Dilemas da arte contemporânea

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sua imaginação. Como explica Shelley no prefácio a Prometheus unbound, os aspectos negativos de Satã – maldade, inveja e ambição – foram eliminados do seu Prometeu: O único ser imaginário que lembra em qualquer grau a Prometeu é Satã; e Prometeu é, no meu julgamento, um caráter mais poético do que Satã, porque, além da coragem e majestade, e oposição firme e paciente à força onipotente, ele é suscetível de ser descrito como isento das máculas da ambição, inveja, vingança e do desejo de engrandecimento pessoal que, no herói do Paraíso perdido, engendra na mente uma casuística perniciosa que nos leva a pesar suas faltas junto a seus danos recebidos, e a perdoar as primeiras porque os últimos excedem toda medida. Nas mentes daqueles que consideram aquela grandiosa ficção com um sentimento religioso, ela engendra algo pior. Mas Prometeu é, por assim dizer, o tipo da mais alta perfeição de natureza moral e intelectual, impelido pelos motivos mais puros e verdadeiros aos melhores e mais nobres fins.8 O imaginário satânico, assim, a partir do Romantismo, torna-se parte da tradição artística: como tema, aparecia como figura fundamental do romance gótico, ligado à transgressão de qualquer moral estabelecida na figura do monge tentado pelo diabo feminino em O monge, de Matthew Gregory Lewis (1796); em um registro mais aprofundado, filosófica e literariamente, a criatura do célebre Frankenstein de Mary Shelley (1818) é um voraz leitor de Milton, identificando-se com o Satã do clássico inglês. A temática satânica se estende até a poesia de Charles Baudelaire, com sua imensa influência sobre o movimento simbolista, cujo As Flores do mal, escrito e reescrito ao longo de toda a sua vida, é apresentado ao leitor com os devidos créditos ao Diabo: Na almofada do mal é Satã trimegisto Quem docemente nosso espírito consola, E o metal puro da vontade então se evola Por obra deste sábio que age sem ser visto É o Diabo que nos move e até nos manuseia! Em tudo o que repugna uma joia encontramos; Dia após dia, para o Inferno caminhamos, Sem medo algum, dentro da treva que nauseia.9

8. SHELLEY, Percy Bysshe. Prometheus unbond. In: HUTCHINSON, Thomas (Ed.). The complete works of Percy Bysshe Shelley. Oxford edition, including materials never before printed in any edition of the poems, 1914b. [S.l]: Amazon Digital Services. [e-book]. pos. 16501 [T.L.]. 9. BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. [e-book]. pos. 2188.

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