Mikhail Gorbachev - Minha Vida

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Tradução:

Rodrigo Botelho Júlio Sato


Título original em alemão: Alles zu seiner Zeit – Mein Leben Copyright © 2013 by President Mikhail Gorbachev Amarilys é um selo editorial Manole. Editor-gestor: Walter Luiz Coutinho Editor: Enrico Giglio Produção editorial: Luiz Pereira Preparação: Felippe César de Paula Ferreira Revisão: Karina Sávio Editoração eletrônica: Tkd Editoração Capa: Daniel Justi Foto: Miki Kratsman/Corbis/Latinstock Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)    Gorbachev, Mikhail, 1931- .     Minha vida / Mikhail Gorbachev ; tradução    Rodrigo Botellho, Júlio Sato. -- Barueri, SP :    Amarilys, 2016.     Título original: Alles zu seiner Zeit     ISBN 978-85-204-3945-6     1. Chefes de Estado - União Soviética    Autobiografia 2. Gorbachev, Mikhail    Sergueievitch, 1931- 3. Gorbachev, Mikhail    Sergueievitch, 1931- Autobiografia I. Título. 16-01017 CDD-947.0854092 Índices para catálogo sistemático: 1. Gorbachev, Mikhail Sergueievitch : Autobiografia 947.0854092 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, por qualquer processo, sem a permissão expressa dos editores. É proibida a reprodução por Xerox. A Editora Manole é filiada à ABDR – Associação Brasileira de Direitos Reprográficos Edição brasileira – 2016 Editora Manole Ltda. Av. Ceci – Tamboré 06460-120 – Barueri – SP – Brasil Tel. (11) 4196-6000 – Fax (11) 4196-6021 www.amarilyseditora.com.br / info@amarilyseditora.com.br Impresso no Brasil Printed in Brazil


Em memรณria de minha esposa



SUMÁRIO

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Prólogo Nota introdutória

Parte i – Minhas universidades Capítulo 1 23 De onde venho 35 Guerra 47 Anos de escola e pós-guerra 50 Do lado paterno Capítulo 2 57 Alma mater 75 Trabalho nas eleições em Moscou 77 Komsomol 80 Raíssa 87 Casamento de estudantes 94 O que o futuro trará? 103 111 125 131 136

Capítulo 3 Retorno a Stavropol As pessoas não querem acreditar Kiev e Moscou Fyodor Kulakov Leonid Efremov 7


Mikhail Gorbachev

141 149

Capítulo 4 Difíceis anos felizes Mais uma coincidência

Parte ii – O caminho para o topo Capítulo 5 163 Minha pequena perestroika 178 A “força-tarefa relâmpago” 182 Como parecia aos outros... 186 Andropov, Kossygin, Kulakov 197 Criminalidade Capítulo 6 201 Como se vive em outros países 205 Despedida 211 217 223 227

Capítulo 7 Luta pela sobrevivência Ligação urgente O primeiro discurso Busca da noiva

233 239

Capítulo 8 Novamente em Moscou No topo: Leonid Brejnev

249 255 258 269 276

Capítulo 9 O setor agrário – um poço sem fundo? Troca de poder “Pão e defesa!” Andropov – Tchernenko: cabo de guerra A morte de Brejnev 8


Minha vida

Capítulo 10 281 450 dias: Andropov como secretário-geral 298 Viagem ao Canadá 303 Minha família 305 O fim de Andropov 312 Tchernenko 330 Mais uma despedida 335 Isso não pode continuar assim 347 357

Capítulo 11 O secretário-geral e a primeira-dama Do ponto de vista atual...

Parte iii – Como era a perestroika Capítulo 12 365 Tempo de mudanças 373 O início 376 Mais uma coincidência 380 Glasnost 386 Retrocesso 388 Sinais de alerta 395 404 410

Capítulo 13 Uma nova visão de mundo: a humanidade deixou de ser imortal O espírito de Genebra está em perigo De volta a 1986

413 417 419 426

Capítulo 14 Diferenças acerca das reformas econômicas Compromisso com a perestroika Outubro e a perestroika: a Revolução segue adiante Iéltsin: um caso difícil 9


Mikhail Gorbachev

431 437 439

Manifesto antiperestroika A revolução nas mentes Discussão pública do partido

Capítulo 15 445 A carta do novo pensamento apresentada à onu 456 Alexei Levinson: a avaliação de Gorbachev na Rússia de hoje 457 A reforma do sistema político 462 Declarações de independência e guerra das leis 477 O golpe de agosto de 1991 481 Operação secreta para dissolução da União 485 Por que essa pressa? 495 A perestroika no mundo de hoje 499 Conclusão da perestroika 505 507 528

Epílogo Índice de nomes e perfis Índice de imagens

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PRÓLOGO

Do diário 21 de setembro de 2000 Um ano sem Raíssa. Nós, parentes e amigos mais próximos, nos reunimos hoje para descerrar a lápide. A peça é do escultor Friedrich Sogojan. Uma placa de mármore colorida – como um campo repleto de flores. Pedras grandes. A inscrição diz: “Raíssa Maximovna Gorbachova, 5 de janeiro de 1932 – 20 de setembro de 1999”. O vulto de uma mulher jovem, muito parecida com Raíssa. Ela se inclina para depositar flores do campo sobre o túmulo. Um ano se passou, talvez o pior de todos. Minha vida perdeu o verdadeiro sentido. Precisei de meses para me recuperar. O que me salvou foi a proximidade com minha filha, Irina, minhas netas, Xênia e Anastácia, e meus amigos. Depois da morte de Raíssa, suspendi as viagens e aparições públicas por alguns meses. Passei todo o tempo na minha datcha. Nunca antes me sentira tão terrivelmente só. Raíssa e eu estivemos juntos por quase cinquenta anos, um ao lado do outro, e nunca percebemos isso como um fardo, pelo contrário: sempre vivemos bem a dois. Nós nos amávamos, embora não conversássemos sobre o assunto. O essencial era o seguinte: queríamos preservar tudo o que nos havia aproximado durante a juventude. Nós nos entendíamos e cuidávamos do nosso relacionamento. Não me livro do sentimento de ser responsável pela morte de ­Raís­sa. Repasso mentalmente todos os momentos para entender como foi 11


Mikhail Gorbachev

possível eu não ter conseguido salvá-la. Percebi o quanto ela se abateu com os acontecimentos recentes: como nosso país pôde ter sido tomado por pessoas sem decência, escrúpulos e responsabilidade? Raíssa tocava nesse assunto constantemente e, quando eu reclamava, alegando que não se pode pensar o tempo todo em uma só coisa, ela se calava e recolhia-se a sua toca. Eu sentia muito por isso. Seu sofrimento me afligia. Sempre me lembro da última noite que passou com vida, entre os dias 19 e 20 de setembro. Raíssa faleceu no dia 20 de setembro de 1999, às 2h57. Ela morreu sem sentir dor, estava em coma. Não pudemos dizer nada um ao outro como despedida. Ela se foi dois dias antes da data agendada para o transplante de células-tronco da medula de ­Ludmila, sua irmã, cinco dias antes do aniversário de 46 anos da cerimônia do nosso casamento civil em Moscou. Acreditei na sua cura até o último momento e, por muito tempo, não fui capaz de compreender o ocorrido. Incapazes e consternados, Irina e eu permanecemos ao lado de sua cama: “Não vá embora, ­Sachar­ka.* Você está ouvindo?”. Eu segurava suas mãos na esperança de que ela talvez respondesse pressionando a minha. Raíssa permaneceu em silêncio – ela estava morta. Antes da doença, Raíssa e eu conversamos repetidas vezes sobre o nosso futuro. Uma vez, eu a ouvi dizer: “Não gostaria de ficar sem você. Essa não seria uma opção para mim. Você, sim, você pode se casar e continuar sua vida”. Fiquei abalado com o que se passava pela sua cabeça. “O que você está dizendo?! Por que você está falando isso? Por que está falando em morrer? Você é jovem, olhe-se no espelho. Ouça o que as pessoas estão dizendo. Você só está cansada.” “Não quero ser uma mulher velha”, ela sempre dizia. Quando chegaram os netos, tivemos de decidir como eles se dirigiriam a nós. Ela *

Apelido carinhoso inspirado no famoso retrato de uma menina camponesa, obra de 1825 do artista russo Alexei Gavrilovich Venetsianov. (N.T.)

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Minha vida

quis ser chamada de babulia. “Babushka* soa tão decrépito, mas, por outro lado, babulia tem energia!” Ela era assim... Raíssa gostava de um provérbio sobre a idade de uma mulher: “Criança, menina, jovem, jovem, jovem, jovem – uma mulher velha é uma mulher morta”. Nos últimos anos da nossa vida em comum, ela sonhava bastante com o falecimento de um de nós dois. Percebia cada vez com mais frequência que ela tinha medo. Às vezes, ela dizia: “Vamos viajar menos”. Para ela, tornava-se cada vez mais difícil me acompanhar em viagens longas. Mas, como eu podia ler nos seus olhos tristes, era mais difícil ainda ficar sozinha. Naquela noite, Irina e eu estávamos ao lado da sua cama. Choramos, sem poder fazer mais nada. 5 de janeiro de 2001 O aniversário de Raíssa. Ela teria completado 69 anos. Em nossas conversas sobre o futuro, ela dizia constantemente: “Se eu vivesse até o romper do novo século e do novo milênio, isso já seria mais do que suficiente”. Três meses a separaram desse objetivo. Nós tínhamos um plano: queríamos dar as boas-vindas aos anos 2000 de forma inesquecível. Como Irina e as crianças nunca haviam ido a Paris, pretendíamos adentrar os anos 2000 na Champs-Élysées, na cidade mais maravilhosa do mundo. Estávamos ansiosos com a viagem, até sermos atingidos por essa terrível perda. Mesmo assim, fui com as meninas até Paris, o presente de natal de Raíssa para elas. Hoje estivemos no cemitério Novodevichy. Levamos muitas flores – já era época de natal. Nevara durante a noite. Escolhi as flores prediletas de

*

Maneira carinhosa de se referir, em russo, a uma senhora idosa, avó ou matriarca. (N.T.)

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Com Irina, Anastácia e Xênia, 2009.


Minha vida

­ aís­sa: rosas vermelhas. Uma imagem inesquecível: as rosas vermelhas R contra o branco da neve. Sobre a lápide. Quando voltamos, sentamo-nos à mesa. Na parede, um grande retrato dela. Na sala, flores, velas acesas, a árvore de natal enfeitada e o aroma de pinho. Sobre a mesa, tudo com o que ela costumava nos mimar. Resumindo: um banquete russo com as cores da Sibéria, na forma de pelmeni e da torta chamada Avantgarde, preparada pela confeitaria do Kremlin e cujo nome fora escolhido por Raíssa. Erguemos as taças e permanecemos em silêncio... Depois do jantar, subi para o meu escritório. Deixei as luzes apagadas e caminhei até a janela. O terreno da datcha iluminado pelos lampiões, a densa floresta russa e a neve caindo incansável – eu me senti como se estivesse no Teatro Bolshoi, vendo O Quebra-Nozes. Cultivávamos uma tradição familiar de ir ao Teatro Bolshoi todos os anos, na véspera do Ano-Novo. Assistíamos a O Quebra-Nozes e, quando voltávamos para casa, festejávamos o fim do ano velho, e distribuíamos os presentes que Dedushka Moros* conseguira colocar debaixo da nossa árvore de natal, apesar do alto nível de segurança da residência oficial. Música, uma confraternização feliz... Agora tudo isso são apenas lembranças de uma vida passada, do tempo em que todos nós ainda estávamos juntos. Raíssa amava o inverno russo, em especial quando havia neve e tempestades, como é de costume. Já era assim na época em que morávamos no krai† de Stavropol, quando uma vez chegamos a nos perder durante uma nevasca. E também era assim em Moscou. Raíssa nasceu nas montanhas Altai e cresceu na Sibéria. A família construtora de estradas de ferro também viveu por alguns anos no Ural do Norte, na taiga.

*

Dedushka Moros (“Vovô Geada”, em tradução literal) é um personagem dos contos de fada russos, análogo à figura do Papai Noel. Ele é a personificação do inverno e presenteia as crianças na véspera do Ano-Novo. (N.T.). Krai é o termo russo utilizado para se referir a cada uma das 85 regiões administrativas da Federação Russa. (N.T.).

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Com Raíssa, 1986.

Ela sempre contava sobre as viagens de trenó nas quais as três crianças, Raíssa, Xênia e Liudotska, eram levadas para uma nova casa, embrulhadas em casacos de pele. Nas noites de inverno era costume da família sovar o famoso pelmeni, um pastel siberiano que era congelado e guardado dentro de um saco, no ar frio. Pelmeni era o prato preferido de Raíssa. 16


Minha vida

Relembro mais uma vez os seus últimos dias. Corajosa, era lutou pela vida e suportou pacientemente tudo o que os médicos fizeram com ela. Ter que presenciar tudo isso foi um martírio. Nos momentos de desespero, ela procurava nos meus olhos e nos de suas filhas uma resposta à pergunta sobre o que aconteceria com ela. Quando Raíssa foi levada ao quarto do hospital após seu diagnóstico, em 19 de julho, fui encontrar-me com ela. Ela fitou meus olhos e perguntou: — O que os médicos disseram? Com cautela, respondi: — Eles disseram que se trata de uma doença sanguínea grave. — É o fim? — ela questionou. — Não. Decidimos levar você para a Alemanha amanhã, onde serão feitos exames complementares para obter um quadro mais preciso da doença. Lá também será decidido como tratá-la. Voamos para Münster com a esperança de que Raíssa se recuperaria. Em 21 de setembro tivemos de voltar com Raíssa morta. Decidi escrever um livro sobre a nossa vida. Já alimentava essa ideia há muito tempo, mas nunca a realizara. Este livro não é algo fácil para mim. Durante todo o tempo, ficou na minha cabeça a imagem do título que Raíssa queria dar ao seu livro, escrito em vermelho: “O que cala fundo na minha alma”. Dedico minhas lembranças à memória de Raíssa.

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NOTA INTRODUTÓRIA

Este livro é diferente de todos os outros que já publiquei. Ele não possui uma estrutura rígida, não se trata de memórias, no sentido próprio da palavra, mas apenas da minha visão sobre a nossa vida. Pedi a algumas pessoas que lessem e dessem sua opinião sobre este livro, e elas disseram que gostaram. Teria compreendido a ausência de reclamações como um desejo de me agradar, como uma forma de apoio. Entretanto, junto à avaliação positiva, recebi críticas muito úteis que foram consideradas na redação final, quando era possível. Espero que tenha conseguido oferecer uma apresentação abrangente da história da minha vida. Este livro é a minha resposta à pergunta sobre os fatores que, em última análise, foram determinantes para o meu caminho político.

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