Dilemas da arte contemporânea

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O corpo, a exibição da intimidade, a exploração da miséria humana, o lixo e a sua reciclagem, o niilismo tecnológico, a desordem urbana, as imagens de câmaras de vigilância parecem mais refletir a sociedade que proporcionar a reflexão. Ao falar da arte contemporânea, Gilles A. Tiberghien32 diz que agora os materiais não mais estão submetidos à forma, mas, ao contrário, os objetos dependem da matéria em um processo que ele chama de “sugestões da matéria”. O artista trabalha com as matérias da natureza; sabe que elas têm sua força e que não obedecem, obrigatoriamente, à vontade do homem. Paralelamente ao interesse plástico, sempre presente na obra de um artista, o material carrega uma memória e discute com ela os outros interesses, no plano tanto político como econômico, pois se situa na fronteira entre a ética, a estética e a ciência. O artista carioca José Bechara é exemplo desse trabalho sobre o tempo e a memória. Através de uma obra experimental com materiais e técnicas, explora pigmentos e oxidações em grandes telas de lona já utilizadas por caminhoneiros, que guardam também os sinais da sua própria memória como material. Gerhard Richter, refletindo sobre a indiscernibilidade entre foto e pintura como um procedimento de falsificação, retorna a esse gênero híbrido, intrigante. Ele mantém do movimento pop a importância que este deu à fotografia, liberada, graças à sua neutralidade, da experiência pessoal. Usa a pintura como meio da fotografia; uma fotografia de amador, fora de foco. Age com colagem sobre fotos, a partir de arquivos visuais fotográficos classificados por temas. Essas são as problemáticas fotográficas que ele toma, baseado numa iconografia fotográfica. Suas questões de pintura são a pintura abstrata, o quadro abstrato e a fotopintura como um readymade da pintura ou como o suporte dela. Isso é pintar por fotografia – d’après photo (como o d’aprés nature das pinturas miméticas). Surge daí um trabalho espectral, fora de foco, de aparição. E não se trata de imitar a fotografia, mas ir além da foto, isto é, fazer foto com outros meios (por exemplo, a pintura). As fotos de Richter são levadas à tela desfocadas. Ele borra, esfumaça intencionalmente os contornos, mas pode-se ainda identificar a foto. No entanto ela perde a credibilidade por causa da intervenção do artista. Trata-se de um procedimento de falsificação, o banal como objeto e o erro como fotografia.

32. TIBERGHIEN, Gilles. A arte da natureza. Arte & ensaios, Rio de Janeiro, n.7, p.166-177, 2000.

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