1º capítulo - O amor não tem leis - O julgamento final

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Clara “Não adianta correr, Clarinha, eu vou te pegar.” Enquanto eu tentava fugir do ataque de cócegas do Felipe, eu podia ouvir sua risada e ele dizendo que eu não tinha escapatória. “Para, Felipe, você sabe que eu odeio cócegas”, gritei na tentativa de convencê-lo a não fazer aquilo, mas eu já sabia que era uma batalha perdida. Assim que ele me alcançasse, eu sofreria em suas mãos. “Princesa, você sabe que correr é pior.” Sua voz doce era um alívio para as minhas dores, e estar com ele era a melhor parte do meu dia. Ter Felipe em minha vida foi uma bênção que recebi. Um oásis em meio ao deserto. “Peguei!” Felipe me alcançou e me jogou por cima dos seus ombros, me carregando como se eu fosse um saco de batatas. “Me solta, Lipe!” Eu me debatia contra as suas costas, mas nada adiantava. Felipe era um homem em uma missão, e, por fim, eu desisti de tentar vencê-lo e comecei a rir. Desci minhas mãos em direção a sua bunda e o belisquei. “Mais uma transgressão pela qual você irá me pagar, Princesa.” Ele disse isso tentando usar um tom de voz bravo, mas eu sabia que estava se divertindo tanto quanto eu. “Promessas… Promessas.” Eu o provoquei e, assim que chegamos à toalha estendida na grama, ele me colocou com cuidado sobre ela e subiu em mim.

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Minha respiração começou a falhar: seu corpo musculoso sobre o meu sempre me causava arrepios. O dia estava lindo, ensolarado, mas não muito quente. Eu tinha acabado de sair de mais uma consulta médica, arrasada e deprimida. A cada dia que passava, as esperanças de cura sem intervenção cirúrgica se tornavam menores, quase nulas. Vendo meu abatimento, meu namorado mais uma vez veio me socorrer, assim como em todas as vezes que precisei dele. Sua estratégia da vez era um piquenique no parque. Felipe preparou tudo, desde a comida até a toalha que estava embaixo de nós. Encarei seus lindos olhos azuis. Amava tanto aquele homem que o meu maior medo era que ele se prendesse a mim de uma forma que não teria volta, e eu não sabia se estaria presente por muito tempo. “Casa comigo?” Seu pedido me paralisou. Aquilo era o que eu mais queria e o que eu mais temia. *** — Clara? — A voz baixa da Cristina me trouxe de volta para o presente. Fazia dois meses desde o acidente e eu nunca mais havia falado com Alexandre ou com qualquer outra pessoa da família Ferraz. Diego tinha se jogado na frente de um carro para me salvar, o carro não o atingiu, mas ao cair ele bateu com a cabeça no meio-fio e teve traumatismo craniano. O medo de perder mais uma pessoa que eu amava me fez correr e me esconder. Abandonei Alexandre no corredor do hospital como se ele fosse qualquer um, como se não significasse nada, quando simplesmente significava tudo. Ainda me lembro da sua expressão de desespero ao me ver atravessando a porta. Também tinha sido doloroso para mim, mas eu não podia ficar e ver meu maior pesadelo mais uma vez se tornar realidade. Depois daquele dia minha vida mudou do vinho para água. Eu fugi e passei um tempo fora da cidade, na expectativa de blindar os meus sentimentos novamente, mas foi tudo em vão. Me enganei achando que dois meses longe fariam com que o amor que eu sentia pelo Ferraz acabasse. Pelo contrário, quanto mais tempo eu passava longe, mais saudades eu sentia. Pelo menos o tempo em que fiquei afastada serviu para alguma coisa: embora relutante, depois de ouvir Dereck falar por um dia inteiro que eu deveria procurar ajuda profissional, eu decidi que a primeira coisa a fazer quando voltasse para a realidade seria tentar resolver meu passado, para talvez conseguir viver meu presente e, quem sabe assim, ter a chance de ter um futuro. Confesso que, no começo, me abrir com a Cristina não havia

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sido fácil, mas hoje, na minha terceira consulta, eu finalmente comecei a falar do Felipe. — Desculpa, Cristina — falei assim que minha consciência voltou. Às vezes me ausentava, deixando a realidade e me trancando em meus próprios pensamentos. Era comum. Quando não era Felipe, era Alexandre que tomava conta de minhas memórias. Inevitável! Cristina estava me olhando de uma forma a que eu já estava acostumada, mas, apesar de ver compaixão em seu olhar, eu percebia que ela não sentia pena de mim, talvez por estarmos em um ambiente profissional. — Quer encerrar? — ela perguntou de modo complacente. Podia ouvir o teclado do computador durante todo o tempo em que eu falava. Sabia que ali estava sendo anotada toda a minha história. Uma história da qual eu tentava fugir e que, ao mesmo tempo, me orgulhava. Uma confusão total. Concordei sem dizer nada e levantei. Comecei a caminhar em direção à porta, quando a voz da Cristina chamou minha atenção. — A culpa nunca vai te deixar — ela disse me encarando. — Você tem que aprender a conviver com ela. Somente assim ela te deixará viver. Me despedi sem responder. Eu sabia que era verdade, mas ainda era difícil fazer meu coração entender que eu não era a culpada. A prova disso era que eu vivia com um pedaço do Felipe dentro de mim. Seu rim me mantinha viva, mas também me lembrava de que por isso eu tinha perdido o meu noivo, o homem que eu mais tinha amado. Até a chegada do Alexandre. Eu era loucamente apaixonada pelo Ferraz, cada centímetro do meu corpo gritava desesperadamente por ele, e isso me assustava. Como eu poderia amá-lo mais do que amei aquele que me deu uma nova vida? Não sabia responder, e esse sentimento confuso ainda era o nó que me impedia de procurá-lo. Ainda não estava bem comigo mesma, e não era justo arrastar Alê junto nessa bagunça emocional que era o meu coração. Ainda mais agora, depois de tudo que aconteceu com o Diego. Essa era outra situação que eu não me perdoava por ter causado. Diego não merecia. Deixei a terapia, mas a análise continuava, pois, mesmo após sair da sala da Cris, eu ainda pensava em minha vida e no rumo que ela deveria tomar. Enfrentei quase quarenta minutos de trânsito para chegar em casa. Assim que entrei pela porta, fui recebida por uma voz que era mais que bem-vinda. — Boa noite, Clarinha — Nando me saudou com sua alegria de sempre. Estava para nascer algo que tirasse o bom humor do meu melhor amigo. Ele estava vestido de forma despojada: bermuda cargo e camiseta. Era um homem muito atraente e, apesar de ser totalmente homossexual, arrancava suspiros de várias calcinhas por onde passava.

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— Vou tomar um banho e já volto para te ajudar com o jantar — eu disse e o beijei na bochecha. Entrei no meu quarto, deixei a bolsa em cima da cômoda e andei em direção ao banheiro. Tirei toda a minha roupa e liguei a água fria. De dois meses para cá eu me acostumei a tomar banho gelado, pelo menos assim eu tentava anestesiar meu sofrimento. Coloquei o celular sobre o balcão e liguei a música, na esperança de que isso me acalmasse. Mas ela teve o efeito contrário, pois So Far Away, do Avenged Sevenfold, não ajudava em nada alguém que estava disposta a parar de sofrer. A final song, a last request A perfect chapter laid to rest Now and then I try to find a place in my mind. Chorei por vários minutos, olhando para o nada, enquanto a água caía sobre o meu corpo. Tomei coragem e terminei o banho. Coloquei um vestido básico e confortável. Dei uma olhada no espelho e percebi meus olhos vermelhos, com bolsas arroxeadas em volta, mas já estava ficando acostumada a vê-los daquela forma. Não tinha nascido para ser feliz, e chorar já era algo que meu corpo sabia fazer muito bem. Ferraz Acordei mais uma vez sem saber que rumo dar à minha vida. Nos últimos dois meses eu tinha ligado o piloto automático. Apesar de todos me falarem que já estava na hora de superar, eu não conseguia esquecer a noite do casamento da minha irmã. Aquele foi o pior dia da minha vida, meu irmão e minha menina jogados no chão, como se fossem apenas uma massa de corpos sem alma e sem vida. Eu lutei com todas as minhas forças para trazer Diego de volta, para fazê-lo respirar, mas foi em vão. E, como se não bastasse, Clara fez questão de aumentar a minha dor ao me abandonar no hospital, dizendo que amava outro. Até aquele momento, sofrimento era uma palavra ainda desconhecida para mim. Confesso que descobri seu significado da forma mais dolorosa possível. Não conseguia aceitar e muito menos suportar. Era uma dor que rasgava meu peito, meu coração sangrava e minha alma parecia não frequentar mais meu corpo. Eu amava Clara, como jamais amei outra pessoa em minha vida. Mas, com a mesma intensidade que esse amor chegou, o ódio tomou conta de

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mim. Nunca a perdoaria, o que Clara fez destruiu os sentimentos que havia pouco eu tinha descoberto que existiam. E por mais que eu ainda a amasse como um louco, por mais que meu corpo clamasse pelo dela, por mais que as noites fossem vazias e geladas sem sua presença, eu não voltaria atrás. Clara era passado, um passado que eu queria esquecer que um dia existiu. — Bom dia — a recepcionista do hospital me cumprimentou assim que cheguei. Sua voz era gentil, como sempre, mas eu não podia deixar de notar o sentimento de pena em seu olhar. — Bom dia — respondi cordialmente e entrei no quarto 602. Esse número já estava incrustado em minha pele. Passei tantos dias e noites nos últimos dois meses, entrando e saindo desse lugar, que conhecia cada pedaço do edifício. — Oi, mãe — disse em um tom de voz baixo e a cumprimentei com um beijo em sua testa. Minha mãe estava visivelmente cansada, as olheiras roxas embaixo dos seus olhos revelavam isso. Mas ela não se abalava, se mantinha firme, e era um porto seguro para o resto da família. — Bom dia, meu filho — respondeu com um sorriso que não chegava aos seus olhos. Ela estava sentada em uma poltrona segurando um livro. Tinha trazido alguns da minha biblioteca para tentar distraí-la. — Como está o escritório? — perguntou tentando melhorar o clima. Eu ainda estava de pé, evitava olhá-lo, pois cada vez que eu o fazia, morria um pedaço de mim. — Está bem, essa semana vamos promover o Nando — contei a novidade. Nando tinha sido muito bem-indicado pelo Diego para ocupar um cargo como advogado efetivo da Ferraz. Ele era extremamente competente e tinha concluído o curso de Direito havia algumas semanas. Mesmo antes de obter seu registro junto à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), decidimos que ele seria o mais novo membro da equipe jurídica do escritório. — Isso é bom. — Minha mãe se levantou e andou em direção à cama que estava no meio do quarto. — Diego ficaria feliz em saber disso. — Sua voz sempre calma, embora embargada pelas lágrimas não derramadas, doía profundamente em mim. Acredito que nenhuma mãe deveria passar por isso. — Como ele está? Algum progresso? — perguntei me aproximando dele. A cabeça dela balançou em negativa, me dizendo o que eu já sabia. Diego continuava em coma. Ver meu irmão, tão cheio de vida, tão alegre, imóvel nessa cama de hospital e eu aqui sem poder fazer nada, me fazia morrer mil vezes. Perdi a conta de quantas vezes implorei a Deus para me trocar de lugar com ele. Preferia morrer a ver meu irmão partir. Abracei a minha mãe.

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— Quando esse pesadelo vai acabar? — perguntou, deixando as lágrimas vencerem, e chorou em meus braços. Poucas vezes ela havia feito isso na nossa frente, mas estava comigo nas vezes que fez. — Di é forte, mãe. Sua vontade de viver sempre foi contagiante. Ele vai sair dessa. — Tentava convencer nós dois naquele momento. — Agora vai descansar que eu vou passar a manhã com ele. — Levantei seu rosto para ver seus olhos e sequei as lágrimas que rolavam por sua face. Minha mãe não questionou e se despediu, me deixando sozinho com o meu irmão. Me aproximei da cama e olhei mais uma vez para o seu corpo estendido sobre ela. Apesar de desacordado, Diego ainda mantinha um semblante sereno e, por mais que fosse impossível, eu às vezes achava que ele sorria para mim. Puxei uma cadeira para perto da cama e, antes de me sentar, dei um beijo em sua testa. — E aí, maninho? Sei que já deve estar cansado de me ouvir. Mas estou aqui novamente. — Sentei e fiz de tudo para não chorar. Diego tinha sobrevivido ao acidente, mas após a cirurgia os médicos foram obrigados a induzir o coma, até que o inchaço do seu cérebro desaparecesse e seu corpo pudesse se recuperar. Mas infelizmente, quando os medicamentos foram retirados, Diego não acordou. Isso era comum em alguns casos, e não podíamos fazer mais nada além de esperar. Esperar um milagre, que Deus trouxesse meu irmão de volta, o meu Di, o meu maninho. Rezava diariamente, prometendo todas as coisas possíveis. Não desejava mais nada, queria somente que o meu irmão voltasse. Diego estava pálido, vestindo a camisola do hospital. Algumas vezes ri dele e tirei fotos para que, quando ele acordasse, visse o quão ridículo tinha ficado com a bunda de fora. Implorava por essa chance. Queria muito ver o sorriso sonhador do meu irmão novamente. — Ei, adivinha! Acredita que os condenados no mensalão terão um novo julgamento? Às vezes acho que a Justiça de cega não tem nada — comecei a conversar com ele, fazia aquilo sempre. Discutia todos os assuntos, como se estivéssemos no escritório ou em nossos apartamentos. O médico dizia que isso era bom e que alguns estudos realizados recentemente provavam que os pacientes em coma podiam ouvir o que as pessoas falavam. Passei toda a manhã conversando com meu irmão. E, após contar todas as novidades do escritório, resolvi ler um livro para ele. Escolhi Machado de Assis: sabia que Diego, assim como eu, era apaixonado pelas obras dele. Então, optei por Dom Casmurro, o preferido dele.

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— Vamos ver se dessa vez descobrimos se Capitu traiu ou não Bentinho? — perguntei divertido. E tudo que eu mais queria era ouvir sua voz me respondendo que acreditava no amor e que ela tinha sido fiel a ele. Essa discussão sempre perdurou entre nós. Posso considerar que tanto Diego quanto eu fomos beneficiados pela educação que recebemos dos nossos pais. Desde adolescentes sabíamos curtir a vida como qualquer um da nossa idade, mas também aprendemos a apreciar a cultura, principalmente a boa música e os bons livros. Comecei a ler e, meia hora depois, a porta se abriu e minha mãe entrou, trazendo uma sacola nas mãos. Provavelmente objetos pessoais do Diego ou lembranças e presentes que ele havia recebido, enquanto estava no hospital. Sempre nos revezávamos para nunca deixar Diego sozinho. Agora, eu iria almoçar e começaria logo a trabalhar, o escritório estava uma loucura sem o Diego. — Filho? — minha mãe me chamou gentilmente, enquanto eu pegava minha pasta para sair. — Você devia ligar para ela. Na mesma hora, meu corpo paralisou e meu coração disparou. Não precisava ouvir o nome para saber de quem minha mãe falava. Ultimamente, ela vinha tentando me convencer a falar com a Clara. Mas eu estava irredutível. Não suportava nem ouvir seu nome, imagina se iria procurá-la. — Mãe, eu não quero discutir com você. — Virei e vi minha mãe recuar diante do meu olhar. — Clara está no meu passado e não pretendo trazê-la para minha vida novamente — respondi um pouco mais ríspido do que deveria. Andei até minha mãe e dei um beijo em seu rosto, me despedindo e ao mesmo tempo me desculpando. Ela ainda me olhou esperançosa, mas eu neguei seu pedido. Clara era um assunto encerrado em minha vida.

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