º, n.º 1, da CPE e 78.º do CPI). A partir da data da publicação do aviso, qualquer pessoa pode tomar conhecimento do texto da tradução e obter reproduções da mesma (art. 78.º, n.º 3, do CPI).
11 Quando o requerente de uma patente europeia tenha o seu domicílio ou sede social em Portugal, o pedido deve ser apresentado no INPI, salvo se nele for reivindicada a prioridade de um pedido anterior apresentado em Portugal (art. 76.º, n.º 2). Este último ponto tem-se mostrado controverso pois certos requerentes têm apresentado o pedido de patente (sem prioridade portuguesa) directamente no IEP, em Munique, ou no departamento de Haia, e este tem sido aceite. 12 A Secção de Recepção, desde Janeiro de 1997, passou a funcionar também em Munique e não apenas na delegação de Haia e na subdelegação de Berlim. A mudança deu-se com a concretização do projecto BEST (Bringing Search and Examination Together) – cfr. RIPPE/STAUDER in SINGER/STAUDER, The European Patent Convention, cit., vol. II, pp. 26/27.
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e) O requerente dispõe de um prazo para decidir se deseja ou não prosseguir com o seu pedido, solicitando um exame quanto ao fundo (art. 94.º da CPE). Esta 2.ª fase decorre em Munique, onde cada pedido é examinado por uma divisão de exame técnico que verifica se foram satisfeitos os critérios e requisitos de patenteabilidade. A divisão de exame pode recusar ou conceder o pedido. Uma vez concedida a patente, é publicada na sua forma definitiva (art. 98.º da CPE). f) Segue-se a fase nacional, que significa que o titular possui, em cada Estado contratante designado, os mesmos direitos que lhe seriam conferidos por uma patente nacional. Em média, o processo de obtenção de uma patente europeia demora mais de três anos e é válida por um período de 20 anos a contar da data do pedido. O titular da patente europeia, para esta produzir efeitos em Portugal, deve apresentar no INPI uma tradução em português13 do fascículo da patente (reivindicações, descrição, resumo, cópias dos desenhos) no prazo de três meses a contar da publicação no Boletim Europeu de Patentes da decisão de concessão (arts. 79.º, n.º 1, e 80.º, n.º 1, do CPI). O INPI procederá à publicação no BPI de um aviso relativo à remessa da tradução referida anteriormente, contendo as indicações necessárias à identificação da patente europeia (art. 82.º do CPI ). g) No prazo de nove meses a contar da data de concessão da patente, qualquer pessoa pode apresentar oposição, se considerar que a patente não deveria ter sido concedida (3.ª fase – arts. 99.º e ss. da CPE). Esta oposição afecta a patente em todos os Estados Contratantes designados. O processo de oposição é da competência das divisões de oposição de Munique. A divisão de oposição pode tomar três tipos de decisões: revogar a decisão de concessão; manter a decisão de concessão com alterações ou recusar a oposição (art. 101.º da CPE). A pedido do titular, e desde que não esteja pendente um processo de oposição, também passa a ser possível, após a entrada em vigor da Revisão da CPE de 2000, a revogação da patente ou a limitação do âmbito das suas reivindicações (art. 105.º-B da CPE).
13 A tradução pode ser dispensável se, e quando, Portugal ratificar o Acordo de Londres, de 17.10.2000 (cujo texto está disponível em http://www.epo.org), que entrou em vigor em 01.05.2008, cuja finalidade essencial, superando o disposto no art. 65.º da CPE, é a simplificação e redução dos custos de tradução da patente europeia na língua oficial do país designado. Quando o Estado em causa, como é o caso de Portugal, não tenha uma língua oficial da OEP (alemão, francês e inglês), deve fazer uma renúncia condicionada de tradução, indicando a língua oficial que aceita.
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As decisões da Secção de Recepção, da Divisão de Exame, das Divisões de Oposição e da Divisão Jurídica são susceptíveis de recurso (art. 106.º da CPE). O recurso, que tem efeito suspensivo, é examinado pelas Câmaras de Recurso de Munique, segundo as regras de competência estabelecidas no art. 21.º da CPE. As Câmaras de Recurso constituem a estrutura contenciosa do IEP e funcionam como se fossem tribunais administrativos, embora não sejam verdadeiros tribunais14. Destas decisões, observados certos requisitos, cabe recurso de revisão para a Grande Câmara de Recurso (art. 112.º-A da CPE). h) Por todas as patentes europeias que produzam efeitos em Portugal, devem ser pagas, no INPI, as taxas anuais aplicáveis às patentes nacionais, nos prazos previstos no CPI (art. 89.º).
2. A criação da patente europeia de efeito unitário O processo de criação de uma patente unitária no âmbito do projecto europeu (hoje, UE) tem sido muito longo e complexo. A primeira tentativa remonta a 15.12.1975, data da assinatura, na Primeira Conferência do Luxemburgo, da Convenção sobre a Patente Comunitária (CPC), num tempo, pois, em que a, então, Comunidade Económica Europeia (CEE) era constituída por nove Estados-membros. Esta iniciativa fracassou. A escolha de um tratado internacional como instrumento jurídico constitutivo da patente comunitária revelou-se uma opção arriscada. Qualquer Estado-membro estaria em condições de bloquear a sua criação, o que veio a acontecer. Por outro lado, a necessidade de tradução das reivindicações da patente em todas as línguas oficiais da Comunidade e a complexidade do sistema judicial de suporte também não contribuíram para o êxito da CPC. Houve mais tentativas de reabilitar a CPC, introduzindo adaptações, mas sem sucesso. Uma situação, reconhecidamente, gravosa para os interesses económicos europeus, tendo em atenção, de um modo especial, no plano concorrencial global, os Estados Unidos da América, o Japão e a China. Todavia, começaram a surgir sinais de mudança com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa de 2009.
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Neste sentido, cfr. JOOS, in SINGER/STAUDER, The European Patent Convention, cit., vol. II, p. 189.
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Uma das razões foi a introdução de um novo preceito, constante do art. 118.º, n.º 1, do TFUE, que permite ao Parlamento Europeu e ao Conselho, deliberando, de acordo com o processo legislativo ordinário (sem exigir, portanto, a unanimidade), a criação de títulos europeus, a fim de assegurar uma protecção uniforme dos direitos de propriedade intelectual na UE. A unanimidade, ao invés (de acordo como o n.º 2 do mesmo artigo, que consagra o processo legislativo especial por meio de Regulamento), já é necessária para o Conselho, após a consulta ao Parlamento Europeu, aprovar a regulação dos regimes linguísticos dos títulos europeus. Outra das razões foi o regime jurídico do mecanismo de cooperação reforçada previsto nos arts. 326.º a 334.º do TFUE e, também, no art. 20.º do TUE. As cooperações reforçadas visam favorecer a realização dos objectivos da União, preservar os seus interesses e reforçar o seu processo de integração. A decisão que autoriza uma cooperação reforçada é adoptada pelo Conselho em último recurso, quando este estabeleça que os objectivos procurados por essa cooperação não podem ser alcançados num prazo razoável pela União no seu conjunto. A cooperação reforçada é adoptada pelo Conselho, com base numa proposta da Comissão e após aprovação do Parlamento. A Comissão Europeia, em Março de 2010, lançou a chamada Estratégia Europa 2020, para preparar a economia da UE, e uma das iniciativas emblemáticas consistia na criação da patente europeia com efeito unitário, a qual, afirmava-se, poderia traduzir-se numa redução anual de custos de, aproximadamente, 300 milhões de euros para as empresas. A constatação, em Março de 2010, da impossibilidade de o Conselho alcançar um acordo, por unanimidade, para aprovação de uma proposta de Regulamento, levou a que, nesse ano, 25 Estados-membros (com excepção da Espanha e da Itália, por razões linguísticas) solicitassem, ao abrigo do art. 329.º, n.º 1, do TFUE, à Comissão uma cooperação reforçada para a criação da patente unitária. Esta diligência foi coroada de êxito, obtidas as competentes autorizações do Parlamento Europeu (Resolução Legislativa de 15.02.2011 – JO n.º C 188, de 28.06.2012, pp. 76 e ss.) e do Conselho (Decisão 2011/ /167/UE de 10.03.2011 – JO n.º L 76, de 22.03.2011, pp. 53 e ss.). Nesse sentido, foi aprovado o Regulamento (UE) n.º 1257/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17.12.2012 (JO n.º L 361, de 31.12.2012), que regulamenta a cooperação reforçada no domínio da criação unitária de patentes, abrangendo 25 Estados-membros da União Europeia, com excepção da Espanha e Itália, por divergências linguísticas15, e da Croácia, por ter aderido em momento posterior.
A Espanha e Itália não aceitaram a necessidade de tradução do espanhol ou do italiano, pretendendo o mesmo tratamento dado aos pedidos de patente em inglês, alemão e francês (línguas oficiais). 15
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Deve dizer-se que as legislações nacionais de patentes dos países da União Europeia são hoje praticamente comuns em domínios relevantes como o da definição do objecto da patente e o da regulação dos requisitos de patenteabilidade. Esta situação é explicada pela fortíssima influência uniformizadora da já referida CPE. O significado da patente europeia, como vimos atrás, é permitir, com base num único pedido e num único processo de exame, que seja concedido um feixe de patentes nacionais. A CPE permite, nos termos do art. 142.º, que um grupo de Estados contratantes possa estabelecer que as patentes europeias concedidas para aplicação nesses Estados tenham carácter unitário, com base num acordo particular. Assim, não é de estranhar que a futura patente europeia com efeito unitário seja concedida pelo IEP, com base no acordo particular constituído pelo referido Regulamento (UE) n.º 1257/2012, que regulamenta a cooperação reforçada no domínio da criação unitária de patentes. A cooperação reforçada tem por objectivo criar uma patente europeia com efeito unitário, em alternativa à impossibilidade de criação da, desejada, patente da UE (título jurídico único), devido à oposição da Espanha e Itália, pelas razões já aduzidas. A patente europeia com efeito unitário, em rigor técnico-jurídico, corresponde, pois, a um efeito jurídico novo de uma patente europeia e não a um novo direito da propriedade industrial da UE. Deste modo, passarão a co-existir patentes europeias sem efeito unitário e patentes europeias com efeito unitário. No entanto, enquanto a patente sem efeito unitário passa a uma segunda fase de natureza nacional, a patente europeia com efeito unitário é mais centralizada e regulada por fontes legislativas, tendencialmente, mais uniformes16. A importância da futura patente europeia com efeito unitário é, ainda assim, muito relevante, ao permitir uma protecção uniforme e simultânea no território dos Estados-membros da UE que aderirem à cooperação reforçada ou dos que venham ainda a aderir, reduzindo, assinalavelmente, os custos de protecção e a complexidade procedimental do actual sistema17. A aplicação efectiva do funcionamento da patente europeia com efeito unitário depende da data da entrada em vigor do ATUP de 19.02.2013, de acordo com o regulado no art. 18.º, n.º 2, do Regulamento (UE) n.º 1257/2012.
Tentaram, ainda, “travar” o processo, apresentando no TJUE um recurso de anulação da referida Decisão do Conselho 2011/167/UE, mas o Tribunal do Luxemburgo negou provimento ao pedido pelo Acórdão de 16.04.2013, processos apensos C-274/11 e C-295/11. 16 As fontes de direito encontram-se elencadas no art. 24.º do Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes, de 19.02.2013, a que nos referimos no ponto seguinte. 17 A cooperação reforçada em curso está aberta à adesão de todos os Estados-membros da UE (cfr. arts. 328.º a 331.º do TFUE). 142
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Esta relação de dependência entre a patente europeia com efeito unitário e o ATUP é determinante para definir o âmbito territorial do efeito unitário. Este efeito opera em todos os Estados-membros participantes da cooperação reforçada e que tenham aderido ao Acordo relativo ao TUP. A necessidade de verificação cumulativa destas duas condições significa que, na prática, o efeito unitário pode não coincidir com os 25 Estados-membros abrangidos, até ao momento, pela cooperação reforçada18. Como elemento necessário da patente europeia com efeito unitário, o regime de tradução aplicável deverá ser simples e eficaz em termos de custos e corresponder ao previsto no Regulamento (UE) n.º 1260/2012, do Conselho, de 17.12.2012, que regulamenta a cooperação reforçada no domínio da criação da protecção unitária de patentes, no que diz respeito ao regime de tradução aplicável19.
3. Tribunal Unificado de Patentes O sistema da patente europeia de efeito unitário é complementado pelo ATUP. Este Acordo não é um instrumento jurídico da UE20, mas um tratado internacional subscrito em 19.02.2013 (2013/C 175/01) por 25 Estados-membros (menos Espanha, Polónia e Croácia21). O Acordo integra, como anexo I, o Estatuto do TUP. O art. 41.º do Acordo remete ainda para um Regulamento de Processo que deverá ser adoptado pelo Comité Administrativo do TUP. O TUP terá competência exclusiva para a resolução de litígios (de natureza civil) que tenham lugar nos Estados membros contratantes – relacionados, de um modo especial, com a violação e validade de patentes e certificados complementares de protecção, além de providências cautelares –, envolvendo patentes europeias sem efeito unitário e patentes europeias com efeito unitário. O TUP será considerado ainda um órgão jurisdicional sujeito às mesmas obrigações nos termos do Direito da UE que qualquer outro órgão jurisdicional nacional dos referidos Estados (arts. 1.º, 32.º e 62.º do ATUP)22.
18 É o caso da Polónia que, tendo participado na cooperação reforçada, não subscreveu o Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes. 19 Para mais desenvolvimentos: ÁNGEL GARCIA VIDAL, El sistema de la patente europea con efecto unitário, Aranzadi Ed., Navarra, 2014; JEAN-CHRISTOPHE GALLOUX/BERTRAND WARUSFEL, «A patente unitária e a futura jurisdição unificada», in Propriedades Intelectuais, n.º 1, pp. 13 e ss. 20 Não obstante, foi publicado no JO n.º C 175, de 20.06.2013, pp. 1 e ss. 21 Curiosamente, a Itália não participou na cooperação reforçada, mas subscreveu o ATUP enquanto a Polónia, como vai dito, participou na cooperação reforçada, mas não aderiu ao ATUP. 22 Ver, ainda, ÁNGEL GARCIA VIDAL, El sistema de la patente europea con efecto unitário, cit., pp. 139 e ss.
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Luís Couto Gonçalves
Durante o período transitório de 7 anos, as acções por violação de patentes europeias sem efeito unitário podem ser instauradas nos tribunais nacionais, se antes da instauração da acção os respectivos titulares tiverem formalizado essa opção no registo (art. 83.º, n.os 1 e 3, do ATUP). A estrutura do TUP abrangerá um Tribunal de Primeira Instância, um Tribunal de Recurso e uma Secretaria. O Tribunal de Primeira Instância constará de uma divisão central, de divisões locais (ou nacionais) e de divisões regionais (art. 7.º, n.º 1). A divisão central terá a sua sede em Paris e secções especializadas em Londres e Munique (art. 7.º, n.º 2). As divisões locais ou nacionais são criadas de acordo com os condicionalismos previstos no art. 7.º, n.os 3 e 4. As divisões regionais (constituídas por dois ou mais Estados) estão contempladas no art. 7.º, n.º 5. O Tribunal de Recurso será instalado no Luxemburgo (art. 9.º, n.º 5). A Secretaria terá a sua sede também no Tribunal de Recurso (art. 10.º, n.º 1). Ainda se prevê a criação de um Centro de Mediação e Arbitragem, com sede em Lisboa e em Liubliana (art. 35.º, n.º 1). O ATUP entra em vigor no primeiro dia do quarto mês após o depósito do 13.º instrumento de ratificação ou adesão, desde que entre os Estados se encontrem a Alemanha, França e Reino Unido (art. 89.º, n.º 1)23. Portugal ratificou o Acordo Relativo ao Tribunal Unificado de Patentes, por Decreto do Presidente da República n.º 90/2015, de 6 de Agosto. Portugal foi o oitavo país a ratificar o acordo, depois da Áustria, Bélgica, Dinamarca, França, Luxemburgo, Malta e Suécia. Numa previsão, relativamente optimista, o TUP não estará operacional antes de 2017.
(Este artigo segue as regras anteriores ao novo acordo ortográfico).
Para mais desenvolvimentos, JEAN-CHRISTOPHE GALLOUX/BERTRAND WARUSFEL, «A patente unitária e a futura jurisdição unificada», cit., PEDRO SOUSA E SILVA, «O Tribunal Unificado de Patentes», in Revista de Direito Intelectual, n.º 1, pp. 273 e ss., e DÁRIO MOURA VICENTE, «Patente unitária, regime linguístico e jurisdição competente», in Estudos de Direito Intelectual em homenagem ao Prof. Doutor José de Oliveira Ascensão, Almedina, 2015, pp. 733 e ss. 23
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Abreviaturas
ATUP — Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes BPI
— Boletim da Propriedade Industrial
CEE
— Comunidade Económica Europeia
CPC
— Convenção sobre a Patente Comunitária
CPE
— Convenção sobre a Patente Europeia, de Munique, de 05.10.1973
CPI
— Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 36/2003, de 5 de Março
IEP
— Instituto Europeu de Patentes
IHMI
— Instituto de Harmonização do Mercado Interno
INPI
— Instituto Nacional da Propriedade Industrial
OEP
— Organização Europeia de Patentes
PCT
— Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes, de Washington, de 19.06.1970
RMC
— Regulamento da Marca Comunitária n.º 207/2009 de 26.02.2009 (JO n.º L 78, de 24.03.2009 – Versão Codificada) que revogou o Regulamento n.º 40/94 de 20.12.1993, JO n.º L 11 de 14.01.1994
TFUE
— Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia
TJUE
— Tribunal de Justiça da União Europeia
TUE
— Tratado da União Europeia
TUP
— Tribunal Unificado de Patentes
UE
— União Europeia
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O procedimento extrajudicial pré-executivo: breve análise do seu regime jurídico Marco Carvalho Gonçalves*
Resumo: A ação executiva constitui uma das matérias processuais que tem merecido uma maior intervenção legislativa nos últimos anos, particularmente devido à necessidade de se reduzir o número elevado de processos executivos pendentes nos tribunais portugueses e de se assegurar a tutela jurisdicional efetiva. É precisamente neste contexto que se insere a recente aprovação do procedimento extrajudicial pré-executivo. Assim, procuraremos analisar neste texto o regime jurídico desse procedimento e compreender o modo como o mesmo se articula com o processo executivo. Palavras-chave: Procedimento extrajudicial pré-executivo – Processo executivo – Agente de execução – Lista pública de devedores – Certidão de dívida incobrável
Abstract: The executive action is one of the procedural matters that has received increased legislative intervention in the recent years, particularly due to the need to reduce the high number of pending enforcement proceedings in the Portuguese courts and to ensure effective judicial protection. It is precisely in this context that the preexecutive extrajudicial procedure was recently approved. So, in this text we will try to analyse the legal regime of this procedure and understand how it interacts with the executive process. Keywords: Pre-executive extrajudicial procedure – Enforcement proceedings – Enforcement agent – Public debtors list – Bad debt certificate
Sumário: 1. Natureza e fins; 2. Requisitos; 3. Tramitação inicial; 3.1. Requerimento inicial; 3.2. Distribuição; 3.3. Recusa do requerimento; 3.4. Consultas e relatório; 4. Tramitação subsequente; 4.1. Manifestação de vontade do credor; 4.2. Notificação do requerido; 4.2.1. Pagamento voluntário da quantia em dívida; 4.2.2. Celebração de acordo de pagamento; 4.2.3. Indicação de bens penhoráveis; 4.2.4. Oposição; 4.2.5. Inclusão na lista pública de devedores e emissão de certidão de incobrabilidade; 4.3. Convolação do procedimento em processo de execução; 5. Consultas após a extinção do procedimento; 6. Valores devidos no âmbito do procedimento extrajudicial pré-executivo; 7. Publicidade do processo; 8. Reclamações e impugnação jurisdicional; 9. Considerações finais
* Professor Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho.
Marco Carvalho Gonçalves
1. Natureza e fins A Lei n.º 32/2014, de 30 de maio, aprovou o denominado “procedimento extrajudicial pré-executivo” (doravante designado abreviadamente por PEPEX), tendo entrado em vigor no dia 1 de setembro de 2014. De acordo com o art. 2.º do referido diploma legal1, o PEPEX traduz-se num procedimento de natureza extrajudicial e facultativa que visa, entre outras finalidades, permitir, numa fase prévia à instauração da ação executiva, a identificação de eventuais bens penhoráveis de que o devedor seja titular, mediante a disponibilização de informação e a consulta das bases de dados de acesso direto eletrónico. Permite-se, assim, ao credor tomar conhecimento antecipado do património do seu devedor, evitando-se a propositura de ações executivas infrutíferas nos casos em que tal património se revele insuficiente ou inexistente2. Contudo, o âmbito do PEPEX não se esgota nessa sua finalidade preventiva. Na realidade, uma vez concluídas as diligências de pesquisa de bens, este procedimento permite, na eventualidade de não serem localizados bens penhoráveis, que o requerido seja notificado para proceder voluntariamente ao pagamento da dívida, celebrar um acordo de pagamento, indicar bens penhoráveis ou deduzir oposição ao procedimento. Significa isto que o PEPEX, sob a aparência de um mecanismo preventivo tendente a evitar a propositura de ações executivas inviáveis por insuficiência ou inexistência de
Pertencem à Lei n.º 32/2014, de 30 de maio, as disposições legais citadas sem a indicação da respetiva fonte. 2 Este propósito do legislador de se evitar o congestionamento dos tribunais judiciais com a propositura de ações executivas estéreis, por inexistência ou insuficiência do património do devedor, não é novo. Na realidade, já na reforma da ação executiva de 2003, instituída pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março, foi criado o registo informático de execuções (Decreto-Lei n.º 201/2003, de 10 de setembro), do qual passaria a constar o rol dos processos de execução pendentes, bem como das execuções findas ou suspensas, mencionando-se, em relação a estas últimas, a extinção com pagamento integral ou parcial e/ou a suspensão da instância por não se terem encontrado bens penhoráveis. Acresce que, procurando-se precaver o surgimento de créditos incobráveis, o legislador previu, então, a possibilidade de o registo informático de execuções ser consultado, entre outros, por pessoa que tivesse relação contratual ou pré-contratual com o titular dos dados ou que revelasse outro interesse atendível na consulta, desde que munido de consentimento do titular ou de autorização para o efeito. Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro, introduziu no nosso ordenamento jurídico diversas “medidas de carácter essencialmente preventivo, para evitar acções judiciais desnecessárias”. Em particular, importa destacar a criação de uma lista pública de execuções, instrumento que visou, por um lado, constituir um “elemento dissuasor do incumprimento de obrigações” e, por outro lado, “evitar, a montante, processos judiciais sem viabilidade e cuja pendência prejudica a tramitação de outros efectivamente necessários para assegurar uma tutela jurisdicional efectiva dos direitos dos cidadãos”. De facto, conforme se extrai do preâmbulo do referido diploma legal, “a informação constante desta lista pode ser um precioso auxiliar na deteccão de situações de incobrabilidade de dívidas e na prevenção de accões judiciais inúteis, nomeadamente através do fornecimento público de elementos sobre as partes contratantes, o que pode contribuir para uma formação mais responsável da decisão de contratar”. 1
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património do devedor, traduz-se, na verdade, num procedimento extrajudicial de cobrança de dívidas 3 , ou seja, constitui uma via alternativa à ação executiva para pagamento de quantia certa4. De facto, ressalvada a possibilidade de convolação em processo executivo, o PEPEX permite, em certos casos, obter os mesmos resultados que seriam alcançados com o recurso a uma ação executiva – maxime a emissão de certidão de incobrabilidade de dívida, a celebração de um acordo de pagamento ou o pagamento voluntário e integral da dívida – com a vantagem de ser tramitado em férias judiciais e por via extrajudicial, atenuando, dessa forma, a pendência processual em sede executiva (art. 33.º, n.º 2).
2. Requisitos Para que seja admissível o recurso ao procedimento extrajudicial pré-executivo, torna-se necessário o preenchimento cumulativo dos seguintes requisitos: a) o requerente deve estar munido de um título executivo que reúna as condições para a aplicação da forma sumária do processo comum de execução para pagamento de quantia certa. Enquadram-se, por conseguinte, neste âmbito as decisões arbitrais ou judiciais (independentemente de as mesmas deverem ou não ser executadas nos próprios autos)5, os requerimentos de injunção nos quais tenha sido aposta a fórmula executória, os títulos extrajudiciais de obrigação pecuniária vencida, garantida por hipoteca ou por penhor, bem como os títulos extrajudiciais de obrigação pecuniária vencida, cujo valor não exceda a quantia de € 10.000,00, salvo se, no caso em concreto, se verificar alguma das situações previstas no art. 550.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC).
No contexto europeu, os Estados têm vindo a procurar implementar nos seus ordenamentos jurídicos mecanismos extrajudiciais tendentes à recuperação de créditos, evitando-se, dessa forma, o congestionamento dos tribunais com ações de cobrança de dívidas. É o que sucede, designadamente, com a França, que prevê no art. 124.º do Code des Procédures Civiles d'Exécution a possibilidade de o credor recorrer a um terceiro para que este proceda, em seu nome, à cobrança amigável de uma determinada dívida, e com a Bélgica, a qual adotou, através da Lei de 20 de dezembro de 2002, um mecanismo amigável de cobrança de dívidas de consumo (Recouvrement amiable des dettes du consommateur). Vide, a este propósito, AUDE BERTHE, «Le recouvrement amiable en Belgique», in Un recouvrement de créances sans frontières?, Larcier, Bruxelas, 2013. 4 Tal como salientam PIERROT SCHILTZ e JEAN-LUC PUTZ, Le Recouvrement de Créances, Promoculture, Luxemburgo, 2003, p. 161, a cobrança amigável ou extrajudicial de créditos assume uma natureza preventiva, sendo uma via preferível, por contraposição à cobrança judicial, nos casos em que o devedor, apesar de reconhecer o crédito, retarde o cumprimento da sua obrigação pelo facto de se ver confrontado com dificuldades momentâneas de tesouraria. Nesse contexto, a cobrança amigável ou extrajudicial do crédito pode revelar-se extremamente eficaz. 5 É o que decorre do art. 18.º, segundo o qual a convolação do PEPEX em processo executivo depende da apresentação de um requerimento executivo ou de um requerimento de execução de decisão judicial condenatória, consoante os casos. 3
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Marco Carvalho Gonçalves
b) a obrigação exequenda deve ser certa, exigível e líquida, nos termos dos arts. 713.º a 716.º do CPC, ou seja, não pode estar em causa nenhuma das situações em que a execução careça de principiar pelas diligências tendentes a tornarem a obrigação certa, exigível ou líquida, nos casos em que esta o não seja em face do título executivo; c) o requerente e o requerido devem ser titulares de um número de identificação fiscal em Portugal. A consagração desta condição revela que a intenção do legislador foi a de restringir o acesso a este procedimento às pessoas singulares e às pessoas coletivas ou entidades equiparadas que possuam número fiscal de contribuinte em Portugal, na aceção do Decreto-Lei n.º 463/79, de 30 de novembro6, diploma que visou “dotar a administração fiscal de um meio indispensável cal que passe pelo combate frontal
consecução de qualquer política fis-
evasão fiscal”7.
3. Tramitação inicial 3.1. Requerimento inicial O procedimento inicia-se com a entrega do requerimento inicial através de uma plataforma informática criada especificamente para o efeito 8 , no qual o requerente deve: a) indicar o seu nome, o número de identificação fiscal, a morada e um número de identificação bancária (NIB) referente a conta aberta junto de instituição de crédito na qual devam ser depositados quaisquer montantes9; b) identificar o requerido, indicando o nome, o número de identificação fiscal e a morada10;
6 Com efeito, não estando o requerente representado por mandatário, este poderá aceder à plataforma informática mediante a introdução das credenciais de acesso ao portal das finanças, ou seja, do número de identificação fiscal e da respetiva senha de acesso. 7 Pressuposta a interligação entre a plataforma informática que serve de suporte ao PEPEX e o portal das finanças, afigura-se que este requisito poderá potenciar a penhora de créditos pela Fazenda Nacional nos casos em que corra um processo de execução fiscal contra o próprio requerente do PEPEX. 8 Esta plataforma encontrava-se inicialmente regulada pela Portaria n.º 233/2014, de 14 de novembro, diploma que foi, entretanto, revogado e substituído pela Portaria n.º 349/2015, de 13 de outubro, estando disponível no endereço eletrónico https://www.pepex.mj.pt/pepex/index.jsp. 9 A indicação do NIB no requerimento inicial revela claramente a intenção do legislador no sentido de viabilizar o pagamento voluntário do crédito reclamado no âmbito do próprio PEPEX. 10 Nos termos do art. 3.º, n.º 7, “aquando da identificação dos intervenientes, o requerente deve acautelar que os elementos constantes do requerimento respeitam aos mesmos, assegurando que os respetivos nomes e números de identificação fiscal correspondem aos dados inscritos no título executivo”.
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c) indicar o valor em dívida, discriminando o capital, os juros vencidos e respetiva taxa de juro aplicável, os juros compulsórios (quando devidos), quaisquer impostos que possam incidir sobre os juros, as datas de início de contagem dos juros, as taxas de justiça pagas no âmbito do procedimento ou processo que deu origem ao título executivo, bem como os valores pagos no âmbito do procedimento em causa antecipadamente entrega do requerimento inicial; d) expor sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando os mesmos não resultem do título executivo; e) pedir os juros vincendos, indicando a taxa de juro aplicável; f) pedir os valores a pagar ao agente de execução a título de honorários no âmbito do procedimento em causa; e g) identificar o mandatário, sempre que se encontre representado por advogado ou solicitador11. No caso de haver pluralidade de credores ou de devedores, para além das indicações previstas nas alíneas a) e b) relativamente a todos os intervenientes, deve igualmente constar do requerimento inicial a discriminação das responsabilidades de cada requerido perante o(s) requerente(s), bem como a natureza solidária, conjunta ou subsidiária das mesmas. Se o requerente pretender a identificação de bens comuns do casal, deve indicar o nome e o número de identificação fiscal do cônjuge do requerido, bem como o respetivo regime de bens do casamento, e juntar fotocópia não certificada do registo atualizado de casamento do requerido, que ateste que o mesmo
casado sob o regime de bens
da comunhão de adquiridos ou da comunhão geral, salvo se do título executivo já constar o nome do cônjuge e o regime de bens do casamento. Semelhante procedimento encontra justificação nos casos em que, sendo o PEPEX convolado em processo executivo, o requerente pretenda a penhora de bens comuns do casal, por insuficiência de bens próprios do cônjuge executado, nos termos do art. 740.º do CPC, ou, eventual-
11 Como nota particular deste procedimento, importa salientar que o art. 5.º, n.º 10, prevê a possibilidade de o formulário do requerimento inicial ser preenchido em suporte de papel pelo próprio credor, ou por advogado ou solicitador que, não sendo constituído mandatário daquele, digitaliza o mesmo, bem como os demais documentos que o devem acompanhar, e procede à aposição da respetiva assinatura eletrónica, certificando, dessa forma, a conformidade dos documentos digitalizados com os originais. Neste particular, importa salientar que o art. 38.º, n.º 6, do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março, por força da alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 8/2007, de 17 de janeiro, prevê a possibilidade de os advogados certificarem a conformidade de documentos eletrónicos com os documentos originais, em suporte de papel, em termos a regulamentar por portaria do membro do governo responsável pela área da justiça. Todavia, julgamos que tal portaria não se acha ainda publicada, razão pela qual subsiste uma lacuna legislativa neste domínio. Sobre este concreto problema, o Conselho Geral da Ordem dos Advogados, no seu parecer n.º 9/PP/2011-G, sustentou que essa lacuna deve ser integrada mediante a aplicação das regras gerais de certificação ínsitas no art. 1.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 28/2000, de 13 de março.
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mente, suscitar a comunicabilidade da dívida, desde que fundada em título diverso de sentença, nos termos dos arts. 741.º do CPC e 1691.º do Código Civil (CC). Por outro lado, só podem ser cumulados pedidos fundados em vários títulos se todos se destinarem ao pagamento de quantia certa e se as partes forem as mesmas. Isto porque, nos termos do art. 709.º do CPC, ocorrendo a convolação do PEPEX em processo executivo, só é admissível a cumulação de execuções, ainda que fundadas em títulos diversos, desde que as mesmas não sigam fins diferentes. Acresce que o PEPEX está concebido apenas para as situações em que o título executivo abarque uma obrigação de pagamento de quantia certa, razão pela qual não é admissível a cumulação de títulos que compreendam uma obrigação de entrega de coisa certa ou de prestação de facto. Por último, o requerente deve anexar ao seu requerimento cópia digitalizada do título executivo, em formato «pdf.», podendo esta ser substituída pela indicação da referência de acesso ao documento eletrónico (ex. requerimento de injunção no qual tenha sido aposta a fórmula executória)12. Contudo, atento o disposto no art. 724.º, n.º 4, alínea a), e n.º 5, do CPC, sendo o PEPEX convolado em processo executivo, o credor, agora exequente, deverá juntar ao requerimento executivo o original do título executivo no caso de o requerimento ser entregue em suporte de papel ou de a obrigação constar de um título de crédito. Faltando algum destes elementos ou não sendo efetuado o pagamento antecipado das quantias previstas no art. 20.º, n.º 1, alíneas a) e b), isto é, da remuneração das entidades envolvidas na gestão e manutenção da plataforma informática e serviços diretos eletrónicos de consultas sobre os bens ou localização dos requeridos, bem como dos honorários do agente de execução pela análise do título executivo, pela realização das consultas e elaboração do relatório, a plataforma informática não permite a submissão com sucesso do requerimento de acesso ao procedimento pré-executivo. Constata-se, por isso, que o legislador acabou por ir mais longe no seu desiderato de garantir, por antecipação, o pagamento dos honorários devidos ao agente de execução, na medida em que, diversamente do que sucede no processo executivo (art. 724.º, n.º 6, do CPC), a plataforma informática não admite sequer a submissão do requerimento de acesso ao procedimento pré-executivo enquanto essas quantias não se acharem liquidadas.
Nos termos do art. 5.º, n.º 6, o requerente deve conservar o original do título executivo até à prescrição do direito de crédito que o mesmo titula, podendo o título ser solicitado a todo o tempo pelo agente de execução no âmbito do procedimento em causa. 12
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Uma vez submetido o requerimento, não é possível proceder à alteração ou ao aditamento dos elementos dele constantes ou dos respetivos anexos, nos termos do art. 5.º, n.º 9. Semelhante preclusão torna-se difícil de compreender à luz de um procedimento que, nas palavras do legislador, se pretende célere e simplificado. Basta pensar, por exemplo, na possibilidade de o requerente ser obrigado a dar início a um novo procedimento ou de o requerido deduzir oposição em virtude da impossibilidade de correção de algum erro de escrita ou de cálculo, maxime no tocante à identificação do requerido ou à liquidação das quantias em dívida. 3.2. Distribuição Depois de o requerimento ser submetido através da plataforma eletrónica, é-lhe atribuído um número provisório pelo sistema informático de suporte
atividade dos
agentes de execução (SISAAE) e é devolvido ao requerente um identificador único de pagamento, referente aos valores devidos pelo início do procedimento, os quais devem ser liquidados no prazo de cinco dias úteis, sob pena de o requerimento ficar automaticamente sem efeito (art. 6.º, n.os 1 e 2)13. À luz do art. 6.º, n.º 3 – e à semelhança do que sucede no processo executivo –, o requerimento só se considera efetivamente entregue depois de efetuado o pagamento, sendo automaticamente distribuído a um dos agentes de execução que conste da lista dos agentes de execução que participam no procedimento extrajudicial pré-executivo, através do SISAAE (art. 3.º da Portaria n.º 233/2014). Esta solução legislativa, por contraposição à prevista nos arts. 720.º, n.º 1, e 724.º, n.º 1, alínea c), do CPC, afigura-se francamente positiva, na medida em que garante e assegura a total independência e imparcialidade do agente de execução em relação ao exequente. Todavia, a mesma é passível de conduzir a uma desarmonia de regimes (maxime nos casos em que o PEPEX seja convolado em processo executivo), porquanto o exequente continua a poder nomear o agente de execução na eventualidade de o processo executivo não ter resultado da convolação de um PEPEX14. De resto, no caso particular dos credores que têm por prática habitual a nomeação do mesmo agente de execução para a tramitação dos seus
13 Nos termos do art. 33.º, n.º 2, aos prazos previstos no procedimento extrajudicial pré-executivo aplicam-se as regras do digo de Processo ivil, não avendo, no entanto, lugar suspensão dos prazos durante as férias judiciais. 14 Note-se que, sendo o PEPEX convolado em processo de execução ou sendo requerida a realização de novas consultas no prazo de três anos após o termo do procedimento que tenha terminado sem a indicação de quaisquer bens penhoráveis e que não tenha sido convolado em processo de execução, o agente de execução será o mesmo que tramitou o procedimento pré-executivo original, salvo se não se encontrar no pleno exercício das suas funções (arts. 18.º, n.º 4, e 19.º, n.º 5).
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processos (como sucede, regra geral, com os grandes litigantes), esta limitação tenderá a constituir um fator de desincentivo no recurso ao PEPEX. 3.3. Recusa do requerimento Logo que o requerimento seja remetido ao agente de execução, este dispõe do prazo de cinco dias úteis para o recusar ou realizar as consultas tendentes à identificação e localização do requerido, bem como do património de que este seja titular. O agente de execução pode recusar o requerimento: a) quando não estejam reunidos os requisitos previstos no art. 3.º; b) quando esteja em falta algum dos elementos respeitantes ao requerimento inicial, referidos no art. 5.º, n.os 1 e 2; c) quando não tenha sido apresentado qualquer título executivo ou o documento como tal apresentado não constitua título executivo idóneo; d) quando as partes indicadas não constem do título executivo, salvo o disposto no art. 5.º, n.º 3 e n.º 5, alínea b); e) quando não tenham sido indicados os elementos previstos no art. 5.º, n.º 3, ou não tenha sido apresentada fotocópia não certificada do registo atualizado de casamento, que ateste que o requerido
casado sob o regime de bens da comunhão de adquiri-
dos ou da comunhão geral. Confrontando este regime com o previsto nos arts. 755.º e 855.º, n.º 2, alínea a), do CPC, constata-se que, no âmbito do PEPEX, o agente de execução dispõe de uma competência substancialmente reforçada no que concerne à possibilidade de recusar o requerimento executivo. Diríamos mesmo que o legislador atribuiu-lhe competências de natureza jurisdicional, maxime no que diz respeito à possibilidade de recusar o requerimento executivo quando a obrigação exequenda não seja certa, exigível ou líquida, ou quando o documento apresentado não constitua título executivo idóneo15. Estando em causa alguma das hipóteses previstas nas alíneas b) a d) e sendo a falta suprível, o agente de execução deve notificar o requerente para suprir a falta no prazo de cinco dias, sob pena de, não o fazendo, recusar o requerimento. Sendo o requerimento recusado, o requerente, sem prejuízo da possibilidade de impugnar jurisdicionalmente essa decisão de recusa (art. 27.º), pode, no prazo de trinta dias, pedir a convo-
Observe-se que, nos termos do art. 726.º, n.º 2, ex vi art. 855.º, n.º 2, alínea b), ambos do CPC, o agente de execução deve suscitar a intervenção do juiz de execução quando, designadamente, seja manifesta a falta ou insuficiência do título executivo. 15
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lação do procedimento pré-executivo em processo de execução, sendo certo que, se nada fizer, o procedimento é automaticamente extinto. 3.4. Consultas e relatório Não havendo lugar à recusa do requerimento ou logo que o vício seja sanado, o agente de execução deve proceder à consulta das bases de dados da administração tributária, da segurança social, do registo civil, do registo nacional de pessoas coletivas, do registo predial, do registo comercial e do registo de veículos e de outros registos ou arquivos semelhantes, tendo em vista a obtenção de informação referente
identifica-
ção e localização do requerido, bem como dos bens penhoráveis de que seja titular16. Para além destas bases de dados, o agente de execução deve igualmente consultar o registo informático de execuções, bem como o SISAAE, neste último caso para obter informações referentes aos processos de execução em curso em que o requerido conste como exequente. Por outro lado, o Banco de Portugal deve disponibilizar por via eletrónica ao agente de execução informação acerca das instituições legalmente autorizadas a receber depósitos em que o requerido detenha contas ou depósitos bancários, em termos análogos aos previstos no art. 749.º, n.º 6, do CPC, tendo em vista a identificação e localização de eventuais contas bancárias penhoráveis que sejam tituladas pelo requerido. Nos termos do art. 9.º, n.º 6, os resultados das consultas e da informação disponibilizada ao agente de execução não podem ser divulgados ou utilizados para qualquer outro fim que não o previsto neste diploma legal17/18.
Cfr., no mesmo sentido, o disposto no art. 749.º, n.º 1, do CPC. Com efeito, tal como resulta do preâmbulo da Proposta de Lei n.º 204/XII, o legislador procurou acautelar o direito fundamental da reserva da intimidade da vida privada, razão pela qual, para além da proibição de divulgação dos resultados das consultas e da informação disponibilizada ao agente de execução para finalidades diversas das previstas no procedimento, “o acesso s bases de dados pelo agente de execução e a prática de todos os atos do procedimento devem ficar registados na plataforma informática de suporte ao mesmo, administrada pelo Ministério da Justiça”. Vide, quanto à problemática da conjugação deste diploma com a proteção no acesso a dados pessoais, o Parecer do Conselho Superior do Ministério Público, de 11 de abril de 2013, disponível in app.parlamento.pt. 18 Conforme se refere no Parecer do Banco de Portugal, de 28 de maio de 2013, p. 6, disponível in app.parlamento.pt, “a elaboração pelo agente de execução de um relat rio que se destina a ser comunicado ao requerente/credor [...] e do qual ficará a constar a referência aos dados obtidos por consulta às bases [...] traduz, na prática, uma abolição do sigilo, tornando pública a informação que a lei consagra ser de acesso reservado, num contexto que não é de uma acção executiva, para a qual o credor pode ou não avançar mediante convolação para a acção executiva. É certo que o n.º 5 do artigo 9.º determina que os resultados das consultas não podem ser divulgados ou utilizados para qualquer outro fim que não o previsto no presente diploma. Mas tem de se reconhecer que a fiscalização desta proibição será muito difícil de fazer. E, de qualquer modo, o anteprojecto não esclarece se o agente de execução ou o credor que divulguem o resultado da consulta base de contas bancárias cometem o crime de violação de sigilo bancário”. 16 17
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Concluídas as consultas, o agente de execução deve elaborar um relatório que resuma o resultado das mesmas, indicando quais os bens identificados ou a circunstância de não terem sido identificados bens penhoráveis. Em concreto, desse relatório deve constar expressamente uma das seguintes indicações: a) sem quaisquer bens identificados; b) com bens aparentemente onerados ou com encargos; c) com bens aparentemente livres de ónus ou encargos. Desse relatório deve igualmente ser destacada, sendo o caso, a circunstância de o requerido constar da lista pública de devedores, de ter sido declarado insolvente, de ter falecido ou, sendo pessoa coletiva, ter sido já dissolvida e liquidada, ou ainda de o requerido ser executado ou exequente em processos de execução pendentes.
4. Tramitação subsequente 4.1. Manifestação de vontade do credor Logo que seja notificado do relatório elaborado pelo agente de execução, o requerente dispõe de um prazo de trinta dias para requerer a convolação do procedimento extrajudicial pr -executivo em processo de execução ou, no caso de não terem sido identificados bens suscetíveis de penhora, a notificação do requerido para, no prazo de trinta dias, pagar o valor em dívida, acrescido dos juros vencidos at
data limite de
pagamento e dos impostos a que possa haver lugar, bem como dos honorários devidos ao agente de execução, celebrar acordo de pagamento com o requerente, indicar bens penhoráveis ou deduzir oposição ao procedimento, com a cominação de que, nada fazendo, passará a constar da lista pública de devedores19. Decorrido o referido prazo de trinta dias sem que o requerente peça a convolação do procedimento ou a notificação do requerido, o procedimento é automaticamente extinto.
19 Nos termos do art. 11.º, n.º 2, a vontade do requerente manifesta-se mediante o pagamento do montante correspondente aos honorários que são devidos ao agente de execução pelas diligências subsequentes, através de um dos identificadores únicos de pagamento que são disponibilizados ao requerente para cada uma das opções. Criticando esta opção legislativa, pelo facto de a mesma não acautelar devidamente a possibilidade de o requerente se enganar, pagando o valor constante do identificador correspondente a uma opção que ele pretendia rejeitar, vide o Parecer da Ordem dos Advogados, de 2 de abril de 2013, p. 6, disponível in app.parlamento.pt. Teria, por isso, sido preferível, tal como se preconiza no referido parecer, que essa opção fosse manifestada em requerimento próprio, subscrito pelo requerente ou pelo seu mandatário.
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4.2. Notificação do requerido Uma vez notificado, o requerido pode adotar uma de várias atitudes proceder ao pagamento voluntário da quantia em dívida, celebrar com o requerente um acordo de pagamento em prestações, indicar bens à penhora ou deduzir oposição ao procedimento. 4.2.1. Pagamento voluntário da quantia em dívida Desde logo, o requerido pode proceder ao pagamento voluntário da quantia em dívida, sendo que esse pagamento implica a extinção do procedimento. Trata-se, com efeito, da mesma solução legal que decorre, com as devidas adaptações, do disposto no art. 846.º, n.º 1, do CPC20. 4.2.2. Celebração de acordo de pagamento O requerido pode celebrar com o requerente um acordo por escrito – se necessário, com o auxílio das entidades reconhecidas que prestam apoio a situações de sobreendividamento – que preveja o pagamento do valor em dívida, acrescido dos juros vencidos at
data limite de pagamento e dos impostos a que possa aver lugar, bem
como dos honorários devidos ao agente de execução, em prestações mensais e sucessivas, devendo o acordo e o plano de pagamento ser comunicados ao agente de execução, para efeitos de registo no procedimento (art. 17.º, n.º 1). À semelhança do regime previsto no art. 806.º, n.º 2, do CPC, sendo o acordo junto ao processo, este é extinto, com expressa indicação do fundamento da extinção. Contudo, nos termos do art. 17.º, n.º 4, se alguma das prestações devidas não for paga atempadamente, tal implica o vencimento das demais, devendo o requerente, no prazo de trinta dias contados da data do incumprimento, requerer ao agente de execução a convolação do procedimento em processo de execução, sob pena de o procedimento ser automaticamente extinto.
A este respeito, urge salientar que, nos termos do art. 20.º, n.º 5, no caso de pagamento voluntário da dívida ao agente de execução, este tem direito a uma remuneração adicional calculada nos termos previstos para situações de pagamento em prestações no âmbito do processo de execução. 20
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4.2.3. Indicação de bens penhoráveis O PEPEX admite, tal como sucede no processo executivo, a possibilidade de o requerido indicar voluntariamente bens à penhora (arts. 12.º, n.º 1, alínea c), e 15.º, n.º 2). Em abstrato, revelando-se inviável o recurso a um processo executivo face à frustração das diligências de identificação de bens suscetíveis de penhora, a única vantagem que assiste ao requerido na identificação voluntária de bens à penhora prende-se com a circunstância de evitar, dessa forma, a sua inclusão na lista pública de devedores (art. 15.º, n.º 1)21. Ressalvada esta hipótese, o requerido inadimplente que pretenda furtar-se à execução não terá qualquer interesse prático em proceder à identificação voluntária de bens penhoráveis que o agente de execução não logrou apurar através das consultas às bases de dados. Seja como for, procedendo o requerido à indicação de bens à penhora, o requerente deve ser notificado pelo agente de execução para, no prazo de trinta dias, requerer a convolação do procedimento extrajudicial pré-executivo em processo de execução, sob pena de, não o fazendo, o procedimento ser automaticamente extinto. 4.2.4. Oposição Tal como se referiu supra, o PEPEX não se esgota na finalidade preventiva de avaliação da viabilidade de uma futura execução em função do património do devedor que nele venha a ser identificado. Diversamente, o PEPEX constitui um verdadeiro procedimento extrajudicial destinada à cobrança de dívidas. É exatamente neste contexto que, enquanto procedimento de partes sujeito ao princípio do contraditório, o art. 16.º, n.º 1, prevê a possibilidade de o requerido apresentar oposição ao procedimento extrajudicial pré-executivo, com os mesmos fundamentos que poderia invocar em sede de oposição
execução, em função do título executivo, nos termos dos arts. 729.º a 731.º
e 857.º do CPC22. A oposição ao procedimento extrajudicial pré-executivo segue, com as devidas adaptações, o regime previsto nos arts. 728.º e ss. para a oposição à execução, sendo
21 Regime análogo encontra-se previsto no art. 750.º, n.º 1, do CPC, agravado, no entanto, pela circunstância de o executado ser notificado para indicar bens à penhora, com a cominação de que a omissão ou a prestação de falsas declarações importa a sujeição do executado a uma sanção pecuniária compulsória, no montante de 5% da dívida ao mês, com o limite mínimo global de 10 UC, se ocorrer ulterior renovação da instância executiva e aí se apurar a existência de bens penhoráveis. 22 Criticando esta opção legislativa, pelo facto de o legislador ter enxertado num procedimento de natureza extrajudicial uma verdadeira oposição à execução, vide o Parecer do Conselho Superior da Magistratura, de 22 de março de 2012, disponível in app.parlamento.pt.
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devido o pagamento de taxa de justiça pela sua apresentação, no montante de 1, ou 3 , consoante o valor do procedimento seja igual ou inferior
alçada do Tribunal da
Relação ou superior a esse valor, sob pena de recusa da oposição. Contudo, diversamente do que ocorre com a oposição à execução, a qual deve ser deduzida no prazo de vinte dias a contar da citação ou notificação do executado, no âmbito do PEPEX, o requerido dispõe de um prazo alargado de trinta dias para o efeito. De acordo com o art. 16.º, n.º 3, a oposição deve ser apresentada preferencialmente por via eletr nica – sendo obrigat ria a constituição de advogado nos casos em que o valor da oposição seja superior
alçada do tribunal de primeira instância – e é tramita-
da de forma autónoma, como processo especial de oposição ao procedimento extrajudicial pré-executivo23. Semelhante regime especial encontra justificação no facto de o PEPEX revestir uma natureza extrajudicial, sendo, por isso, impossível tramitar a oposição por apenso a esse processo. Enquanto o processo de oposição não for julgado, o requerente não pode instaurar processo de execução com base no mesmo título, sendo certo que, se o fizer, esse processo deve ser imediatamente extinto pelo agente de execução logo que verificado o facto, nos termos do disposto no art. 16.º, n.os 7 e 824. Significa isto que, neste caso, o recurso ao PEPEX coloca o requerente em pior situação do que aquela em que estaria se tivesse recorrido a um processo executivo. É que, se o credor intentar uma ação executiva para pagamento de quantia certa sob a forma de processo comum sumário, o executado só será citado após a penhora do seu património e a eventual oposição à execução que por ele venha a ser deduzida não suspende a execução (art. 856.º do CPC). Diversamente, recorrendo o credor ao PEPEX, a oposição produz um efeito suspensivo, sem que o crédito esteja garantido patrimonialmente. Nessa eventualidade, não restará ao credor outra possibilidade que não seja a de requerer o arresto do património do devedor (desde que se encontrem preenchidos os respetivos pressupostos legais), por forma a garantir patrimonialmente a satisfação do seu crédito enquanto a oposição ao PEPEX não for julgada25. Por outro lado, dispõe o art. 16.º, n.º 9, que, sendo a oposição ao procedimento julgada procedente, o requerente do PEPEX não pode instaurar ação executiva com
23 Afigura-se, por isso, que a oposição ao procedimento extrajudicial pré-executivo será distribuída sob a espécie 3.ª, enquanto ação de processo especial, nos termos do art. 212.º do CPC. 24 Ainda que o agente de execução não extinga a execução, designadamente por não se ter apercebido desse facto, parece-nos que nada obsta a que o próprio requerido, agora executado, suscite no processo de execução a pendência do processo especial de oposição ao procedimento extrajudicial pré-executivo, requerendo, simultaneamente, a extinção da execução. 25 Isto sem prejuízo de o credor requerer desde logo a convolação do PEPEX em processo executivo, nos termos do art. 11.º, n.º 1, alínea a), ainda que as diligências de pesquisa de bens se revelem infrutíferas.
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base no mesmo título. Na realidade, a decisão que vier a julgar procedente a oposição, pronunciando-se sobre o mérito da relação jurídica substantiva a que o crédito diz respeito, produz efeito de caso julgado material, ou seja, impede nova pronúncia de mérito sobre a mesma relação jurídica constante do título executivo. Isto porque a oposição ao PEPEX (tal como a oposição destinada a obstar
execução) reveste a natureza de uma “contra-acção
produção dos efeitos do título executivo”, ou seja, “funciona como
uma petição de uma ação declarativa e não como contestação de uma ação executiva”26. Contudo, a limitação constante do art. 16.º, n.º 9, afigura-se difícil de compreender nas situações em que a oposição venha a ser julgada procedente com base numa questão processual ou formal. Com efeito, dado que, neste caso, a decisão de procedência da oposição produz tão-só o efeito de caso julgado formal, isto é, produz efeitos intra-processuais, nada obsta a que o requerente instaure ação executiva com base no mesmo título27. Por conseguinte, o art. 16.º, n.º 9, deve ser interpretado de forma restritiva, aplicando-se tão-só aos casos em que a decisão de procedência da oposição deduzida ao PEPEX produza efeito de caso julgado material, pronunciando-se, consequentemente, sobre o mérito da relação jurídica substantiva constante do título executivo oferecido pelo requerente. 4.2.5. Inclusão na lista pública de devedores e emissão de certidão de incobrabilidade Decorrido o prazo de trinta dias sobre a data da notificação do requerido sem que haja lugar a alguma das situações previstas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do art. 12.º, isto é, sem que este proceda ao pagamento voluntário da quantia em dívida, celebre um acordo de pagamento, indique bens à penhora ou deduza oposição ao procedimento, o agente de execução deve proceder à inclusão do devedor na lista pública de devedores (art. 15.º, n.º 1)28. Constata-se, por isso, que o PEPEX encerra em si mesmo uma natureza coativa e/ou sancionatória, que lhe advém da particularidade de o requerido
26 Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 17.09.2013, proc. 507/12.7TBSEI.C1, in www.dgsi.pt. Cfr., no mesmo sentido, os Acs. do Tribunal da Relação do Porto de 13.03.2014, proc. 2997/11.6TBMTS.P1, e de 08.05.2014, proc. 3666/12.5TBGDM.P1, bem como o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 09.10.2014, proc. 267/12.1TCGMR.G1.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt. Vide, na doutrina, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Acção Executiva Singular, Lex, Lisboa, 1998, p. 163, bem como, ARTUR ANSELMO DE CASTRO, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 3.ª ed., Coimbra Editora, 1977, p. 276. 27 Vide, nesse sentido, o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 05.07.2011, proc. 568/09. 6TBVNO-A.C1, in www.dgsi.pt. 28 Neste particular, importa salientar que, tal como resulta do Parecer da Comissão Nacional de Protecção de Dados, de 27 de março de 2013, p. 7, disponível in app.parlamento.pt, que sufragamos, “a inclusão do devedor na lista pública de execuções por mera ação do agente de execução, sem controlo judicial, não acautela a reserva da intimidade da vida privada”.
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ser obrigado a tomar uma posição expressa sobre o procedimento – pagando, celebrando um acordo de pagamento, oferecendo bens à penhora ou deduzindo oposição –, sob pena de, nada fazendo, ver o seu nome inscrito na lista pública de devedores. Por outro lado, sendo o requerido incluído na lista pública de devedores, o requerente pode obter certidão eletrónica de incobrabilidade da dívida a emitir pelo agente de execução. Nesse caso, a dívida referente para ns scais e comunicada
certidão
considerada incobrável
administração scal por via eletr nica, para efeitos do
disposto nos arts. 78.º, n.º 7, e 78.º-A, n.º 4, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), e no art. 41.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC). Trata-se de uma solução legal importante, na medida em que, não raras vezes, o recurso a uma ação judicial visa apenas a obtenção de uma certidão de incobrabilidade de dívida com vista à dedução do IVA ou à consideração do crédito como custo da empresa. Contudo, este preceito não é verdadeiramente inovador, porquanto o art. 6.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 201/2003, de 10 de setembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 60-A/2005, de 30 de dezembro, consagra já a possibilidade de um terceiro, que mantenha relação contratual ou pré-contratual com o titular dos dados, aceder ao registo informático de execuções com vista à obtenção de um certificado para demonstração da natureza incobrável de créditos resultantes de incumprimento contratual. 4.3. Convolação do procedimento em processo de execução Nos termos do art. 18.º, para que se verifique a convolação do procedimento extrajudicial pré-executivo em processo de execução, torna-se necessário o preenchimento cumulativo dos seguintes requisitos: a) apresentação de requerimento executivo ou de requerimento de execução de decisão judicial condenatória, consoante o caso; b) junção do relatório previsto no art. 10.º. Sendo o procedimento extrajudicial pré-executivo convolado em processo executivo, não é devido o pagamento do valor referente aos honorários e despesas do agente de execução pela fase inicial do processo executivo, nem tão-pouco do valor concernente às consultas das bases de dados, quando exigido no âmbito do processo de execução. Para além disso, não há igualmente lugar à repetição das diligências para localização de bens penhoráveis, através das consultas às bases de dados, e à apresentação de relatório elaborado na sequência das mesmas. Esta solução legislativa encontra justificação na circunstância de o pagamento dos honorários e despesas do agente de execução,
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bem como a realização das diligências de pesquisa de bens, terem já tido lugar no âmbito do PEPEX, inexistindo, por isso, fundamento válido ou razão atendível, maxime à luz do princípio da economia processual, para a duplicação ou repetição de atos processuais.
5. Consultas após a extinção do procedimento Nos procedimentos que tenham terminado sem a identificação de quaisquer bens penhoráveis e que não tenham sido convolados em processos de execução – o que pode suceder quer nos casos em que o requerente, uma vez notificado do relatório, nada tenha feito (art. 11.º, n.º 3), quer nas situações em que o requerido tenha sido incluído na lista pública de devedores, com a subsequente emissão da certidão de incobrabilidade de dívida (arts. 15.º e 25.º) –, o requerente pode, no prazo de três anos após o termo do procedimento, solicitar a realização de novas consultas, desde que proceda ao pagamento antecipado dos honorários devidos ao agente de execução (arts. 19.º, n.º 1, e 20.º, n.º 1, alínea e)). Essas consultas devem ser feitas, em princípio, pelo agente de execução original, salvo se este, à data desse requerimento, já não se encontrar em pleno exercício de funções. Estando o requerido inserido na lista pública de devedores, não há lugar à sua notificação.
6. Valores devidos no âmbito do procedimento extrajudicial pré-executivo Dispõe o art. 20.º que, no âmbito do PEPEX,
devido ao agente de execução o
pagamento dos seguintes valores, a que acresce o IVA
taxa legal em vigor, quando
aplicável: a) 0,25 UC para remuneração das entidades envolvidas na gestão e manutenção da plataforma informática e serviços diretos eletrónicos de consultas sobre os bens ou localização dos requeridos, quando essa remuneração for devida no âmbito do processo de execução;
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b) 0,50 UC para pagamento dos honorários do agente de execução pela análise do título executivo, pela realização das consultas e elaboração do relatório29; c) 0,25 UC para pagamento dos honorários do agente de execução pela notificação de cada requerido, a que se refere o art. 12.º30; d) 0,25 UC para pagamento dos honorários do agente de execução pela emissão de certidão de incobrabilidade da dívida, após inclusão na lista pública de devedores, e remessa eletr nica da mesma
administração scal;
e) 0,15 UC para pagamento dos honorários do agente de execução pela renovação de consultas; f) 0,25 UC para pagamento dos honorários do agente de execução pela exclusão do requerido da lista pública de devedores.
7. Publicidade do processo Um dos princípios fundamentais do PEPEX é o da publicidade do processo. Assim, qualquer uma das partes intervenientes no procedimento pode aceder ao processo por via eletrónica, mediante autenticação na plataforma informática, com base em certificado de assinatura digital qualificada, integrado no cartão do cidadão, certificado digital de assinatura e autenticação emitido pela Ordem dos Advogados ou certificado digital de assinatura e autenticação emitido pela associação pública profissional representativa dos agentes de execução, podendo ainda as partes aceder ao processo através da plataforma de autenticação da administração fiscal. Por outro lado, o processo fica disponível para consulta pelo requerido após a primeira notificação efetuada no âmbito do procedimento pré-executivo, após a sua citação no âmbito de processo de execução em que este figure como executado e que se tenha iniciado em decorrência de procedimento contra si instaurado ou, no caso de não se verificar nenhuma dessas hipóteses, no prazo de trinta dias após a extinção do procedimento. O requerido dispõe do prazo de trinta dias, após a primeira consulta a procedimento contra si instaurado, para reclamar da atuação do agente de execução que repu-
29 Corresponde à fase 1 do processo executivo, nos termos do art. 47.º, n.º 1, alínea a), da Portaria n.º 282/2013, de 29 de agosto, na qual é devido o pagamento de uma provisão ao agente de execução no valor correspondente a 0,75 UC, sujeito a IVA à taxa legal em vigor. 30 Corresponde, com as devidas adaptações, à fase 2 do processo executivo, nos termos do art. 47.º, n.º 1, alínea b), da Portaria n.º 282/2013, de 29 de agosto, na qual é devido o pagamento de uma provisão ao agente de execução no valor correspondente a 0,25 UC, sujeito a IVA à taxa legal em vigor.
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te como violadora dos seus direitos junto dos órgãos de fiscalização e disciplina da atividade dos agentes de execução.
8. Reclamações e impugnação jurisdicional Nos termos do art. 27.º, n.º 1, qualquer interessado pode reclamar para os órgãos de fiscalização e disciplina da atividade dos agentes de execução dos atos praticados pelo agente de execução no âmbito do procedimento extrajudicial pré-executivo, no prazo de trinta dias a contar da data em que teve conhecimento da prática dos mesmos. Contudo, se o interessado pretender sindicar a legalidade dos atos, deverá impugná-los junto dos tribunais judiciais com competência para exercer, no âmbito dos processos de execução de natureza cível, as atribuições previstas no Código de Processo Civil. Deste modo, importa distinguir, no tocante ao modo de reação quanto aos atos praticados pelo agente de execução, entre os atos ilegais, dos quais caberá impugnação judicial, e os atos violadores de disposições estatutárias e disciplinares, dos quais caberá reclamação para os órgãos de fiscalização e disciplina da atividade dos agentes de execução31. Por outro lado, à luz do n.º 2 da citada disposição legal, os atos dos órgãos de fiscalização e disciplina da atividade dos agentes de execução podem ser impugnados, no prazo de trinta dias contados da data da sua notificação aos interessados, junto dos tribunais administrativos.
9. Considerações finais No contexto atual de falência do sistema judiciário, em que os processos executivos ocupam grande parte da atividade dos tribunais, o procedimento extrajudicial pré-executivo poderá desempenhar um papel importante enquanto mecanismo de regulação no acesso à tutela jurisdicional executiva. Na realidade, ao possibilitar o conhecimento do património do devedor numa fase prévia à execução, este procedimento permite ao credor tomar uma decisão ponderada, cuidada e refletida acerca da viabilidade de recurso a uma ação executiva, evi-
Observe-se, a este propósito, que o art. 28.º do anteprojeto previa tão-só a possibilidade de impugnação dos atos praticados pelos agentes de execução no âmbito do PEPEX através de reclamação para os órgãos de fiscalização e disciplina da atividade dos agentes de execução. 31
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tando-se, dessa forma, o congestionamento dos tribunais judiciais com processos executivos inviáveis à nascença por inexistência de bens penhoráveis. De resto, estamos em crer que o problema fundamental da eficácia da ação executiva para pagamento de quantia certa não se prende com uma qualquer razão de insuficiência legislativa – sendo, aliás, múltiplas e inúmeras as intervenções e reformas legislativas realizadas neste domínio nos últimos anos –, mas antes com a conjuntura económica deficitária que tem vindo a afetar o país, a qual impede a satisfação célere e eficaz dos créditos reclamados em sede executiva. De todo o modo, o procedimento extrajudicial pré-executivo não se esgota nessa sua finalidade preventiva a que se alude no art. 2.º. De facto, este procedimento constitui, em certos casos, uma verdadeira alternativa à ação executiva para pagamento de quantia certa, porquanto potencia a satisfação do crédito reclamado por via extrajudicial. É exatamente no prosseguimento desse desiderato que o legislador veio prever a possibilidade de o requerido, na eventualidade de não serem localizados bens penhoráveis, ser notificado para pagar voluntariamente a quantia reclamada, celebrar acordo de pagamento, indicar bens à penhora ou deduzir oposição, sob a cominação de, nada fazendo, ser incluído na lista pública de devedores. Temos, por isso, para nós que o PEPEX, no seguimento do caminho de desjurisdicionalização delineado com a reforma da ação executiva de 2003, constitui, em si mesmo, uma manifestação inequívoca da vontade do legislador no sentido de se proceder à desjudicialização da ação executiva, o que, no seguimento desta estratégia político-legislativa, irá previsivelmente ocorrer nas próximas reformas da ação executiva.
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O alcance da proteção conferida às marcas nos casos de dupla identidade na (projetada) reforma do sistema europeu de marcas Maria Miguel Carvalho*
Resumo: A reforma do sistema europeu de marcas é um dos múltiplos desafios com que o Direito Privado Europeu se depara no séc. XXI. Apesar de, ao nível europeu, ter sido obtida uma aproximação parcial das legislações nacionais sobre marcas, sobretudo graças à Diretiva de Marcas, e de ter sido instituída por Regulamento a marca comunitária, que coexiste e complementa as marcas nacionais, a verdade é que passaram mais de 20 anos sobre a respetiva data da aprovação, sendo natural que se tenha feito sentir a necessidade de os rever, adaptando-os à realidade económica atual. Neste contexto, a Comissão Europeia apresentou, em 27 de março de 2013, uma proposta de reformulação da referida Diretiva e, outra, de revisão do Regulamento sobre a Marca Comunitária. Prevendo-se a aprovação das referidas propostas, com as alterações entretanto negociadas, referimos, muito brevemente, neste estudo o regime jurídico aí previsto no que respeita ao alcance da proteção da marca nos casos de dupla identidade. Palavras-chave: Marcas – Diretiva de Marcas – Regulamento sobre a Marca Comunitária
Abstract: The reform of the European trade mark system is one of the many challenges that the European Private Law faces in the 21 st century. Although, at European level, partial approximation of national laws on trade marks has been achieved, especially due to the Trade Mark Directive and the Community Trade mark, which coexists and complements national trade marks, has been implemented, the fact remains that spent more than 20 years from the date of approval of one and the other, it comes as natural the need to review and adapt them to the current economic reality. In this context, the European Commission presented on 27 th March 2013, a proposal to recast the Directive and another proposal relating the revision of the Regulation on the Community Trade Mark. Foreseeing the approval of these proposals, with the amendments meanwhile agreed, in this study we refer very briefly the legal framework laid down therein with respect to the scope of trade mark protection in cases of double identity. Keywords: Trade marks – Trade marks directive – Community Trade Mark Regulation
Sumário: I. A reforma do sistema europeu de marcas; II. Linhas orientadoras gerais da reforma; III. O alcance da proteção conferida às marcas anteriormente registadas nos casos de «dupla identidade»
* Professora Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho.
Maria Miguel Carvalho
I. A reforma do sistema europeu de marcas A reforma do sistema europeu de marcas é um dos múltiplos desafios com que o Direito Privado Europeu no séc. XXI se depara, tendo a Comissão Europeia frisado esta ideia quer na Comunicação «Uma estratégia europeia para os direitos de propriedade industrial», de 16 de julho de 20081, quer na Comunicação «Um Mercado Único para os Direitos de Propriedade Intelectual – Encorajar a criatividade e a inovação de modo a garantir o crescimento económico, postos de trabalho de elevada qualidade e produtos e serviços de primeira classe na Europa», de 24 de maio de 20112. Com efeito, apesar de, ao nível europeu, ter sido obtida uma aproximação parcial das legislações nacionais sobre marcas, sobretudo graças à DM3, e de ter sido instituída por Regulamento a marca comunitária4, que coexiste e complementa as marcas nacionais, a verdade é que passaram mais de 20 anos sobre a respetiva data da aprovação, sendo natural que se tenha feito sentir a necessidade de os rever, adaptando-os à realidade económica atual5. Nesse sentido, volvido pouco mais de um ano sobre a primeira Comunicação citada, a Comissão Europeia divulgou uma call for tender6/7, que originou o «Estudo sobre o funcionamento geral do sistema europeu de marcas» (coordenado pelos prestigiados RETO HILTY, ROLAND KNAAK e ANNETTE KUR), apresentado, em 15 de fevereiro Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho e ao Comité Económico e Social Europeu, «Uma estratégia europeia para os direitos de propriedade industrial», de 16 de julho de 2008 – COM (2008) 465 final. 2 Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, «Um Mercado Único para os Direitos de Propriedade Intelectual – Encorajar a criatividade e a inovação de modo a garantir o crescimento económico, postos de trabalho de elevada qualidade e produtos e serviços de primeira classe na Europa», de 24 de maio de 2011 – COM (2011) 287 final. 3 Diretiva de Marcas [Diretiva 2008/95/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2008, que aproxima as legislações dos Estados-Membros em matéria de marcas (JO L 299, de 8 de novembro de 2008, pp. 25 e ss.), versão codificada da Primeira Diretiva do Conselho (89/104/CEE), de 21 de dezembro de 1988]. 4 Implementada pelo Regulamento sobre a marca comunitária [RMC] [Regulamento (CE) n.º 207/ /2009 do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, sobre a marca comunitária (JO L 78, de 24 de março de 2009, pp. 1 e ss.), versão codificada do Regulamento n.º 40/94, do Conselho, de 29 de dezembro de 1993, sobre a marca comunitária]. 5 Aproveitou-se, para esse efeito, a janela de oportunidade criada pela necessidade de alterar o RMC a propósito da redistribuição pelos Estados-Membros do surplus que o Instituto de Harmonização para o Mercado Interno (IHMI) regista, atento o sucesso da marca comunitária. Para maiores desenvolvimentos, cfr. ANNETTE KUR, «The EU trademark reform package – (too) bold a step ahead or back to status quo?», in 19 Marquette Intellectual Property Law Review 15, pp. 18 e ss. 6 Em 22 de Julho de 2009, disponível em http://ec.europa.eu/internal_market/indprop/docs/tm/090722_ tender_en.pdf. 7 Respondendo, assim, às solicitações quanto à alteração da legislação europeia relativa às marcas que lhe foram dirigidas pelo Comité Económico e Social Europeu, de 10 e 11 de junho de 2009, e pelo Conselho, de 25 de maio de 2010. 1
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de 2011, pelo Max Planck Institute for Intellectual Property and Competition Law 8 (atualmente, Max-Planck-Institute for Innovation and Competition) que veio a servir de base à apresentação, em 27 de março de 2013, pela Comissão Europeia de duas propostas: uma, de reformulação da DM9 e, outra, de revisão do RMC10. Estas propostas foram analisadas criticamente pelo Comité Europeu Económico e Social11 e pela Autoridade Europeia para a Proteção dos Dados12, seguindo-se a adoção, em primeira leitura, pelo Parlamento Europeu, com sugestão de várias alterações, em 25 de fevereiro de 201413. Entretanto, e ainda durante a presidência tripartida da União Europeia da Irlanda, da Lituânia e da Grécia14, o Grupo da Propriedade Intelectual (Marcas) do Conselho Europeu examinou as propostas da Comissão Europeia15. Em 23 de julho de 2014, o Comité de Representantes Permanentes chegou a um consenso quanto ao texto das propostas e mandatou a Presidência para negociar com o Parlamento Europeu a aprovação destas em segunda leitura. O acordo, conseguido em 21 de abril de 2015, foi apoiado pelo Comité de Representantes Permanentes no passado dia 10 de junho e, passados seis dias, o Presidente da Comissão de Assuntos Jurídicos do Parlamento Europeu declarou, em carta enviada ao Presidente do Comité de Representantes Permanentes, que, se o Conselho adotar a sua posição de acordo com o «pacote» de compromisso acordado, o Parlamento Europeu aprova a posição do Conselho sem alterações em segunda leitura16. Neste contexto, o Comité de Representantes Permanentes recomendou ao Conselho a aprovação do
O referido documento pode ser consultado em: http://www.ip.mpg.de/en/news/trade_mark_study/ synopses_tms.html. Para uma súmula deste estudo, cfr. ROLAND KNAAK/ANNETTE KUR/ALEXANDER VON MÜHLENDAHL, «The Study on the Functioning of the European Trade Mark System», in Max Planck Institute for Intellectual Property and Competition Law Research Paper, n.º 12-13 (disponível em http://ssrn.com/abstract=2172217) e MARIA MIGUEL CARVALHO, «O estudo sobre o funcionamento geral do sistema europeu de marcas», in Actas de Derecho Industrial y Derecho de Autor, vol. 31, 2010-2011, pp. 509 e ss. 9 COM (2013) 162 final – 2013/0089 (COD) (documento disponível para consulta em http://eurlex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52013PC0162&from=EN). 10 COM (2013) 161 final – 2013/0088 (COD) (documento disponível para consulta em http://eurlex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52013PC0161&from=EN). 11 V. a opinião deste Comité, de 11 de julho de 2013: CESE/2013/3456, in JO C 2013/327/42, esp. 3.11.3. e ss. 12 V. a opinião desta entidade, de 11 de julho de 2013, in JO C 2014/32/33, de 4 de fevereiro de 2014, esp. pp. 29 e 30. 13 Mais exatamente foram 115 e 54 as alterações sugeridas às propostas de RMC e de DM, respetivamente. 14 A presidência tripartida referida no texto decorreu no período que se iniciou em 1 de janeiro de 2013 e terminou em 31 de julho de 2014. 15 Informação retirada do documento do Secretariado-Geral do Conselho da UE, 9957/15, de 19 de junho de 2015. 16 V. nota anterior. 8
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acordo político relativo às duas propostas legislativas, bem como a consideração das declarações que devem constar da minuta a aprovar em primeira leitura. Uma dessas declarações respeita à Comissão Europeia, expressando esta que, apesar da sua preocupação quanto a alguns aspetos orçamentais do acordo, decidiu apoiá-lo por entender que, em geral, a situação atualmente existente e, em especial, o direito substantivo de marcas, melhora significativamente17. Prevendo-se a aprovação das referidas propostas, referimos, muito brevemente, neste estudo (v. III. infra) o regime jurídico aí previsto no que respeita ao alcance da proteção da marca nos casos de dupla identidade, já que, para além da indubitável relevância e da controvérsia jurisprudencial e doutrinal suscitada, se verificou uma significativa alteração proposta pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho àquela que era a Proposta da Comissão Europeia. Antes, porém, expomos em traços largos as linhas orientadoras gerais da revisão da DM e do RMC (v. II).
II. Linhas orientadoras gerais da reforma18 Como é sabido, a aprovação do RMC não visou a supressão dos direitos nacionais de marcas. De facto, não só está prevista expressamente a coexistência destes com a marca comunitária, como também a sua complementaridade, em especial, pelas medidas legislativas e/ou administrativas neste previstas19 e pela informação proporcionada sobre o sistema da marca comunitária. A complementaridade referida pressupõe que as disposições substantivas e procedimentais da DM e do RMC sejam o mais possível coerentes entre si e em si mesmas20.
V. nota 15. Neste ponto seguimos de perto, embora com atualizações, o que já referimos em «O estudo sobre o funcionamento geral do sistema europeu de marcas», cit., pp. 509 e ss. 19 Como é o caso, entre outras, da entrega ao IHMI dos pedidos de registo de marcas comunitárias apresentados nos institutos dos Estados-Membros e da elaboração de relatórios de investigação dos Estados-Membros que integram o sistema opcional de investigação previstos no art. 38.º, n.º 2 a n.º 5, do RMC. 20 A coerência pretendida é bastante ampla, abrangendo outras diretivas e regulamentos no âmbito do direito da propriedade intelectual e em «áreas adjacentes». Com efeito, o Estudo incentiva a intensificação das atividades relativas ao respeito dos direitos de marca através da promoção de campanhas de consciencialização, seminários e outros programas de educação profissional e de apoio ao combate à contrafação de forma indireta – já que ficou assente que, na maioria dos Estados-Membros, os institutos nacionais de marcas não têm competência, fora dos procedimentos de registo de marcas, para o combate à contrafação e à pirataria –, incluindo medidas como a troca de informação com outras autoridades do mesmo ou de outros Estados-Membros ou a cooperação com o Observatório Europeu para a Contrafação e Pirataria (criado, em 2 de abril de 2009, pela Comissão Europeia). 17 18
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Efetivamente, prosseguindo um objetivo comum, compreende-se que as disposições do RMC correspondam às que resultam, imperativamente, da DM. Todavia, como é sabido, esta não procedeu a uma harmonização completa (não abarcando, p.e., aspectos procedimentais) e contempla várias normas dispositivas (algumas das quais acolhidas no RMC e nalguns Estados-Membros). As diferenças, que daqui resultam, entre as soluções consagradas nos vários sistemas nacionais de marcas e no da marca comunitária impõem, por conseguinte, o reforço da coerência entre os sistemas referidos, o que pode passar, segundo a proposta apresentada pela Comissão, pela «conversão» de algumas normas dispositivas da DM em normas imperativas (como possivelmente sucederá com a tutela ultramerceológica das marcas de prestígio21) e ainda pela harmonização de aspetos não contemplados na DM (p.e., alguns aspetos procedimentais). O funcionamento otimizado do sistema europeu de marcas pressupõe ainda, por um lado, a coerência nas práticas seguidas quer pelo IHMI, quer pelos institutos nacionais de marcas22 e, por outro, a melhoria das infraestruturas dos institutos nacionais de marcas, do seu desempenho, da qualidade dos serviços prestados e da consistência da sua prática de tomada de decisões23.
III. O alcance da proteção conferida às marcas anteriormente registadas nos casos de «dupla identidade» Na DM, o impedimento relativo de registo e a proibição de uso respeitante a marcas anteriores conflituantes está previsto de forma tripartida24.
V. infra III. Para o reforço da coerência entre esses sistemas, são convenientes outras medidas, como sejam a adoção de critérios orientadores comuns para o exame de marcas quando as disposições nacionais e do RMC sejam idênticas e de regras comuns no que respeita à classificação de bens e serviços, complementado pela designação de um comité de classificação composto por representantes do IHMI e dos institutos nacionais de marcas; pela cooperação no exame de pedidos de marcas e pela realização de atividades conjuntas com vista à melhoria da qualidade do exame de marcas. 23 Para atingir estes objetivos é sugerida a implementação de medidas (que nalguns casos já foram acolhidas) como o desenvolvimento de ferramentas eletrónicas para os utilizadores; a criação e expansão de bases de dados que permitam a investigação de marcas nacionais (e até o trabalho em rede com outros institutos); critérios de orientação para o exame pelos institutos de marcas; regras para a classificação de bens e serviços e decisões dos institutos; investimentos na formação e treino dos examinadores e melhoria das facilidades de helpdesk que proporcionem conselhos e serviços para os utilizadores. 24 Na parte inicial deste ponto, seguimos de perto, embora com atualizações, o que escrevemos em «O risco de confusão e o risco de associação na proposta de Directiva de Marcas (reformulada): o regresso à origem?», in Estudios de Derecho Mercantil – Libro homenaje al Prof. Dr. Dr. h.c. José Antonio Gómez Segade (eds. ANA M.ª TOBÍO RIVAS/ÁNGEL FERNÁNDEZ-ALBOR BALTAR/ANXO TATO PLAZA), Marcial Pons, Madrid/Barcelona/Buenos Aires/São Paulo, 2013, pp. 769 e ss. 21 22
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A primeira previsão respeita aos casos de «dupla identidade», ou seja, aos casos em que as marcas anterior e posterior são idênticas e assinalam produtos ou serviços idênticos (arts. 4.º, n.º 1, alínea a), e 5.º, n.º 1, alínea a), da DM). A segunda abarca aquelas situações em que as marcas anterior e posterior sejam idênticas ou semelhantes e assinalem produtos ou serviços idênticos ou afins. Neste caso, a proteção é conferida se existir um risco de confusão, no espírito do público, esclarecendo os arts. 4.º, n.º 1, alínea b), e 5.º, n.º 1, alínea b), da DM que «o risco de confusão compreende o risco de associação com a marca anterior». A terceira visa as hipóteses em que a marca posterior seja idêntica ou semelhante a uma marca de prestígio comunitária anterior e os produtos ou serviços não sejam semelhantes, sempre que o uso da marca posterior procure, sem justo motivo, tirar partido indevido do carácter distintivo ou do prestígio da marca comunitária anterior ou possa prejudicá-los (art. 4.º, n.º 3, da DM), sendo que esta proteção pode ser, facultativamente, aproveitada pelos Estados-Membros para as marcas de prestígio nacionais (arts. 4.º, n.º 4, alínea a), e 5.º, n.º 2, da DM). Começando por esta última, importa realçar que, segundo a proposta da Comissão, a proteção jurídica conferida à marca de prestígio passa a ser imperativa também para as marcas (de prestígio) nacionais, o que consideramos positivo, na medida em que se garante a equivalência dos regimes nacionais e comunitário25. Por outro lado, importa analisar o tipo de uso da marca que pode ser proibido pelo seu titular e que constitui um dos principais problemas interpretativos suscitados pelo art. 5.º (n.os 1 e 2) da DM. O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) já teve oportunidade de se pronunciar sobre esta questão em vários acórdãos. E, pelo menos numa primeira fase, limitou a aplicação dos n.os 1 e 2 do art. 5.º da DM aos casos em que o uso do sinal é feito a título de marca (i.e., como sinal distintivo de produtos ou serviços)26. Este uso, que corresponde ao denominado «uso típico» da marca, é fundamentalmente determinado pela função jurídica (essencial) reconhecida à marca que consiste
25 Porém, não consideramos justificável a extensão da tutela ultramerceológica às marcas notórias. Para maiores desenvolvimentos sobre a posição que defendemos, cfr. o que referimos em Merchandising de marcas (A comercialização do valor sugestivo das marcas), Almedina, Coimbra, 2003, pp. 132 e ss., e «A marca de prestígio à luz da jurisprudência comunitária», in Actas de Derecho Industrial y Derecho de Autor, vol. 33, 2012-2013, pp. 341 e ss. 26 V. Acórdão, de 23 de fevereiro de 1999, proc. C-63/97, no caso «BMW» (v. esp. n.º 38). Todavia, o conceito de «uso como marca» aí estabelecido foi muito criticado, por ser excessivamente amplo, dado que no caso em apreço estava em causa uma «mera referência aos produtos que a marca “BMW” contradistingue» e não a título de marca (NOGUEIRA SERENS, «Aspectos do princípio da verdade», in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Volume Comemorativo (2003), p. 577 (nota 48, pp. 634 e ss.).
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na indicação de proveniência empresarial dos produtos ou serviços assinalados27. Por isso, o TJUE afirmou que «[...] o artigo 5.º, n.º 1, da directiva deve ser interpretado no sentido de que o titular de uma marca não pode invocar o seu direito exclusivo quando um terceiro, no quadro de negociações comerciais, revela que o produto provém do seu próprio fabrico e só utiliza a marca em causa com o fim de descrever as propriedades específicas do produto que propõe, de tal modo que fica excluído que a marca utilizada seja interpretada como uma referência à empresa de proveniência do produto»28. E, mais tarde, acrescentou que «o direito exclusivo previsto pelo artigo 5.º, n.º 1, alínea a), da directiva foi concedido para permitir ao titular da marca proteger os seus interesses específicos como titular da marca, ou seja, assegurar que a marca possa cumprir as suas funções próprias. O exercício deste direito deve, por conseguinte, ser reservado aos casos em que o uso do sinal por um terceiro afecta ou é susceptivel de afectar as funções da marca, nomeadamente a sua função essencial, que é a de garantir aos consumidores a proveniência do produto»29. Todavia, como por diversas vezes afirmámos30, este posicionamento inicial sofreu alterações, num sentido expansivo e numa dupla perspetiva. Por um lado, o TJUE foi abrindo, progressivamente, o leque das funções da marca e, por outro, no que tange à interpretação do conceito de uso a título de marca31. Com efeito, no Acórdão proferido no caso «L’Óreal/Bellure», depois de reafirmar a jurisprudência anterior, o Tribunal acrescenta que «entre essas funções incluem-se não só a função essencial da marca, que é garantir aos consumidores a proveniência do produto ou do serviço, mas também as suas outras funções, como, nomeadamente, a que consiste em garantir a qualidade desse produto ou desse serviço, ou as de comunicação, de inves-
Como é referido por ÁNGEL GARCÍA VIDAL («El uso de la marca ajena con una finalidad diferente a la de distinguir produtos o servicios», in Actas de Derecho Industrial y Derecho de Autor, vol. 22, 2002, p. 354), só existe uso como marca quando se emprega um sinal para distinguir as próprias prestações empresariais. 28 V. o n.º 17 do Acórdão, de 14 de maio de 2002, proc. C-2/00, proferido no caso «Hölterhoff». 29 V. o n.º 51 do Acórdão, de 12 de novembro de 2002, proc. C-206/01, no caso «Arsenal». 30 Cfr., por todos, «A protecção jurídica da marca segundo o Acórdão “L’Oréal” [Comentário do Acórdão do TJCE (1.ª S.) de 18 de Junho de 2009, Caso “L’Oréal-Bellure”]», in Actas de Derecho Industrial y Derecho de Autor, vol. 30, 2010, pp. 647 e ss. 31 Com efeito, no caso «L’Oreal/Bellure» (Acórdão de 18 de junho de 2009, proc. C-487/07), na senda do Acórdão proferido no caso «O2», o TJUE «regressa ao passado» (já que quase instantaneamente recordamos o caso BMW). Em sentido diferente, relativamente ao caso «O2», cfr. P. J. YAP, «Essential function of a trademark: from BMW to O2», in EIPR, 2009, 2, p. 85, voltando a sufragar um entendimento (demasiado) amplo de uso a título de marca. Importa, porém, sublinhar que, entretanto, esta posição foi atenuada. V., entre outros, o Acórdão de 27 de março de 2010, procs. C-236/08 a C-238/08, caso «Google». 27
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timento ou de publicidade»32 (itálicos nossos). E esta linha tem sido sustentada noutros acórdãos33. Esta alteração do posicionamento do TJUE numa matéria estruturante do Direito de Marcas ocorreu sem que tenham sido prestados quaisquer esclarecimentos – desde logo, se se refere às funções jurídicas e/ou económicas da marca – e, sobretudo, sem que se tenha demonstrado que a verificação da referida proteção «se concilia e coordena com a protecção prevista»34 na DM. Importa ainda, na nossa opinião, não perder de vista que o monopólio concedido ao titular da marca só encontra justificação na medida em que seja necessário para permitir que a marca realize a sua função. E esta função, essencial para toda e qualquer marca – na medida em que integra o próprio conceito de marca e sem prejuízo da existência de fundamentação para uma tutela ampliada relativamente a determinados sinais (as marcas de prestígio) –, é a função distintiva por referência à proveniência empresarial dos produtos ou serviços assinalados com a marca. A proposta de DM (reformulada) apresentada pela Comissão pretendia, assumidamente, clarificar os direitos conferidos pelas marcas em termos de âmbito e limitações, sendo certo que, nalguns casos, as clarificações introduzidas se desviavam – e bem, segundo cremos35 – da jurisprudência comunitária «mais recente»36, parecendo promover um «regresso às origens», isto é, aproximando-se de posições anteriores, sobretudo no que respeita à função distintiva da marca, por referência à origem (proveniência) empresarial, que voltaria a ocupar o papel principal nos casos de risco de confusão e de associação. Assim, consta expressamente da proposta apresentada pela Comissão37 que «o reconhecimento de funções adicionais da marca no artigo 5.º, n.º 1, alínea a), da diretiva
N.º 52 do Acórdão, cit. V. Acórdão proferido no caso «Google», cit., e sobretudo o Acórdão de 22 de setembro de 2011, proc. C-323/09, caso «Interflora», onde o TJUE procedeu a importantes desenvolvimentos nesta matéria. 34 V. n.º 49 das Conclusões apresentadas pelo Advogado-Geral Paolo Mengozzi, no caso «L’Óreal/ /Bellure». 35 No mesmo sentido, cfr., entre outros, KOPPENSTEINER, Markenrecht, 4.ª ed., 2012, pp. 52 e ss., e MARTIN SENFTLEBEN, «Trade Mark Protection – a Black Hole in the IP Galaxy», in International Review of Intellectual Property and Competition Law, 2011, 4, pp. 383-387, e «Adapting EU Trade Mark Law to New Technologies – Back to Basics?», disponível no sítio http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id= 1875629. Em sentido algo diferente, cfr. ANNETTE KUR, «The EU trademark reform package – (too) bold a step ahead or back to status quo?», cit., pp. 31 e ss. 36 Com muito interesse a propósito do papel do TJUE, cfr. MARTIN SENFTLEBEN, «Adapting EU trademark law to new technologies: back to basics?», cit. 37 Aparentemente, estas restrições terão sido introduzidas pouco antes da apresentação pública da proposta, segundo informação colhida em ANNETTE KUR, «Trademarks function, don’t they? CJEU Jurisprudence and unfair competition principles», in International Review of Intellectual Property and Competition 32 33
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tem criado insegurança jurídica» e que «em especial, a relação entre os casos de dupla identidade e a protecção ampliada prevista no artigo 5.º, n.º 2, às marcas que gozem de prestígio tornou-se pouco clara», esclarecendo-se que «nos casos de dupla identidade, previstos no artigo 5.º, n.º 1, alínea b), é apenas a função de origem que conta»38. Todavia, na sequência das críticas que lhe foram dirigidas, nomeadamente por algumas associações de titulares de marcas 39 , o Parlamento Europeu e o Conselho sugeriram a supressão desta restrição40, sendo muito provável, dado o contexto referido supra (I.) que venham a ser aprovadas, com estas modificações, as propostas de DM e de RMC. A ser este o caso, afigura-se-nos necessária uma especial prudência no que respeita ao alcance dos direitos conferidos ao titular da marca registada anterior nos casos de dupla identidade. Uma possível solução será a sustentada por ANNETE KUR, que esclarece que o uso de uma marca igual para produtos ou serviços idênticos será abrangida pela cláusula de identidade, independentemente de designar os próprios produtos do infrator ou do titular da marca anterior, sendo certo que, nesta última hipótese, o uso só deve ser considerado violação do direito de marca se for incompatível com os usos comerciais honestos, como estabelecido nos limites e exceções ao direito de marca, tal como na Diretiva 2006/114/EC ou se os produtos não forem legitimamente comercializados na União Europeia41.
Law, 2014, 4, pp. 434-454, também disponível para consulta no sítio http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm? abstract_id=2401536. 38 Proposta cit., p. 7, e considerando 19, p. 17. 39 V. INTA, «Comments on the Proposed Revisions to the EU Community Trade Mark Regulation and Trade Marks Directive», disponível para consulta em http://www.inta.org/Advocacy/Documents/June 2013INTACommentsEUTMSystemsReview.pdf, pp. 15 e ss., e, ainda, ECTA, «Comments on the Proposed Revisions to the EU Community Trade Mark Regulation and Trade Marks Directive», 24 June 2013, disponível no sítio http://www.ecta.org/position-papers/2013, p. 8. 40 Criticamente também sobre esta restrição e sugerindo que o melhor seria omitir qualquer referência às funções da marca, cfr. ANNETTE KUR, «The EU trademark reform package – (too) bold a step ahead or back to status quo?», cit., p. 32. 41 ANNETTE KUR, «The EU trademark reform package – (too) bold a step ahead or back to status quo?», cit., p. 32. 175
A figura do encarregado de educação e a sua (des)conformidade com o regime das responsabilidades parentais do Código Civil Rossana Martingo Cruz*
Resumo: A figura do encarregado de educação, de uso corrente nas comunidades escolares, não é de simples concatenação com o regime das responsabilidades parentais presente no nosso Código Civil. As realidades familiares são, cada vez mais, multifacetadas, o que leva a alguma incerteza na aplicabilidade das normas referentes ao encarregado de educação. Nem sempre é claro quem pode atuar investido com os poderes que a lei confere ao encarregado de educação. Ao mesmo tempo, é dúbia a autonomização que o legislador faz de uma figura que, em vários preceitos legais, surge num patamar de alternativa com os progenitores, não se percebendo qual a mais-valia na criação de uma figura singular cujo propósito é o de atuar como um elo de ligação com a escola. A possibilidade, legalmente prevista, de que a competência decorrente do encarregado de educação pode ser delegada num terceiro causa alguma fricção jurídica com o regime previsto no Código Civil. Por outro lado, a escolha da instituição de ensino é também uma problemática com relevância prática e geradora de conflitos. Perante estas dúvidas, ousamos perscrutá-las com a convicção de que a problematização de questões é, por vezes, tão relevante quanto o advento de respostas. Palavras-chave: Responsabilidades parentais – Encarregado de educação – Questões de particular importância – Atos da vida corrente – Delegação de competências educativas – Aluno menor – Exercício conjunto das responsabilidades parentais – Instrução do aluno menor – Poder-dever – Escolha da instituição de ensino de filho menor
Abstract: There is a Portuguese special legal figure frequently used in our schools (like an ‘education guardian’), which is not easy to suit and adapt to the parental responsibility norms of the Portuguese Civil Code. Since there are numerous types of family, when it comes to practice, it can lead to some uncertainty. It is not always clear who can act with the power that law provides to this special legal figure. At the same time, it is doubtful the autonomy that is given to that figure and, in many cases, it is not obvious why this figure is worth existing. It is legally permitted that its competence can be delegated to a third party and this is uncertain regarding the parental responsibility established in the Civil Code. At the same time, the choice of the child’s school has also raised some questions among us. Therefore, we analyse these issues keeping in mind that asking questions is as important as answering them. Keywords: Parental responsibilities – The ‘education guardian’ – A Portuguese special figure and its legal status – Underage student – Choosing the child’s education – Joint custody – Children’s daily care vs. substantial decisions on their upbringing
Sumário: i) Nota introdutória; ii) Responsabilidades Parentais – brevíssimo enquadramento e regime; iii) O encarregado de educação – seu contorno legal; iv) A figura do encarregado de educação e o regime previsto no Código Civil – dificuldades e desarmonias; v) Reflexão final; Bibliografia citada
* Assistente Convidada da Escola de Direito da Universidade do Minho.
Rossana Martingo Cruz
i) Nota introdutória A presente reflexão surge na sequência de várias questões práticas que nos foram sido colocadas, ao longo do tempo, por práticos da área da educação e ensino. Ao sermos confrontados com dúvidas e anseios decorrentes de situações reais, notámos que não é clara a perceção destes profissionais das normas referentes às responsabilidades parentais no Código Civil (não obstante lidarem, todos os dias, com questões prementes e a elas diretamente respeitantes). Por outro lado, estes práticos, quando confrontados com circunstâncias de maior dificuldade ou delicadeza, pautam a sua atuação apenas por normas de caráter mais técnico e procedimental, cuja harmonia com as normas substantivas do Código Civil é, por vezes, dúbia. Esta não será a ocasião para uma abordagem teórico-doutrinal das responsabilidades parentais, enquanto poder-dever jurídico, mas aproveitaremos o ensejo para descrever sumariamente o seu regime, seguindo de perto o seu contorno legal. Logo depois, analisaremos os diplomas legais do domínio da área educativa, percebendo quais as situações em que o legislador destaca a figura do encarregado de educação e as suas funções. Seguidamente, tentaremos perceber se existe, ou não, conformidade e coerência na atuação do legislador. Serão também problematizados casos reais que têm tido lugar nas escolas e que, salvo melhor opinião, necessitam de uma reflexão quanto ao seu enquadramento jurídico-legal. Aspiramos a que este texto seja de fácil compreensão, tornando também a sua leitura proveitosa a não juristas, uma vez que se debruça sobre temáticas que pululam no quotidiano daqueles que introduzem as nossas crianças e jovens no domínio do saber – os educadores e pedagogos.
ii) Responsabilidades Parentais – brevíssimo enquadramento e regime1 As responsabilidades parentais2 são uma realidade jurídica complexa, com uma vasta área de atuação e um propósito que vai para além da sua faceta jurídica de suprimento da incapacidade dos menores3.
Algumas considerações deste ponto ii) fundam-se numa síntese (ainda que adaptada) de um dos elementos de estudo, por nós elaborado e facultado a alunos da licenciatura de Solicitadoria, no âmbito da unidade curricular de Direito da Família, da Escola Superior de Gestão, do Instituto Politécnico do Cávado e do Ave, sob a forma de uma sebenta. (ROSSANA MARTINGO CRUZ, Sebenta Direito da Família, Instituto Politécnico do Cávado e do Ave, ISBN 978-989-98241-0-2, Barcelos, 2013, pp. 104 e ss.). 1
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A perspetiva subjacente a esta matéria é sempre a do superior interesse do menor. Assim, todas as indicações dadas pelo legislador devem ser lidas nesta ótica filiocêntrica. Os pais serão, prima facie, cuidadores dos filhos4. A Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, fez importantes alterações no âmbito das responsabilidades parentais 5 . Desde logo, aproveitou a oportunidade para cumprir com um anseio já há muito reclamado: substituir a expressão «poder paternal» por «responsabilidades parentais». A anterior nomenclatura não era já consentânea com os princípios que regiam o nosso sistema e com a natureza jurídica daquela existência6, daí que já há muito se reclamava uma alteração terminológica7. Não existem dúvidas de que o filho menor é um sujeito de direitos que, para sua proteção e no seu interesse, está sob o escudo do comprometimento e responsabilidade dos seus pais (não existindo, por isso, qualquer domínio em sentido estrito dos pais sobre os filhos, daí a desadequação do vocábulo «poder»). Ademais, o menor não deverá ser alheio às decisões importantes que o rodeiam, é-lhe conferida uma voz adequada à sua maturidade8. Tal decorre do protagonismo que assume no âmbito das responsabilidades parentais, no qual é sujeito protegido e não dominado. Daí que juridicamente as responsabilidades parentais sejam consideradas como um poder-dever ou um poder funcional. Sobre esta classificação muito have-
Antes designadas por «poder paternal». O art. 3.º da Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, veio estabelecer que: «2. A expressão ‘poder paternal’ deve ser substituída por ‘responsabilidades parentais’ em todas as disposições da secção II do capítulo II do título III do livro IV do Código Civil». 3 Apesar de também incluírem os poderes funcionais de representação e administração dos bens dos menores, as responsabilidades parentais não esgotam, por si só, esta realidade jurídica. Estas consistem no «conjunto de situações jurídicas que, normalmente, emergem do vínculo de filiação, e incumbem aos pais com vista à protecção e promoção do desenvolvimento integral do filho menor não emancipado (arts. 1877.º e 1878.º)», JORGE DUARTE PINHEIRO, O Direito da Família Contemporâneo, 3.ª ed., Lisboa, AAFDL, 2011, p. 311. 4 Como assevera ROSA MARTINS, as responsabilidades parentais são «um feixe de poderes funcionais atribuído pela ordem jurídica aos pais para que eles possam desempenhar a sua função de cuidar dos filhos, protegendo-os e promovendo a sua autonomia e independência.», ROSA MARTINS, Menoridade, (In)Capacidade e Cuidado Parental, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, p. 185. 5 Não obstante o seu âmago ser, essencialmente, a alteração profunda no regime do divórcio, daí ser designada por «Nova Lei do Divórcio». 6 Outrora, o «poder paternal» existiu no nosso ordenamento jurídico a par do «poder marital». Com a Reforma de 1977 do Livro IV do Código Civil, o «poder marital» foi abolido, por colidir com o princípio constitucional da igualdade dos cônjuges. Poder-se-ia ter aproveitado a ocasião para alterar a designação do poder-dever referente aos filhos menores, uma vez que a sua perspetiva já não refletia uma primazia do pai sobre o filho e sobre a mãe, no que às decisões do filho concernia. 7 Sobre a necessidade da mudança de nomenclatura, consultar ROSA MARTINS, Menoridade, (In)Capacidade e Cuidado Parental, cit., pp. 225 e ss.; MARIA CLARA SOTTOMAYOR, «Exercício conjunto das responsabilidades parentais: igualdade ou retorno ao patriarcado», in E foram felizes para sempre...? Uma análise crítica do novo regime jurídico do divórcio (coord. M.ª CLARA SOTTOMAYOR e M.ª TERESA FÉRIA DE ALMEIDA), Coimbra, Coimbra Editora/Wolters Kluwer, 2010, pp. 113 e ss.; e CRISTINA DIAS, Uma análise do novo regime jurídico do divórcio (Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro), 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2009, pp. 42 e ss. 8 Como está legalmente consagrado, desde logo, na Convenção Europeia sobre os Direitos da Criança, nos arts. 5.º, 12.º e 14.º, n.º 2. 2
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ria a dizer e tal levar-nos-ia a considerações de índole doutrinal que excedem os objetivos deste texto9. Em suma, releva ter em conta que o exercício das responsabilidades parentais não é ditado pela vontade do sujeito que as exerce (os progenitores, na maioria dos casos). Estes não são livres para agir como entenderem, no âmbito das responsabilidades parentais, uma vez que a sua atuação é legalmente conformada10. O Direito estabelece as linhas de atuação que os pais têm de respeitar. Não existe um livre arbítrio neste domínio, como bem se compreende. E não só existe uma imposição legal de como as responsabilidades parentais devem ser exercidas11, como estas são irrenunciáveis12. Embora a atuação seja dos pais13, o verdadeiro protagonismo recai sobre os filhos, uma vez que as responsabilidades parentais (ou poder tutelar, noutros casos) são gizadas no interesse destes14. Não sendo, por isso, propriamente um «poder» como outrora se designou15. A expressão hoje presente no Código Civil16 reflete o teor intrínseco
9 A este propósito, consultar FERNANDO ANDRADE PIRES DE LIMA e JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. V, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, pp. 390 e ss.; PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pp. 152 e ss.; JORGE DUARTE PINHEIRO, O Direito da Família Contemporâneo, cit., pp. 103 e ss. e p. 321. 10 «Traditionnellement, la volonté individuelle n’exerçait qu’un rôle secondaire dans l’organisation des relations familiales». PHILIPPE MALAURIE e HUGUES FULCHIRON, La Famille, Paris, Defrénois, 2004, p. 24. DIEZ-PICAZO chama a este conjunto de interesses que o ordenamento jurídico coloca acima da vontade das partes a «ordem pública da família». LUIS DIEZ-PICAZO, Familia y Derecho, Madrid, Civitas, 1984. 11 Existem sanções quando os progenitores não cumprem as orientações legais, designadamente, a inibição das responsabilidades parentais do art. 1915.º do Código Civil. 12 Art. 1882.º do Código Civil: «Os pais não podem renunciar às responsabilidades parentais nem a qualquer dos direitos que ele especialmente lhes confere, sem prejuízo do que neste código se dispõe acerca da adopção». 13 Supondo que são estes quem exerce as responsabilidades parentais do seu filho menor, como acontece na maioria das situações. 14 As responsabilidades parentais são uma «instituição altruísta, dirigida a fazer prevalecer o interesse da criança sobre o interesse do adulto». MARIA CLARA SOTTOMAYOR, Regulação do Exercício do Poder Paternal nos casos de divórcio, reimp. da 4.ª ed., revista, aumentada e atualizada, Almedina, 2004, p. 19. 15 Também a expressão «paternal» levaria à convicção de que caberia ao pai uma posição de primazia e maior preponderância, tal como acontecia aquando da existência do «poder marital». Apesar de a expressão «poder paternal» ter permanecido após a Reforma de 77, tal já não refletia a conceção do «pater» como chefe da família. Também por isso, a doutrina há muito ansiava por uma mudança terminológica, pois a realidade já não condizia com a designação usada. 16 Infelizmente, o legislador não substituiu todas as disposições que se referiam a «poder paternal» por «responsabilidades parentais». Aquando da alteração, pela Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, o seu art. 3.º veio estabelecer, no n.º 2, que: «A expressão ‘poder paternal’ deve ser substituída por ‘responsabilidades parentais’ em todas as disposições da secção II do capítulo II do título III do livro IV do Código Civil». Acontece, porém, que a expressão «poder paternal» não existia somente na secção II do capítulo II do título III do livro IV do Código Civil. A expressão existe em várias outras disposições no Código que não se encontram na sistematização abrangida pelo legislador na norma aludida supra. Designadamente, os artigos da menoridade e das formas de suprimento daquela incapacidade – arts. 124.º e 125.º. Entendemos que tal foi um mero lapso do legislador e que o espírito da alteração legislativa é amplo, visando uma substituição em todas as disposições que se referiam ao «poder paternal», cabendo ao intérprete atualizar o sentido e alcance das normas para a expressão «responsabilidades parentais». Parece-nos que uma opinião diferente, que defendesse uma diferenciação intencional por parte do legislador, levaria a uma realidade de difícil aplica-
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do poder-dever em causa, um comprometimento por parte de ambos os progenitores (cada um vinculado na mesma medida, em consonância com o princípio da igualdade constitucionalmente previsto) em salvaguardar o supremo interesse dos seus filhos, daí chamar-lhes «responsabilidades parentais». Ambos são, assim, responsáveis pela pessoa, património, educação e desenvolvimento pleno dos filhos menores17. Depois de feita esta análise sumária da evolução do conceito e qual a sua índole jurídica, seremos capazes de abordar o seu conteúdo com o propósito que lhe subjaz. Determina o art. 1887.º do Código Civil18 que as responsabilidades parentais competem aos pais até à maioridade ou emancipação. Cabendo-lhes, deste modo, zelar pela saúde, segurança, sustento, educação e representação dos filhos menores não emancipados (n.º 1 do art. 1878.º do mesmo diploma legal). Na prossecução desta tarefa, devem os pais ter em linha de conta a opinião dos filhos nos assuntos familiares de relevo e reconhecer-lhes autonomia na organização da sua vida, consentânea com a sua maturidade (n.º 2 do art. 1878.º). Existe a preocupação de que o menor não seja alheado das matérias decisivas da sua existência, desde que tenha o discernimento que lhe permita compreender a envolvência e a complexidade dos assuntos em causa (art. 12.º da Convenção sobre os Direitos da Criança)19. Por conseguinte, enquadram-se nas responsabilidades parentais diferentes poderes-deveres, tais como: o de guarda; de dirigir a educação; de prover ao sustento; de representação; e de administração dos bens20. Não encetaremos um estudo destas dife-
ção, com dois conceitos paralelos sem se alcançar o propósito da sua distinção. Consideramos que tal esquizofrenia jurídica não tem qualquer benefício, daí que a rejeitemos. 17 «Este conceito de responsabilidades parentais é fortemente inspirado no conceito resultante da Recomendação n.º R (84) sobre as Responsabilidades Parentais de 28 de fevereiro de 1984, aprovada pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa, que considera como mais rigorosa e mais adequada a uma evolução da realidade social e jurídica dos Estados Europeus a noção de “responsabilidades parentais”, definindo-as como “o conjunto dos poderes e deveres destinados a assegurar o bem-estar moral e material do filho, designadamente tomando conta da sua pessoa, mantendo relações pessoais com ele, assegurando a sua educação, o seu sustento, a sua representação legal e a administração dos seus bens”. Esta noção traduz melhor a ideia de que os pais, em pé de igualdade e em concertação com o filho menor, se encontram investidos de uma missão de prossecução dos interesses deste, sendo ambos responsáveis e implicados pelo seu bem-estar e, exercendo, para tanto, poderes legalmente conferidos». ANTÓNIO JOSÉ FIALHO, Guia Prático do Divórcio e das Responsabilidades Parentais, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 2012, pp. 58-59, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/GuiaDivorcioRespParent_v102.pdf. 18 As normas legais citadas – sem qualquer outra referência – reportam-se ao Código Civil. 19 Art. 12.º: «1 – Os Estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade. 2 – Para este fim, é assegurada à criança a oportunidades de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja directamente, seja através de representante ou de organismo adequado, segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação nacional». Convenção sobre os Direitos da Criança, Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, publicada no Diário da República n.º 211/90, Série I, 1.º Suplemento, de 12 de setembro de 1990, e Ratificada pelo Decreto do Presidente da República Português n.º 49/90, de 12 de setembro. 20 «Quanto ao conteúdo, verifica-se que o n.º 1 do art. 1878.º decompõe analiticamente o poder paternal nas seguintes faculdades-deveres: I) de guarda da pessoa e de vigilância pela vida e saúde dos filhos; II) de prestação de 181
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rentes facetas, por não se revelarem essenciais para o propósito deste texto. Todavia, referiremos, de forma muito sucinta, algumas destas vertentes das responsabilidades parentais que se mostrarão úteis para compreender o papel dos pais e do encarregado de educação. Assim, quando o legislador determina que os pais têm o dever de guarda, tal significa que é com estes que os filhos devem residir21, não devendo abandonar o lar parental, ou dele ser retirados, sem justificação para tal (n.º 1 do art. 1887.º). Já a competência para dirigir a educação dos filhos visa a orientação da sua instrução, da formação moral e cívica, tal como estabelece o art. 1885.º do Código Civil. Caberá aos pais a preocupação com o desenvolvimento do filho menor, em todas as suas facetas 22 . Devem ser capazes de lhes proporcionar as ferramentas básicas para que, finda a menoridade, os filhos possam ingressar na sociedade com formação e educação suficientes para uma saudável integração nas suas comunidades. A educação que se exige dos pais vai para além da instrução. Esta deverá ser acompanhada de perto, com o envolvimento necessário, não sendo lícito aos pais um alheamento desta competência
alimentos, no sentido mais amplo da expressão (arts. 1878.º, n.º 1, e 2003.º, n.º 1); III) de regência da educação deles; IV) de representação deles, incluindo os nascituros; V) de administração dos seus bens». FERNANDO ANDRADE PIRES DE LIMA e JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, cit., p. 332. 21 O n.º 7 do art. 36.º da Constituição da República Portuguesa determina que os filhos menores não podem ser separados dos pais, a não ser quando estes não cumpram os seus deveres para com os filhos e sempre mediante decisão judicial. Isto é, quando qualquer dos pais infrinja culposamente os deveres para com os filhos ou estes se encontrem em perigo (arts. 1915.º e 1918.º). Daí que existam vozes críticas quanto à constitucionalidade do atual n.º 1 do art. 1907.º (redação da Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro) quando admite a possibilidade de um filho menor ser confiado a terceira pessoa, por decisão judicial, independentemente de se verificarem as circunstâncias do 1918.º. GUILHERME DE OLIVEIRA veio esclarecer que a Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, visava manter o regime anterior, todavia, ocorreu uma redação deficiente da norma. Entende que esta deveria consagrar que «Por acordo, ou por decisão judicial quando se verifique algumas das circunstâncias previstas no art. 1918.º, o filho pode ser confiado à guarda de terceira pessoa ou de instituição». GUILHERME DE OLIVEIRA, «A Nova Lei do Divórcio», in Revista Lex Familiae, Ano 7, n.º 13, 2010, Coimbra, Coimbra Editora, p. 27. 22 Muito se tem debatido se, neste poder-dever de educação, se pode incluir o poder-dever de correção e qual o seu limite. Enquanto as repreensões e os castigos que se consubstanciam em privações de entretenimento são aceites pela maioria, o mesmo já não se pode dizer dos castigos corporais moderados. Doutrina e jurisprudência têm discutido esta questão. Deixaremos, aqui, alguns testemunhos jurisprudenciais sobre a temática: «Castigos moderados aplicados a menor por quem de direito, com fim exclusivamente educacional e adequados à situação, não são ilícitos. Devendo, no entanto, ter-se consciência de que estamos numa relação extremamente vulnerável e perigosa quanto a abusos.», Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de abril de 2006; «Se é certo que a finalidade educativa abrange o poder de correcção, que se revela (deve revelar) essencialmente no exemplo e na palavra já é claramente discutível se esse poder de correcção pode abranger castigos corporais. [...] Tem-se entendido que a ofensa da integridade física será justificada quando se mostre adequada a atingir um determinado fim educativo e seja aplicada pelo encarregado de educação com essa intenção. Colocam-se a este nível dúvidas sobre a proporcionalidade pedagógica dos castigos físicos e da sua compatibilidade com a dignidade humana do ser humano em desenvolvimento.», Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28 de janeiro de 2009; «O direito de correcção dos filhos, reconhecido a quem exerce o poder paternal, nunca justifica uma ofensa corporal grave do educando.», Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 9 de dezembro de 2010, todos os arestos citados estão disponíveis em www.dgsi.pt. Para uma devida análise sobre o assunto consultar CRISTINA A. DIAS, «A criança como sujeito de direitos e o poder de correcção», in Julgar, n.º 4, 2008, pp. 87-101. 182
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ou a delegação em terceiros (designadamente nos professores e educadores, cujo papel não se confunde com o que é legalmente conferido aos pais). A instrução será, deste modo, apenas uma face da educação. Competirá ainda aos progenitores conferir as ferramentas básicas à vivência na idade adulta, orientar a transmissão de valores, princípios, noções de cortesia e trato social, sem os quais o jovem adulto tenderá a ser desacreditado e marginalizado pelos demais constituintes da sociedade. É esta a formação cívica e moral23 que o legislador acautela no Código Civil, exigindo que esta tarefa complexa seja levada a cabo pelos pais no desenvolvimento dos seus filhos menores. Esta perceção de educação, que agora apresentamos, condicionará a nossa análise do papel do encarregado de educação e sobre quem poderá recair essa tarefa. Como teremos oportunidade de expor adiante, parece existir alguma incongruência entre a narrativa contada pelo legislador no Código Civil e aquela que opera na prática no âmbito das nossas escolas. Mas lá chegaremos. Recairá, naturalmente, sobre os pais o sustento dos seus filhos, as despesas com a sua alimentação, vestuário, habitação, saúde, etc. Deve-lhes ser proporcionando um estilo de vida consentâneo com o dos seus pais, atendendo às capacidades financeiras destes. Este encargo terminará assim que os filhos possam suportar, por si, as suas despesas24. Devem ainda os pais representar os seus filhos, suprindo a incapacidade de exercício25 decorrente da menoridade26 e administrar os bens dos filhos menores27, com o mesmo cuidado que administram os seus próprios bens (art. 1897.º do Código Civil).
A formação religiosa também é acautelada no Código Civil, no art. 1886.º. No entanto, neste caso, a responsabilidade cessa mais cedo, aos dezasseis anos. Atendendo à essência pessoal da educação religiosa, a fé a ela inerente e a capacidade de problematizar já presente naquela idade, entendeu o legislador que seria razoável que o jovem, ainda menor, pudesse tomar as suas próprias escolhas no que a essa matéria diz respeito (sendo até violento obrigá-lo a permanecer numa religião que não acredita ou não poder escolher livremente outra religião ou, até, não querer professar nenhuma). A pessoalidade da escolha religiosa foi respeitada e tida em devida conta pelo legislador. De referir que se reconhece uma maturidade aos jovens que atingem dezasseis anos, sendo-lhes também permitido casar e perfilhar (alínea a) do art. 1601.º e n.º 1 do art. 1850.º). 24 Este dever cessa quando os filhos estejam em condições de suportar, pelo produto do seu trabalho ou outros rendimentos, aqueles encargos (art. 1979.º). Deste modo, a responsabilidade de garantir o sustento não termina com a maioridade ou emancipação dos filhos. Se o filho, mesmo que maior ou emancipado, ainda não tiver completado a sua formação profissional, mantém-se a obrigação dos pais, na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete (art. 1880.º). Cfr., a este propósito, a recente alteração legislativa, levada a cabo pela Lei n.º 122/2015, de 1 de Setembro, que alterou o art. 1905.º, aditando-lhe este n.º 2: «Para efeitos do disposto no artigo 1880.º, entende-se que se mantém para depois da maioridade, e até que o filho complete 25 anos de idade, a pensão fixada em seu benefício durante a menoridade, salvo se o respetivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes daquela data, se tiver sido livremente interrompido ou ainda se, em qualquer caso, o obrigado à prestação de alimentos fizer prova da irrazoabilidade da sua exigência.» 25 O art. 127.º do Código Civil consagra algumas exceções à incapacidade de exercício dos menores. 26 Nalguns atos, como os puramente pessoais, não podem os pais representar os filhos (ex: perfilhação – n.º 2 do art. 1850.º). 23
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Estes são apenas alguns traços dos poderes-deveres contidos nas responsabilidades parentais. Vejamos agora como o legislador norteou o seu exercício. Também se procedeu a algumas alterações no exercício das responsabilidades parentais com a Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro. No que ao exercício das responsabilidades parentais respeita, é importante distinguir se os progenitores vivem numa comunhão plena de vida, isto é, se são casados ou unidos de facto; ou se estão divorciados, separados de facto ou dissolveram a união de facto por rutura. Os contornos são ligeiramente distintos consoante as situações em causa. Comecemos pela vivência comum dos progenitores (quer na constância do casamento, quer numa convivência análoga: a união de facto28): aqui, o exercício das responsabilidades parentais pertence a ambos os progenitores (n.º 1 do art. 1901.º e n.º 1 do art. 1911.º29). Estes exercerão este poder-dever de comum acordo e, se discordarem, quanto às questões de particular importância30, qualquer um dos pais poderá recorrer ao tribunal, que tentará a conciliação (n.º 2 do art. 1901.º). Se esta conciliação não for possível, o tribunal decidirá, devendo, para tal, ouvir o menor sempre que possível, exceto quando circunstâncias sérias o contraindiquem (n.º 3 do art. 1901.º). Este será um modo de exercício comum das responsabilidades parentais em plena comparticipação, uma simbiose quase perfeita em prol do filho menor. Dizemos quase perfeita porque, não obstante o legislador consagrar esta harmonia de atuações, os pais, enquanto seres humanos autónomos dotados de vontades, interesses e perspetivas próprios, nem sempre irão concordar na forma de proceder perante os seus filhos (mesmo encontrando-se numa comunhão de vida). Daí que o legislador salvaguarde a possibilidade de se recorrer a juízo, em caso de diferendo nas situações de índole mais premente na vida do seu filho. A vida quotidiana nem sempre se compadece com atuações conjuntas por parte dos progenitores, mesmo aqueles que vivem juntos. Na medida em que, muitas vezes, um deles é quem mais se dedica ao dia a dia do menor, em virtude de uma maior dis-
27 Sem prejuízo de alguns limites impostos por lei, como aqueles em que os pais carecem de autorização para praticar determinados atos de caráter patrimonial – arts. 1889.º e 1892.º. 28 Relação imanente do direito convivencial prevista na Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, com a redação dada pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto. 29 Este art. 1911.º, no seu n.º 1, refere que, quando os progenitores do menor vivam em condições análogas às dos cônjuges, também designada por união de facto (embora aqui o legislador pareça bastar-se com a convivência e não exigir o requisito temporal que decorre da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio), aplica-se o mesmo regime de exercício das responsabilidades parentais que está previsto para pais casados. Há, assim, nesta matéria, uma equiparação entre a união de facto e o casamento, sendo a nota decisiva a vivência dos progenitores. 30 Conceito indeterminado sobre o qual discorreremos mais adiante.
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ponibilidade, por exemplo. O legislador não esqueceu essa circunstância. De modo que, se um dos pais praticar um ato que integre o exercício das responsabilidades parentais, presume-se que agiu de acordo com o outro progenitor. Existem, todavia, limites a esta presunção de anuência e são estes: as situações em que a lei exige expressamente o consentimento de ambos ou se se tratar de um ato de particular importância. Esta falta de concordância não é oponível a um terceiro de boa-fé (n.º 2 do art. 1901.º). O terceiro também se deve recusar a intervir no ato praticado por um dos pais quando, nos termos referidos supra, não seja de presumir o acordo31 ou quando conheça a oposição do outro progenitor – n.º 3 do art. 1901.º. Este art. 1901.º pode levantar algumas dificuldades na sua aplicação prática, nomeadamente no que respeita às escolhas sobre a educação do menor que, na sua grande maioria, serão decisões de particular importância e, por isso, onde se exige um acordo de ambos os progenitores. Há, por vezes, a ideia de que só nos casos de dissociação familiar (divórcio, separação) é que pode existir dificuldade de conformação no que à vida dos filhos diz respeito. Não necessariamente, a plena comunhão de vida não implica uma plena comunhão de pensamento, daí que o legislador tenha acautelado a possibilidade de diferendo nestes casos de pais que vivem juntos. Ademais, mesmo não existindo um conflito entre os progenitores que vivem juntos, o legislador entendeu determinar que certas decisões, consideradas de maior importância, devessem ser tomadas de comum acordo, não podendo este ser presumido. Voltaremos a esta exigência legal, decorrente do art. 1901.º, aquando da análise da figura do encarregado de educação e de como na vida prática, com frequência, se ignora este preceito legal. Remetem-se, assim, outras considerações para mais adiante32. De compreensão mais simples são os arts. 1903.º e 1904.º que se referem, respetivamente, ao impedimento ou morte de um dos pais. Quando um dos pais não puder exercer as responsabilidades parentais, por ausência, incapacidade ou outro impedimento decretado pelo tribunal, caberá o exercício ao outro progenitor. Caso este último também se encontre impedido de exercer as responsabilidades parentais, o cônjuge ou unido de facto de qualquer dos pais33 ou algum familiar de um dos progenitores poderá exercê-las34 (n.º 1 do art. 1903.º). Já em caso de morte de um dos progenitores, o exer-
Ou seja, nos casos de particular de importância, tal como dispõe o n.º 2 do referido 1901.º. Ponto vi) do presente texto. 33 A possibilidade, expressa no art. 1903.º, de o exercício das responsabilidades parentais poder caber ao cônjuge ou unido de facto de qualquer dos pais surge com a recente redação dada pela Lei n.º 137/2015, de 7 de setembro. 34 Desde que haja decisão judicial nesse sentido (n.º 1 do art. 1903.º, com a redação da Lei n.º 137/2015, de 7 de setembro). Na versão anterior deste artigo, exigia-se «acordo prévio e com validação legal». Não era claro o que o legislador queria dizer por validação «legal». Quereria dizer validação do juiz? Jul31 32
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cício das responsabilidades parentais recairá sobre o progenitor sobrevivo (n.º 1 do art. 1904.º)35. Vejamos agora como o legislador organiza o exercício das responsabilidades parentais, em caso de uma vivência apartada dos progenitores. Se os pais já não vivem em comunhão de vida (ou nunca viveram), existirá um exercício conjunto mitigado 36 das responsabilidades parentais (art. 1906.º, n.º 2 do art. 1911.º e n.º 1 do art. 1912.º). Aqui, ambos os pais devem decidir de comum acordo no que se refere aos atos de particular importância da vida do menor37; e os atos da vida corrente são decididos pelo progenitor com quem o filho vive habitualmente ou pelo progenitor com quem ele se encontra temporariamente. Esta conceção bipartida, nos moldes que hoje encontramos no Código Civil, surge com a Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro. Antes de analisarmos, com maior cuidado, todo o regime previsto no art. 1906.º, talvez seja melhor perceber o que serão atos de particular importância e da vida corrente. O uso de conceitos indeterminados é comum no Direito da Família, atendendo à índole pessoal deste ramo do Direito que carece sempre de uma ponderação casuística na observação das situações. Será necessário ter em atenção o caso concreto e adaptar a solução legal ao mesmo. As questões de particular importância são, assim, um conceito indeterminado que «caberá à doutrina e à jurisprudência definir de entre as questões existenciais graves e raras que pertençam ao núcleo essencial dos direitos que são reconhecidos às crianças»38.
gávamos que essa interpretação fazia sentido, pois já era a lei quem autorizava a possibilidade de as responsabilidades parentais recaírem sobre um terceiro, por isso, só faltaria uma validação do tribunal para que tal situação pudesse ser efetivada. Aliás, a alteração dada pela Lei n.º 137/2015, de 7 de setembro, veio nesse sentido, esclarecendo que caberá a decisão ao tribunal. 35 Sem prejuízo da possibilidade prevista no n.º 2 do mesmo artigo (com a nova redação da Lei n.º 137/2015, de 7 de setembro). De referir ainda que esta recente lei veio aditar um novo artigo ao Código Civil (art. 1904.º-A), que contempla o exercício conjunto das responsabilidades parentais pelo único progenitor da criança (quando a filiação esteja estabelecida apenas quanto a um dos pais) e pelo seu cônjuge ou unido de facto. 36 Expressão usada por JORGE DUARTE PINHEIRO, O Direito da Família Contemporâneo, cit., p. 338. 37 Em sentido crítico desta solução, MARIA CLARA SOTTOMAYOR, «Uma análise crítica do novo regime jurídico do divórcio», in E foram felizes para sempre...? Uma análise crítica do novo regime jurídico do divórcio (coord. M.ª CLARA SOTTOMAYOR e M.ª TERESA FÉRIA DE ALMEIDA), Coimbra, Coimbra Editora/Wolters Kluwer, 2010, pp. 43 e ss. Já em sintonia com a opção legislativa HUGO MANUEL LEITE RODRIGUES, Questões de Particular Importância no Exercício das Responsabilidades Parentais, Centro de Direito da Família, n.º 22, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 114. CRISTINA DIAS realça a dificuldade desta solução quando existe uma má relação entre progenitores após a rutura da vida em comum, mas enaltece que «Tem aqui o Direito um papel formador e pedagógico da sociedade que até poderá dar bons frutos no futuro. O que não invalida, porém, os conflitos que de imediato possam surgir em virtude da mesma opção legislativa.», CRISTINA DIAS, Uma análise do novo regime jurídico do divórcio, cit., p. 50. 38 Exposição de Motivos do Projeto de Lei n.º 509/X (que esteve na origem da Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro). 186
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A doutrina e a jurisprudência apontam como questões de particular importância aquelas que implicam uma maior alteração na vida do menor e que carecem de uma ponderação acrescida, tais como decisões sobre a saúde, educação e representação do menor: intervenções médico-cirúrgicas, saídas para o estrangeiro, escolha do estabelecimento de ensino, orientação profissional, autorização para o casamento de filho maior de dezasseis anos39, representação do menor em juízo, participação em programa de televisão, entre outros40. É impossível contemplar todas as situações que possam consubstanciar uma situação de particular importância, daí que o legislador não possa adiantar um elenco exaustivo. Optou por usar um conceito abrangente o suficiente para que a doutrina e jurisprudência o possam preencher com exemplos e situações com que se vão deparando. Claro que o uso de conceitos indeterminados vem acompanhado de uma inevitável dose de incerteza que obrigará, em certos casos, a uma navegação à vista. Por sua vez, os atos da vida corrente do menor são aqueles que concernem ao seu dia a dia. Que, atendendo à sua índole rotineira, o seu exercício compartido traria dificuldades decorrentes da recapitulação de determinados atos que, pela sua natureza, se repetem frequentemente, sendo inexigível uma atuação conjunta a todo o tempo (que, atendendo à não comunhão de habitação por parte dos pais, seria impraticável). Assim, estas questões cabem ao progenitor com quem o menor reside ou, em certos casos, com quem o menor se encontre em determinado momento. Estaremos a considerar, como ato da vida corrente, todos os atos que preenchem a sua rotina diária (ex: a que horas toma as refeições, a que horas faz os trabalhos de casa, a sua higiene diária, o seu tipo de alimentação, a ocupação casual41 dos tempos livres, o vestuário, o calçado, o acompanhamento nos trabalhos escolares, as consultas médicas de rotina, etc.)42.
Nos termos do art. 1612.º do Código Civil. «Tratam-se de questões relativas à educação, saúde, formação religiosa. Será este o entendimento a seguir para aferir a mesma expressão à luz do novo art. 1906.º». CRISTINA DIAS, Uma análise do novo regime jurídico do divórcio, cit., 2009, pp. 49-50. Concordamos, por isso, com o contributo para uma maior concretização legislativa aventada por HUGO RODRIGUES quando sugere um aditamento ao Código Civil com um preceito legal que (através de um elenco meramente exemplificativo) incorpora como atos e questões de particular importância: a segurança e a integridade física do menor, a sua saúde, educação escolar e religiosa, a sua mudança residência, etc. HUGO MANUEL LEITE RODRIGUES, Questões de Particular Importância no Exercício das Responsabilidades Parentais, cit., pp. 187-188. 41 Não sendo a ocupação meramente casual, ou fortuita, pode configurar uma questão de particular importância. 42 Nem toda a doutrina e jurisprudência apontam os mesmos exemplos para os atos da vida corrente e para as questões de particular importância. Existem, até, exemplos fronteira que são usados como da vida corrente, para uns, e como particular importância, para outros. Por exemplo, a ocupação de tempos livres ou a escolha de atividades extracurriculares. Não é pacífico se poderá apenas um decidir ou se ambos terão de estar de acordo. Sem prejuízo de uma ponderação casuística, perante o caso em concreto, não nos parece ser de excluir, ainda que no campo dos princípios, a decisão conjunta no que às atividades dos tempos livres concerne (sob pena de, in extremis, ser oposto a um dos progenitores a comparticipação eco39 40
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Compreendidas as expressões «atos da vida corrente» e «questões de particular importância» poderemos partir para a análise da solução legal do exercício das responsabilidades parentais, quando os pais não vivem juntos (art. 1906.º, n.º 2 do art. 1911.º e 1912.º). Se se tratar de uma questão de particular importância para a vida do filho, devem ambos os pais decidir de comum acordo, exceto nas situações de urgência manifesta em que qualquer um dos progenitores pode agir sozinho, devendo informar o outro, logo que possível (n.º 1 do art. 1906.º). Porém, quando este exercício comum das responsabilidades parentais, no que respeita às questões de particular importância, for contrário aos interesses do menor, deve o tribunal determinar que essas responsabilidades sejam exercidas só por um dos progenitores, através de uma decisão devidamente fundamentada (n.º 2 daquele art. 1906.º). Ora, o legislador é claro, afastando a possibilidade de os pais, por si, instituírem um exercício unilateral das responsabilidades parentais. O afastamento do regime regra do n.º 1 do art. 1906.º implica uma decisão do tribunal onde este sustente os factos demonstrativos da sua decisão. Assim, será necessária uma ponderação do tribunal nesse sentido43. Por sua vez, os atos da vida corrente, que atendendo à sua reiteração e banalidade não necessitam de uma atuação conjunta por parte dos progenitores, serão decididos pelo progenitor com quem o menor reside habitualmente ou ao progenitor com quem o menor se encontra temporariamente. No entanto, este último não deverá contrariar as orientações educativas mais relevantes definidas pelo progenitor com quem o menor vive habitualmente. Este exercício disjunto das responsabilidades parentais, no que se refere aos atos da vida corrente, está previsto no n.º 3 do art. 1906.º. A regra será que quem estiver com o menor, em cada momento, terá a responsabilidade de orientar os atos rotineiros. Desta forma, ambos os progenitores têm um papel interventivo no dia a dia do filho, podendo tomar decisões relativas ao quotidiano. Porém, tendo em vista a estabilidade da vida do menor, evitam-se situações de grande disparidade de condutas, estabelecendo-se que o progenitor que está temporariamente com o filho deverá respeitar as orientações educativas mais importantes do progenitor com quem o menor reside habitualmente, uma vez que o menor já estará acostumado às mesmas. O n.º 4 daquele art. 1906.º vem permitir que o progenitor a quem cabe, em cada momento, o exercício das responsabilidades parentais relativo aos atos da vida corrente, possa exercê-las, por si, ou delegar o seu exercício. Repare-se que esta delegação
nómica numa atividade com a qual ele não concorda ou a participação do menor numa atividade que possa implicar algum risco para a sua integridade física, sem que o outro possa ser chamado a dar a sua anuência). Claro que, havendo desacordo entre os pais, nas atividades a frequentar, o tribunal decidirá. 43 Em sentido contrário, MARIA CLARA SOTTOMAYOR, «Uma análise crítica do novo regime jurídico do divórcio», cit., p. 47. 188
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apenas diz respeito aos atos da vida corrente do menor e não às questões de particular importância44. Uma temática complexa é aquela que respeita ao critério de escolha do progenitor residente. Nos termos do n.º 5 do art. 1906.º, o tribunal deverá ter em consideração todas as circunstâncias ponderosas nessa escolha, tais como o eventual acordo dos pais e a disponibilidade que cada um destes manifesta em promover relações habituais do filho com o outro progenitor. Ou seja, quando não exista concordância dos pais, o tribunal deverá nortear esta escolha pelo superior interesse do menor45. Se algum dos progenitores não exercer as responsabilidades parentais, no todo ou apenas em parte, terá ainda assim o direito de informação sobre a vida do seu filho (n.º 6 do art. 1906.º). O legislador parece preocupar-se com uma integração mínima dos pais na vida do seu filho, mesmo quando não exerçam as responsabilidades parentais. O art. 1906.º termina com uma espécie de cláusula geral quando estabelece que o tribunal decidirá sempre, tendo em conta o interesse do menor, incluindo o interesse que este terá em manter uma relação próxima com ambos os progenitores, devendo promover e aceitar acordos que favoreçam um amplo contacto com ambos os progenitores e uma partilha de responsabilidades46 (n.º 7 daquele preceito legal). Parece clara a
Poderá o progenitor com quem o filho reside, ou com quem ele se encontra temporariamente, delegar as questões relativas aos atos da vida corrente num novo cônjuge ou companheiro, por exemplo. Assim, estes poderes podem ser delegados sem autorização do outro progenitor. 45 No que se refere aos critérios para a atribuição da residência do menor, tem sido utilizado, na doutrina e jurisprudência, o da figura primária de referência. Existem outros princípios a ter em conta (que, apesar de outra formulação, podem coincidir com o da figura primária de referência ou, pelo menos, devem ser tomados em consideração juntamente com aquele), designadamente o princípio do progenitor que favorece mais as relações da criança com o outro progenitor (critério consagrado na parte final do n.º 5 do art. 1906.º), o princípio da não separação entre irmãos e o princípio da preferência maternal para crianças de tenra idade. Este último princípio não deverá, por si só e sem mais, ser aplicado, dada a sua desadequação. Ademais, os nossos tribunais já têm demonstrado a sua desaprovação por este critério baseado numa conceção sexista. Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14 de dezembro de 2006, quando determina: «Parece inconsistente que uma mulher apenas por ser mulher deva ser tida como mais adequada para lidar com uma criança pequena – passa-se aqui um atestado de capitis deminutio (ou, no caso concreto, de affectio deminutio) aos pais que nos parece forçado e que a vida prática não corrobora.», (Proc. n.º 3456/ /2006-8, disponível em www.dgsi.pt). Parece claro de compreender que se a mãe se revelar a figura primária de referência do menor deverá residir com este, não unicamente por ser mãe, mas por se revelar a referência principal daquele menor. A figura primária de referência recairá sobre o progenitor que terá uma maior relação de proximidade com o filho, que cuida dele diariamente e contribui mais na sua educação. 46 Há quem encontre, na amplitude desta consagração legal, a abertura necessária ao modelo de residência alternada. Apesar de não existir uma referência legal expressa, este n.º 7 do art. 1906.º parece permiti-lo. Neste modelo, o filho reside, alternadamente, com cada um dos progenitores (por exemplo, metade do mês com um e a outra metade com o outro). Esta solução não é pacífica entre nós, apesar de alguns tribunais já a terem permitido: «É um regime que facilita os contactos do menor em igual proporção com o pai e a mãe e as respectivas famílias», Acórdão da Relação de Lisboa, de 14 de dezembro de 2006, Processo n.º 345/ /2006-8, disponível em www.dgsi.pt. Há também quem desaprove veementemente este sistema: «é um sistema salomónico que, repartindo a criança entre ambos os pais como se de um objecto de tratasse, satisfaz os interesses dos pais, sacrificando o dos filhos.», MARIA CLARA SOTTOMAYOR, Exercício do Poder Paternal (relativamente 44
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preocupação do legislador em assegurar que a dissociação conjugal entre os pais não terá de significar, necessariamente, uma bipartição na vida parental. Pretende-se que ambos os pais possam continuar a acompanhar a vida do filho com um entrosamento semelhante ao de pais que vivem juntos. Este parece ser, pelo menos, o sentido do legislador. Antes de terminarmos a análise do exercício das responsabilidades parentais, resta somente olhar para o art. 1907.º, o qual também terá utilidade aquando da reflexão sobre a figura do encarregado de educação. Este preceito diz respeito ao exercício das responsabilidades parentais quando o filho é confiado a um terceiro e estabelece no seu n.º 1 que: «Por acordo ou decisão judicial, ou quando se verifique alguma das circunstâncias previstas no artigo 1918.º, o filho pode ser confiado à guarda de terceira pessoa». Ora, já tínhamos referido que, nos termos do poder-dever de guarda, os filhos devem viver com os seus pais. Tal advém, aliás, de um princípio constitucional previsto no n.º 7 do art. 36.º da Constituição da República Portuguesa que dispõe que os filhos menores não podem ser separados dos pais, exceto quando estes não cumpram os seus deveres para com aqueles e sempre mediante uma decisão judicial. Só quando se verifiquem as circunstâncias previstas nos arts. 1915.º e 1918.º (em regra, situações de perigo para o são desenvolvimento do menor) é que o tribunal poderá, fundamentadamente, separar os filhos menores dos respetivos pais. Surgiram, por isso, algumas dúvidas sobre a constitucionalidade da redação dada pela Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, a este n.º 1 do art. 1907.º, pois aventa a possibilidade de um filho menor ser confiado a terceira pessoa, por decisão judicial, sem que se verifiquem as circunstâncias do art. 1918.º47. Além disso, é de difícil compreensão a articulação entre o n.º 2 e o n.º 3 deste artigo. Parece que há uma desintegração das responsabilidades parentais em que parte substancial destas cabe ao terceiro e o remanescente aos progenitores48.
à pessoa do filho após o divórcio ou a separação de pessoas e bens), 2.ª ed., Porto, Publicações Universidade Católica, 2003, p. 439. 47 Tal como já aludimos atrás, GUILHERME DE OLIVEIRA afirma que a Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, pretendia manter o regime anterior, sendo esta redação deficiente. Aventa que a redação conveniente parece ser: «Por acordo, ou por decisão judicial quando se verifique algumas das circunstâncias previstas no art. 1918.º, o filho pode ser confiado à guarda de terceira pessoa ou de instituição.», GUILHERME DE OLIVEIRA, «A Nova Lei do Divórcio», in Revista Lex Familiae, Ano 7, n.º 13, 2010, Coimbra, Coimbra Editora, p. 27. 48 Compreende-se, assim, que se indique que o mais adequado seria instituir, desde logo, a tutela nestes casos. A este propósito consultar FERNANDO ANDRADE PIRES DE LIMA e JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, cit., pp. 404-405. 190
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iii) O encarregado de educação – seu contorno legal O desenho jurídico do encarregado de educação não é tão conhecido como a figura do encarregado de educação, em si mesmo. Atrevemo-nos a dizer que qualquer cidadão saberá, em termos latos, o que é o encarregado de educação, dado o habitualismo inerente a esta figura. Todos nós, enquanto alunos e/ou pais, já tivemos contacto com a realidade do encarregado de educação. Sabemos que lhe é atribuído um papel de ponte, um elo de ligação entre a escola e o aluno. O encarregado de educação move-se numa realidade jurídica que merece atenção e cuidado. Neste ponto, iremos analisar alguns dos diplomas que referem e caracterizam o encarregado de educação. A educação é uma premissa essencial que o nosso Estado acautela, desde logo, na Constituição. A nossa lei fundamental prevê a liberdade de aprender e ensinar e o direito à educação (arts. 43.º e 73.º e ss. da Constituição da República Portuguesa), sendo tal também destacado na Lei de Bases do Sistema Educativo (art. 2.º da Lei n.º 46/86, de 14 de outubro49). A escola tem uma função formadora essencial que deve ser privilegiada. Para tanto, é importante fomentar um contacto cooperante entre os todos os educadores (quer os que atuam no contexto escolar, quer os que agem no seio familiar). É no interesse desta colaboração ativa que o encarregado de educação tem o seu traçado legal. Para a análise da figura do encarregado de educação, usaremos o Estatuto do Aluno e Ética Escolar (Lei n.º 51/2012, de 5 de setembro50) e o Despacho Normativo n.º 7-B/2015 dos Gabinetes do Secretário de Estado do Ensino e da Administração Escolar e do Ensino Básico e Secundário, de 7 de maio de 2015, por se tratarem dos diplomas mais relevantes para a observação a que nos propomos. Este último diploma estabelece os procedimentos para a concretização da matrícula e respetiva renovação e as normas a observar na distribuição dos alunos, constituição de turmas, períodos de funcionamento dos estabelecimentos de ensino, etc. (alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 1.º do Despacho Normativo n.º 7-B/2015). Este despacho é aplicável aos agrupamentos de escolas e escolas não agrupadas da rede pública, bem como a estabelecimentos de ensino particular e cooperativo com contratos de associação e outras instituições de educação ou formação reconhecidas (n.º 2 do art. 1.º daquele despacho). E é, por isso, com alguma propriedade que ousamos dizer que a vasta maioria das crianças e jovens em idade
Com as alterações das Leis n.os 115/97, de 19 de setembro, 49/2005, de 30 de agosto, e 85/2009, de 27 de agosto. 50 Com a Retificação n.º 46/2012, de 17 de setembro. 49
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escolar estará abrangida pelas disposições presentes neste despacho. Como tal, o mesmo tem o cuidado de, no seu art. 2.º, definir alguns conceitos51. O primeiro conceito a ser esclarecido, no art. 2.º do Despacho Normativo n.º 7-B/ /2015, é o de «encarregado de educação» (alínea a)). Logo do ponto de vista formal, percebemos a complexidade desta alínea. Para que o leitor possa melhor compreender e visualizar o que se refere, tomaremos a liberdade de transcrever 52, de seguida, a alínea a) do art. 2.º do Despacho Normativo n.º 7-B/2015, de 7 de maio: Artigo 2.º – Conceitos Para efeitos do presente despacho normativo, entende-se por: a) «Encarregado de educação» – quem tiver menores a residir consigo ou confiados aos seus cuidados: i. Pelo exercício das responsabilidades parentais; ii. Por decisão judicial; iii. Pelo exercício de funções executivas na direção de instituições que tenham menores, a qualquer título, à sua responsabilidade; iv. Por mera autoridade de facto ou por delegação, devidamente comprovada, por parte de qualquer das entidades referidas nas subalíneas anteriores; v. O progenitor com quem o menor fique a residir, em caso de divórcio ou de separação e na falta de acordo dos progenitores; vi. Um dos progenitores, por acordo entre estes ou, na sua falta, por decisão judicial, sobre o exercício das funções de encarregado de educação, estando estabelecida a residência alternada do menor; vii. O pai ou a mãe que, por acordo expresso ou presumido entre ambos, é indicado para exercer essas funções, presumindo-se ainda, até qualquer indicação em contrário, que qualquer ato que pratica relativamente ao percurso escolar do filho é realizado por decisão conjunta do outro progenitor.
Destarte, nos termos do despacho referido supra, será encarregado de educação quem residir com menores ou tenha menores confiados a si pelo exercício das responsabilidades parentais; por decisão judicial; por inerência de funções em instituição de acolhimento de menores; por autoridade de facto ou delegação de competências; pelo progenitor residente em caso de divórcio ou separação (não havendo acordo dos progenitores); em caso de residência alternada, qualquer um dos progenitores, sendo o tribunal a decidir em caso de desacordo entre estes; e, ainda, o progenitor que por
Técnica legislativa conhecida e que se enaltece neste âmbito, cujos destinatários, intérpretes e aplicadores destas normas não terão, em princípio, formação jurídica. 52 Sabendo, desde logo, que a transcrição de preceitos legais no corpo principal do texto é uma técnica de escrita a evitar, tomamos esse risco, uma vez que julgamos que tal será, neste caso, um mal necessário. 51
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acordo expresso ou presumido seja indicado para exercer essas funções (subalíneas i. a vii. da alínea a)). Apesar das redundâncias e incongruências presentes nesta alínea (e que teremos oportunidade de escrutinar no ponto seguinte deste texto), compreende-se que o legislador pretenda atribuir estas funções àqueles que se encontrem mais próximos do menor, para que possam acompanhar de perto a evolução formativa do educando53. Uma vez já conferida a definição de encarregado de educação, atentaremos para os papéis que lhe são atribuídos pelo legislador. Ainda no Despacho Normativo n.º 7-B/2015, é conferido ao encarregado de educação a responsabilidade pela matrícula54 do educando quando o aluno seja menor (n.º 2 do art. 4.º). Também na renovação de matrícula na educação pré-escolar, o estabelecimento de educação e de ensino deve obter do encarregado de educação uma declaração em como este se responsabiliza pela frequência e assiduidade do seu educando (n.º 3 do art. 8.º daquele Despacho n.º 7-B/ /2015). A residência do encarregado de educação ou o seu domicílio profissional assumem relevância, pois são critérios de desempate considerados para a prioridade na matrícula ou renovação de matrícula (n.º 2 do art. 9.º, art. 10.º e art. 11.º do referido diploma legal). Tal advém, uma vez mais, da proximidade que se deseja entre o educando, o encarregado de educação e a escola. Encontrando-se o encarregado de educação a residir ou trabalhar perto da escola, terá maior facilidade em deslocar-se à mesma, quer em caso de eventual necessidade, quer para tarefas rotineiras de acompanhamento do seu educando. Também o Estatuto do Aluno e Ética Escolar (Lei n.º 51/2012, de 5 de setembro55) faz diversas referências à figura do encarregado de educação. Vejamos algumas destas. Nos termos da alínea c) do n.º 1 do art. 7.º da Lei n.º 51/2012, o aluno tem o direito de escolher e usufruir do projeto educativo mais adequado para si, cabendo essa escolha aos pais ou encarregados de educação quando o aluno for menor. Igualmente, no que respeita ao processo individual do aluno, este pode ser consultado pelos pais ou encarregado de educação do aluno menor e ser-lhes-á entregue no termo da escolaridade obrigatória, caso o aluno ainda seja menor (art. 11.º da citada Lei n.º 51/2012).
53 Não obstante se pensar ser esse o intuito do legislador, essa bonomia não parece ser devidamente traduzida nesta definição legal. 54 Matrícula é o ato formal pelo qual a criança, jovem ou adulto ingressa, pela primeira vez, na educação pré-escolar, no ensino básico ou no ensino secundário (cfr. alínea f) do art. 2.º e n.º 1 do art. 4.º do Despacho Normativo n.º 7-B/2015). 55 Com a Retificação n.º 46/2012, de 17 de setembro.
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As fichas de registo de avaliação do aluno são entregues aos pais ou encarregado de educação pelo professor ou diretor de turma (consoante se trate do 1.º ciclo ou do ensino básico e secundário), no final de cada momento de avaliação (n.º 4 do art. 12.º daquela Lei n.º 51/2012). Também os pais ou encarregados de educação são responsáveis pelo cumprimento dos deveres de frequência, assiduidade e pontualidade dos seus filhos ou educandos (n.º 2 e n.º 5 do art. 13.º do mesmo diploma legal). A justificação de faltas deve ser apresentada pelos pais ou encarregados de educação (n.º 2 do art. 16.º da referida Lei n.º 51/2012, de 5 de setembro). As faltas injustificadas dos alunos menores são comunicadas aos pais ou encarregados de educação (n.º 3 do art. 17.º); sendo atingido metade dos limites das faltas injustificadas, os pais ou encarregado de educação são convocados à escola (n.º 3 do art. 18.º); sendo ultrapassado o limite máximo de faltas injustificadas, pode existir responsabilização dos pais ou encarregados de educação (n.º 3 do art. 19.º, n.º 1 do art. 44.º e n.º 1 do art. 45.º, todos daquela Lei n.º 51/2012). Em caso de incumprimento, ineficácia ou impossibilidade de medidas de recuperação e de integração, são os pais ou encarregados de educação chamados a intervir e colaborar (n.º 1 do art. 21.º do mesmo diploma legal). O cumprimento das medidas corretivas será acompanhado pelos pais ou encarregado de educação caso ocorram fora do espaço escolar (n.º 2 do art. 27.º). Na execução das medidas corretivas e disciplinares sancionatórias deve o diretor de turma ou o professor-tutor articular a sua atuação com os pais ou encarregados de educação (n.º 1 do art. 34.º da Lei n.º 51/ /2012, de 5 de setembro). Estas são algumas das disposições legais com incumbências e responsabilidades em que o legislador se refere «aos pais ou encarregados de educação». O uso da conjunção disjuntiva «ou» parece colocar os pais e encarregados de educação num patamar paralelo, sendo indiferente quem atua. Nem em todo o diploma é empregue o uso desta expressão alternativa. Por exemplo, no n.º 5 do art. 32.º (cuja epígrafe é «Suspensão preventiva do aluno»), é estabelecido que, em caso de suspensão preventiva aplicada, os pais e os encarregados de educação são imediatamente informados (ou seja, aqui opta-se pelo uso da conjunção copulativa «e», que implica adição). Tal até poderia fazer sentido, o legislador pretende acautelar que a informação sobre uma sanção desta natureza seja devidamente comunicada a todos os intervenientes formativos e educativos do menor, quando estes papéis não se reúnam na(s) mesma(s) pessoa(s). Repetimos: tal até faria sentido e seria defensável, não fosse a decisão final do procedimento disciplinar ser notificada «aos pais ou respectivo encarregado de educação»56 (n.os 6 e 7 do art. 33.º daquele diploma legal), bem como a articulação da execução das medidas cor56
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Quando o aluno é menor.
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retivas e disciplinares sancionatórias ser feita «com os pais ou encarregados de educação» (n.º 1 do art. 34.º daquela Lei n.º 51/2012, de 5 de Setembro). As situações em causa são de natureza análoga, isto é, a gravidade subjacente não difere quer se trate da suspensão preventiva ou da decisão final do procedimento disciplinar. Assim, esta discrepância no uso da expressão «e» e «ou» parece mais uma incoerência do que propriamente uma atuação ponderada e intencional por parte do nosso legislador. Por outro lado, parece existir nestas normas uma indiferença entre a figura dos pais e do encarregado de educação, sendo estes tratados como intervenientes indistintos e idênticos. Se assim é, qualquer um destes (pais e encarregado de educação, quando tal papel não recaia sobre um dos progenitores) pode agir neste contexto, não havendo fundamento legal para atribuir relevância autónoma à figura do encarregado de educação. É esse simplismo57 de perspetiva – sem problematizar as consequências de uma atuação desagregada entre estes intervenientes – que torna o entorno legal do encarregado de educação passível de crítica, como tentaremos demonstrar de seguida.
iv) A figura do encarregado de educação e o regime previsto no Código Civil – dificuldades e desarmonias Uma vez exposto o regime legal das responsabilidades parentais e depois de analisada a figura do encarregado de educação (nos diplomas de mais uso entre os práticos), já estaremos em posição de refletir sobre o objeto que motiva este singelo texto. Ou seja, se existe, ou não, alguma conformidade entre o que está previsto no Código Civil (e que orienta a vida prática, no que concerne à regulação das responsabilidades parentais) e o que está regulado nos preceitos legais educativos (que norteiam as decisões dos responsáveis pedagógicos no quotidiano). Pretende-se cruzar estes dois mundos e, através de uma visão integrada, tentar interpretar melhor as questões reais que assolam os tribunais e as escolas. Naturalmente que a visão subjacente a esta reflexão é, na sua essência, jurídica. As responsabilidades parentais são uma figura jurídica guarda-chuva que alicerça, inter alia, a educação do menor. A realidade educacional e formativa de um aluno menor tem de se compaginar com as responsabilidades parentais. Portanto, são os diplomas que desenham os contornos legais do encarregado de educação que se devem conformar com as responsabilidades parentais previstas no Código Civil e não o contrário. 57
Ao invés da simplicidade que seria desejável. 195
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Já se percebeu que é importante, neste contexto, qualificar quais são as questões de particular importância (que exigem um consenso entre os progenitores) e os atos da vida corrente que caberão ao progenitor com quem o menor reside. Somos da opinião que as questões relativas à educação do menor configuram, em regra, questões de particular importância. Assim, só excecionalmente é que um progenitor poderá decidir estas matérias sozinho. A regra será uma integração e interação de ambos na vida escolar do menor. Não ignoramos as dificuldades práticas que daí possam surgir, principalmente nas situações em que existe um fosso conflitual entre as partes. Estas situações (infelizmente, mais frequentes do que raras) não podem ser o mote para tornar uma vertente essencial da vida do menor numa questão monoparental. Tal não se coaduna, desde logo, com o exercício conjunto das responsabilidades parentais que a Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, implementou entre nós. Muitos autores já analisaram as questões de particular importância e as opiniões não são unânimes. Claro que se trata de um conceito indeterminado que terá de ser analisado casuisticamente. Podemos, no entanto, contribuir com meras linhas de força que, se necessário, perante o caso concreto, possam ter de ceder, se tal for ao encontro do superior interesse da criança (princípio norteador de todas as decisões que aos menores respeitam). A não ser que o interesse concreto do menor assim o contrarie, somos da opinião que todas as questões concernentes à educação da criança serão de particular importância. Claro que não somos alheios à dificuldade prática que esta conceção acarreta. Será razoável (e prático) exigir que ambos os pais assinem a ficha de avaliação do filho ou a autorização para a visita de estudo? Compreendemos a complicação inerente a tal realidade. Mas se se tratar de mais uma avaliação negativa que pode levar a uma retenção de ano58 ou uma visita de estudo com algum risco para a integridade física do menor (por exemplo, atendendo a uma condição de saúde específica e debilitante que ele possa ter), tal já merecerá uma ponderação diferente e consubstanciará uma questão de particular importância59. Teremos, deste modo, de encontrar um meio-termo que permita um normal e eficiente funcionamento das instituições de ensino e, concomitantemente, um acompanhamento efetivo por parte de ambos os
58 O próprio legislador parece, quanto à avaliação, perceber a necessidade de extravasar a unidimensionalidade da figura do encarregado de educação. Pois, o n.º 5 do art. 12.º do Estatuto do Aluno e da Ética Escolar (Lei n.º 51/2012, de 5 de setembro) dispõe que, a pedido do interessado, as fichas de registo de avaliação podem ainda ser entregues ao progenitor que não resida com o menor. Se tal se tratasse de uma mera questão da vida corrente, não haveria necessidade de acautelar esta circunstância. Porém, o n.º 4 refere que essas fichas são entregues aos pais ou encarregados de educação. Sendo progenitor, já teria, pelo n.º 4, acesso a essa ficha, sendo irrelevante se reside ou não com o filho. 59 Sobre a dicotomia de atos de particular importância vs. da vida corrente nestas questões educativas, consultar HUGO MANUEL LEITE RODRIGUES, Questões de Particular Importância no Exercício das Responsabilidades Parentais, cit., p. 157.
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progenitores. Tal situação é mais premente quando os pais não vivem em comunhão de vida, mas não só. Relembremos, rapidamente, o exercício das responsabilidades parentais previsto no Código Civil60. Quando os pais vivem em comunhão de vida (porque casados ou unidos de facto), existe uma presunção de acordo apenas no que concerne às questões da vida corrente. Tal presunção já não se estende às situações de particular importância (arts. 1901.º e 1902.º). Quando os progenitores vivem separados, ambos decidem conjuntamente sobre as questões de particular importância e os atos da vida corrente são decididos pelo progenitor com quem o menor se encontra. Quando o menor não se encontre com o progenitor residente, as orientações educativas mais relevantes deste devem ser respeitadas pelo outro (n.º 3 do art. 1906.º). É à luz deste regime de exercício das responsabilidades parentais que devemos interpretar as disposições legais referentes à figura do encarregado de educação. Existem várias situações que merecem alguma reflexão neste contexto. Por exemplo, se poderá só um progenitor ser o encarregado de educação. E, se é só um o encarregado de educação, como pode o outro obter informações sobre o desenvolvimento educativo do seu filho? Poderá o professor ou o diretor de turma recusar informações ao progenitor que não é o encarregado de educação? A quem caberá a escolha da instituição de ensino? A quem caberá a matrícula ou inscrição na instituição de ensino? Poderá o encarregado de educação ser um terceiro e de que forma? Estas são apenas algumas das questões que se colocam frequentemente e para as quais não existe uma resposta inequívoca por parte do legislador. Aliás, como se verá, muitas vezes as dúvidas advêm do próprio legislador quando não prima pela coerência nos regimes jurídicos que consagra, quer no domínio das responsabilidades parentais, quer nos diplomas da área da educação. Comecemos por analisar as questões referidas supra. Um ponto deveras importante é o de saber quem deverá ser o encarregado de educação do aluno menor. Nos termos do Despacho Normativo n.º 7-B/201561, entende-se por encarregado de educação quem tiver menores a residir consigo ou a si confiados por exercício das responsabilidades parentais (subalínea i. da alínea a) do art. 2.º). Ora aqui, desde logo, parece que estamos perante uma cláusula geral. Quem exercer as responsabilidades parentais poderá ser encarregado de educação do menor sobre o qual é responsável. Já na subalínea seguinte se refere que pode ser encarregado de educação quem tiver menores a residir consigo ou ao seu cuidado por decisão judicial (subalínea ii. da alínea a) do
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E já explanado no ponto ii) deste texto. Alínea a) do art. 2.º daquele despacho, já exposto no ponto iii). 197
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mesmo preceito). Assim, parece o legislador querer consagrar uma solução distinta da anterior. Já não se trata de ter as responsabilidades parentais do menor que consigo reside ou que tem ao seu cuidado (como na subalínea i.), mas sim ter o menor a residir consigo ou a si confiado por decisão judicial. Esta disposição já nos parece suscetível de alguma crítica, uma vez que dificilmente um progenitor (ou um terceiro) que tenha um menor consigo residente ou confiado aos seus cuidados, por decisão judicial, não exercerá as responsabilidades parentais, lato sensu, sobre aquele menor. Repare-se que, mesmo nas situações em que o menor reside com um progenitor e o outro, por decisão judicial, é o encarregado de educação, existe aqui um exercício conjunto das responsabilidades parentais. Aliás, a educação escolar é uma das facetas das responsabilidades parentais62, não sendo facilmente destacável destas, como este preceito faz parecer. Se, por decisão judicial, um adulto tem um menor ao seu cuidado, ou consigo residente, e se torna encarregado de educação do mesmo, este está a exercer, ainda que possa ser somente em certa medida, as responsabilidades parentais daquele menor. Será também encarregado de educação quem tiver menores ao seu cuidado pelo exercício de funções em instituições que tenham menores à sua responsabilidade (subalínea iii.). Há aqui uma inerência das funções de tutela associadas a estas pessoas, estando em sintonia com o previsto no art. 1962.º do Código Civil. A subalínea seguinte já nos suscita uma miríade de considerações. Preceitua o legislador, neste mesmo despacho, na subalínea iv. que se entende por encarregado de educação quem tiver menores a residir consigo ou confiados a seu cuidado «Por mera autoridade de facto ou por delegação, devidamente comprovada, por parte de qualquer das entidades referidas nas subalíneas anteriores». Comecemos pela delegação «devidamente comprovada». Isto é, podem ser delegadas as competências de encarregado de educação por quem se encontra nas subalíneas anteriores, ou seja, por quem exerça as responsabilidades parentais (subalínea i.), por quem tenha menores ao seu cuidado por decisão judicial (subalínea ii.) e por quem exerça funções na direção de instituições com menores a cargo (subalínea iii.). Ademais, existem até formulários oficiais para o efeito (com a chancela do Ministério da Educação). Estes formulários não exigem qualquer fundamentação para esta delegação, somente a identificação e assinatura dos progenitores que «cedem» a sua posição a um terceiro que terá de aceitar e assinar. Esta declaração causa estranheza, despoleta dúvidas e provoca alguma estupefação.
Art. 1878.º do Código Civil: «1. Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens». 62
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Primeiro, ambos os progenitores delegam a função de encarregado de educação e assinam o formulário em causa, ou seja, não basta que seja o progenitor que até então exerceu as funções de encarregado de educação a ceder as suas competências, ambos têm de concordar. Não é totalmente descabido de sentido, pois, se estamos a permitir que um qualquer terceiro possa atuar numa esfera essencial da vida do menor, esta delegação consubstanciará, no domínio teórico, uma questão de particular importância sobre a qual ambos os progenitores terão de decidir. Todavia, não nos parece aceitável que se possa, sem mais e sem qualquer fundamento, transferir as responsabilidades decorrentes da figura do encarregado de educação para um qualquer terceiro. Repare-se que esta delegação pode assentar numa mera questão de conveniência dos progenitores e tal não se coadunará, em sentido amplo, com o regime das responsabilidades parentais previsto no Código. Não se ignora que as situações da vida corrente podem ser delegadas num terceiro (n.º 4 do art. 1906.º do Código Civil). Mas delegar, tout court, a função de encarregado de educação parece exceder esse âmbito63. Relembremos apenas algumas das funções do encarregado de educação – previstas na Lei n.º 51/2012, de 5 de setembro – e que analisámos no ponto anterior. Por conseguinte: este é responsável pelo cumprimento da frequência e assiduidade dos educandos (n.º 2 do art. 13.º); deve justificar as faltas por escrito (n.º 2 do art. 16.º); é convocado quando atingido metade do limite de faltas injustificadas (n.º 3 do art. 18.º); é responsabilizado quando o limite de faltas é ultrapassado (n.º 3 do art. 19.º); é parte nos procedimentos disciplinares e na execução das medidas corretivas e disciplinares sancionatórias (designadamente, arts. 27.º, 30.º, 31.º, 32.º, 33.º, 34.º); etc. Também nesta Lei n.º 51/2012, no art. 43.º64, se repete parte do já disposto na alínea a) do art. 2.º do Despacho Normativo n.º 7-B/2015, dispondo, no n.º 4, que, para efeitos daquele Estatuto do Aluno e Ética Escolar (Lei n.º 51/2012, de 5 de setembro), pode ser considerado encarregado de educação quem exerça essa função por mera autoridade de facto ou delegação comprovada (alínea d) do n.º 4 do art. 43.º). Não obstante se considerar que aos pais e encarregados de educação «incumbe uma especial responsabilidade inerente ao seu poder-dever» de dirigir a educação, permite-se uma delegação destas competências para um qualquer terceiro sem nenhuma justificação exigida. Não se pode retorquir dizendo que é uma delegação prevista no Código Civil, por se tratar de um ato da vida corren-
63 Consultar, a este propósito, MARIA CLARA SOTTOMAYOR, Regulação do exercício das responsabilidades parentais nos casos de divórcio, cit., p. 284. 64 Preceito dedicado à responsabilidade dos pais ou encarregados de educação, onde consagra, no n.º 1, que «Aos pais ou encarregados de educação incumbe uma especial responsabilidade, inerente ao seu poder-dever de dirigirem a educação dos seus filhos e educandos no interesse destes e de promoverem ativamente o desenvolvimento físico, intelectual e cívico dos mesmos».
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te. Tal argumento não colhe, pois a responsabilidade disciplinar do menor e a eventual aplicação de medidas corretivas e disciplinares sancionatórias não podem ser consideradas um ato de normalidade na vida de um menor. Mas o legislador apenas exige o conhecimento dos pais ou encarregado de educação. O uso da alternativa significa que o encarregado de educação poderá ser a única figura de autoridade parental a acompanhar uma sinalização disciplinar do educando. Poderá um qualquer terceiro, por mera delegação de competências, assumir esta responsabilidade? Tal será coerente com o regime de corresponsabilização inerente ao poder-dever das responsabilidades parentais? Parece-nos que não. Não nos parece sensato que, assinando um papel, sem qualquer justificação, possam as responsabilidades do encarregado de educação ser transferidas. O acompanhamento da vida escolar do menor é uma questão fundamental na sua vida. Assumir a função de encarregado de educação não decorre da delegação de atos da vida corrente prevista no regime de exercício das responsabilidades parentais. Para os atos da vida corrente, achamos que o legislador teria em mente situações rotineiras, sem qualquer implicação de fundo no desenvolvimento pedagógico-formativo do educando menor. Por exemplo, levar e trazer da escola, supervisionar os trabalhos de casa, auxiliar nos hábitos diários de higiene, providenciar a alimentação, etc. Estas são as tarefas delegáveis no âmbito da vida corrente do menor, não se coadunando com a assunção de um papel de destaque e de comando, como decorre da figura do encarregado de educação. Aliás, se até o progenitor não residente65 não pode contrariar as orientações educativas mais relevantes do progenitor residente 66, para salvaguarda da estabilidade menor, como pode um terceiro assumir, por delegação de competências, toda a responsabilidade educativa do menor? Não se vislumbra coerência desta delegação com o exercício das responsabilidades parentais. A figura do encarregado de educação não é (ou não deve ser) um mero figurante burocrático que assina avisos de pequeno interesse, como por vezes se parece querer reduzir. O encarregado de educação é o interveniente de primeira linha na formação do menor que estabelece o contacto com o estabelecimento de ensino. Se o legislador não permite que um terceiro, sem mais, exerça as responsabilidades parentais de um menor, como pode permitir que tal suceda com o encarregado de educação? Se é o mesmo legislador que estabelece a responsabilização do encarregado de educação, em situações comportamentais graves do educando, como pode tal compatibilizar-se com uma cedência de poderes a um terceiro? Com esta
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Responsável pelas decisões da vida corrente quando se encontra com o menor. No que respeita aos atos da vida corrente.
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possibilidade, é o próprio legislador que reduz a figura de encarregado de educação a uma insignificância, se qualquer um pode exercer esta responsabilidade. Atenção ainda que, nos termos dos preceitos descritos supra, esta delegação de competências pode ser devidamente comprovada (usando o tal formulário unicamente identificativo dos progenitores «cedentes» e do encarregado de educação «cessionário») ou «por mera autoridade de facto». Assim, é ainda permitida que se assuma a responsabilidade de encarregado de educação por «autoridade de facto». Não se percebe como tal, na prática, pode funcionar. Bastará que um terceiro se assuma, perante a comunidade escolar, como encarregado de educação e que não haja oposição de nenhum progenitor? No entanto, relembre-se que esta subalínea iv. tem de ser lida e interpretada em conjunto com os termos do texto da alínea a) do Despacho Normativo n.º 7-B/201567 que lhe dá o mote68. Dispõe o preceito que se entende por «a) encarregado de educação quem tiver menores a residir consigo ou confiados aos seus cuidados: [...] iv. por mera autoridade de facto ou por delegação, devidamente comprovada [...]». Ora, em princípio, ninguém terá um menor confiado ao seu cuidado ou a residir consigo por mera autoridade de facto. Tal, in extremis, até viola o preceito constitucional previsto no n.º 6 do art. 36.º que consagra que os filhos não devem ser separados dos seus pais, exceto quando não cumpram os seus deveres para com eles ou por decisão judicial69/70. Para encerrar esta reflexão sobre a possibilidade de um qualquer terceiro ser encarregado de educação, diremos que tal só será admissível quando o exercício das próprias responsabilidades seja exercido por um terceiro, nos termos dos arts. 1903.º, n.º 2 do art. 1904.º e 1907.º do Código Civil71. Fora destes casos (aqui sim, devidamente
O mesmo vale para a Lei n.º 51/2012, de 5 de setembro, em que a alínea d) tem de ser lida na sequência do que está previsto no n.º 4 do art. 43.º. 68 Remetemos o leitor para o ponto iii) deste texto onde está transcrito na íntegra o preceito em análise. 69 Preceito a que já aludimos anteriormente. 70 Esta consideração também vale para a delegação de competências que tem de ser lida conjuntamente com o corpo do texto da alínea a), ou seja, quem tiver menores ao seu cuidado ou consigo residente por delegação devidamente comprovada. 71 Art. 1903.º, «Impedimento de um ou de ambos os pais»: «1 – Quando um dos pais não puder exercer as responsabilidades parentais por ausência, incapacidade ou outro impedimento decretado pelo tribunal, caberá esse exercício ao outro progenitor ou, no impedimento deste, por decisão judicial, à seguinte ordem preferencial de pessoas: a) Ao cônjuge ou unido de facto de qualquer dos pais; b) A alguém da família de qualquer dos pais. 2 – O disposto no número anterior é igualmente aplicável, com as necessárias adaptações, no caso de a filiação se encontrar estabelecida apenas quanto a um dos pais. Art. 1904.º, «Morte de um dos progenitores»: «[...] 2 – É aplicável, em caso de morte de um dos progenitores, o disposto no n.º 1 do artigo anterior, sem prejuízo de o tribunal dever ter em conta disposição testamentária do progenitor falecido, caso exista, que designe tutor para a criança.». E art. 1907.º do Código Civil cuja epígrafe é o «Exercício das responsabilidades parentais quando o filho é confiado a terceira pessoa»: «1 – Por acordo ou decisão judicial, ou quando se verifique alguma das circunstâncias previstas no artigo 1918.º, o filho pode ser confiado à guarda de terceira pessoa. 2 – Quando o filho seja confiado a terceira pessoa, cabem a esta os poderes e deveres dos pais que forem exigidos pelo adequado desempenho das suas funções. 3 – O tribunal 67
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comprovados), tal não será possível. Ademais, por este regime, um menor pode ter sucessivos encarregados de educação por consecutivas «delegações» de competência. Tal desrespeita o seu superior interesse na estabilidade formativa. Qual a coerência na sua educação se os protagonistas podem estar sempre em potencial mutação? Não raras vezes, este critério de delegação de competências é usado com motivações fraudulentas. Uma vez que um dos critérios de prioridade na matrícula, ou renovação de matrícula, é a área de residência e/ou profissional do encarregado de educação72, é feita esta delegação de competências para um terceiro, que resida e/ou trabalhe na área da escola da preferência dos progenitores, para aí encontrarem um lugar para o seu filho. E, mais tarde73, avocam a si as competências, pedindo a cessação da delegação. Este modus operandi, desrespeitando os princípios norteadores nesta matéria, é uma consequência de uma redação legislativa infeliz. Com efeito, reiteramos que só poderá o encarregado de educação ser um terceiro quando as responsabilidades parentais também sejam exercidas por esse terceiro, nos termos e limites dos arts. 1903.º, n.º 2, 1904.º e 1907.º. Compreendemos as possíveis dificuldades práticas que possam surgir desta posição: a situação de progenitores com horários de trabalho que tornem difícil um acompanhamento escolar do filho e a participação em reuniões escolares, sendo mais fácil delegar tais tarefas num avô ou tio com maior disponibilidade de tempo. Não se ignoram as eventuais complicações inerentes ao que se defende. Todavia, a educação de um menor é um pilar fundamental e essencial na sua formação e ser encarregado de educação pode acarretar uma responsabilização séria em situações de gravidade disciplinar. E tal não se pode coadunar com critérios de mera conveniência. O poder-dever de dirigir a educação assim o exige74. Tal como analisado no ponto ii. do presente texto, o Código Civil, na caracterização que faz do conteúdo das responsabilidades parentais, é claro no papel integrado que atribui aos pais, tratando a educação como um complexo de vertentes que suplanta a instrução. Daí que esta abordagem legal não seja consentânea com uma delegação em tercei-
decide em que termos são exercidas as responsabilidades parentais na parte não prejudicada pelo disposto no número anterior». 72 Nomeadamente, n.º 2 do art. 9.º; art. 10.º e n.º 2 do art. 11.º do Despacho Normativo n.º 7-B/2015. 73 Quando o ano letivo já está em curso e o lugar do aluno está garantido. 74 Os formulários de delegação de competências que por aí pululam não respeitam o Código Civil, devendo ser desatendidos. As normas respeitantes às responsabilidades parentais são normas imperativas, não podem ser afastadas Estes documentos desrespeitam, a nosso ver, normas imperativas sendo, assim, nulos – art. 294.º do Código Civil. «As responsabilidades parentais são indisponíveis, como resulta do art. 1699.º, n.º 1, alínea b), e da conexão necessária que a lei estabelece entre essas responsabilidades o interesse do filho (cf. art. 1878.º, n.º 1). O pai não pode dispor das responsabilidades parentais porque o interesse principal subjacente à outorga legal de tais responsabilidades não lhe pertence. [...] As responsabilidades parentais são intransmissíveis.», JORGE DUARTE PINHEIRO, O Direito da Família Contemporâneo, cit., pp. 313-314. 202
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ros. Aliás, levado ao extremo, poder-se-á até entender que esta delegação é uma forma de renúncia das responsabilidades parentais (ainda que só numa das suas vertentes), o que não é permitido, nos termos do art. 1882.º. A alínea a) do art. 2.º do Despacho Normativo n.º 7-B/2015 tem outras subalíneas que também merecem atenção. A subalínea v. refere que também se entenderá por encarregado de educação o «progenitor com quem o menor fique a residir, em caso de divórcio ou de separação e na falta de acordo dos progenitores»75. Ora, a alínea a), no seu corpo de texto, já refere o critério da residência do menor, sendo um pouco redundante esta redação. Compreende-se, porém, que se está a estabelecer um critério em caso de dissociação parental, decorrente da separação ou divórcio, em que caberá ao progenitor residente esta tarefa de encarregado de educação. Já em caso de residência alternada76, devem os progenitores acordar quem será o encarregado de educação e, na ausência de acordo, decidirá o tribunal (subalínea vi.). Se estas subalíneas v. e vi. não suscitam censura, o mesmo não se dirá da subalínea seguinte. Nos termos da subalínea vii., considera-se encarregado de educação o «pai ou a mãe que, por acordo expresso ou presumido entre ambos, é indicado para exercer essas funções, presumindo-se ainda, até qualquer indicação em contrário, que qualquer ato que pratica relativamente ao percurso escolar do filho é realizado por decisão conjunta do outro progenitor». Existe aqui uma presunção de acordo entre os progenitores, presunção essa relativa, pois cederá perante qualquer indicação que possa levar a crer que não existe essa concordância. Este regime é um pouco distinto do Código Civil, quando nos referimos às questões de particular importância, uma vez que nestas não há presunção de acordo, nem quando os progenitores estão casados, tal como já analisámos (art. 1902.º). Embora se compreenda a necessidade de encontrar um interlocutor entre o menor e a escola, e que seja mais eficiente que tal tarefa recaia sobre só um dos progenitores, não é simples apenas onerar um com essa responsabilidade. Em situações de harmonia parental, o progenitor que seja encarregado de educação acabará por ser um porta-voz daquela equipa parental e terá o cuidado de colocar o outro progenitor a par da evolução do filho de ambos. A questão assume contornos mais complexos quando os progenitores não assumem a postura dialogante que deveriam. Na prática judiciária, são comuns os casos em que um dos progenitores (o que não é encarregado de educa-
75 Na verdade, como já referido, a técnica legislativa é infeliz e lido como está no diploma resultaria exatamente assim: «a) Encarregado de educação – quem tiver menores a residir consigo ou confiados aos seus cuidados: [...] v. o progenitor com quem o menor fique a residir, em caso de divórcio ou de separação e na falta de acordo dos progenitores». Esta crítica vale também para as subalíneas vi. e vii. Enquanto nas primeiras subalíneas o legislador tenta fazer a concordância com o corpo do texto da alínea a), nas restantes não o faz. 76 Situação ainda rara entre nós e sem consagração legal expressa, apesar da abertura no n.º 7 do art. 1906.º. Ver o que a este propósito foi aventado na nota de rodapé n.º 46 do presente texto.
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ção) se queixa de não ter conhecimento nem acesso à vida escolar do filho porque o outro progenitor se nega a facultar essas informações e a escola também se escusa, invocando que só é obrigada a informar o encarregado de educação77. Mesmo que, por questões de eficiência, só um progenitor assuma formalmente o papel de encarregado de educação, sendo as responsabilidades parentais exercidas em conjunto78, não pode a escola recusar informar o progenitor não encarregado, não o receber em reuniões com o professor titular ou diretor de turma, ou negar o acesso a documentos de registo de avaliação. Compreende-se a apreensão que tal possa causar, uma vez que, no limite, se possa duplicar a comunicação e tal acarretar oneração para a comunidade escolar. Todavia, e mais uma vez, os critérios de conveniência não podem pautar estas situações. Outra questão polémica é a que se refere à inscrição no estabelecimento de ensino. Se entendermos que esta problemática se trata de uma questão de particular importância, ambos os pais têm de estar de acordo quanto à mesma. Se, por outro lado, considerarmos que não assume essa configuração e que é uma escolha da vida corrente do menor, apenas um dos progenitores terá de tomar essa decisão. Alguns autores diferenciam sobre se esta inscrição se refere a um estabelecimento de ensino público ou privado, atendendo à natureza deste último, que implica um maior encargo económico para os progenitores e que, por isso, devem os mesmos acordar naquela inscrição79. Compreende-se o argumento usado. Porém, como já referido, as meras razões utilitaristas, ou de conveniência, não devem reger estas decisões. Não obstante serem fatores a considerar, não defendemos o caráter decisivo dos mesmos. Não nos parece que a tónica distintiva deva ser o caráter público ou privado da escola. Até porque, em certas situações, tal poderia levar a algumas injustiças e imparidades. Imagine-se o seguinte exemplo: a família A. é uma família de classe média, cuja inscrição do seu filho menor num estabelecimento de ensino privado acarretaria uma disposição significativa de património, atendendo ao seu estilo de vida e, segundo essa O que não é propriamente verdade, uma vez que a maioria dos preceitos, como vimos, se refere aos pais ou encarregados de educação. 78 E mesmo que não sejam exercidas em conjunto. Veja-se a este propósito o n.º 6 do art. 1906.º: «Ao progenitor que não exerça, no todo ou em parte, as responsabilidades parentais assiste o direito de ser informado sobre o modo do seu exercício, designadamente sobre a educação e as condições de vida do filho». 79 «Definir se o menor deve ou não fazer os seus estudos num estabelecimento de ensino público ou particular, dada a relevância que tal decisão tem para a sua vida, constitui, em nosso entender, questão de particular importância. [...] Nas situações em que os progenitores custeiam, em igual proporção, o montante referente ao pagamento do estabelecimento de ensino, mostra-se essencial definir que a escolha de tal estabelecimento deve ser feita por ambos, sob pena de, à semelhança do atrás expendido quanto às despesas de saúde, o progenitor que não tem a guarda do menor, se ver confrontado com a situação de não ter capacidade económica para custear o estabelecimento de ensino escolhido pelo progenitor com quem o menor reside.», HELENA GOMES DE MELO ET. AL., Poder paternal e responsabilidades parentais, 2.ª ed., Quid Juris, 2010, p. 146. Para uma visão ampla desta temática, consultar HUGO MANUEL LEITE RODRIGUES, Questões de Particular Importância no Exercício das Responsabilidades Parentais, cit., pp. 153 e ss. 77
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tese, ambos os pais deveriam acordar na escolha da instituição de ensino, uma vez que se trata de uma escola privada; ao mesmo tempo, a família B., família de classe económica alta, cuja mensalidade na instituição de ensino privado não refletiria qualquer oneração ou esforço especial (atendendo aos seus avultados rendimentos), também teria de estar de acordo caso pretendesse inscrever o seu filho menor numa instituição escolar privada – uma vez que a instituição é privada e, segundo aquela teoria, tal tornar-se-ia uma questão de particular importância; por último, a família C., família que pretende que os seus filhos ingressem na escola pública (sendo aqui desnecessário aludir aos seus hipotéticos rendimentos), mas discorda quanto à escola propriamente dita (por hipótese, um progenitor prefere a escola do domicílio do menor e o outro a escola do seu domicílio profissional)80 . Esta última família – que discorda quanto ao estabelecimento de ensino em concreto, mas concorda quanto à frequência do seu filho numa escola pública –, pelo argumento usado por estes autores, estará em desigualdade com a família B, uma vez que aqui um progenitor poderá decidir sozinho. Não compreendemos por que distinguir estes últimos dois casos, uma vez que, para ambos, não se trata do fator económico mas sim de outros eventuais critérios (como a qualidade do corpo docente, o método de ensino, a taxa de absentismo dos docentes, o nível socioeconómico médio dos alunos, a quantidade de funcionários não-docentes, as infraestruturas, os índices de indisciplina verificados, a qualidade de serviços de bar e cantina, a oferta de cursos e/ou disciplinas de opção, existência de uma boa rede de transportes, etc.). Nessa medida, para evitar estas disparidades desprovidas de justificação legal, entendemos que a inscrição no estabelecimento de ensino deverá ser sempre encarada como uma questão de particular importância, a que se exige o acordo entre os progenitores81/82. Agora, importa articular esta conceção com a prática nas escolas. Como proceder quando apenas um dos progenitores se dirige à escola para inscrever ou matricular o seu filho? Aqui será indiferente se estamos perante pais em comunhão de vida ou em dissociação familiar. Pois, tal como já referido, nos termos do disposto no art. 1902.º (preceito que se refere aos atos praticados por um dos pais, no exercício das responsabilidades parentais, na constância do casamento), não há presunção de acordo quanto se
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Como referido no ponto iii), ambos são critérios legais de prioridade na escolha da instituição de
ensino. Não distinguindo também entre estabelecimento público ou privado, mas entendendo a que se trata de um ato da vida corrente: MARIA CLARA SOTTOMAYOR, Regulação do exercício das responsabilidades parentais nos casos de divórcio, cit., p. 277. 82 Concordamos, portanto, com HUGO MANUEL LEITE RODRIGUES, Questões de Particular Importância no Exercício das Responsabilidades Parentais, cit., p. 156. 81
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trate de ato de particular importância; e, nos termos do n.º 1 do art. 1906.º (que concerne ao exercício das responsabilidades parentais em caso de divórcio, separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade e anulação de casamento e, ainda, em caso de rutura da união de facto83), os pais exercem em comum as questões de particular importância. De todo o modo, vejamos estas duas realidades parentais separadamente. Quando os pais são casados, ou vivem em união de facto, exige-se o consentimento de ambos progenitores, se se tratar de ato de particular importância (art. 1901.º, n.º 1 do art. 1902.º e n.º 1 do art. 1911.º). Para estes progenitores em comunhão de vida, só existe presunção de acordo quando se trate de um ato não considerado de particular importância, pois, se o for, esta presunção já não funciona. O mesmo vale para as situações em que se exige expressamente o consentimento de ambos os progenitores (n.º 1 do art. 1902.º). A falta de acordo não é oponível a terceiro de boa-fé (parte final daquele n.º 1 do art. 1902.º). Aqui subjaz alguma da confusão deste artigo84. A redação deveria ser mais clara neste n.º 1, especificando logo que a falta de acordo não é oponível a terceiro apenas quando se trate de ato que possa presumir o acordo (ou seja, nas situações em que a lei não exige expressamente o acordo ou casos que não integrem atos de particular importância). Pois é isto que resulta do n.º 2, quando se refere que o terceiro deve recusar intervir no ato praticado por um dos pais quando não seja de presumir o acordo do outro ou quando conheça a oposição deste85. Se estivermos perante progenitores dissociados (por divórcio, separação, rutura de união de facto, etc.), a regra86 é que a as responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância «são exercidas em comum por ambos os progenitores nos termos que vigoravam na constância do matrimónio [...]», n.º 1 do art. 1906.º87. Isto é, nos termos do que foi referido supra, aplicando-se supletivamente os arts. 1901.º e 1902.º, por força da remissão do n.º 1 do art. 1906.º.
Neste caso, por força do n.º 2 do art. 1911.º. «O art. 1902.º cuida ainda, de modo especial, da posição do terceiro que contrata apenas com um dos cônjuges, no exercício do poder paternal. Fá-lo, porém, em termos bastante equívocos.», FERNANDO ANDRADE PIRES DE LIMA e JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, cit., p. 394. 85 «O que significa que o terceiro não deve intervir no acto praticado em nome do menor, sempre que se trate de acto de particular importância. De contrário, parece que agirá de má fé, pese embora a especial dificuldade de saber quando é que o acto reveste ou não particular importância, aos olhos da lei. [...] Oponível a terceiro será já a falta de acordo entre os cônjuges quando a presunção de acordo não funcione, nomeadamente em todos os casos de particular importância.», FERNANDO ANDRADE PIRES DE LIMA e JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, cit., p. 394. 86 Havendo, desde logo, a exceção prevista no n.º 2 do mesmo art. 1906.º. 87 Em casos de urgência manifesta, qualquer um dos progenitores pode agir sozinho, devendo informar o outro logo que possível (parte final do n.º 1 do art. 1906.º). 83 84
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Nestes termos, entendendo-se, como defendemos, que a inscrição na escola é um ato de particular importância (e, por isso, em que não há presunção de acordo), deve ser exigido a concordância expressa e inequívoca de ambos os progenitores (sendo indiferente se são casados, divorciados, separados, unidos de facto, etc.). Este acordo pode ser prestado pela presença física de ambos ou, na falta disso, de uma declaração assinada por aquele que não esteja presente88/89. O consentimento não reveste forma especial90, vigorando aqui o princípio da liberdade de forma (art. 219.º)91. Nas situações em que as responsabilidades parentais estão a cargo de um terceiro (designadamente, por decisão judicial ou em virtude do menor estar institucionalizado), será este a quem caberá decidir, sendo, também e por inerência, o encarregado de educação.
v) Reflexão final O presente texto surgiu com o intuito de explorar um pouco melhor a realidade inerente ao encarregado de educação, enquanto figura de destaque no quotidiano escolar, e, ao mesmo tempo, perceber a sua concordância face ao regime das responsabilidades parentais previsto no Código Civil. Durante algum tempo, fomos percebendo certas dificuldades, pelos práticos da vida escolar, com questões que se impunham no dia a dia, muitas delas decorrentes de situações de dissociação familiar (divórcio, por exemplo) e consequente conflito parental. Perante estas conjunturas, cada vez mais comuns, a atuação não é uniforme, o que acarreta alguma ambiguidade e dubiedade para pais, alunos, professores e diretores. Tal não se coaduna com as exigências de certeza e segurança inerentes à ordem jurídica.
88 Por exemplo, parece-nos que bastará que aquele que não possa comparecer deixe o boletim de matrícula, ou de renovação de matrícula, assinado. 89 Curiosamente, as minutas de delegações de competências (que já abordámos criticamente neste texto), têm espaço designado para a identificação e assinatura de ambos os progenitores. Não se percebendo por que estes formulários oficiais (que, a nosso ver, devem ser desatendidos, dada a sua dúbia legalidade) exigem a assinatura de ambos os progenitores e a inscrição ou matrícula já possa ser levada a cabo só por um. 90 Confrontar, quanto à exigência de forma, HUGO MANUEL LEITE RODRIGUES, Questões de Particular Importância no Exercício das Responsabilidades Parentais, cit., p. 89. 91 Porém, não podendo estar presente o outro progenitor, pode ser escrito. Talvez não baste o consentimento tácito quando só um atua, pois tal poderá coincidir com a presunção de acordo que, como já vimos, não é permitida.
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Com esta preocupação em mente, enveredámos pelos diplomas legais que são usados pelas nossas escolas (e desconhecidos para muitos juristas). Percebemos, nesta nossa jornada, que há alguma desagregação entre as normas que regem os nossos tribunais (no âmbito das responsabilidades parentais) e aquelas que operam no meio escolar. Através da nossa apreciação crítica, esperamos dar um singelo contributo para uma visão integrada.
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Bibliografia citada COELHO, Pereira e OLIVEIRA, Guilherme de, Curso de Direito da Família, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2008 DIAS, Cristina A., «A criança como sujeito de direitos e o poder de correcção», in Julgar, n.º 4, 2008 _____, Uma análise do novo regime jurídico do divórcio (Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro), 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2009 DIEZ-PICAZO, Luis, Familia y Derecho, Madrid, Civitas, 1984 FIALHO, António José, Guia Prático do Divórcio e das Responsabilidades Parentais, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 2012, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/GuiaDivorcioRespParent_v102.pdf LIMA, Fernando Andrade Pires de e VARELA, João de Matos Antunes, Código Civil Anotado, vol. V, Coimbra, Coimbra Editora, 1995 MALAURIE, Philippe e FULCHIRON, Hugues, La Famille, Paris, Defrénois, 2004 MARTINS, Rosa, Menoridade, (In)Capacidade e Cuidado Parental, Coimbra, Coimbra Editora, 2008 MELO, Helena Gomes de, et. al., Poder paternal e responsabilidades parentais, 2.ª ed., Quid Juris, 2010 OLIVEIRA, Guilherme de, «A Nova Lei do Divórcio», in Revista Lex Familiae, Ano 7, n.º 13, 2010, Coimbra, Coimbra Editora PINHEIRO, Jorge Duarte, O Direito da Família Contemporâneo, 3.ª ed., Lisboa, AAFDL, 2011
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RODRIGUES, HUGO MANUEL LEITE, Questões de Particular Importância no Exercício das Responsabilidades Parentais, Centro de Direito da Família, n.º 22, Coimbra, Coimbra Editora, 2011 SOTTOMAYOR, Maria Clara, «Exercício conjunto das responsabilidades parentais: igualdade ou retorno ao patriarcado» in E foram felizes para sempre...? Uma análise crítica do novo regime jurídico do divórcio (coord. M.ª CLARA SOTTOMAYOR e M.ª TERESA FÉRIA DE ALMEIDA), Coimbra, Coimbra Editora/Wolters Kluwer, 2010 _____, «Uma análise crítica do novo regime jurídico do divórcio» in E foram felizes para sempre...? Uma análise crítica do novo regime jurídico do divórcio (coord. M.ª CLARA SOTTOMAYOR e M.ª TERESA FÉRIA DE ALMEIDA), Coimbra, Coimbra Editora/ /Wolters Kluwer, 2010 _____, Exercício do Poder Paternal (relativamente à pessoa do filho após o divórcio ou a separação de pessoas e bens), 2.ª ed., Porto, Publicações Universidade Católica, 2003 _____, Regulação do exercício das responsabilidades parentais nos casos de divórcio, 5.ª ed., revista, aumentada e atualizada, Almedina, 2011 _____, Regulação do Exercício do Poder Paternal nos casos de divórcio, reimp. da 4.ª ed., revista, aumentada e atualizada, Almedina, 2004
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Breves considerações sobre os deveres pré-contratuais de informação na Diretiva do Crédito Hipotecário Sónia Moreira*
Resumo: O presente texto, após um enquadramento geral sobre as razões que levaram o legislador da União Europeia a criar a Diretiva do Crédito Hipotecário (Diretiva 2014/17/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de fevereiro de 2014) e de uma breve referência aos seus traços gerais, visa analisar sumariamente os deveres pré-contratuais de informação nela previstos, cuja função é proteger o consumidor/mutuário, tentando suprir a sua iliteracia financeira, ao mesmo tempo que tem em vista assegurar a coerência das legislações dos diferentes Estados-Membros da União e a livre circulação de serviços financeiros. Palavras-chave: Deveres pré-contratuais de informação – Diretiva do Crédito Hipotecário
Abstract: The present text, after a general view about the reasons that took the UE legislator to create the Directive on credit agreements for consumers relating to residential immovable property (Directive 2014/17/EU of the European Parliament and of the Council of 4 February 2014) and a brief reference to its general topics, intents to summarily analyse the precontractual duties of disclosure established in it, whose function is to protect the consumer/borrower by attempting to compensate his financial illiteracy, and at the same time ensure the coherence of the legislation in the different States of the UE and the free circulation of financial services. Keywords: Precontractual duties to disclosure – Mortgage Credit Directive 2014/17/EU
Sumário: 1. Enquadramento geral; 2. Traços gerais da Diretiva do Crédito Hipotecário; 3. Os deveres pré-contratuais de informação consagrados na Diretiva; 3.2. Informações na comunicação comercial e na publicidade; 3.2. Informações gerais; 3.3. Informação pré-contratual; 3.4. Informação relativa aos intermediários de crédito e aos representantes nomeados; 4. Conclusão
* Professora Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho.
Sónia Moreira
1. Enquadramento geral Como sabemos, a atual crise financeira surgiu em grande medida associada à quebra da “bolha imobiliária”. Durante um lapso de tempo considerável, o crédito à habitação foi concedido por diversas instituições sem que estas tivessem acautelado devidamente a concessão do seu crédito, nomeadamente, verificando a solvabilidade dos mutuários de forma rigorosa; os mutuários foram, por sua vez, incentivados a contrair empréstimos para aquisição de habitação sem conhecer devidamente os produtos a que se vinculavam, ou, pelo menos, sem avaliar devidamente os riscos a que se expunham. O Considerando 3 da Diretiva 2014/17/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos de crédito aos consumidores para imóveis de habitação – doravante designada por Diretiva do Crédito Hipotecário e que aqui nos propomos brevemente analisar – refere precisamente “o comportamento irresponsável de alguns participantes no mercado” e o facto de este comportamento poder “minar os alicerces do sistema financeiro, provocando desconfiança entre todas as partes, em especial nos consumidores, com consequências sociais e económicas potencialmente graves”1. Assim é e assim foi, como sabemos, verificada a situação difícil de muitas famílias, que se viram a braços com a impossibilidade de cumprir as obrigações decorrentes dos seus mútuos bancários, tendo de entregar a sua casa de habitação para venda coerciva, a fim de liquidar a dívida contraída2. Este fenómeno não é exclusivo de Portugal e nem sequer da União Europeia (UE), mas tem nesta um peso significativo. Na verdade, o Livro Verde da Comissão Europeia sobre o crédito hipotecário na União, de 20053, refere que “a Comissão está plenamente
Esta Diretiva encontra-se publicada no Jornal Oficial da União Europeia de 28.02.2014, disponível para consulta em http://eur-lex.europa.eu/homepage.html. 2 O legislador português, em resposta a estas situações, fez sair uma série de diplomas que visam promover a prevenção de situações de incumprimento de créditos (nomeadamente através da determinação da criação, por cada instituição de crédito, de um Plano de Ação para o Risco de Incumprimento – PARI) e a regularização extrajudicial de situações de incumprimento (definindo um Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento – PERSI), nos termos do Decreto-Lei n.º 227/ /2012, de 25 de outubro, bem como um regime extraordinário de proteção dos devedores de crédito à habitação em situação económica muito difícil, nos termos da Lei n.º 58/2012, de 9 de novembro. Todos estes diplomas se encontram disponíveis para consulta no Portal do Cliente Bancário do Banco de Portugal (www.clientebancariobportugal.pt), no Portal Todos Contam (www.todoscontam.pt) e no Portal do Consumidor da Direção-Geral do Consumidor (www.consumidor.pt). Para uma síntese dos principais direitos e deveres dos clientes bancários, incluindo uma compilação desta legislação, v. BANCO DE PORTUGAL, Prevenção e Gestão do Incumprimento de Contratos de Crédito Celebrados com Clientes Bancários Particulares, Lisboa, 2013, disponível em www.cliente bancariobportugal.pt. 3 O Livro Verde da Comissão das Comunidades Europeias sobre o crédito hipotecário na União Europeia foi uma das ferramentas utilizadas pela Comissão para avaliar a necessidade de intervenção nos mercados de crédito hipotecário à habitação no espaço da União Europeia, nomeadamente com vista a um reforço da integração dos serviços financeiros a nível da UE. Cfr. COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS, 1
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ciente da importância e do impacto da concessão de empréstimos hipotecários na economia da UE”4: em primeiro lugar, a aquisição de um imóvel para habitação é “o compromisso financeiro mais significativo de todos os incorridos pela maioria dos agregados familiares da UE”; em segundo, existe uma relação muito estreita entre a economia e o crédito hipotecário, “nomeadamente em mercados hipotecários flexíveis, uma vez que uma ligeira alteração das taxas de juro pode ter um efeito significativo nos orçamentos das famílias e a nível do seu poder de compra. Tal pode ter um impacto importante sobre os devedores, com potenciais repercussões, positivas ou negativas, sobre o nível das suas despesas e dos seus activos”5. O Livro Branco sobre a integração dos mercados de crédito hipotecário da UE, que se lhe seguiu em 2007, considerou que, atendendo a que os saldos em dívida dos créditos hipotecários rondavam já os 47% do Produto Interno Bruto da UE6, era fundamental a integração do mercado do crédito hipotecário para um funcionamento mais eficaz do sistema financeiro e para a economia da UE7, apontando orientações políticas neste sentido. No culminar deste processo, dando conta de que existem diferenças substanciais no regime do crédito hipotecário nos diversos Estados-Membros da União, diferenças essas que criam obstáculos à livre circulação de serviços financeiros8 e que, portanto, é necessário eliminar, encontramos a presente Diretiva sobre o crédito hipotecário9.
2. Traços gerais da Diretiva do Crédito Hipotecário A Diretiva em análise visa criar um enquadramento regulamentar na área do crédito hipotecário, com vista ao desenvolvimento de “um mercado interno [...] com um elevado nível de proteção dos consumidores na área dos contratos de crédito [para aquisição] de imóveis”, onde os consumidores possam confiar na atuação responsável
Livro Verde – O crédito hipotecário na UE, Bruxelas, 19.07.2005, p. 3, disponível para consulta e download em http://eur-lex.europa.eu. 4 Ibidem. 5 Idem, p. 5. 6 Sendo que em 2008 já se encontrava próximo dos 50%. V. PEDRO AZEREDO DUARTE, «Crédito para habitação», disponível em http://www.mirandalawfirm.com/uploadedfiles/73/31/0003173.pdf, consultado em 26.01.2015. 7 Cfr. COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS, Livro Branco – sobre a integração dos mercados de crédito hipotecário da EU, Bruxelas, 18.12.2007, p. 2, disponível para consulta e download em http://eur-lex.europa.eu. 8 Cfr. Considerando 2 da Diretiva do Crédito Hipotecário. 9 No sentido de que a Diretiva em análise “nasce do propósito de criação de um mercado único de crédito hipotecário”, v. VERÓNICA FERNÁNDEZ, A Nova Diretiva Europeia sobre Crédito Hipotecário, p. 1, disponível para consulta em http://www.servulo.com/xms/files/publicacoes/Updates_2014/Update_FinGov_VF_A_ nova_diretiva_europeia_sobre_credito_hipotecario_19_05_2014.pdf (consultado em 27.01.2015, às 15:24h). 213
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das entidades intervenientes na concessão do crédito10. Assim, o seu âmbito de aplicação, nos termos do art. 3.º, são os contratos de crédito garantidos por hipoteca (ou garantia semelhante) sobre imóveis de habitação e contratos de crédito cuja finalidade seja financiar a aquisição ou a manutenção de direitos de propriedade sobre terrenos ou edifícios já existentes ou projetados11 celebrados com consumidores12. A proteção dos consumidores passa, necessariamente, pelo fornecimento de adequada informação contratual e pré-contratual, fidedigna, de forma a suprir a iliteracia financeira do mutuário médio 13 . Assim, as normas relativas à informação pré-contratual serão “objeto de harmonização máxima” (nomeadamente, através da adoção de uma ficha de informação normalizada europeia – FINE), bem como as normas relativas ao cálculo da Taxa Anual Efetiva Global (TAEG)14. Para garantir a coerência no seio da legislação da União e, como tal, a segurança jurídica, a Diretiva remete para as definições essenciais e para os conceitos-chave já utilizados em sede da Diretiva 2008/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008, relativa a contratos de crédito aos consumidores, instando os Estados-Membros a proceder à respetiva transposição, utilizando a mesma terminologia15. Apesar disso, a Diretiva não deixa de afirmar que é importante ter em conta as especificidades dos contratos de crédito para aquisição de imóveis relativamente aos contratos de crédito ao consumo em geral (e mesmo relativamente a outros serviços Cfr. Considerando 5 da Diretiva. Portanto, aplica-se “aos créditos garantidos por bens imóveis, independentemente da finalidade do crédito, aos contratos de refinanciamento e a outros contratos de crédito cuja finalidade seja permitir que um proprietário ou comproprietário mantenha direitos de propriedade sobre edifício ou terreno, e aos créditos que sejam utilizados para aquisição de um imóvel”, bem como “aos créditos garantidos para realização de obras em imóveis de habitação”. Cfr. Considerando 15 da Diretiva. O n.º 2 do art. 3.º da Diretiva exclui vários outros contratos do seu âmbito de aplicação, devido às suas especificidades. ISABEL MENÉRES CAMPOS explica que se trata de contratos que não correspondem ao tradicionalmente chamado “crédito à habitação”; acrescenta, ainda, que os contratos de crédito não garantidos por hipoteca para realização de obras, ainda que superiores a 75 000 EUR, caberão já na alçada da Diretiva 2008/48/CE, relativa ao crédito ao consumo. ISABEL MENÉRES CAMPOS, «Primeiras notas sobre a nova directiva do crédito à habitação», in Manual de Direito da União Europeia, ainda no prelo. 12 Como sendo “as pessoas singulares que atuam fora do âmbito da sua atividade comercial, empresarial ou profissional”, nos termos do Considerando 12; o Considerando 14, apesar de referir que os Estados-Membros apenas são obrigados a transpor a Diretiva relativamente a contratos celebrados com consumidores, permite-lhes aplicá-la também a outros domínios. 13 Ainda assim, há autores que entendem que a mera colocação de informação à disposição do consumidor não é suficiente para o impedir de tomar más decisões no que toca à aquisição de produtos financeiros e que defendem que a legislação europeia sobre crédito ao consumo, tal como está concebida, não é suficiente para proteger o consumidor que, em regra, sofre de iliteracia financeira. Sobre estas questões V. VANESSA MAK/ JURGEN BRASPENNING, «Errare humanum est: Financial Literacy in European Consumer Credit Law», in J Consum Policy, n.º 35, 2012, pp. 307 a 332 (artigo publicado em regime de acesso livre em Springerlink.com). 14 Por esta via, a Diretiva visa criar um verdadeiro mercado interno com um nível elevado de proteção dos consumidores no âmbito do crédito hipotecário. Cfr. Considerando 7 e Considerando 49. 15 Cfr. Considerando 19. 10 11
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financeiros prestados a consumidores e regidos pela Diretiva 2002/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de setembro de 200216). Assim, atendendo à importância do compromisso financeiro assumido pelo mutuário de um crédito hipotecário, entende que não será possível a comunicação de informação pré-contratual após a celebração do contrato, ao contrário do que sucede na Diretiva 2002/65/CE; o material publicitário e a informação pré-contratual personalizada deverão incluir advertências de risco específicas e adequadas17, verificando-se, ainda, um reforço das informações a prestar ao mutuário, como iremos explorar de seguida. A Diretiva regulamenta, também, uma série de deveres a cargo dos intervenientes na concessão de crédito, nomeadamente no que toca à avaliação da solvabilidade dos mutuários. Assim, nos termos do art. 18.º, n.º 5, alínea a), da Diretiva, o mutuante só poderá disponibilizar o crédito ao consumidor se o resultado da avaliação da sua solvabilidade indicar que é provável que consiga cumprir as obrigações decorrentes do contrato de crédito a celebrar. Relevante para a concessão do crédito será, então, não só o valor do imóvel hipotecado como garantia de pagamento da dívida contraída, como também a capacidade do devedor para, efetivamente, proceder ao cumprimento das obrigações que assumiu18. Ainda que o valor do imóvel seja superior ao da dívida, tal não deverá ser suficiente para a concessão do crédito, salvo se se tratar de um crédito para construção ou realização de obras no imóvel (cfr. art. 18.º, n.º 3). Além disso, para garantir que os funcionários da instituição de crédito não caiam na tentação de celebrar contratos de crédito sem a devida consideração da solvabilidade do mutuário, o art. 7.º da Diretiva impõe aos Estados-Membros que assegurem que as políticas de remuneração do pessoal responsável pela avaliação de solvabilidade não ponham em causa os seus deveres de atuar de forma honesta, leal, transparente e profissional, adotando medidas para evitar conflitos de interesse, como, por exemplo, a proibição da remuneração destes funcionários através do recurso a comissões por cada contrato de crédito celebrado 19 . Uma avaliação da solvabilidade positiva não implica a obrigação do
16 Embora assuma que a presente Diretiva do Crédito Hipotecário vem complementar a Diretiva 2002/65/CE. Cfr. Considerando 21. 17 Cfr. Considerando 22. 18 Sendo certo que, para se proceder à avaliação da capacidade e propensão do consumidor para reembolsar o crédito, deverá ter-se em conta, nomeadamente, outras despesas regulares, dívidas, outros compromissos financeiros, rendimentos, poupanças e ativos. Cfr. Considerando 55. 19 VERÓNICA FERNÁNDEZ entende que, em Portugal, esta possibilidade só será de aplicar aos casos em que o profissional em causa não responda pessoalmente pela má avaliação que fez do risco inerente à celebração de um contrato de crédito; nos casos em que assim for, o requisito da Diretiva já estará cumprido, pois o nosso Estado já terá assegurado uma medida destinada a evitar conflitos de interesse, evitando a assunção de riscos para além daqueles que a instituição em causa poderá tolerar. VERÓNICA FERNÁNDEZ, A Nova Diretiva Europeia sobre Crédito Hipotecário, cit., p. 4.
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mutuante de conceder o crédito 20; por outro lado, também “não deverá implicar a transferência para o mutuante da responsabilidade pelo subsequente incumprimento por parte do consumidor das suas obrigações decorrentes do contrato de crédito”21. Outra questão importante é a da avaliação dos imóveis que servirão de garantia ao crédito. A Diretiva determina, no seu art. 19.º, que os Estados-Membros deverão assegurar o desenvolvimento de normas fidedignas, exigindo que os avaliadores internos e externos tenham competência profissional e sejam independentes em relação ao processo de negociação e contratação de crédito, de forma a elaborarem avaliações imparciais e objetivas. Nos termos do art. 12.º, n.º 1, a Diretiva determina também que os Estados-Membros proibirão as vendas associadas obrigatórias, embora possam prever uma série de exceções (art. 12.º, n.º 2), como a possibilidade de os mutuantes exigirem ao consumidor, um membro da sua família ou alguém que lhe seja próximo, que abra ou mantenha uma conta de pagamento ou de poupança para que possa proceder ao reembolso do capital do crédito e dos seus juros ou para constituir uma garantia suplementar para o mutuante, em caso de incumprimento22. Os Estados-Membros podem, ainda, autorizar vendas associadas obrigatórias, caso o mutuante consiga demonstrar à sua autoridade competente que os produtos propostos na venda associada obrigatória não são disponibilizados separadamente e resultam num claro benefício para os consumidores, se se tiver devidamente em conta a disponibilidade e os preços dos produtos em causa existentes no mercado (art. 12.º, n.º 3). Quanto às apólices de seguro, os Estados-Membros podem autorizar que os mutuantes as exijam aos consumidores, mas aqueles terão
Cfr. Considerando 57. Considerando 56. ISABEL MENÉRES CAMPOS refere este como “um ponto importante, considerando a ideia que, nos últimos tempos, se tem tentado passar de que os bancos deveriam ser responsabilizados pelo incumprimento dos mutuários, o que naturalmente contraria todas as regras e princípios em matéria de cumprimento e incumprimento das obrigações vigentes no nosso país”. ISABEL MENÉRES CAMPOS, «Primeiras notas sobre a nova directiva do crédito à habitação», cit. Relativamente ao problema do incumprimento das obrigações assumidas pelo mutuário, v. ainda, por exemplo, ISABEL MENÉRES CAMPOS, «Comentário à (muito falada) sentença do Tribunal Judicial de Portalegre de 4 de Janeiro de 2012», in Cadernos de Direito Privado, n.º 38, 2012, pp. 3 a 13; MAFALDA MIRANDA BARBOSA/DIOGO DUARTE DE CAMPOS, «A Decisão do Tribunal de Portalegre, 4 de Janeiro de 2012: Breve Anotação», in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXXVIII, Tomo I, 2012, pp. 379 e ss.; CARLA INÊS BRÁS CÂMARA, «A aquisição da propriedade do bem hipotecado pelo credor e a questão da satisfação (integral ou parcial) do crédito», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, pp. 645 e ss. 22 As outras exceções são as seguintes: “[a]dquira ou mantenha um produto de investimento ou um produto de poupança-reforma de cariz privado que, tendo o objetivo principal de garantir um rendimento na reforma, sirva também para constituir uma garantia suplementar para o mutuante em caso de incumprimento, para reembolsar o capital do crédito, pagar os juros do crédito ou para juntar recursos a fim de obter o crédito; [...] [c]elebre um contrato de crédito autónomo conjuntamente com um contrato de crédito de investimento partilhado (shared equity credit agreement) a fim de obter o crédito”. 20 21
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de aceitar as apólices de seguros que os consumidores contratem com terceiros, desde que estas tenham um nível de garantia equivalente ao da apólice proposta pelo mutuante (art. 12.º, n.º 423). Para terminar esta breve referência à Diretiva em geral, é de destacar, ainda, a regulamentação da figura do chamado “intermediário de crédito”. Trata-se de uma figura que não age na qualidade de mutuante ou notário e que vem, mediante remuneração, propor, prestar assistência ou mesmo celebrar contratos de crédito em nome do mutuante (art. 4.º, n.º 5). Esta figura não se encontra ainda regulamentada em Portugal (como, aliás, sucede em vários Estados-Membros), pelo que, neste ponto, a transposição da Diretiva trará novidades ao nosso ordenamento jurídico, nomeadamente criando um quadro legislativo que venha estabelecer critérios adequados para o exercício desta atividade profissional (designadamente a nível das suas qualificações e experiência profissional24), exigindo que estes intermediários sejam autorizados pelas entidades competentes a exercer a sua atividade profissional e que esta seja segurada relativamente a danos causados por negligência (arts. 29.º e ss. da Diretiva).
3. Os deveres pré-contratuais de informação consagrados na Diretiva A presente Diretiva dispõe, no seu Capítulo 4, sobre informações e práticas anteriores à celebração de contratos de crédito. 3.1. Informações na comunicação comercial e na publicidade O art. 10.º começa por dispor que os Estados-Membros exijam que “quaisquer comunicações comerciais de publicidade sobre contratos de crédito sejam leais, claras e não enganosas”, proibindo “em especial, qualquer formulação que possa criar falsas expectativas nos consumidores quanto à disponibilização ou ao custo de um crédito”. Esta norma geral, aplicável à comunicação comercial e à publicidade, não é novidade no nosso ordenamento jurídico, uma vez que os arts. 10.º e 11.º do nosso Código da
23 O Considerando 25 explica que se justifica que os mutuantes possam exigir ao consumidor que segure o crédito para garantir o seu reembolso, mas que deve ser-lhe deixada a possibilidade de escolher a sua própria seguradora, desde que a sua apólice de seguro tenha um nível de garantia equivalente da apólice proposta pelo mutuante. 24 Nos termos do art. 9.º da Diretiva, os Estados-Membros terão de assegurar que os mutuantes, os intermediários de crédito e os representantes nomeados exijam que o seu pessoal possua um nível adequado de conhecimentos e competências para exercer as suas atividades, estabelecendo requisitos mínimos e assegurando que as autoridades competentes procedem à devida fiscalização do cumprimento destes.
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Publicidade consagram, precisamente, o princípio da veracidade e a proibição da publicidade enganosa. No entanto, a Diretiva veio deixar muito claro que há uma série de informações que devem ser veiculadas de imediato através da publicidade. Assim, caso a publicidade em causa indique uma taxa de juro ou valores relativos ao custo do crédito para o consumidor, terá de incluir a informação normalizada exigida no art. 11.º, n.º 2, para que os consumidores possam comparar anúncios25: a) A identidade do mutuante ou, se for caso disso, do intermediário de crédito ou do representante nomeado; b) Se for caso disso, que os contratos de crédito serão garantidos por hipoteca ou por outra garantia equivalente habitualmente utilizada no Estado-Membro sobre imóveis de habitação ou por um direito relativo a imóveis de habitação; c) A taxa devedora, indicando se é fixa, variável ou uma combinação de ambas, juntamente com a indicação dos encargos eventualmente incluídos no custo total do crédito para o consumidor; d) O montante total do crédito; e) A TAEG, que deve ser indicada na publicidade de modo, pelo menos, tão destacado como o de qualquer taxa de juro; f) Se for caso disso, a duração do contrato de crédito; g) Se for caso disso, o montante das prestações; h) Se for caso disso, o montante total imputado ao consumidor; i) Se for caso disso, o número de prestações; j) Se for caso disso, uma advertência relativa ao facto de as eventuais flutuações da taxa de câmbio poderem afetar o montante imputado ao consumidor. Além disso, a Diretiva obriga os Estados-Membros a determinarem que estas menções obrigatórias na publicidade sejam feitas através da adoção de um exemplo representativo (art. 11.º, n.º 3). Adicionalmente, caso a celebração do contrato de crédito obrigue também à celebração de um contrato relativo a um serviço acessório (como um seguro, o que é muito comum), sem que os seus custos possam determinar-se antecipadamente, esta obrigação também deve constar da publicidade, de forma clara e destacada, em conjunto com a TAEG (art. 11.º, n.º 4). A Diretiva deixa, ainda, ao critério dos Estados-Membros a determinação ou não da inclusão na publicidade de advertências sobre os riscos inerentes aos contratos de crédito (art. 11.º, n.º 6).
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Assim se protegendo o consumidor contra práticas desleais ou enganosas. Cfr. Considerando 37.
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3.2. Informações gerais Para além da informação que deve ser veiculada na publicidade, a Diretiva estabelece que os Estados-Membros deverão determinar que os mutuantes (ou os intermediários de crédito vinculados26 ou os seus representantes nomeados) disponibilizarão obrigatoriamente e em permanência uma série de informações gerais aos consumidores em suporte de papel, noutro suporte duradouro ou em formato eletrónico (art. 13.º). Trata-se, portanto, de informações que devem permanecer disponíveis para consulta por qualquer interessado a qualquer momento, independentemente de se encontrarem em curso negociações para a conclusão de um contrato de crédito. Desta forma, será possível aos consumidores comparar as condições oferecidas em geral pelas diversas instituições e decidir “com pleno conhecimento de toda a gama de produtos de crédito oferecidos”, bem como das suas principais características27. O art. 13.º, n.º 1, determina: “As referidas informações gerais devem incluir pelo menos o seguinte: a) A identidade e o endereço geográfico do prestador das informações; b) As finalidades para as quais o crédito pode ser utilizado; c) Os tipos de garantias, incluindo, se for caso disso, a possibilidade de a garantia se situar num Estado-Membro diferente; d) A eventual duração dos contratos de crédito; e) Os tipos de taxa devedora disponível, indicando se a mesma é fixa, variável ou uma combinação de ambas, acompanhada de uma breve descrição das características da taxa fixa e da taxa variável, incluindo as respetivas implicações para o consumidor; f) Caso sejam disponibilizados empréstimos em moeda estrangeira, a indicação da ou das moedas estrangeiras, incluindo uma explicação das implicações para o consumidor, caso o crédito seja denominado em moeda estrangeira28; g) Um exemplo representativo do montante total do crédito, do custo total do crédito para o consumidor, do montante total imputado ao consumidor e da TAEG;
26 A Diretiva deixa ao critério dos Estados-Membros abranger ou não nestas determinações os intermediários de crédito não vinculados. Cfr. art. 13.º, n.º 1, in fine. 27 Cfr. Considerando 38. 28 A Diretiva visa limitar os riscos associados à contração deste tipo de créditos, que são significativos, dando conta ao consumidor do que significa, de facto, um empréstimo em moeda estrangeira, nomeadamente quanto à possibilidade de a taxa de câmbio subir, tornando o empréstimo mais oneroso para o consumidor do que aquilo que este estaria inicialmente à espera. Outras medidas apresentadas são a possibilidade de o consumidor poder converter a moeda do crédito durante a vigência do contrato, ou estabelecendo, ainda, outros mecanismos como limites máximos. Cfr. Considerando 30 e art. 23.º.
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h) A indicação de eventuais custos adicionais, não incluídos no custo total do crédito para o consumidor, a pagar no âmbito do contrato de crédito; i) O leque das diferentes opções disponíveis para o reembolso do crédito ao mutuante, incluindo o número, periodicidade e montante das prestações; j) Se for caso disso, uma declaração clara e concisa de que o cumprimento dos termos e condições do contrato de crédito não garante o reembolso do montante total do crédito decorrente do contrato de crédito; k) Uma descrição das condições diretamente relacionadas com o reembolso antecipado; l) A indicação da eventual necessidade de uma avaliação do imóvel e, se for caso disso, a identificação da parte responsável por assegurar a sua realização, bem como de eventuais custos que daí possam advir para o consumidor; m) A indicação dos serviços acessórios que o consumidor deve contratar para a obtenção do crédito, ou para a sua obtenção nos termos e condições comercializados, e, se for o caso, o esclarecimento de que os serviços acessórios podem ser adquiridos a um prestador distinto do mutuante; e n) Uma advertência geral relativa às eventuais consequências do incumprimento dos compromissos associados ao contrato de crédito”. Nos termos do n.º 2 do referido art. 13.º, a Diretiva deixa ainda ao critério dos Estados-Membros a inclusão ou não de outros tipos de advertências que entendam relevantes no respetivo Estado-Membro. 3.3. Informação pré-contratual O art. 14.º da Diretiva determina as regras que os Estados-Membros deverão implementar na fase negociatória do contrato. Assim que o consumidor tenha informado o mutuante (ou o intermediário de crédito ou o representante nomeado, se for caso disso) sobre as suas necessidades, situação financeira e preferências, este será obrigado a prestar-lhe informação personalizada relativa aos produtos que lhe oferece, adaptados à sua situação em concreto. Esta informação permitir-lhe-á comparar os produtos de crédito existentes no mercado (e até aconselhar-se com terceiros, se necessário) para que possa tomar uma decisão esclarecida e informada quanto à celebração do contrato de crédito. Para tanto, esta informação deverá ser-lhe entregue em tempo útil, ou seja, antes de o consumidor ficar vinculado ao contrato29. Para garantir a proteção do con-
O n.º 8 do art. 14.º diz, até, que só se considera que o mutuante (ou, se for caso disso, o intermediário de crédito ou o representante nomeado) cumpriu os requisitos de prestação de informações ao con29
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sumidor, esta informação terá de ser prestada em suporte de papel (ou noutro suporte duradouro) através da Ficha de Informação Normalizada Europeia (FINE30)31. O Considerando 41 da Diretiva adverte que os termos utilizados na FINE não são necessariamente os termos jurídicos utilizados na Diretiva, embora tenham o mesmo significado, uma vez que após uma série de estudos sobre consumo se concluiu que era necessário adotar uma linguagem simples e clara para garantir a sua inteligibilidade por parte dos consumidores32. O Considerando 44 refere que o facto de a informação a prestar ter de ser personalizada não implica que o mutuante (ou o intermediário de crédito ou o representante nomeado) tenha a obrigação de prestar consultoria. No entanto, o art. 16.º da Diretiva determina que os Estados-Membros devem assegurar que estas entidades prestam explicações adequadas, de forma personalizada, ao consumidor sobre os contratos de crédito que lhes proponham, bem como relativamente a quaisquer serviços acessórios, para que o consumidor possa avaliar sobre se o contrato em causa se adapta às suas necessidades e à sua capacidade financeira. Assim, os mutuantes terão, por exemplo, de prestar esclarecimentos ao consumidor relativamente ao conteúdo da FINE33. Esta assistência adicional visa permitir ao consumidor perceber, de facto, quais as características essenciais dos produtos propostos e quais as implicações que estes terão na sua situação económica. A este respeito, o Considerando 48 refere que os mutuantes (e, se for o caso, os intermediários de crédito) devem ter em atenção a necessidade de assistência do consumidor, os seus conhecimentos e a sua experiência em matéria de crédito, bem como a natureza de cada um dos produtos, para determinar quais as explicações que devem ser prestadas. Um consumidor já habituado a operações de crédito à habitação não necessitará dos mesmos esclarecimentos que um consumidor que recorre a estes produtos pela primeira vez.
sumidor antes da celebração de um contrato à distância nos termos da Diretiva 2002/65/CE se tiver disponibilizado a FINE, pelo menos, antes da celebração do contrato. 30 O modelo da FINE, que segue no anexo II da Diretiva, não pode ser alterado pelos Estados-Membros, visto existir aqui, como já vimos, uma harmonização máxima, a fim de garantir um verdadeiro mercado único. Assim, nos termos do art. 14.º, n.º 8, caso os Estados-Membros obriguem à prestação de informações adicionais, estas terão de constar de um documento separado, que pode ser anexado à FINE. 31 O n.º 4 do art. 14.º permite aos Estados-Membros determinar a disponibilização obrigatória da FINE antes da apresentação da proposta contratual ao consumidor; se assim for, aquando da entrega da proposta, já não será necessário a entrega de nova FINE, a menos que as características da proposta sejam diferentes das informações constantes da FINE entregue anteriormente. 32 O Considerando 42 acrescenta que os “Estados-Membros deverão poder, nas respetivas línguas nacionais, utilizar um vocabulário diferente na FINE, desde que não alterem o seu teor ou a ordem pela qual são prestadas as informações sempre que tal seja necessário para utilizar uma linguagem mais facilmente compreendida pelos consumidores”. 33 Os intermediários de crédito e os representantes nomeados terão de explicar ainda as informações que estão obrigados a prestar nos termos do art. 15.º. 221
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Esta determinação da Diretiva também não é novidade no nosso ordenamento jurídico, atendendo ao diploma que rege as cláusulas contratuais gerais no nosso país. O art. 5.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro34, obriga o proponente de cláusulas contratuais gerais a comunicá-las na íntegra ao aderente, de modo adequado, para que o seu conhecimento completo e efetivo se torne possível a quem use de comum diligência; para que não haja dúvidas, o art. 6.º do mesmo diploma acrescenta que o proponente deve informar o aderente “de acordo com as circunstâncias, [...] dos aspectos [...] compreendidos [nas referidas cláusulas] cuja aclaração se justifique”, devendo ainda prestar “todos os esclarecimentos razoáveis solicitados”. Ainda que possamos duvidar do facto de a proposta contratual apresentada pelo mutuante (ou pelo intermediário de crédito ou pelo representante nomeado) caber no conceito de cláusula contratual geral, visto tratar-se de algo personalizado, a verdade é que a Diretiva não descurou esta questão, como vemos. Cremos que a transposição deste art. 16.º deve ir ao encontro dos termos previstos no regime dos contratos de adesão, seguindo a lógica da proteção máxima que a Diretiva pretende proporcionar ao consumidor. O n.º 6 do art. 14.º da Diretiva consagrou um outro instrumento muito importante relativamente à proteção do consumidor: um prazo de reflexão de, pelo menos, sete dias, para que este possa “comparar diferentes propostas, avaliar as suas implicações e tomar uma decisão informada”. O Considerando 23 da Diretiva explica que este instrumento se justifica atendendo à importância da transação. Os Estados-Membros poderão configurar este prazo de várias formas: ou como sendo um prazo de reflexão anterior à celebração do contrato de crédito, ou como sendo um prazo para o exercício do direito de resolução após a celebração do contrato ou, até, uma combinação de ambos. Caso os Estados-Membros tenham optado por configurar o prazo como um prazo de reflexão anterior à celebração do contrato, a proposta contratual do mutuante vincula-o durante todo o período de reflexão, sendo certo que o consumidor pode aceitar a proposta em qualquer momento, prescindindo do resto do prazo; a Diretiva, no entanto, permite aos Estados-Membros dispor que os consumidores não possam prescindir por completo do prazo de reflexão, não lhes permitindo aceitar sem ter decorrido pelo menos algum tempo (mas não mais de 10 dias35).
34 Entretanto alterado pelo Decreto-Lei n.º 220/95, de 31 de agosto, pelo Decreto-Lei n.º 249/99, de 7 de julho, e pelo Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de dezembro. 35 O Considerando 23 determina que é conveniente que os Estados-Membros disponham da flexibilidade para decidir em que casos o período de reflexão é vinculativo para o consumidor (não podendo, no entanto, exceder os 10 dias) e em que casos o consumidor pode prescindir deste prazo, aceitando a proposta antes de o prazo findar. Além disso, acrescenta que, “por uma questão de segurança jurídica das transações imobiliárias, os Estados-Membros [devem ter] [...] a possibilidade de dispor que o período de reflexão ou o direito de resolução caduquem caso o consumidor pratique qualquer ato que, nos termos da lei
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3.4. Informação relativa aos intermediários de crédito e aos representantes nomeados Atendendo às especificidades próprias da atividade dos intermediários de crédito, a Diretiva consagrou, no art. 15.º, normas que regulamentam a prestação de deveres pré-contratuais de informação adicionais a seu cargo. O intuito da Diretiva é “garantir a maior transparência possível”, a fim de “evitar abusos decorrentes de eventuais conflitos de interesses”36. Assim, antes do exercício de qualquer atividade de intermediação de crédito, os respetivos intermediários ou o representante nomeado são obrigados a prestar ao consumidor, em papel ou noutro suporte duradouro, uma série de informações que dizem respeito, em primeiro lugar, à sua identificação e, em segundo, à sua atividade. Desta forma, têm de deixar claro ao consumidor se estão vinculados a um ou mais mutuantes, agindo ou não em regime de exclusividade, devendo, ainda, informá-lo da identidade dos mutuantes em questão37. Devem informar o consumidor, também, sobre o facto de prestarem serviços de consultoria e, sendo esse o caso, qual a remuneração pelos respetivos serviços ou, pelo menos, caso não seja possível indicar um valor exato, qual o método de cálculo da remuneração. Outra informação que devem prestar diz respeito aos mecanismos existentes para apresentação de reclamações internas por parte dos consumidores contra os intermediários de crédito, bem como procedimentos de reclamação e recurso extrajudicial. Muito relevante para que o consumidor possa ajuizar dos custos de todo o processo é a obrigação de o informar sobre a eventual existência e, sendo caso disso, do montante das comissões ou outros incentivos a pagar pelos mutuantes aos intermediários de crédito pelos seus serviços em relação com o contrato de crédito. Caso os intermediários em questão recebam comissões de mais do que um mutuante, são obrigados, caso o consumidor o requeira, a informá-lo das diferenças entre as diversas comissões dos diferentes mutuantes. Para garantir que o consumidor saiba que pode requerer esta informação, a Diretiva obriga os intermediários de crédito a informar o consumidor de que tem o direito de a solicitar. Estas informações são importantes, pois pode
nacional, resulte na criação ou transmissão de um direito de propriedade associado ao contrato de crédito ou à utilização de fundos obtidos através desse contrato ou, se for o caso, transfira os fundos para um terceiro”. 36 Cfr. Considerando 47. 37 O art. 15.º, n.º 1, alínea c), determina na sua parte final que “[o] intermediário de crédito pode divulgar que é independente se satisfizer as condições estabelecidas no artigo 22.º, n.º 4”. 223
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suceder que o intermediário seja remunerado não só pelo consumidor como por via de comissões pagas pelo mutuante ou por terceiro e, sendo caso disso, o intermediário deve explicar ao consumidor se a comissão será ou não objeto de compensação, no todo ou em parte, pela remuneração do consumidor. Assim, faz todo o sentido que o n.º 4 do art. 15.º determine que “[o]s Estados-Membros asseguram que a eventual remuneração a pagar pelo consumidor ao intermediário de crédito pelos seus serviços seja comunicada ao mutuante pelo intermediário de crédito, para efeitos do cálculo da TAEG”. Finalmente os intermediários de crédito devem assegurar que os seus representantes nomeados informam o consumidor sobre o facto de agirem enquanto representantes, identificando a entidade que representam antes de iniciarem as respetivas negociações.
4. Conclusão Como vimos, a Diretiva preocupou-se em estabelecer uma panóplia de deveres pré-contratuais de informação bastante extensa e, em grande medida, normalizada. O intuito de criar um verdadeiro mercado único relativamente ao crédito à habitação, em que todos os agentes sigam as mesmas regras, numa lógica de concorrência leal, terá sido determinante neste processo, mas não menos do que o intuito de proteger o consumidor e, com ele, a economia da União Europeia. Contudo, é importante reter que a mera exposição de informação poderá não ser suficiente para se alcançar estes objetivos. Os Estados-Membros terão de garantir que as instituições em causa se asseguram de que a informação é, de facto, entendida, pelo mutuário. Finalmente resta saber em que medida e de que forma é que a violação destes deveres será imputada às partes em causa. O art. 38.º da Diretiva deixa aos Estados-Membros a tarefa de estabelecer o regime de sanções aplicável à violação das normas nacionais que transponham a presente diretiva, colocando apenas como condição que estas sanções sejam efetivas, proporcionadas e dissuasoras. A este respeito não podemos deixar de referir que o nosso ordenamento jurídico já contempla um regime geral relativo à violação de deveres pré-contratuais de informação, talvez mais dissuasor do que as sanções administrativas referidas no art. 38.º, n.º 2, da Diretiva e, seguramente, mais interessante para o consumidor. O art. 227.º do nosso Código Civil permite responsabilizar os mutuantes, intermediários de crédito e representantes nomeados que, com culpa, no decurso das negociações para a celebra-
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ção de um contrato de crédito hipotecário, violem deveres pré-contratuais de informação e, com isso, provoquem danos na esfera jurídica do consumidor. No entanto, até que ponto pode ir a sua responsabilização perante o consumidor é uma questão que já não cabe no âmbito deste trabalho.
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Crise e desemprego jovem em Portugal* Teresa Coelho Moreira**
Resumo: Durante os últimos anos, o mundo assistiu à pior crise económica desde a Grande Depressão de 1929, crise esta que originou perdas generalizadas de emprego e graves dificuldades sociais. Por outro lado, a duração do período de desemprego duplicou comparativamente com a situação anterior à crise, tornando-se um fator que dificulta a recuperação do mercado de trabalho. Os trabalhadores jovens e as famílias com crianças mais novas têm sido afetados desproporcionadamente pela contração económica. E, em momentos de grave conjuntura económica, o Direito do trabalho detém um protagonismo muito relevante, não somente do ponto de vista jurídico mas, sobretudo, no quadro socioeconómico, quer para os trabalhadores, quer para os empregadores. Os jovens têm sido particularmente atingidos com a crise, na medida em que se trata de um grupo mais vulnerável, em virtude do carácter transitório dos períodos de vida que atravessam, assim como por lhes faltar experiência profissional; os estudos, ou formações de que dispõem são desadequados, a cobertura social de que beneficiam é insuficiente, o acesso aos recursos financeiros é limitado e as condições de trabalho precárias. As jovens estão mais expostas ao emprego precário e mal remunerado e faltam medidas que ajudem os jovens com filhos, sobretudo as mães, a conciliar a vida profissional com a vida familiar. Contudo, não pode deixar de atender-se que a juventude representa o futuro, o dinamismo e prosperidade do Mundo em geral, e da Europa e de Portugal em especial. O talento, conhecimentos e a própria criatividade da juventude são essenciais para assegurar o desenvolvimento, crescimento e competitividade futuros. Porém, se os países quiserem utilizar o talento destes jovens, terão de os integrar plenamente no emprego e na sociedade. Assim, investir no capital humano que os jovens europeus representam trará benefícios a longo prazo e contribuirá para um crescimento económico duradouro e inclusivo. Palavras-chave: Crise – Jovens – Desemprego
Abstract: During the last years, the world witnessed the worst economic crisis since the Great Depression of 1929, which gave rise to widespread job losses and serious social difficulties. On the other hand, the duration of unemployment has doubled compared to the pre-crisis situation, becoming a factor that hinders the recovery of the labour market. Young workers and families with younger children have been disproportionately affected by the economic contraction. And in moments of severe economic situation, the labor law has a very important role, not only from a legal point of view but, above all, from a socio-economic one, either for workers or for employers. Young people have been particularly hit hard by the crisis because they are a vulnerable group as they lack work experience, studies, or the training available to them are
* Este texto corresponde, com algumas alterações, à nossa intervenção no Congresso Internacional sobre Jóvenes y Políticas de Empleo, que decorreu na Universidade de Sevilha, nos dias 9 e 10 de Dezembro de 2014. ** Professora Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho.
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inadequate, social coverage that they benefit is insufficient, access to financial resources is limited and they have precarious working conditions. The young people are more exposed to precarious employment and poorly paid and there is a lack of measures to help young people with children, especially mothers, to combine work and family life. However, youth represents the future, the dynamism and the prosperity in the world in general and Europe and Portugal in particular. The talent, knowledge and creativity of youth itself are essential to ensure the development, future growth and competitiveness. However, if countries want to use the talent of these young people, they will have to fully integrate them in society. Thus, investing in human capital that young Europeans represent will bring long-term benefits and contribute to sustainable and inclusive economic growth. Keywords: Crisis – Youth – Unemployment
Sumário: 1. Introdução; 2. Políticas ativas de emprego: Garantia Jovem; 2.1. Introdução; 2.2. Políticas ativas de emprego em Portugal; 2.2.1. Evolução histórica; 2.2.2. Plano Nacional de Implementação de uma Garantia para a Juventude; 3. Conclusões
1. Introdução 1.1. Durante os últimos anos, o mundo assistiu à pior crise económica desde a Grande Depressão de 1929, crise esta que originou perdas generalizadas de emprego e graves dificuldades sociais1, estimando-se que, em 2013, cerca de 202 milhões de pessoas em todo o mundo estavam desempregadas, o que constitui um acréscimo de cerca de 5 milhões relativamente ao ano anterior, prevendo-se que este número deverá aumentar para 215 milhões, em 2018. Por outro lado, a duração do período de desemprego duplicou comparativamente com a situação anterior à crise, tornando-se um fator que dificulta a recuperação do mercado de trabalho2. E, em Portugal, tal como aponta a OIT3, desde o início da crise global em 2008, perdeu-se um em cada sete empregos, sendo esta percentagem a mais significativa deterioração do mercado de trabalho entre os países europeus, depois da Grécia e da Espanha. Os trabalhadores jovens e as famílias com crianças mais novas têm sido afetados desproporcionadamente pela contração
1 A Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 2011, estimava que em todo o mundo seriam necessários mais 22 milhões de empregos para se recuperarem as taxas de emprego anteriores à crise. Ver Igualdade no trabalho: Um desafio contínuo – Relatório global no quadro do seguimento da Declaração sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, 2011, p. 2. 2 OIT, Global Employment Trends 2014, 2014, pp. 11-12. Cf., ainda, os dados presentes em Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), Society at a Glance 2014 – OECD Social Indicators, 2014, pp. 16-17, assim como os Relatórios da OIT relativos aos anos de 2012 e de 2013, World of Work Report 2012 – Better jobs for a better economy, e World of Work Report 2013 – Repairing the economic and social fabric. 3 Enfrentar a crise do emprego em Portugal, 2013, p. 2.
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económica. E, em momentos de grave conjuntura económica, o Direito do trabalho detém um protagonismo muito relevante, não somente do ponto de vista jurídico mas, sobretudo, no quadro socioeconómico, quer para os trabalhadores quer para os empregadores4. Os jovens têm sido particularmente atingidos com a crise, na medida em que se trata de um grupo mais vulnerável em virtude do carácter transitório dos períodos de vida que atravessam, assim como por lhes faltar experiência profissional; os estudos, ou formações de que dispõem são desadequados, a cobertura social de que beneficiam é insuficiente, o acesso aos recursos financeiros é limitado e as condições de trabalho precárias5. As jovens estão mais expostas ao emprego precário e mal remunerado e faltam medidas que ajudem os jovens com filhos, sobretudo as mães, a conciliar a vida profissional com a vida familiar6. O desemprego jovem é uma questão presente na agenda política internacional, desde há algum tempo, mas que, nos últimos anos, passou a ter uma renovada atualidade no contexto da crise iniciada no ano de 2007. Na verdade, o desemprego jovem é uma realidade e atualmente assume contornos alarmantes e inaceitáveis, representando uma perda de recursos humanos e de talento. Hoje em dia, segundo dados da OIT7, o desemprego mundial é de cerca de 13,1%, e, sem a adoção de políticas ativas de mercado de trabalho, esta percentagem irá manter-se, pelo menos, até 2018. Esta percentagem ainda é maior nos países considerados desenvolvidos, sendo na Europa de cerca de 21,7%8, podendo ser ainda superior se vários jovens não tivessem perdido a esperança e deixassem de procurar emprego. Na realidade, na União Europeia (UE), há cerca de 7,5 milhões de jovens com idades compreendidas entre os 14 e os 29 anos que são classificados de NEETs9/10, isto é, que não estão empregados, nem a estudar, nem
PURIFICACIÓN MORGADO PANADERO, «Retos e propuestos para el Derecho del Trabajo en tiempos de crisis», in REDT, n.º 149, 2011, p. 168. 5 Segundo dados disponibilizados pela Comissão Europeia, em 2012, 42% dos jovens trabalhadores estavam a trabalhar com contratos temporários, o que representava um número quatro vezes superior ao dos adultos. Por outro lado, 32% estavam com contrato a tempo parcial, num número que era duas vezes superior ao dos adultos. Cf. EUROFOUND, Eurofound Yearbook 2013: Living and Working in Europe, Dublin, 2014, p. 51, assim como, para uma análise mais desenvolvida da contratação precária dos mais jovens na Europa, vd. EUROFOUND, Young people and temporary employment in Europe, Dublin, 2013. 6 Para mais desenvolvimentos, veja-se o estudo do EUROFOUND, Working Conditions of young entrants in the labour market, Dublin, 2014. 7 World of Work Report 2014 – Developing with Jobs, ILO, 2014, p. 12. 8 23,2% na zona Euro. 9 “Not in employment, education or in training”. 10 Em Portugal, em 2013, a proporção de jovens do grupo etário dos 15 aos 24 anos não empregados, desempregados ou inativos, que não estavam em educação ou formação era de 14,1%, valor muito próximo para homens e mulheres. Este indicador aumentou no período de 2011 a 2013. Veja-se www.ine.pt. 4
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em formação11. Mais do que um em cada cinco jovens europeus não consegue encontrar emprego e, na Espanha e na Grécia, é um em cada dois jovens12. Porém, a realidade varia muito entre os Estados-Membros e a diferença, nalguns casos, é de quase 50%13. Contudo, não pode deixar de atender-se que a juventude representa o futuro, o dinamismo e prosperidade do Mundo em geral, e da Europa e de Portugal em especial. O imediato futuro de todos depende dos 94 milhões de europeus que têm idades compreendidas entre os 15 e os 29 anos14. E estes, para além de todos os desafios que qualquer jovem enfrenta quando ingressa na vida adulta, terão ainda de viver numa era de total globalização e numa população envelhecida15. O talento, conhecimentos e a própria criatividade da juventude são essenciais para assegurar o desenvolvimento, crescimento e competitividade futuros. Porém, se os países quiserem utilizar o talento destes jovens, terão de os integrar plenamente no emprego e na sociedade. Assim, investir no capital humano que os jovens europeus
11A questão dos jovens NEETs começou a ser discutida na década de 80 do século passado e, desde então, tem vindo a ser tratada, embora só mais recentemente é que começou a analisar-se com mais profundidade. 12 Podem ver-se estas estatísticas em http://epp.eurostat.ec.europa.eu (acedido pela última vez em novembro de 2014). Contudo, há que ter em atenção que, como nem todas as pessoas jovens estão no mercado de trabalho, a taxa de desemprego juvenil não reflete a proporção de todos os jovens que estão desempregados. Vd., para mais desenvolvimentos sobre esta falácia comum, Youth unemployment, in http://epp.eurostat.ec.europa.eu (acedido pela última vez em janeiro de 2015), p. 2. Na verdade, como se pode ver neste documento, p. 3, com 15 anos de idade, a maioria da população da União Europeia ainda está a frequentar a escola. À medida que vão envelhecendo, muitos jovens começam a ingressar no mercado de trabalho ou a tentar obter um emprego, ou a estudar e trabalhar simultaneamente. Contudo, nem todos fazem esta transição na mesma altura e, por isso, é que se está perante um grupo bastante heterogéneo. Cf., ainda, EUROSTAT, Participation of Young People in education and the labour market, in http://epp.eurostat.ec.europa.eu (acedido pela última vez em janeiro de 2015), onde se pode ver também a situação de Portugal, que se insere no mesmo grupo de Espanha e da Grécia. 13 Na Alemanha, a percentagem de desemprego jovem era de 7,8%, em julho de 2014, enquanto, em Espanha, era de 53,8%, na Grécia, era de 53,1% e, em Itália, era de 42,9%. Podem ver-se estes dados no Documento da Comissão Europeia, The EU Youth Guarantee, de 16 de setembro de 2014, assim como EUROSTAT, Unemployment Statistics, setembro 2014, e que pode ser consultado em http://epp.eurostat.ec.europa.eu (consultado pela última vez em janeiro de 2015). Pode ver-se neste documento, p. 8, que as taxas de desemprego jovem são muito mais elevadas do que as da restante população, sendo algumas vezes o dobro ou mais do que esta. Esta situação pode ser devida a várias razões: o desemprego jovem é mais reativo perante os ciclos económicos que os outros tipos de desemprego; os jovens enfrentam vários desafios quando ingressam no mundo do trabalho devido, por vezes, à sua falta de experiência; e também pelo facto de que, durante as crises, muitas vezes os jovens são os primeiros a perder os seus empregos devido à ideia de “last in, first out”. Cf., para maiores desenvolvimentos, EUROFOUND, NEETs – Young People not in employment, education or training: Characteristics, costs and policy responses in Europe, Dublin, 2012, p. 4. Cf., ainda, Tackling Youth Unemployment, (coord. TAYO FASHYIN e MICHELE TIRABOSCHI), Cambridge Scholars, Cambridge, 2014, p. XV. 14 Veja-se COMISSÃO EUROPEIA, Working Together for Europe’s young people, 2013, p. 2. 15 Cf. o Guiding Framework – Youth Empowerment for Political Participation, adotado durante a EU Youth Conference, em Roma, nos dias 13-15 de outubro de 2014. Cf., ainda, a Resolução da Assembleia da República n.º 2/2015, de 7 de janeiro, que visa o acesso dos jovens aos seus direitos como meio de promoção da autonomia e inclusão social.
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representam trará benefícios a longo prazo e contribuirá para um crescimento económico duradouro e inclusivo. A União Europeia em geral, e Portugal em especial, será capaz de tirar pleno proveito de uma mão de obra ativa, inovadora e qualificada, ao mesmo tempo que evitará os custos muito elevados de ter jovens que não trabalham, não estudam nem seguem qualquer formação16/17. Por outro lado, conseguir resolver com sucesso a questão do desemprego jovem não originará apenas alcançar as aspirações dos jovens para uma vida melhor mas também conseguir obter o bem-estar em geral da própria sociedade18. Pode notar-se, ainda, que há, mesmo dentro do grupo de jovens, alguns que são mais suscetíveis aos ciclos económicos e ao desemprego do que os restantes, como é o caso das mulheres, jovens portadores de deficiência, jovens com um passado migratório, jovens com baixo nível de estudos ou os que vivem em zonas mais remotas. Estes jovens correm o risco de serem discriminados por várias formas, estando-se aqui na possibilidade de uma discriminação intersectorial19/20.
Cf. Considerando 1 da Recomendação do Conselho da União Europeia, de 22 de abril de 2013. Os NEETs são hoje um importante desafio a nível europeu e nacional. 80% destes jovens não têm o ensino superior completo e 40% não têm mais do que nove anos de escolaridade. Muitos são oriundos de famílias desfavorecidas ou têm pais com reduzidas competências académicas. Carecem, em muitos casos, de competências básicas necessárias para iniciar o seu próprio negócio, ou mesmo para procurar emprego, o que constitui importantes barreiras à mobilidade social. Cf. mais desenvolvimentos em Emprego Jovem e Empreendedorismo Social: Novos Caminhos, Conferência Internacional de 5 de novembro de 2014, Conclusões, Fundação Calouste Gulbenkien, 2014, p. 4. 18 OIT, Report V: The youth employment crisis: Time for action, 2012. 19 Cf., para maiores desenvolvimentos, EUROFOUND, NEETs – Young people..., cit., pp. 53 e ss., European Non-Discrimination Law and Intersectionality – Investigating the Triangle of Racial, Gender and Disability Discrimination, (coord. DAGMAR SCHIEK e ANNA LAWSON), Ashgate, Surrey, 2011, e OIT, World of Work Report..., cit., pp. 12 e ss. 20 Pode ver-se que o próprio Tribunal de Justiça da União europeia (TJUE) já decidiu casos de discriminação em razão da idade relativamente a pessoas jovens. Podem ver-se, a título de exemplo, dois casos. No caso Hütter, processo C-88/08, de 18 de junho de 2009, o Tribunal reconheceu a possibilidade dos Estados-Membros definirem as medidas públicas essenciais para promoverem o emprego e as medidas sociais, neste caso relacionadas com a formação e a aprendizagem profissional. Neste caso, nos parágrafos 39-43, entendeu-se que o legislador austríaco tinha excluído a tomada em consideração da experiência profissional obtida antes do reconhecimento, aos 18 anos de idade, da capacidade jurídica plena, “para não desfavorecer as pessoas que tenham seguido uma formação escolar secundária do ensino geral, em relação às procedentes da formação profissional”. Por outro lado, outro objetivo era também a vontade de o legislador em “não encarecer, para o sector público, o custo da aprendizagem profissional” e de favorecer “a inserção dos jovens que tenham seguido este tipo de formação no mercado de trabalho”, entendendo que estes objetivos enquadravam-se no art. 6.º, n.º 1, alíneas a) e b), da Diretiva. O Tribunal, apesar de sublinhar o amplo poder de apreciação dos Estados na escolha das medidas suscetíveis de realizar os seus objetivos em matéria de política social e de emprego, estabeleceu, contudo, que, no caso em apreço, os objetivos em causa pareciam ser “contraditórios”, com falta de “coerência interna”, pois “os objetivos mencionados pelo órgão jurisdicional de reenvio podem parecer, à primeira vista, contraditórios. Com efeito, um desses objetivos consiste em incitar os alunos a frequentar o ensino secundário geral em vez da formação profissional. Outro objetivo consiste em favorecer a contratação de pessoas que tenham seguido uma formação profissional e não a de pessoas que provenham do ensino geral, como decorre do n.º 40 do presente acórdão. Trata-se, por consequência, no primeiro caso, de não desfavorecer as pessoas provenientes do ensino 16 17
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1.2. Por outro lado, e independentemente de crises económicas, diferenciar as pessoas em razão da idade constitui uma prática relativamente frequente em vários ordenamentos jurídicos. Estas distinções podem ocorrer por cumprimento de objetivos socioeconómicos, fundando-se em considerações racionais ou até por imperativos legais, como, inter alia, o estabelecimento da idade mínima para trabalhar ou para tirar a carta de condução21. Mas, muitas vezes, as diferenças de tratamento de certas pessoas ou de certos grupos de pessoas em razão da idade ocorrem devido a preconceitos generalizados ou estereótipos superficiais que podem atingir quer os jovens, quer as pessoas mais idosas. E estes preconceitos ou estereótipos têm um impacto fortemente negativo no contexto laboral, quer na fase de acesso e formação do contrato de trabalho, quer na fase de execução ou de cessação do mesmo. O acesso ao emprego é necessário quer para os secundário geral em relação às que têm uma formação profissional e, no segundo caso, da hipótese inversa. Por conseguinte, à primeira vista, é difícil admitir que uma legislação nacional como aquela em causa no processo principal possa simultaneamente favorecer cada um desses dois grupos à custa do outro”. Entendeu, ainda que “a legislação nacional em causa no processo principal se baseia no critério da experiência profissional anterior para efeitos da determinação da classificação no escalão e, consequentemente, da remuneração dos agentes contratuais da função pública. Ora, recompensar a experiência adquirida, que permite ao trabalhador melhor cumprir as suas tarefas é, regra geral, reconhecido como um objetivo legítimo. É, por conseguinte, lícito aos empregadores remunerar essa experiência (v. acórdão de 3 de outubro de 2006, Cadman, C-17/05, Colect., p. I-9583, n.os 35 e 36). No entanto, não se pode deixar de observar que a legislação nacional como aquela em causa no processo principal não se limita a remunerar a experiência, estabelecendo também, quando a experiência é igual, uma diferença de tratamento em função da idade em que essa experiência foi adquirida. Nessas condições, esse critério ligado à idade não tem, por isso, relação direta com o objetivo que consiste, para o empregador, em recompensar a experiência profissional adquirida”. Assim, o Tribunal decidiu assim que “os artigos 1.º, 2.º e 6.º da Diretiva 2000/78/CE do Conselho, de 27 de novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que, para efeitos de não desfavorecer o ensino geral em relação à formação profissional e de promover a inserção dos jovens aprendizes no mercado de trabalho, exclui a tomada em consideração de períodos de emprego completados antes dos 18 anos de idade para efeitos da determinação do escalão em que são colocados os agentes contratuais da função pública de um Estado-Membro”. O outro caso trata-se do acórdão Kücükdeveci, processo C-555/07, de 19 de janeiro de 2010, onde se tratava de aferir se uma legislação alemã relativa ao despedimento e que não tinha em conta, no cálculo do prazo de aviso prévio, o trabalho prestado pelo trabalhador antes dos 25 anos de idade, e onde se pode ler, parágrafo 35, que, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a justificação desta medida do § 622, n.º 2, segundo parágrafo do BGB, retratava a conceção do legislador de que “os trabalhadores mais novos reagem, na generalidade, mais facilmente e mais rapidamente à perda de emprego e de que lhes pode ser exigida uma maior flexibilidade. Por último, um prazo de aviso prévio mais curto para os jovens trabalhadores facilita a sua contratação, aumentando a flexibilidade na gestão do pessoal”. Neste caso, o TJUE decidiu que “o direito da União, mais concretamente o princípio da não discriminação em razão da idade, como concretizado pela Diretiva 2000/78/CE do Conselho, de 27 de novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, que prevê que o tempo de trabalho prestado por um trabalhador antes dos 25 anos de idade não é tido em conta no cálculo do prazo de aviso prévio, em caso de despedimento”. 21 Neste sentido, veja-se, inter alia, F. CARINCI e A. PIZZOFERRATO, Diritto del Lavoro dell’Unione Europea, UTET Giuridica, Torino, 2010, p. 425, que defendem ser “facilmente compreensível” este tipo de diferenciação em determinadas situações, dando como exemplo o caso da proibição de trabalho infantil. 232
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jovens, quer para as pessoas mais velhas, se se pretende que cada um possa realizar-se através do trabalho e participar ativamente na sociedade. E este princípio encontra-se reconhecido em numerosos instrumentos de Direito Internacional onde se reconhece a importância central do direito ao trabalho, como é o caso do art. 26.º do Pacto Internacional sobre os Direito Civis e Políticos (PIDCP), os arts. 6.º, 7.º, 11.º, 12.º e 13.º do Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC), assim como a própria Convenção n.º 111 da OIT sobre a discriminação no emprego e no trabalho. Também ao nível da UE, vários instrumentos defendem o mesmo22. Desde a Agenda de Lisboa que se defende que assegurar uma diversidade de idades ao nível da mão de obra traduz importantes vantagens do ponto de vista socioeconómico, permitindo, ainda, uma maior participação no mercado de trabalho e lutar contra a exclusão social. Também ao nível do próprio Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) se estabelece a proibição da discriminação em razão da idade, no art. 19.º, assim como no art. 21.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), devendo ver-se, ainda, o art. 25.º, relativamente aos direitos das pessoas idosas, onde se pode ler que “A União reconhece e respeita o direito das pessoas idosas a uma existência condigna e independente e à sua participação na vida social e cultural”. De fundamental importância, ainda, no combate à discriminação em razão da idade é a Diretiva 2000/78/CE, de 27 de novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional e que proíbe a discriminação em razão da idade como princípio geral, embora depois admita uma série de exceções que podem, se interpretadas de forma extensa, esvaziar de conteúdo a proteção assegurada, nomeadamente aceitando a possibilidade de uma discriminação direta, contrariamente ao que acontece relativamente aos outros tipos de discriminação proibida23. No ordenamento jurídico de Portugal, revestem particular relevo os arts. 23.º a 29.º do Código do Trabalho que transpõem esta Diretiva. De crucial importância é o art. 24.º, referente ao direito à igualdade no acesso a emprego e no trabalho, que estabelece no n.º 1 que: “O trabalhador ou candidato a emprego tem direito a igualdade de oportunidades e de tratamento no que se refere ao acesso ao emprego, à formação e
22 Vide La discrimination fondée sur l´âge, UE, 2005, p. 11. Cf, ainda, European handbook on equality data, European Commission, 2006, p. 18. 23 Como se pode ler no Documento da Comissão Europeia, Age and Employment, 2011, p. 5, o quadro legislativo da discriminação em razão da idade é único na legislação anti-discriminatória, na medida em que admite um largo leque de exceções à proibição quando comparado com os outros casos de discriminação proibida.
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promoção ou carreira profissionais e às condições de trabalho, não podendo ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão, nomeadamente, de [...] idade”, assim como o art. 25.º, relativo à proibição de discriminação, que nos n.os 2 e 3 estabelece algumas exceções a esta proibição, com importância para a análise da discriminação em razão da idade.
2. Políticas ativas de emprego: Garantia Jovem 2.1. Introdução 2.1.1. A União Europeia defronta-se atualmente com a mais elevada taxa de desemprego entre jovens, situação que acarreta graves consequências sociais e económicas para os jovens afetados, as suas famílias, e a própria Europa. Em face desta situação, a Comissão Europeia entendeu que deviam ser adotadas medidas que promovessem a criação de emprego e combatessem a marginalização e a exclusão dos jovens que estão desempregados e dos jovens até 25 anos que não estão a trabalhar nem inseridos no sistema educativo e formativo. No âmbito da iniciativa Europa 2020, a criação de emprego tinha sido já assumida como uma das prioridades da estratégia para um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo, considerando-se que a nova agenda deveria permitir alcançar níveis elevados de emprego, de produtividade e de coesão social24. A Comissão Europeia propôs vários objetivos a alcançar em 2020, por via daquela estratégia, sendo de destacar quatro deles: 75% da população de idade compreendida entre 20 e 64 anos deverá estar empregada; 3% do Produto Interno Bruto (PIB) da UE deve ser investido em Investigação e Desenvolvimento; a taxa de abandono escolar precoce deve ser inferior a 10%; pelo menos 40% da geração mais jovem deve dispor de um diploma de ensino superior. Apresentou, ainda, um conjunto de iniciativas que visava estimular os progressos no âmbito de cada tema considerado prioritário. De entre as várias iniciativas, destacam-se duas delas: juventude em movimento, para melhorar os resultados dos sistemas de ensino e facilitar a entrada de jovens no mercado de trabalho; agenda para novas qualificações e novos empregos, para modernizar os mercados de trabalho e capacitar as pessoas, desenvolvendo as suas qualificações ao longo da vida, com vista a aumentar a participação no mercado de trabalho e a estabelecer uma
Cf. Final Synthesis on Women and Young People, ESF Expert Evaluation Network, Metis and University of Glasgow, 2013. 24
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melhor correspondência entre a oferta e a procura de mão de obra, nomeadamente através de uma maior mobilidade dos trabalhadores. Estes objetivos, a alcançar à escala europeia, e as iniciativas propostas pela Comissão Europeia, vinculam, quer a União Europeia, quer os Estados-Membros, o que requer uma resposta coordenada e uma abordagem de parceria que garanta a participação de todos: autoridades, parceiros sociais, partes interessadas e sociedade civil. No âmbito destas iniciativas, a Comissão Europeia comprometeu-se com um conjunto diversificado de ações e os Estados-Membros, a nível nacional, a assegurar as medidas necessárias para a concretização de certos objetivos específicos. Assim, no caso da iniciativa juventude em movimento, a Comissão Europeia comprometeu-se, entre outras ações, a lançar um enquadramento para o emprego de jovens, estabelecendo políticas destinadas a reduzir as taxas de desemprego, a promover a entrada de jovens no mercado de trabalho, através da educação e formação profissional, estágios ou outras experiências no seio laboral, incluindo um sistema destinado a melhorar as oportunidades de emprego para jovens, mediante a promoção da mobilidade no seio da União. Nesse âmbito, a Comissão Europeia insistiu com os Estados-Membros para assegurarem a realização de investimentos eficientes nos sistemas educativos e de formação a todos os níveis; melhorarem os resultados escolares em cada ciclo, através de uma abordagem integrada que abrangesse as competências-chave e visasse a redução do abandono escolar precoce; aumentarem a abertura e a relevância dos sistemas de ensino, mediante a criação de quadros nacionais de qualificações, e a orientarem melhor a educação e formação profissional para as necessidades do mercado de trabalho; facilitarem a entrada de jovens no mercado de trabalho, através de uma ação integrada que abrangesse, nomeadamente, os serviços de orientação e aconselhamento e a educação e formação profissional. No que concerne à iniciativa agenda para novas qualificações e novos empregos, a Comissão Europeia referiu a possibilidade de os Estados-Membros desenvolverem várias ações, de entre as quais podem ser destacadas: pôr em prática os respetivos percursos nacionais para a flexisegurança; reduzir a segmentação do mercado de trabalho e facilitar as transições bem como a conciliação da vida profissional e familiar; dar um forte impulso à aplicação do Quadro Europeu de Qualificações, através da aplicação dos quadros nacionais de qualificações; assegurar as competências necessárias para a participação na formação contínua e no mercado de trabalho, incluindo a educação e formação não formal e informal; desenvolver parcerias entre os mundos da educação e da formação e do trabalho, em especial mediante o envolvimento dos parceiros sociais no planeamento do ensino e da formação.
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Foi neste contexto que surgiu a Recomendação de uma Garantia Jovem, no sentido de todos os Estados-Membros assegurarem que todos os jovens com menos de 25 anos beneficiassem de uma boa oferta de emprego, educação ou formação ou estágio, no prazo de quatro meses após terem ficado desempregados ou terem terminado o ensino formal. Desta forma, os jovens devem ser apoiados de forma a conseguirem uma colocação profissional, uma inscrição em ações de formação contínua, uma aprendizagem ou um estágio profissional. Dependendo da situação individual, o apoio necessário será diferente. Para muitos jovens, uma intervenção curta e simples, tais como informações relativas à orientação profissional universal, à educação e ao mercado de trabalho, é suficiente para conseguirem alcançar, por si próprios, a colocação desejada dentro do período de tempo especificado. Outros requererão uma avaliação dos candidatos ao mercado de trabalho, uma correspondência entre a oferta e a procura de vagas e, se necessário, uma breve formação sobre a elaboração de CVs. Outros ainda, frequentemente os jovens mais desfavorecidos, poderão necessitar de intervenções mais profundas, longas e complexas e do recurso a ofertas tangíveis, de modo a garantir que também eles beneficiam da Garantia para a Juventude25. 2.1.2. A Recomendação relativa ao estabelecimento de uma Garantia para a Juventude foi aprovada pelo Conselho da União Europeia, em 22 de abril de 2013, com base numa Proposta de Recomendação realizada pela Comissão Europeia, de 5 de dezembro de 2012, considerando que este termo alude a “uma situação em que os jovens têm uma boa oferta de emprego, educação contínua, aprendizagem ou estágio no período de quatro meses após terem ficado desempregados ou terem terminado o ensino formal. A oferta de oportunidades de educação contínua poderá englobar também programas de formação de qualidade que confiram uma qualificação profissional reconhecida”26. Por outro lado, ela permitiria contribuir para a obtenção de três das metas da estratégia Europa 2020, nomeadamente a que fixa nos 75% a taxa de emprego no escalão 20-64 anos, a que fixa o abandono escolar precoce abaixo dos 10%, e a que determina a erradicação da pobreza e da exclusão social para, pelo menos, 20 milhões de pessoas.
Segue-se o defendido pela COMISSÃO EUROPEIA, Documento de Trabalho dos Serviços da Comissão que acompanha o documento – Proposta de Recomendação do Conselho relativa ao estabelecimento de uma Garantia para a Juventude, SWD (2012) 409 final, de 5 de dezembro de 2012, p. 2. 26 Considerando 5 da Recomendação do Conselho, de 22 de abril de 2013, relativa ao estabelecimento de uma Garantia para a Juventude. 25
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Fazendo um breve percurso histórico, podem ser referidos alguns marcos importantes que levaram à adoção desta Recomendação27. Assim, já em 2005, o Conselho acordara que “cada desempregado deve beneficiar de uma nova oportunidade antes de completados seis meses de desemprego, no caso dos jovens” e, através da Decisão n.º 2008/618/CE, de 15 de julho de 2008, relativa às Orientações para as políticas de emprego dos Estados-Membros, o Conselho reduziu o prazo para “não mais de quatro meses” para os jovens que deixam o ensino. Mais tarde, também o Parlamento Europeu, na Resolução de 6 de julho de 2010, intitulada A promoção do acesso dos jovens ao mercado de trabalho e o reforço do estatuto de formando, estagiário e aprendiz, apelava ao Conselho e à Comissão para que criassem uma Garantia para a Juventude Europeia que assegurasse a todos os jovens da União o direito a receber uma oferta de emprego, um estágio, formação profissional suplementar ou combinação de trabalho e formação profissional após um período máximo de quatro meses de desemprego. Como resposta, a Comissão Europeia, na Comunicação de 15 de setembro de 2010, intitulada Juventude em movimento, encorajava os Estados-Membros a instituírem garantias para a juventude. No Pacote do Emprego, proposto na Comunicação de 18 de abril de 2012, intitulada Uma recuperação geradora de emprego, a Comissão apelava à mobilização ativa dos Estados-Membros, dos parceiros sociais, e de outros intervenientes, para responder aos desafios na área do emprego, em especial, o desemprego dos jovens. A Comissão sublinhava o importante potencial de criação de emprego de setores como a economia verde, a saúde e a assistência social e as tecnologias de informação e comunicação, tendo para tal elaborado três planos de ação para seguimento. Mais tarde, na Comunicação de 10 de outubro de 2012, intitulada Reforçar a indústria europeia em prol do crescimento e da recuperação económica, a Comissão destacava também seis áreas prioritárias particularmente promissoras para a inovação industrial. No Pacote do Emprego, a Comissão sublinhava ainda que a promoção do espírito empreendedor, a disponibilização de serviços de apoio às start-ups e de microfinanciamento, bem como o estabelecimento de sistemas para converter as prestações de desemprego em subvenções ao arranque de novas atividades podiam desempenhar um importante papel, também para os jovens. O Pacote do Emprego propunha também o recurso a subvenções salariais para fomentar novas contratações de mão de obra e apontava a redução da carga fiscal como forma de
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E que também podem ser vistos na Recomendação referida na nota anterior, Considerandos 8
e ss. 237
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ajudar a promover o emprego, assim como a realização de reformas equilibradas da legislação laboral que pudessem ajudar os jovens a conseguir empregos de qualidade. Na Resolução de 24 de maio de 2012 sobre a Iniciativa Oportunidades para a Juventude, o Parlamento Europeu urgiu os Estados-Membros a tomarem medidas rápidas e concretas a nível nacional para garantir que, nos quatro meses subsequentes à sua saída da escola, os jovens tivessem um emprego digno ou frequentassem um programa de ensino ou de reciclagem formativa. O Parlamento Europeu sublinhava que o instrumento de Garantia para a Juventude precisava de melhorar efetivamente a situação dos jovens NEET e de, progressivamente, resolver o problema do desemprego jovem na União Europeia. Contudo, há que ter em atenção que os instrumentos de Garantia para a Juventude deverão atender à diversidade dos Estados-Membros e às suas diferentes condições de partida no que se refere ao desemprego juvenil, ao quadro institucional e à capacidade dos vários intervenientes no mercado de trabalho, tendo de ter ainda em atenção as diferentes situações em matéria de orçamentos públicos e condicionalismos financeiros para a afetação de recursos. Para muitos Estados-Membros, a implementação da Garantia Jovem implica reformas estruturais no regime da formação, educação e mesmo emprego, como forma de tentar alterar o percurso de transição entre a escola e o mercado de trabalho. Por outro lado, vários Estados-Membros têm de tentar desenvolver mecanismos que auxiliem na identificação e na ativação de programas que consigam captar os jovens que estão mais afastados do mercado de trabalho, como é o caso dos NEETs. E, exatamente porque a Garantia Jovem se baseia em reformas estruturais, a Comissão propôs recomendações específicas para oito Estados-Membros: a Espanha28, a Eslováquia, a Croácia, Portugal, a Polónia, a Bulgária e a Irlanda. Portugal assumiu a fixação dos quatro meses como prazo limite para os Estados garantirem a oferta da Garantia para todos os jovens, considerando que, quanto mais célere for a intervenção, menores são os riscos ao nível do desemprego desta população, contribuindo, igualmente, para uma maior dinâmica das medidas de ativação e promoção da empregabilidade. Considerou, contudo, que a Garantia Jovem deve
28 Para o caso espanhol, com mais desenvolvimentos, veja-se La Estrategia de Emprendimento y Empleo Joven en La Ley 11/2013: desempleo, empleo y ocupación juvenil (coord. FERNANDA FERNÁNDEZ LÓPEZ e JAVIER CALVO GALLEGO), Editorial Bomarzo, Albacete, 2013, assim como CABASÉS PIQUÉ e AGNÈS PARDELL VEÀ, Una visión crítica del Plan de Implantación de la Garantía Juvenil en España, EditorialBomarzo, Alicante, 2014. Cf., ainda, o Real Decreto 8/2014, de 4 de julho, que estabeleceu o Sistema Nacional de Garantia Jovem, assim como a Lei n.º 18/2014, de 15 de outubro, de aprovação de medidas urgentes para o crescimento, competitividade e eficiência.
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estender-se aos jovens até aos 30 anos29, devido à duração e complexidade dos trajetos de transição entre a educação e o trabalho e a vida adulta30. Contudo, a questão que se pode colocar desde já é saber qual a consequência para os Estados-Membros se não cumprirem o prazo de quatro meses. Não seria preferível estabelecer um prazo de referência e os Estados-Membros adaptarem-no às circunstâncias do seu país31? 2.1.3. A Garantia Jovem deve, por outro lado, ser considerada um investimento, pois, apesar de representar um custo para os Estados-Membros32, os custos de não a ter são muito superiores. Na verdade, a European Foundation for Living and Working Conditions estimou que as perdas económicas na União Europeia, por ter milhões de jovens no desemprego ou, ainda, sem estar na escola ou formação, ascendiam a mais de 150 mil milhões de euros em 2011, isto é, cerca de 1,2% do PIB. Para além disto, há que ter em atenção que há custos para a economia, com um desemprego que se prolonga no tempo, assim como para a própria sociedade e os jovens em geral, com o aumento da pobreza e desemprego no futuro, sendo os custos de não se fazer nada muito elevados33. Assim, as poupanças feitas através do investimento na Garantia para a Juventude ultrapassam a simples redução das despesas com a proteção social. Evitar o desemprego e a deterioração das competências conduzirá a benefícios a longo prazo para os jovens e para a economia, através da redução do desemprego ao longo do ciclo de vida, de rendimentos mais elevados e, consequentemente, receitas de impostos e de contribuições para a segurança social mais elevadas e de menos problemas sociais e de saúde.
Em Espanha, a Garantia Jovem abrange os jovens maiores de 16 anos e menores de 25, podendo ir até aos 29 anos, mas apenas para aquelas pessoas que tenham um grau de deficiência igual ou superior a 33%. Para Itália, veja-se a recente alteração legislativa realizada pelo Jobs Act, aprovado pelo Senado italiano, em 25 de novembro de 2014, e que aprovou várias mudanças na lei laboral, incluindo a alteração ao art. 18.º do Statuto dei Lavoratori, assim como uma tutela crescente do contrato de trabalho de acordo com a antiguidade. Esta alteração tem reflexos no emprego dos mais jovens e na própria Garantia Jovem, ao estabelecer a existência de um contrato por tempo indeterminado mas com uma tutela que vai aumentando consoante a antiguidade do trabalhador, podendo originar, como alguns já escreveram, um novo apartheid no mercado de trabalho. Para mais desenvolvimentos, veja-se MICHELE TIRABOSHI, «Il Jobs Act alla prova di Garanzia Giovani», in @bollettino ADAPT, de 31 de outubro de 2014, e «Il Jobs Act di Renzi è il nouvo apartheid», in Le Esclusive, 5 de janeiro de 2014. 30 Veja-se tudo na Resolução do Conselho de Ministros n.º 104/2013, de 31 de dezembro, que instituiu um Plano Nacional de Implementação de uma Garantia para a Juventude. 31 Vide JOÃO SOARES ALMEIDA, «Reflexões sobre os novos caminhos da contratação a termo (As Portarias 106/2013 e 204-A/2013», in Questões Laborais, n.º 43, pp. 318 e ss. 32 Que foi estimado ser de 21 mil milhões de euros por ano pela OIT, ou seja, 0,45% do PIB da zona Euro. Cf. OIT, «Eurozone Job Crisis: Trends and Policy Responses», in Studies on Growth with Equity, 2012. 33 EUROFOUND, NEETs – Young People..., cit., pp. 61-62. 29
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Porém, a Garantia Jovem não é substituta da adoção de medidas macroeconómicas por parte dos Estados-Membros. Ela pode melhorar a taxa de desemprego juvenil, mas, se não forem adotadas medidas para o crescimento económico, será impossível resolver o problema do desemprego34. Atendendo a esta situação, há que ver a Garantia Jovem numa visão holística e que estabelece sobretudo três prioridades: assegurar que os jovens tenham a necessária formação que vai ao encontro das necessidades existentes no mercado; integrar os mais excluídos no mercado de trabalho; e, por último, auxiliar o empreendedorismo dos mais jovens. 2.2. Políticas ativas de emprego em Portugal 2.2.1. Evolução histórica Portugal, à semelhança de outros países da União Europeia, tem vindo a registar uma alta taxa de desemprego jovem, cifrando-se atualmente em cerca de 35,5%. Em resposta ao agravamento da situação do desemprego jovem em Portugal, o Governo instituiu o Plano Estratégico de Iniciativas de Promoção de Empregabilidade Jovem e Apoio às Pequenas e Médias Empresas – Impulso Jovem, para vigorar até ao final de 2013, e que assentava em três pilares: estágios profissionais, apoio à contratação e ao empreendedorismo, e apoio ao investimento35. O objetivo deste Plano consistia em atuar nos dois lados do mercado de trabalho, estabelecendo as condições favoráveis para a criação de postos de trabalho qualificados e duradouros por parte das empresas e criando oportunidades de ingresso no mercado de trabalho para jovens, oferecendo-lhes formação certificada ou estágios profissionais, visando uma posterior relação laboral duradoura, tentando inverter-se a tendência instalada de aumento do desemprego estrutural entre os jovens. Até ao final de novembro de 2013, este programa abrangeu cerca de 90 mil jovens, nos quatro eixos referidos, tendo contribuído para a integração de jovens no mercado de trabalho, beneficiando de medidas de apoio à contratação dirigidas às entidades empregadoras, para a criação de empresas e do próprio emprego, para a
Muitos Estados-Membros começaram a adotar medidas relacionadas com a Garantia Jovem, no início de 2014, que serviram, em alguns, como uma forma de alterar a política face ao desemprego juvenil, originando novas parcerias para uma maior eficácia de todo o sistema. 35 Esta medida foi instituída através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 51-A/2012, de 14 de junho, alterada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 36/2013, de 4 de junho. 34
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concretização de estágios profissionais e proporcionando reforço de qualificações dos jovens portugueses, visando melhorar os níveis de empregabilidade36. 2.2.2. Plano Nacional de Implementação de uma Garantia para a Juventude 2.2.2.1. A população mundial está a envelhecer e isto nota-se em Portugal onde, na última década, o número de jovens entre os 15 e os 29 anos reduziu-se em quase meio milhão; e se os jovens entre os 15 e os 29 anos representavam, em 1960, 23,9% da população residente37, na última década, assistiu-se à redução acentuada dos mesmos e, em 2011, o peso da população jovem entre os 15 e os 29 anos passou a ser menos de 1/5 da população portuguesa38. Os jovens com idades compreendidas entre os 15 e os 24 anos representam hoje cerca de 10,4% da população total. Desses jovens, pouco mais de metade, 52,4%, têm como nível máximo de habilitações o 3.º ciclo do ensino básico, 38,3% o ensino secundário ou pós-secundário e 9,4% uma habilitação de nível superior. No que respeita à situação dos jovens perante a atividade económica, constata-se que 62,7% se encontram inativos, estudantes e outros e que 37,3% estão ativos, empregados e desempregados. A taxa de desemprego dos jovens é de 36%, sendo que aproximadamente 43,4% dos jovens desempregados possui habilitações ao nível do ensino secundário e pós-secundário e 17,5% ao nível do ensino básico. Quanto ao tempo de duração da situação de desemprego, verifica-se que cerca de 64 600 jovens na faixa etária dos 15 aos 24 anos são atingidos pelo desemprego de longa duração, isto é, que dura 12 meses e mais39/40. Por outro lado, realizando o cruzamento da informação entre a duração do desemprego e os níveis de habilitações, conclui-se que a duração do primeiro é mais penalizadora para as pessoas com níveis de habilitação mais baixos. Assim, em regra,
36 Em termos de financiamento, foram fornecidos 143 milhões de euros, tendo sido abrangidos por este montante 56 000 jovens. 37 Valor que, com algumas oscilações, se manteve relativamente estável até 2001, apesar de ser já visível uma tendência de decréscimo. 38 Dados disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística e que podem ser consultados em www.ine.pt (consultado pela ultima vez em janeiro de 2015). 39 www.ine.pt (acedido pela última vez em janeiro de 2015). 40 Em 2011, a maioria dos jovens entre os 15 e os 29 anos já não frequentava o sistema de ensino, quer porque já tinha terminado o seu percurso escolar, quer porque tinha abandonado o sistema de ensino. Naturalmente, há diferenças significativas quando analisados os vários grupos etários. Assim, cerca de 84% dos jovens entre os 15 e os 19 anos estavam a frequentar o ensino, valor que desce para 39,4%, para os jovens com idade entre os 20 e os 24 anos, e para 14,3%, no grupo 25-29 anos.
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quanto maior for o nível de habilitação, menor é o período em que as pessoas permanecem desempregadas. Com efeito, mais de metade dos jovens que se encontram em situação de desemprego possui habilitações até ao nível do 3.º ciclo do ensino básico. A saída precoce dos sistemas de educação e formação, correspondente aos indivíduos entre os 18 e os 24 anos com nível de escolaridade completo até ao 3.º ciclo do ensino básico e que não se encontravam a frequentar qualquer tipo de educação e formação, apesar de ter diminuído significativamente entre 2002 e 2012, assumia, no final de 2012, o valor de 20,8%, acima da média da União Europeia que é de 12,7%. No 3.º trimestre de 2013, 15,2% da população jovem não se encontrava nem empregada nem a estudar ou a frequentar qualquer tipo de formação41. Por tudo isto, a Recomendação de uma Garantia Jovem, consubstanciada no compromisso de cada Estado-Membro assegurar que todos os seus jovens com idade inferior a 25 anos usufruam de uma boa oportunidade de emprego, educação e formação ou estágio no prazo de quatro meses após entrarem em situação de desemprego ou abandonarem os estudos, assume especial pertinência e oportunidade no caso de Portugal. Na verdade, Portugal defronta-se atualmente com a necessidade de, simultaneamente, responder a vários desafios. Por um lado, uma elevada taxa de desemprego dos jovens, quer dos que têm até 25 anos de idade, quer dos que têm mais do que essa idade e têm até 30 anos, o que obriga ao reforço de medidas que apoiem diretamente a contratação desses jovens ou de medidas de ativação que evitem a sua entrada em ciclos longos de desemprego e que, simultaneamente, favoreçam a sua futura inserção no mercado de trabalho. Por outro lado, outro dos desafios com que Portugal se continua a defrontar é o da elevação dos níveis de educação e da melhoria das qualificações da população jovem, como o de garantir um efetivo cumprimento de uma escolaridade obrigatória até à conclusão do 12.º ano ou até aos 18 anos42, bem como o de aumentar a taxa de jovens com formação de ensino superior43. Assim, atendendo à complexidade da temática, há que reconhecer que a implementação de uma Garantia Jovem requer uma resposta interministerial concertada que
41 Todos estes dados podem ser visualizados em www.ine.pt, e na Resolução do Conselho de Ministros n.º 104/2013, de 31 de dezembro. 42 Pode ver-se esta preocupação na Lei n.º 82-A/2014, de 31 de dezembro, que aprova as Grandes Opções do Plano para 2015. 43 Não pode deixar de ter-se em atenção que as qualificações na educação continuam a ser o melhor seguro contra o desemprego, pois este é menor consoante o maior nível de educação dos candidatos a emprego. Cf., para maiores desenvolvimentos, OIT, Is education the solution to decent work for youth in developing economies?, 2014.
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garanta respostas multidimensionais adequadas a uma camada da população e a uma fase da vida marcada por modalidades complexas de transição que se refletem numa grande heterogeneidade de situações e trajetórias. Na verdade, são necessárias medidas multissetoriais, em estreita parceria com o mundo empresarial, para chegar a novas respostas para a crise, bem como o fomento da inovação e empreendedorismo. 2.2.2.2. O Plano Nacional de Implementação de uma Garantia Jovem instituído em Portugal enquadra-se na nova geração de políticas ativas de emprego que estavam previstas no Programa do XIX Governo Constitucional e encontra-se em articulação, também, com certos objetivos do Compromisso para o Crescimento, Competitividade e Emprego, assinado pelo Governo e pela maioria dos Parceiros Sociais a 18 de janeiro de 201244, assim como o ponto 4 do Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades da Política Económica45. A aprovação deste plano visa assegurar que todos os jovens com menos de 30 anos beneficiem de uma oferta de emprego, de formação ou de estágio no prazo de quatro meses após terem ficado desempregados ou terem terminado o ensino formal. Este plano assenta em seis eixos que são: a informação e gestão deste plano; o sistema integrado de informação e orientação para a qualificação e o emprego; a educação e formação; os estágios e o emprego; as parcerias e redes; e a coordenação e o acompanhamento46. Iremos focar a nossa atenção apenas num deles, a saber: os estágios e o emprego. 2.2.2.2.1. Começando pelas medidas de apoio à realização de estágios e emprego, pode ser referida a Medida denominada Estímulo 2014, prevista na Portaria n.º 149-A/2014, de 24 de julho, que consiste em apoio financeiro, que inclui financiamento da União Europeia, às entidades empregadoras que celebrem contratos de trabalho a tempo completo ou a tempo parcial por prazo igual ou superior a seis meses, com desem-
Pode ver-se este Acordo em www.ces.pt (acedido pela última vez em janeiro de 2015). Esta medida tem financiamento da União Europeia, cujos montantes podem ser visualizados no Documento da Comissão Europeia, Youth Employment Initiative and the European Social Fund, 2014, p. 9, assim como em The EU Youth..., cit., p. 9. 46 Estes eixos seguem de perto o Estabelecido na Recomendação do Conselho da União Europeia de 22 de abril de 2013, que, no seu Considerando 20, estabelecia que “A Garantia para a Juventude deverá ser implementada através de um mecanismo que inclua medidas de apoio e adaptar-se a diferentes realidades nacionais, regionais e locais. Essas medidas deverão articular-se em torno de seis eixos: definição de uma estratégia de parceria, medidas de intervenção e de ativação precoce, medidas facilitadoras da integração no mercado de trabalho, utilização dos fundos da União e contínua avaliação e melhoria do instrumento, bem como a sua rápida implementação. Essencialmente, estas medidas visam prevenir o abandono escolar precoce, promover a empregabilidade e eliminar as barreiras práticas ao emprego. Podem ser apoiadas pelos fundos da União, devendo ser objeto de regular acompanhamento e aperfeiçoamento”. 44 45
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pregados inscritos nos centros de emprego ou centros de emprego e formação profissional, com a obrigação de proporcionarem formação profissional aos trabalhadores contratados. Porém, já anteriormente tinham sido adotadas outras medidas. Assim, tendo em atenção a situação existente em Portugal e na sequência da análise conjunta desenvolvida pelo Governo e pelos Parceiros Sociais em relação ao conjunto de apoios públicos ao emprego disponibilizados, tinha sido criada a medida Estímulo 2012, através da Portaria n.º 45/2012, de 13 de fevereiro, reformulada com a criação do Estímulo 2013, através da Portaria n.º 106/2013, de 14 de março, de modo a disponibilizar apoio financeiro direto aos empregadores que procedessem à contratação de desempregados. Os públicos-alvo dessas medidas foram, primeiramente, os jovens desempregados com idade entre os 18 e os 30 anos, através do Apoio à Contratação via Reembolso da TSU, criada pela Portaria n.º 229/2012, de 3 de agosto, alterada pela Portaria n.º 65-A/ /2013, de 13 de fevereiro, e no quadro do Plano Estratégico de Iniciativas de Promoção da Empregabilidade Jovem e Apoio às Pequenas e Médias Empresas, o Impulso Jovem, criado através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 51-A/2012, de 14 de junho, alterada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 36/2013, de 4 de junho, o que chama a atenção para a preocupação já mais antiga de Portugal com o desemprego jovem. Com a atual medida Estímulo 2014, pretende-se combater o desemprego, fomentar a criação líquida de postos de trabalho, promover a contratação de públicos mais desfavorecidos, reforçar vínculos laborais mais estáveis e combater a segmentação e a precariedade no mercado de trabalho. Contudo, a concessão do apoio está condicionada ao cumprimento do requisito da criação líquida de emprego no empregador e que os apoios atribuídos ao grupo dos jovens com idade inferior a 30 anos concorram para satisfazer o âmbito do eixo 4 – Estágios e Emprego – do Plano Nacional de Implementação de uma Garantia para a Juventude. Os destinatários desta medida são desempregados inscritos nos centros de emprego ou centros de emprego e formação profissional, numa das seguintes condições: beneficiário de prestações de desemprego; beneficiário do Rendimento Social de Inserção; cujo cônjuge ou pessoa com quem viva em união de facto se encontre igualmente em situação de desemprego e inscrito no Instituto de Emprego e Formação Profissional; inscrito há pelo menos 60 dias consecutivos47, no caso de desempregados com idade inferior a 30 anos48 ou com idade mínima de 45 anos, ou ainda outros desempre-
A contagem do tempo de inscrição não é prejudicada pela frequência de estágio profissional, formação profissional ou outra medida ativa de emprego, com exceção das medidas de apoio direto à contratação ou que visem a criação do próprio emprego. 48 Sublinhado nosso. 47
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gados que não tenham registos na segurança social como trabalhadores por conta de outrem nem como trabalhadores independentes nos últimos 12 meses que precedem a data da candidatura; que integre família monoparental; vítima de violência doméstica; ex-recluso e aquele que cumpra ou tenha cumprido penas ou medidas judiciais não privativas de liberdade e esteja em condições de se inserir na vida ativa; toxicodependente em processo de recuperação; inscrito há pelo menos seis meses consecutivos. O empregador que contratar algum destes destinatários terá o apoio de 100% do Indexante dos Apoios Sociais multiplicado por metade do número inteiro de meses de duração do contrato de trabalho a termo certo, não podendo ultrapassar o valor de 100% do IAS x 6, sendo que o valor será de 110% do IAS x 12, no caso de contratos de trabalho sem termo. No caso de celebração de contrato de trabalho a tempo parcial, o apoio referido nos pontos anteriores é reduzido proporcionalmente, tendo por base um período normal de trabalho de 40 horas semanais. O empregador é obrigado a proporcionar formação profissional ajustada às competências do posto de trabalho, através de uma das modalidades de formação em contexto de trabalho, pelo período de duração do apoio, mediante acompanhamento de um tutor designado pelo empregador, ou formação, em entidade formadora certificada, com uma carga horária mínima de 50 horas e realizada, preferencialmente, durante o período normal de trabalho. Em caso de conversão de contrato de trabalho a termo certo, anteriormente abrangido por esta Medida, em contrato de trabalho sem termo, por acordo celebrado entre empregador e trabalhador, o empregador tem direito à prorrogação do apoio, no valor de idêntica percentagem do IAS anteriormente aprovada x 6. O empregador que beneficie da prorrogação do apoio tem as obrigações correspondentes no âmbito desta Medida à celebração de contratos com duração igual ou superior a 12 meses ou sem termo, nomeadamente a obrigação de manutenção do nível de emprego a partir da data da conversão, sendo que a vigência do contrato de trabalho sem termo deve ter início no dia seguinte ao da cessação do contrato a termo anteriormente abrangido por esta Medida. Porém, neste caso, o empregador está dispensado da obrigação de proporcionar formação profissional, sem prejuízo, contudo, do estabelecido no Código do Trabalho, nos arts. 130.º e ss. Contudo, existem condições para a concessão destes apoios e, assim, só será concedido se for celebrado um contrato de trabalho, a tempo parcial ou a tempo completo, por tempo indeterminado ou a termo resolutivo certo pelo período mínimo de seis meses, existir a criação líquida de emprego e a manutenção do nível de emprego pelo
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menos durante o período de duração do apoio financeiro49, assim como tem de existir a garantia de formação profissional aos trabalhadores contratados durante o período de duração do apoio, e a remuneração tem de respeitar o previsto em termos de Retribuição Mínima Mensal Garantida e, quando aplicável, no respetivo instrumento de regulamentação coletiva de trabalho. Porém, o empregador não pode contratar mais de 25 trabalhadores através de contrato a termo certo em cada ano civil, não existindo limite ao número de contratações em caso da celebração de contratos de trabalho por tempo indeterminado. Durante a atribuição do apoio financeiro, o empregador deve manter o nível de emprego atingido por via do apoio, isto é, deve registar um número total de trabalhadores igual ou superior ao número de trabalhadores atingido por via do apoio, o qual será comprovado nos seguintes termos: no caso de contratos com duração inicial inferior a 12 meses, verificado no mês em que se completa a vigência do contrato; no caso de contratos com duração inicial igual ou superior a 12 meses e de contratos sem termo, verificado no mês em que se completa o 12.º mês de vigência do contrato50. 2.2.2.2.2. Como uma medida para fomentar a criação de empresas por parte dos jovens, Portugal adotou algumas medidas de apoio ao empreendedorismo, como é o caso do programa Investe Jovem, o programa apoio ao empreendedorismo e criação do próprio emprego, o programa nacional de microcrédito e a rede de perceção e gestão de negócios. O programa Investe Jovem só pode ser utilizado por jovens entre os 18 e os 29 anos e está previsto na Portaria n.º 151/2014, de 30 de julho. Ele contempla as seguintes medidas: apoio financeiro ao investimento, mediante a concessão de um empréstimo sem juros que pode ir até 75% do investimento total elegível; apoio financeiro à criação do próprio emprego dos promotores, através da atribuição de um apoio financeiro sob a forma de subsídio não reembolsável, podendo ir até € 2.515,32 por cada posto de trabalho, até ao limite de quatro; apoio técnico na área do empreendedorismo para refor-
49 Há criação líquida de emprego quando o empregador atingir por via do apoio, que inclui os trabalhadores contratados ou a contratar no âmbito da candidatura à Medida, um número total de trabalhadores superior à média mais baixa dos trabalhadores registados nos seis ou 12 meses que precedem a data da apresentação da candidatura. 50 De referir que, nas Grandes Opções do Plano para 2015, pode ver-se que se pretende instituir uma nova medida denominada Estímulo Emprego, que tem por finalidade criar uma nova modalidade de apoios à contratação que visa o aumento da eficácia e a eficiência dos apoios à contratação no processo de ajustamento do mercado de trabalho, mediante a fusão dos apoios financeiros subjacentes ao Estímulo Emprego e ao apoio à contratação via reembolso da taxa social única através da atribuição de um montante fixo de apoio financeiro que diferencia positivamente a celebração de contratos de trabalho sem termo em relação à contratação a termo, onde se inclui um prémio à conversão para contratos sem termo, bem como a integração de um maior leque de públicos desfavorecidos.
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ço de competências e para a estruturação do projeto, bem como para a consolidação do mesmo. Relativamente ao programa apoio ao empreendedorismo e criação do próprio emprego, ele incide sobre jovens desempregados, com idade entre os 18 e os 29 anos, em situação de desemprego involuntário ou inscritos há mais de nove meses, ou jovens à procura do primeiro emprego, com idade entre os 18 e os 29 anos, que têm de estar inscritos no Instituto de Emprego e Formação Profissional. O projeto de criação de empresa não pode envolver a criação de mais de 10 postos de trabalho, tendo de ser apresentado diretamente a uma das instituições bancárias aderentes. No caso dos projetos de criação do próprio emprego, o acesso ao pagamento de uma só vez do montante total do subsídio de desemprego pode ser complementado por acesso a crédito bancário. Os apoios podem variar entre o acesso ao pagamento do subsídio de desemprego de uma só vez, acesso ao crédito bancário, nas tipologias MICROINVEST e INVEST+, e apoio Técnico à Criação e Consolidação de Projetos, que envolve o acompanhamento do projeto aprovado; a realização de ações de formação, nomeadamente na área de gestão; e a consultoria em situações de maior fragilidade na gestão ou execução da iniciativa. No que concerne ao acesso ao Programa nacional de microcrédito, ele baseia-se num acesso mais facilitado ao crédito – através da tipologia MICROINVEST – e na disponibilização de apoio técnico na criação e na formação do empreendedor, durante os primeiros anos de vida do negócio. Este programa surge para apoiar a criação do emprego e o empreendedorismo entre as populações com maiores dificuldades de acesso ao mercado de trabalho, abrangendo jovens até aos 29 anos com especiais dificuldades de acesso ao mercado de trabalho e em risco de exclusão social que possuam uma ideia de negócio viável, perfil de empreendedor e formulem e apresentem projetos viáveis para criar postos de trabalho. Os apoios podem englobar uma atenuação do risco das entidades bancárias que concedem o empréstimo, através da linha de crédito MICROINVEST, o apoio técnico na criação do negócio e o apoio técnico no acompanhamento aos promotores51.
51 Relativamente a esta possibilidade, em Espanha, a MicroBank concedeu perto de 300 000 microempréstimos no valor de € 1 700 milhões, desde 2008, num contexto de grave crise económica e social. Através desta concessão de crédito a empreendedores, visou-se promover o emprego e o desenvolvimento económico, tendo esta atividade resultado num assinalável impacto social, estimando-se que tenha já contribuído para criar ou manter mais de 125 000 empregos. Há que ter em atenção que o facto de existirem inúmeros empreendedores interessados em iniciar os seus negócios com recurso a um pequeno financia-
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A rede de perceção e gestão de negócios constitui um modelo de apoio alargado ao empreendedorismo jovem, que vai desde o início de uma ideia à constituição de uma iniciativa sustentável, de cariz associativo ou empresarial. Este modelo de apoio apresenta uma série de soluções de acordo com o perfil do empreendedor: a rede de fomento de negócios, para candidatos à implementação de oportunidades de negócio previamente identificadas; o concurso de ideias e projetos, para candidatos à apresentação de propostas, ideias e soluções inovadoras a partir de visitas feitas a empresas, associações e Instituições Particulares de Solidariedade Social; o apoio à criação de empresas, para candidatos à constituição de iniciativas empresariais; e os projetos sustentáveis52. 2.2.2.2.3. Relativamente ao eixo estágios na Garantia Jovem, é possível a realização de estágio remunerado, com duração de nove meses53, em todos os setores de atividade, com vista a melhorar a transição dos jovens para o mercado de trabalho, regulados na Portaria n.º 204-B/2013, de 18 de junho, alterada pelas Portarias n.º 375/2013, de 27 de dezembro, n.º 20-A/2014, de 30 de janeiro, e n.º 149-B/2014, de 24 de Julho, e no Despacho n.º 9841-A/2014, de 30 de julho. Considera-se estágio o desenvolvimento de uma experiência prática em contexto de trabalho, com o objetivo de promover a inserção de jovens no mercado de trabalho ou a reconversão profissional de desempregados. O estágio traduz-se numa forma de transição para a vida ativa e não deve consistir na ocupação de posto de trabalho. Podem candidatar-se a este tipo de estágios jovens entre 18 e 30 anos e que não tenham feito outro estágio apoiado pelo Estado, tendo de estar inscritos no Instituto de Emprego e Formação Profissional.
mento tornam a microfinança extremamente relevante para o desenvolvimento económico. Ver. Para mais desenvolvimentos, Emprego Jovem..., cit., p. 5. 52 Para o ano de 2015, segundo as Grandes Opções do Plano, está prevista a criação de uma nova medida denominada Emprego Jovem Ativo, com o objetivo de promover, por um lado, o desenvolvimento de competências pessoais e relacionais, bem como de natureza profissional, junto dos jovens que não possuem escolaridade obrigatória, como uma maneira de facilitar a concretização de futuros processos de qualificação, e, por outro lado, a aquisição de competências em matéria de gestão e mobilização de equipas para os jovens com qualificação mínima de nível 6, no sentido de melhorar o perfil de empregabilidade. O desenvolvimento de tais competências nos diferentes tipos de jovens passa obrigatoriamente pela realização de atividades conjuntas com o acompanhamento de um orientador da entidade promotora do projeto de atividades, sendo comparticipadas as despesas com os jovens ao nível da bolsa mensal, da alimentação e do prémio de seguro de acidentes pessoais. 53 Podendo ser, nalguns casos, de 12 meses. 248
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2.2.2.2.4. A aplicação destas medidas em Portugal traz, contudo, alguns desafios que são de diferente índole, como a necessidade de uma coordenação eficaz e do empenhamento dos diferentes parceiros, ministérios, diferentes níveis da administração pública, parceiros sociais e organizações de juventude; ausência de um balcão único de Garantia Jovem, o qual permitiria facilitar o contacto com os jovens e o seu acesso aos diferentes serviços; fraca intervenção precoce e medidas de divulgação para os jovens NEETs que não estão registados nos serviços públicos de emprego; necessidade de um melhor alinhamento do ensino e formação com as necessidades do mercado de trabalho mediante uma antecipação das necessidades a nível de competências54, sendo que, nos últimos anos, a evolução da taxa de abandono precoce da educação e formação tem revelado um decréscimo significativo, realçando o esforço de Portugal na recuperação dos défices de educação e de formação da população portuguesa. Esta redução acentuada no segmento populacional entre os 18 e os 24 anos é justificada pela aposta na qualificação da população e nos diversos programas de combate ao abandono escolar e aos programas de educação e formação de adultos55.
3. Conclusões Fornecer aos jovens melhores condições de vida, através de uma melhoria das suas qualificações e do seu trabalho, é essencial para uma economia sustentável, duradoura e para o desenvolvimento social. A Garantia Jovem constitui um objetivo extremamente ambicioso pois é uma medida que compreende várias políticas que, coordenadas, conseguem acompanhar as várias fases dos jovens e auxiliá-los na transição entre os estudos e a vida profissional. Ao incluir vários eixos que passam pela educação, formação, estágios e emprego, tenta-se abranger todas as áreas mais problemáticas e conseguir uma melhor ligação entre a oferta e a procura no mercado de trabalho. Na verdade, os Estados-Membros onde a política de formação e estágios se encontra mais bem desenvolvida e coordenada são os mesmos que registam uma menor taxa de desemprego jovem.
54 Estes desafios podem ser visualizados no Relatório feito pela Comissão Europeia a propósito da implementação da Garantia Jovem – State of Play of the implementation of the Young Guarantee – Portugal, e no Documento de Trabalho da Comissão Europeia, Avaliação do Programa Nacional de Reformas e do Programa de Estabilidade para 2014 de Portugal, de 2 de junho de 2014, pp. 20-21. 55 Ver estes dados em Anexos: Estratégia Europa 2020 – Ponto da situação das Metas em Portugal – Abril de 2014.
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Assim, não se considera que o melhor caminho para a plena integração dos jovens no mercado de trabalho seja tanto o da flexibilização do mercado de trabalho, mas sim fatores institucionais como a qualidade da educação, da aprendizagem, da formação e a existência de um sistema de educação eficaz na transição da escola para o mercado laboral. Para resolver o problema do desemprego jovem, a educação continua a ser a principal resposta. Serão também necessárias soluções mais transversais e integradas para um desafio tão complexo como é o da empregabilidade dos jovens, considerando que circunscrever a ação ao fenómeno do desemprego não será suficiente. Contudo, a Garantia Jovem, para verdadeiramente alcançar o sucesso, necessita de vontade política e investimento por parte dos Estados-Membros, estabelecendo parcerias e cooperação com serviços de emprego e formação profissional, com empresas, com os parceiros sociais, com instituições de educação e organizações de jovens, criando efetivas oportunidades de emprego. A prioridade deve ser dada à formação e não deixar os jovens lidarem sozinhos com o desemprego, sob pena de se tornarem economicamente inativos e NEETs. Entende-se que, perante o desafio de tentar solucionar o elevado desemprego jovem, a solução deverá ser, não a promoção de uma maior precariedade laboral com base na ideia de qualquer emprego é melhor do que nenhum emprego, mas sim a adoção de meios para favorecer a emancipação dos jovens assim como de condições dignas e decentes de trabalho, sendo de crucial importância o papel dos parceiros sociais. Na verdade, só é possível ter-se um genuíno crescimento económico se os trabalhadores tiverem uma efetiva oportunidade de trabalhar.
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