Manual do Professor | Romeu e Julieta

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Romeu e Julieta

u e m Ro e eta i l Ju

William Shakespeare Tradução integral em linguagem atualizada de FERNANDO NUNO

A trama de Romeu e Julieta é amplamente conhecida. Nesta obra, William Shakespeare apresenta, como raros escritores, o sublime e o grotesco, ambos os extremos das atitudes humanas. A tradução integral desse clássico incomparável, escrita em linguagem atualizada por Fernando Nuno, oferece ao leitor a oportunidade de conhecer a genialidade desse grande escritor e dramaturgo. Com muita destreza, Nuno capta a profundidade da obra e a transforma em uma leitura descomplicada, possibilitando a apreciação completa do texto.

Tradução integral em linguagem atualizada de

Fernando Nuno Ilustrações de

Daniel Araujo



William Shakespeare

Tradução integral em linguagem atualizada de

Fernando Nuno Ilustrações de

Daniel Araujo


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Shakespeare, William, 1564-1616   Romeu e Julieta / William Shakespeare ; tradução integral em linguagem atualizada de Fernando Nuno ; ilustração de Daniel Araujo. -- 2. ed. -- São Paulo : Editora do Brasil, 2020.   Título original: Romeo and Juliet   ISBN 978-65-5817-445-5 (aluno)   ISBN 978-65-5817-446-2 (professor)   1. Literatura infantojuvenil 2. Teatro Literatura infantojuvenil I. Nuno, Fernando. II. Araujo, Daniel. III. Título. 20-51383 CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático: 1. Teatro : Literatura infantojuvenil 028.5 2. Teatro : Literatura juvenil 028.5 Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129 © Editora do Brasil S.A., 2020 Todos os direitos reservados Texto © Fernando Nuno Ilustrações © Daniel Araujo Direção-geral: Vicente Tortamano Avanso Direção editorial: Felipe Ramos Poletti Supervisão editorial: Gilsandro Vieira Sales Edição: Paulo Fuzinelli Assistência editorial: Aline Sá Martins Auxílio editorial: Marcela Muniz Apoio editorial: Maria Carolina Rodrigues Supervisão de artes: Andrea Melo Produção de arte: Obá Editorial Design gráfico: Carol Ohashi Supervisão de revisão: Dora Helena Feres Revisão: Elis Beletti 2a edição, 2020 Em respeito ao meio ambiente, as folhas deste livro foram produzidas com fibras obtidas de árvores de florestas plantadas, com origem certificada.

Rua Conselheiro Nébias, 887 São Paulo, SP ­– CEP: 01203-001 Fone: +55 11 3226-0211 www.editoradobrasil.com.br


O AMOR É FOGO QUE BRILHA NOS OLHOS. O AMOR É TRANSGRESSÃO.


APRESENTAÇÃO

T

odos nós já ouvimos dizer, em algum momento, que William Shakespeare seria o maior gênio da história da literatura. Dotado da capacidade única de apresentar o ser humano em todos os seus as-

pectos (ou quase), o poeta e autor de peças teatrais inglês põe a nu como ninguém nossas qualidades e defeitos, nossa grandeza e nossas baixezas. No entanto, o acesso a essa famosa genialidade nem sempre é fácil. O principal motivo é que as mais destacadas obras de Shakespeare são peças de teatro, e não temos o costume de lê-las como quem lê um conto ou um romance. A leitura do texto teatral tem sempre um sabor meio estranho, demanda um certo treino: nesse caso, a linguagem, mais oral, sempre perde um pouco quando posta por escrito. Esta edição traz uma nova forma de tornar acessível, a qualquer leitor, o gênio do fantástico Bardo (“bardo” é, 4


hoje, um sinônimo menos usado de “poeta”, e Shakespeare também costuma ser chamado dessa forma, como quem diz: “o Poeta”). Em texto moderno, sem exageros, o conteúdo integral de suas peças é apresentado na forma de curtos romances altamente dialogados, permitindo a leitura fluente e sem os obstáculos que o texto em forma teatral geralmente contém. Romeu e Julieta é o drama de amor mais célebre da história da literatura e trata com profundidade rara as emoções e os sentimentos. Convido você a mergulhar nesse universo e sentir a intensidade desta frase aparente­mente – mas só aparentemente – comum da obra: “Nunca houve história mais triste do que esta, de Julieta e de seu amado, Romeu”. Fernando Nuno

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A tragédia extraordinária e grandemente lamentável de


DRAMATIS PERSONÆ

Estes são os personagens que atuam na história narrada em Romeu e Julieta: Montecchio e Capuleto, chefes de duas famílias inimigas A esposa de Montecchio A esposa de Capuleto Romeu, filho do casal Montecchio Julieta, filha do casal Capuleto Frei Lourenço, frade franciscano Frei João, da mesma ordem Escalo, príncipe de Verona Páris, um jovem nobre, parente do príncipe Mercúcio, parente do príncipe e amigo de Romeu Benvólio, sobrinho de Montecchio e amigo de Romeu Teobaldo, sobrinho da senhora Capuleto Um velho senhor, tio de Capuleto Baltasar, pajem de Romeu 8


Sansão e Gregório, empregados de Capuleto Pedro, criado da ama de Julieta Abraão, criado de Montecchio Um boticário Músicos O pajem de Páris Mais um pajem Um oficial A ama de Julieta Os cidadãos de Verona; vários homens e mulheres, ligados a uma das duas famílias; pessoas mascaradas na festa; soldados; vigias noturnos do cemitério; vários criados e pajens. A ação de Romeu e Julieta decorre na cidade de Verona, no norte da Itália, e em parte, quando se aproxima do desfecho, na localidade vizinha de Mântua.

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o r i e m Pr i o t a


A

história que vamos contar se passa na bela cidade de Verona, no norte da Itália. Ali, duas antigas famílias, iguais na importância e na dignidade, tentam resolver velhos desentendimentos e ran-

cores com novas formas de violência, sujando de sangue as mãos de seus membros. No mais íntimo dessas duas famílias rivais, a fatalidade faz nascer o amor entre dois jovens. Somente um acontecimento como esse poderia vir a trazer, por estranhos caminhos, o fim da luta assassina entre seus pais. Os momentos mais marcantes e difíceis desse amor fatal, tendo como contraponto o ódio entre as famílias, que somente a morte dos filhos terminaria por apaziguar – esse é o tema de nossa história, que tomará mais ou menos duas horas a quem a quiser conhecer. Assim, esperamos que as falhas que cometermos ao contar esta bela história passem despercebidas à atenção e à pa­ciên­cia de quem nos acompanha. 12


*** Armados com espadas e escudos, Sansão e Gregório conversam numa praça da cidade. Eles são empregados da família Capuleto. – Gregório, dou minha palavra de que não vamos levar nenhum desaforo para casa! – De jeito nenhum! Quem eles pensam que nós somos? Catadores de papel? – E, se mexerem com a gente, esta espada aqui não é enfeite... – Mas cuidado com o pescoço, para não nos enforcarem depois... – Este aqui ninguém consegue pegar! Mexeu comigo, eu bato! E aguento firme! – Você não tem medo de ninguém, não é, Sansão? – O único que consegue mexer comigo é aquele cachorro da casa dos Montecchio. – Se você fica mexido é porque tem medo dele. Quem não tem medo fica firme no lugar. Quem se mexe é porque já está começando a fugir... – Você não entendeu. Ele mexe comigo, mas eu nem me mexo. Mas quero ver se algum dos Montecchio tem coragem de mexer comigo... Eu seria capaz de derrotar qualquer um deles, mesmo que estivesse do lado da parede. – Ora, Sansão, quem fica do lado da parede numa luta é o mais fraco, é porque está perdendo. Se uma coisa assim acontecer, você vai estar fazendo figura de escravo, de fracote. – Você também não entendeu essa... Mas está certo: a pessoa mais fraca sempre fica do lado da parede. É por isso 13


que as mulheres andam desse lado na calçada. Quando eu encontrar os Montecchio, vou tirar os homens do lado da parede, que é onde eles costumam andar, e as mulheres vão passar para o lado certo. – A briga toda é entre os patrões, mas sempre sobra para nós que somos empregados... – É tudo uma coisa só, Gregório. Você sabe que eu sou uma pessoa cruel, e com eles ainda mais. Depois que eu tiver acabado com os homens, vou partir para as mulheres. Elas vão perder a cabeça comigo. – O quê, Sansão? Você vai cortar a cabeça delas? – Você não entende nada mesmo, hein, Gregório? Comigo elas perdem a cabeça, mas ela continua grudada no corpo!... Ah, ah! Você entenda do jeito que quiser. – Ah! Entendi. Quer dizer que elas vão sentir o que é bom pra tosse... – Isso aí! Mesmo que não estejam resfriadas! Ainda mais que a minha carne é forte e a delas é fraca... – Todo mundo sabe que você é um tremendo de um car­ nívoro... Ei, olhe lá, Sansão! Não são empregados dos Mon­ tecchio aqueles dois que estão chegando ali? Pegue a espada. – Já peguei. Agora vá lá e comece uma discussão com eles, que eu fico aqui dando proteção. – Que tipo de proteção? Virando as costas e fugindo, Sansão? – Que é isso, Gregório? Não está confiando em mim? Está com medo do que eu possa fazer? – É justamente o contrário, Sansão. Tenho medo do que você pode deixar de fazer! 14


– Ora, o que é isso? Mas nós vamos ficar dentro da lei. Eles é que vão começar a discussão, e nós só vamos nos defender. – Então vou fazer o seguinte – planejou Gregório. – Vou passar do lado deles olhando bem nos olhos e fazendo cara feia. Eles que reajam do jeito que quiserem. – Eles que tenham a coragem! Vou morder o polegar olhando bem na cara deles. – Isso era considerado um insulto grave na Itália. – Só se forem muito covardes não vão reagir nem fazer nada. Os dois homens que passam pela praça naquele momento são Abraão e Baltasar, empregados da família Montecchio. – O senhor por acaso está mordendo o polegar para nós? – pergunta Abraão, pausadamente. – Estou, sim, senhor – responde Sansão. – Por quê? Algum problema? – Vou perguntar outra vez: o senhor está mordendo o polegar para nós? – Abraão diz ainda mais pausadamente. – A lei está do meu lado se eu responder que sim? – Sansão pergunta a Gregório. – Não – responde o amigo. – Se é assim, então não, não estou mordendo polegar para o senhor. Só estou mordendo meu polegar, e pronto! – O senhor está querendo puxar briga por causa disso? – Gregório pergunta a Abraão. – Briga, eu? De jeito nenhum!... – Bom, se o senhor não quer brigar, eu quero! – interrompe Sansão. – Sabe que o meu patrão é melhor que o seu? – Pois eu acho que não é, não, senhor – responde Abraão. – Só que o caso é que é. É, sim! – insiste Sansão. 15


Nesse momento, Benvólio, da família Montecchio, chega à praça. – Sansão, veja quem está passando... – diz Gregório em voz baixa para o amigo. – Fale bem alto que o nosso patrão é melhor que o deles, para ele ouvir. – O meu patrão é muito melhor do que o seu! – diz Sansão, quase gritando. – É mentira! – responde Abraão, quase no mesmo tom. – Puxe a espada se for homem! – desafiou Sansão. – Gregório, não se esqueça de dar aquele golpe! Os quatro empregados começam a lutar. Ouvindo tudo, Benvólio se aproxima rapidamente e ordena, colocando a própria espada acima das deles: – Parem já com isso, seus palermas! Voltem a guardar as espadas no lugar! Vocês não sabem o que fazem! Os criados começam a baixar as espadas quando Teobaldo, da família Capuleto, aproxima-se também. – O que você está fazendo aí com a espada desembainhada no meio dessa corja? Vire-se para cá, Benvólio, a sua hora chegou! – Teobaldo vai logo dizendo. – Eu estava apenas impedindo uma briga idiota – retruca Benvólio. – Pode guardar a espada, ou então me ajude a separar estes coitados. – O quê! Você com a espada de fora, e ainda falando em apartar uma briga? Não sabe que uma boa briga é a coisa que eu mais adoro, com a mesma intensidade com que odeio todos os Montecchio? E isso inclui você, Benvólio! Em guarda, covarde!

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Teobaldo e Benvólio começam a lutar. Alguns membros e empregados das duas famílias vão chegando à praça e entram na disputa. Outras pessoas se metem na rixa, armadas com paus. Finalmente aparece a polícia, que também entra na confusão generalizada. – Porretes, espadas, paus!... Que briga boa!... Vamos dar um jeito neles!... Vamos acabar com os Capuleto!... Vamos acabar com os Montecchio!... – são alguns dos gritos dos que entram na disputa. A certa altura, chega o chefe da família Capuleto, vestido com a toga de autoridade pública e acompanhado da mulher. – Que tumulto é esse? – admira-se o velho senhor. – Alguém me passe a minha espada comprida, rápido! – Passem a bengala para ele! A bengala! – grita a senhora Capuleto. – Para que você quer a espada? – Eu já disse, quero minha espada! Vejam só quem vem lá! O velho Montecchio também vem para cá, e já está com a espada na mão, ao contrário de mim! De fato, o casal Montecchio também está entrando na praça. – Capuleto, seu velho canalha! – grita o senhor Montecchio. – Ninguém me segure, vou entrar na briga! – O quê? Você não vai dar um só passo na direção dessa gentalha, desses inimigos! – tenta impedir a senhora Montecchio. Para coroar a situação, acaba chegando ao local o príncipe da cidade, acompanhado de seu séquito. – Súditos rebeldes – ele começa logo a discursar –, inimigos da paz, profanadores do sangue do vizinho com a espada 17


em punho!... Mas será que eles não vão me ouvir?... Vamos... Epa! Cuidado, cidadãos!... Suas bestas! Apaguem já o fogo dessa raiva perniciosa, essas torrentes vermelhas jorrando de suas veias! Chega, vou mandar prender e torturar quem estiver com sangue nas mãos! Atirem já essas armas desequilibradas no chão e escutem a sentença de seu príncipe zangado! Estou verdadeiramente irado! Com esta já são três brigas, que começaram por uma coisa de nada, e todas provocadas por vocês, Capuleto e Montecchio, homens de idade que deviam se dar ao respeito! Três vezes já perturbaram a ordem pública de nossas ruas! – Aos poucos, a luta tinha cessado. – Mas o que é isso? Até os velhos da cidade deixam de lado a bengala e o cajado para trazer as espadas velhas que têm em casa e que não servem para mais nada, nem para entrar numa briga nem para tentar apartá-la! Se por acaso vocês, mesmo velhos como são, voltarem a perturbar o sossego das ruas de Verona, vão pagar com a vida o preço do retorno à paz. Por esta vez, os outros todos podem ir embora, menos você, Capuleto. Você vem comigo. Quanto a Montecchio, vá me procurar esta tarde, para tomar conhecimento do que tivermos decidido sobre o caso. Vou receber os dois no velho pavilhão onde costumamos fazer os julgamentos. E agora, pela última vez, saiam todos da praça, senão mando lhes aplicar a pena de morte. Enquanto se retiram da praça, Montecchio comenta com Benvólio: – Quem foi que começou essa brigalhada velha outra vez? Diga, meu sobrinho, foi você? – Os empregados dos inimigos estavam lutando com os nossos quando entrei na praça. Fui logo apartar a briga, mas 18


na mesma hora chegou Teobaldo, já com a espada na mão. Ele começou a me ofender, girando a lâmina no ar: o ar não se machucou; pelo contrário, até assobiou, como que fazendo pouco-caso dele... Daí a pouco nós dois estávamos lutando também, as pessoas em volta começaram a entrar na briga... cada um que chegava à praça ia se juntando a um dos dois lados, até que o príncipe chegou e deu um basta na situação. – E Romeu, onde está? Você viu meu filho hoje? – lembra a senhora Montecchio. – Estou muito contente por ele não ter se envolvido nessa arruaça. – Senhora, vou responder da melhor forma que puder: esta madrugada, quando faltava uma hora para o nosso adorado sol abrir a janela dourada do leste, eu estava muito perturbado e me levantei para uma caminhada. Logo vi o seu filho; ele estava passeando, bem cedo, naquele bosque de sicômoros que se estende para oeste da cidade. Fui na direção de Romeu, mas ele percebeu a minha aproximação e se escondeu na parte mais fechada da mata. Eu compreendi muito bem os sentimentos dele, porque devem ser parecidos com os meus: nós sentimos com mais intensidade quando estamos sozinhos. Por isso, fiquei feliz por me afastar dele, assim como ele certamente ficou feliz por não precisar falar comigo. – Ele já foi visto nesse bosque várias vezes, em outras manhãs, sempre chorando em silêncio – diz o velho Montecchio. – As lágrimas dele se juntam às gotas de orvalho, assim como a nuvem que paira sobre a cabeça dele se soma às nuvens do céu. Enquanto ele suspira, o Sol começa a abrir as cortinas da cama da Aurora, e assim que isso acontece, antes que o dia se aqueça, meu filho foge da luz, com a alma 19


pesada. Ele volta para o quarto, e fica ali, trancado, curtindo a tristeza. Fecha as janelas e não deixa a luz do dia entrar. No meio dessa noite artificial criada por ele, certamente os pensamentos de meu filho devem ser deprimentes e fortes. Se ao menos pudéssemos ajudar com bons conselhos... – Meu querido tio, o senhor sabe a causa disso tudo? – pergunta Benvólio. – Não sei, nem ele quer contar. – Mas o senhor não fez nada para tentar descobrir o que houve? – Tentei. Não só eu, mas também outras pessoas muito próximas. O fato é que não é só comigo que ele está assim. É com os amigos também. Parece que só aceita conselhos de si próprio. Não sei até que ponto esses conselhos são bons, porque meu filho é tão fechado em si mesmo, guarda os próprios segredos com tanta intensidade, que é impossível penetrar na cabeça dele e descobrir o que se passa. Romeu é como o botão de flor que foi mordido pelo verme invejoso para não desabrochar nem oferecer sua beleza ao sol. Se pudéssemos descobrir a causa do sofrimento dele, faríamos tudo para encontrar o tratamento mais eficaz para alcançar a cura completa. – Vejam! Ele está vindo ali. Vou tentar uma coisa. Por favor, saiam de perto de mim. Talvez eu descubra o que está acontecendo com ele, a menos que continue fechado demais em si próprio. – Tomara que você consiga fazer Romeu falar! – diz a voz ansiosa do pai. – Querida, vamos sair daqui. Enquanto os pais de Romeu se afastam, Benvólio vai ao encontro dele: 20


– Bom dia, primo. – Ainda é de manhã? – As nove horas soaram agora há pouco. – Ainda são nove? As horas tristes parecem mais compridas. Aquele senhor que saiu daqui com tanta pressa não era o meu pai? – Era... Mas por que essa tristeza toda, que até faz as horas ficarem mais compridas? – É porque não tenho aquilo que faria as horas ficarem mais curtas. – Amor?... – Não tenho! – Não tem o quê? Amor? – Não tenho o amor do meu amor. – Infelizmente é assim mesmo! O amor é muito bonito de ver, mas maltrata demais os nossos sentimentos! – Infelizmente! Dizem que o amor é cego, mas mesmo sem olhos sempre encontra um caminho para acontecer... Já é hora de almoçar daqui a pouco? Onde vamos comer? Coitado de mim!... – Romeu vê sangue no chão da praça. – Mas que bagunça foi essa que aconteceu aqui? Não, nem precisa me contar, eu escutei todo o barulho, ouvi tudo! Nesta cidade o ódio faz acontecer muitas coisas, mas o amor faz mais ainda. Por que será que no amor acontece tanto desentendimento, e no meio do ódio existe tanto amor? Tudo foi criado do nada, e o nada foi criado do tudo. A luz tem peso e a vaidade é levada a sério. O caos disforme é feito das formas mais bem-proporcionadas. A pluma é de chumbo, fumaça é luz, o fogo é frio, a saúde está doente! O 21


sono está acordado, o que é não é. É esse tipo de amor que eu sinto, ou seja, não sinto amor nenhum nele. Você não vai rir? – Primo, estou quase chorando com essa sua história... – Que coração bondoso... Por quê? – Fiquei emocionado com a forma pela qual você se exprimiu. – Por quê? O amor é isso mesmo: o amor é transgressão. A minha tristeza me aperta o peito, e você vai aumentar o peso dela ainda mais se me falar da sua. A sua compreensão também é uma forma de amor e só me traz mais tristeza. O amor é uma névoa, uma fumacinha formada pelos suspiros que damos. Quando é correspondido, é um fogo que brilha nos olhos dos amantes; quando não, é um mar que cresce com as lágrimas de quem se apaixona. Que mais?... É uma loucura bem discreta, uma coisa amarga que nos sufoca, uma coisa doce que nos consola... Até logo, primo! – Espere, Romeu! Vou com você! Se for embora assim sem mais nem menos, no meio da conversa, está me fazendo uma desfeita. – Calma, eu só me perdi! Eu não estou aqui. Este aqui não é Romeu, é outra pessoa... – Vamos, pode se abrir, conte o porquê desse sofrimento... Quem é a garota? – O quê? E como vou contar, soluçando desse jeito? – Soluçando? Claro que não. Mas agora, a sério, pode me contar. – Então, é a sério que se pede para uma pessoa nas últimas fazer o testamento? Não se pode exigir que quem está 22


sofrendo comece a falar sem mais nem menos sobre a dor. Mas, vá lá... Primo, eu amo uma mulher. – Até que adivinhei bem quando perguntei se o seu problema de amor era uma garota... – Humm... Um adivinho certeiro, atirador de elite... Ela é muito bonita! – Um alvo bonito é mais fácil de acertar, primo. – Nessa você errou. Nem a flecha de Cupido atinge essa mulher. Ela é autossuficiente como a deusa Diana e usa a castidade como arma contra o arco e flecha infantil do amor. As setas nem arranham sua pele. Ela não permite o assédio com propostas amorosas nem aceita uma troca de olhares sedutores mais longa. Ela é mais forte até do que os santos quando se trata de resistir a uma proposta feita com ouro puro, pois já é rica demais em beleza; mas ao mesmo tempo é pobre, porque, quando ela morrer, esse tesouro também se acaba. – Quer dizer que ela jurou que vai morrer virgem? – Parece que sim. Só que essa economia acaba sendo o maior desperdício, porque a beleza, de tanto fazer dieta, também morre de fome e acaba, não sobra nada. Ela é bonita demais, inteligente demais, e o meu desespero também é demais. Ela jurou não amar ninguém e, por causa desse juramento, eu vivo morto: só sei que ainda estou vivo porque estou aqui contando que estou morto. – Vamos fazer um trato? Você deixa que eu cuido do assunto e esquece essa mulher enquanto isso – sugere Benvólio. – Então, eis a sua primeira tarefa: ensine-me a esquecer de pensar nela. 23


– Isso é fácil. É só dar um pouco de liberdade aos seus olhos. Olhe ao redor e aprecie outras belezas. – Isso só vai servir para comprovar que ela é a mais bonita – conclui Romeu. – Essas máscaras de felicidade que as mulheres põem no rosto são um desafio para adivinharmos a beleza que elas escondem. Quem fica cego de repente não consegue esquecer o tesouro precioso que era a vista que perdeu. Mostre uma mulher que seja considerada a mais linda. Essa beleza maior que as outras só vai servir para me fazer lembrar uma outra, que é ainda maior. Pode ir embora, Benvólio. Você não conseguiu me ensinar a esquecer. – Então fico devendo essa a você, Romeu: você ainda vai aprender comigo como é que se faz. *** O chefe da família Capuleto caminha pela rua, acompanhado do jovem conde Páris e de um criado. – Mas Montecchio também recebeu a mesma punição que eu – comenta Capuleto. – Acho que não vai ser difícil para dois velhos como nós manter a paz. – Tanto o senhor como ele têm reputação honrada – acrescenta Páris. – É uma pena que tenham sido inimigos por tanto tempo. Então, o que o senhor tem a dizer sobre o meu pedido? – Vou dizer a mesma coisa que já disse antes. Minha filha ainda não foi apresentada à sociedade, é uma desconhecida para o mundo. Ela ainda não fez catorze anos... Daqui a dois verões, quem sabe ela esteja preparada para ficar noiva. – Meninas mais novas do que ela já são mães... 24


– E por isso mesmo ficaram murchas ainda jovens demais. Todas as minhas esperanças já estão enterradas, menos ela. Ela é a dona do meu mundo, é tudo o que me resta. Mas você pode cortejar a garota, meu caro Páris. Trate de conquistá-la, só com isso você já tem uma grande parte do meu consentimento. Se ela aceitar, eu não vou interferir na escolha, mas o casamento só poderá se realizar daqui a dois anos. Hoje à noite estou oferecendo a minha festa tradicional. Convidei todas as pessoas de quem gosto, e você está entre elas. Com a ajuda da sua presença, as estrelas iluminarão o céu noturno como se fosse dia em minha modesta casa. Assim como os vigorosos meses da primavera se divertem pisando nos calcanhares do inverno que enfraquece, você vai ser um daqueles rapazes fortes que irão se deliciar com a visão das mocinhas em flor que devem aparecer em casa esta noite. Olhe para todas, escute o que elas falam, e decida qual é a mais merecedora da sua preferência. Claro que minha filha vai estar entre as mais cotadas para isso, mas, apesar de não ser a única, com certeza não há comparação. Vamos, venha comigo. Capuleto dá um papel ao criado e ordena: – Vamos, seu malandro, dê uma volta por Verona e vá procurar estas pessoas. O nome de todas elas está anotado aqui. Diga aos convidados que minha casa terá o maior prazer em recebê-los e minha hospitalidade será a toda prova. O empregado se separa dos dois homens e reflete: “O nome de todas elas está escrito no papel!... Por acaso alguém já escreveu que o sapateiro tem que trabalhar com fita métrica e o alfaiate com fôrma de sapato? Será que o pescador usa um pincel para pescar, e o pintor desenha 25


com a rede? A mesma coisa eu: agora tenho que procurar essa gente que está escrita aqui; só que as pessoas não estão aqui no papel, elas ficam cada uma na sua casa. Acho que tenho que procurar alguém que saiba ler”. Enquanto isso, Benvólio continua a conversa com Romeu: – Agora escute uma coisa: você sabe que, para apagar um incêndio, muitas vezes se usa um fogo em direção contrária. Com o sofrimento é a mesma coisa: ele pode sumir quando outro aparece. Se você rodopiar até ficar tonto, é só girar para o outro lado para se equilibrar. Uma dor desesperada se cura com uma aflição. Quando pegamos uma infecção nos olhos, ela acaba com a anterior. – A folha de plátano é ótima para isso. – Ótima para o quê, Romeu? – Para a canela da sua perna que se quebrou. – Não entendi. Romeu, você ficou louco? – Louco, não, mas estou mais amarrado que um louco preso numa cela sem comida, levando chicotadas, atormentado e... Boa tarde, rapaz – Romeu cumprimenta o criado que se aproxima. – Boa tarde. Com licença, o senhor sabe ler? – Já estou lendo o futuro na minha desgraça. 26


– Isso o senhor não precisou aprender nos livros, certo? Mas o senhor sabe ler um papel na sua frente, não? – Claro, se eu souber a língua e conhecer o alfabeto do escrito... – Está bem, obrigado pela boa vontade... – responde o criado, começando a se afastar. – Então obrigado e passar bem... – Não... Espere aí, rapaz. Eu posso ler para você, sim. – R ­ omeu apanha a folha: – “Signor Martino, esposa e filhas; conde Anselmo e suas belas irmãs; a senhora viúva de Vitrúvio; signor Placêncio e encantadoras sobrinhas; Mercúcio e seu irmão, Valentino; meu tio Capuleto, esposa e filhas; minha bela sobrinha, Rosalina; Lívia; signor Valêncio e o primo Teobaldo; Lúcio e a espirituosa Helena”. Quanta gente importante! Onde vai ser a reunião? – pergunta, devol­vendo o papel. – No andar de cima. – No andar de cima de onde? – Lá de casa. Vai ser uma festa e tanto, com jantar incluso. – “Lá de casa”... Casa de quem? – Do patrão. – Certo, respondeu tudo. Essa é que devia ter sido a minha primeira pergunta... – Está bem, não precisa perguntar mais nada. O meu patrão é um homem muito rico, o senhor Capuleto. Se o senhor não é da família Montecchio, pode aparecer por lá para tomar uma taça de vinho. Obrigado e até logo. Assim que o criado se afasta, Benvólio comenta com Romeu: 27


– É a festa tradicional dos Capuleto. A garota que você ama tanto, a bela Rosalina, vai estar lá, com as maiores beldades de Verona. Vamos aparecer na festa e você vai olhar bem para ela. Depois, eu vou mostrar outras mulheres bonitas de Verona e você vai julgar imparcialmente quem é a mais bonita. Depois de comparar, com certeza vai concordar comigo e me dizer que aquela que você acha que é um cisne não passa de um corvo. – Se eu disser uma falsidade como essa, renegando a religião de que os meus olhos são devotos, que as minhas lágrimas sejam de fogo. E, se isso acontecer, que meus olhos sejam tratados como heréticos convictos, que nunca se deixam afogar pelas lágrimas, mas merecem ser queimados na fogueira como impenitentes. Alguém mais linda que a minha amada!... O Sol, que assiste a tudo, nunca viu mulher que sequer chegasse aos pés dela desde o começo do mundo... – Chega de falação – interrompe Benvólio. – Ela é a única mulher bonita que você viu até hoje, por isso nunca pôde fazer uma única comparação sequer. Mas hoje à noite você vai pesar numa balança de cristal a beleza da sua amada com a de qualquer outra que eu lhe mostrar, brilhando com todo o esplendor. Você vai ver que aquela que agora parece a melhor é simplesmente mais uma entre as boas. – Está bem. Eu vou, não para você ficar me mostrando essas outras, mas para apreciar melhor o brilho e a beleza da minha. *** 28


– Onde está minha filha? – pergunta a senhora Capuleto à empregada. – Vá chamá-la, quero falar com ela. A criada sai do quarto, falando sozinha: – Essa menina... sempre precisando ser chamada! Parece que não cria juízo mesmo. Que diabo de menina! Mas Deus que me perdoe. Onde é que ela se escondeu?... Julieta! Julieta! – Quem está chamando? – ouve-se a voz da garota, aproximando-se. – Sua mãe. – Já estou indo... Pronto, mamãe! O que a senhora quer? – Julieta entra no quarto da mãe, seguida da empregada. – É o seguinte. Saia daqui por um momento – a mãe de Julieta ordena à criada. – Minha filha, precisamos conversar a sós... Volte aqui – ela chama novamente a empregada –, mudei de ideia. Acho melhor você ouvir a nossa conversa. Você conhece minha filha há bastante tempo. – Eu sei dizer até quantos anos, meses, dias e horas ela tem – diz a criada, que é a ama de leite de Julieta. – Ela ainda não fez catorze anos. – Catorze são dez mais quatro, e para eu ter catorze dentes faltam dez, porque quatro ainda tenho – responde a ama. – Quantos dias faltam para a festa da colheita de agosto? – Duas semanas mais um dia – responde a senhora Capuleto. – Então, seja mais um dia ou seja um dia menos, na noite da véspera do dia da colheita essa menina faz catorze anos – a ama abre a torneirinha e deita a falar sem 29


parar, como de costume. – Ela e Susana (que Deus a tenha!) eram da mesma idade. Só que a minha Susana já está lá com Deus. Ela era boa demais para mim. Então, como eu ia dizendo, na noite antes do dia da colheita Julieta faz catorze, com certeza. E que encontre um bom marido! Mas eu me lembro muito bem. O terremoto foi há onze anos; foi naquele dia que ela foi desmamada, nunca vou me esquecer. De todos os dias do ano, foi acontecer justo naquele. Eu tinha passado óleo de absinto bem amargo nos seios para ela não pegar mais... Já estava bem crescidinha. Eu ficava sentada ao sol, junto à parede do pombal. A senhora e o patrão tinham ido viajar para Mântua... está vendo que memória a minha! Então, como eu estava dizendo, quando ela provou o absinto no bico do meu seio e percebeu que estava amargo, ah, essa menina é maluquinha!... Ela começou a reclamar e a se remexer toda, batendo no meu seio com tanta força que o pombal começou a balançar. Dei um pulo com ela no colo, antes que acontecesse alguma coisa, e desde esse dia já se passaram onze anos. Ela já conseguia ficar em pé sozinha, já saía andando e tropeçando em tudo o que é coisa nessa época. Nossa, um dia antes disso ela fez um galo na testa! Quase quebrou a cabeça! O meu marido (que Deus o guarde!) era um homem muito alegre e pegou essa criança. Ele disse: “Quer dizer que você caiu de cara no chão? Espere só até crescer, aí é que você vai começar a cair deitada de costas. Não é verdade, Júlia?”. E, Deus me condene se o que eu estou contando não é verdade, a diabinha parou de chorar e disse: “É!”. Estão vendo só como uma boa piada resolve qualquer 30


machucado? Olhem, nem que eu viva mil anos juro que nunca mais vou esquecer a carinha dela. “Não é verdade, Júlia?”, ele disse. E a doidinha, lindinha, parou de chorar, ficou contente e respondeu: “É!”. – Bom, já chega desse assunto – interrompe a senhora Capuleto. – Agora pare um pouco de falar. – Sim, senhora, claro. Só que eu não consigo parar de lembrar que ela deu um sorrisinho depois que parou de chorar e disse: “É!”. E olhe que (eu juro) ela estava com um galo grande como um ovo na testa. A batida foi pra valer. E ela estava muito sentida, se via que o choro era doído mesmo. Mas, quando o meu marido disse: “Quer dizer que você caiu de cara no chão? Espere só até crescer, aí é que você vai começar a cair deitada de costas. Não é verdade, Júlia?”. E ela parou de chorar, fez uma carinha de feliz e disse: “É!”. – Então pare você também, ama, pelo amor de Deus! – pede Julieta. – Está certo, está bem, já entendi – diz a criada. – Mas que Deus abençoe você. Você foi o bebezinho mais lindo a que eu já dei de mamar. E espero viver para assistir ao seu casamento. Esse é o meu maior desejo. – Pois é justamente sobre casamento que eu quero falar com Julieta – diz a mãe. – Diga, minha filha, você já não tem vontade de se casar? – Ainda não sonhei com essa honra, mamãe. – Honra? – interrompe a ama. – Se não tivesse sido eu a única pessoa que lhe deu leite, eu poderia dizer que você ganhou juízo mamando no seu próprio peito, menina. 31


– Bom, está na hora de pensar em casamento – continua a mãe. – Aqui mesmo, em Verona, existem mocinhas da sociedade, mais novas do que você, que já são mães. Pelas minhas contas, quando Julieta nasceu eu era mais nova do que ela agora. Vamos direto ao ponto: Páris, que é um rapaz de valor, está apaixonado por você. – Menina, que homem! – interrompe novamente a criada. – Minha senhora, existem poucos como ele no mundo. Só a cara dele já é uma pintura! – É verdade – confirma a senhora Capuleto. – Na primavera de Verona não cresce nenhuma flor igual. – É isso. Esse rapaz é uma flor – diz a empregada. – Mais bonito do que qualquer flor! – O que você acha, Julieta? – continua a mãe. – Será que vai gostar do rapaz? Daqui a pouco ele deve aparecer em nossa festa. O rosto dele é um livro aberto; você vai ler o que está escrito nele com a pena da beleza. Veja como é bem-proporcionado, como os traços são finos e delicados. E os olhos dele, amendoados, sugerem mistério. Só que falta uma coisa a esse livro de amor para ser totalmente belo: uma capa. O peixe vive no mar: o que é bonito só tem beleza quando guarda o que é belo dentro de si. Esse livro, para ser apreciado, necessita de uma encadernação em ouro para valorizar a história preciosa que se pode ler nele. É desse modo que você poderá compartilhar tudo o que ele contém, dando a ele o seu brilho e, ao mesmo tempo, sem se diminuir com isso. – Sem se diminuir mesmo – diz a ama –, só crescendo. As mulheres crescem por meio dos homens. 32


– Em resumo, Julieta: pelo que eu disse, você acha que poderá aceitar o amor de Páris e amá-lo? – pergunta a mãe. – Vou ver. Pode ser até que eu me apaixone à primeira vista. Mas não vou olhar para ele mais do que o pudor permite e do que a senhora achar conveniente. Nesse momento, um criado pede licença e entra no quarto dizendo: – Senhora, os convidados começaram a chegar, a ceia está servida, estão chamando a senhora, também perguntaram pela jovem Julieta. A ama está fazendo falta na cozinha, está quase tudo a postos. Agora vou começar a servir. Por favor, venham logo. – Vamos em seguida, atrás de você – responde a senhora Capuleto. – Julieta, o conde já deve ter chegado. – Vá, menina – diz a empregada. – Você sempre teve dias felizes; chegou a hora de completá-los com noites felizes também... *** É noite. Romeu, Mercúcio e Benvólio caminham pela rua, acompanhados de seis amigos mascarados, empregados porta-tochas e outros. – Vamos falar alguma coisa como desculpa para entrar sem convite? Ou já vamos entrando direto? – pergunta Romeu, que está fantasiado de peregrino. – Hoje em dia ninguém precisa dizer nada. É só chegar, e vamos entrando – responde Benvólio. – Não vamos assustar as senhoras, já que não estamos chegando vestidos de 33


espantalho nem estamos trazendo Cupido com uma venda nos olhos e um arco e flecha pintado à moda tártara. Se entrarmos fazendo alarde da nossa chegada, será como um prefácio sem livro, uma fala dita no palco do teatro sem naturalidade e ditada pelo ponto. Deixe que nos meçam do jeito que acharem melhor, vamos responder na mesma medida e depois vamos embora. – Passem uma tocha. Não quero andar nesse passo vagaroso. Depois, ando tão sombrio que é melhor que eu mesmo leve a luz. – Romeu, você vai dançar na festa – diz Mercúcio. – É ótimo para aliviar a depressão. – Eu não! De jeito nenhum! Vocês é que estão com sapato de baile, de sola macia. Minha alma está pesada como chumbo, eu me sinto tão grudado no chão que não vou conseguir me mexer. – Você está apaixonado, Romeu. É só pedir as asas de Cupido emprestadas e vai ver como fica levinho, levinho... – A flecha dele já me machucou bastante. Eu não vou conseguir voar com as asas... O chão é o meu limite. Em vez de subir, estou me enterrando com o peso do amor. – Só que, se você se enterrar, vai acabar matando o amor. O peso vai ser grande demais para uma coisa tão suave – insiste Mercúcio. – O amor é uma coisa suave? Ao contrário, ele é pesado, áspero demais, opressivo. E fere como um espinho. – Que exagero, Romeu! Se o amor é opressivo com você, seja opressivo com ele! Espete o amor a cada vez que ele mostrar um espinho, e é ele que vai se render. Quem me 34


dá uma máscara? – Um dos amigos dá a máscara pedida a Mercúcio, que a coloca imediatamente. – Pronto! Um estojo para guardar a minha cara! Uma máscara em cima de outra máscara! Que me importa agora se alguém curioso descobrir os meus defeitos? Quem vai ficar com vergonha será a máscara, não eu. – Chegamos! – alerta Benvólio. – Vamos bater e entrar. Lá dentro, cada um vai cuidar de si e das próprias pernas, combinado? – Quero uma tocha – pede novamente Romeu. – Os despreocupados, que não tiverem nada no coração, que arrastem o pé no chão ou nos tapetes. Eu vou ficar segurando a vela, só assistindo ao jogo. – Coitadinho!... – brinca Mercúcio. – Como dizia a baronesa, “o ratinho está preso. Agora é só pegar o bichinho na ratoeira”. Ah, meu Deus, você me desculpa, senhor apaixonado, mas estamos perdendo tempo aqui fora com esta conversa. – Vocês não entendem, não sabem o que é a dor de amor. – Só sei que estamos gastando as nossas tochas à toa continuando aqui fora. Não leve a mal, Romeu, mas só queremos ver você se divertir tanto quanto nós todos somados. – Eu sei, a intenção é boa, mas não vejo sentido em entrarmos na festa deles. – Por quê, posso perguntar? – Mercúcio, eu tive um sonho a noite passada... – diz Romeu. – E daí? Eu também tive um sonho... – E o que você sonhou? – Romeu pergunta a Mercúcio. 35


– Sonhei que quem sonha costuma mentir. – Mas os sonhos costumam dizer coisas verdadeiras. – Principalmente quando quem aparece é a rainha das fadas – Mercúcio começa a fantasiar. – Ela se chama Mab... Ela é pequenina, aparece do tamanho de uma pedra de ágata, dessas que os vereadores usam no anel. A carruagem dela é puxada por uns cavalinhos e fica atravessando por baixo do nosso nariz de um lado para outro enquanto dormimos. As rodas têm raios feitos de perninhas de pernilongos; a capota, de asas de louva-a-deus; as rédeas, de teia de aranha fininha; o colar dos cavalinhos, de raios de lua molhados; o cabo do chicote da rainha Mab é de osso de grilo, e o chicote é de membrana; o cocheiro é um mosquito de coletinho cinza e não tem nem a metade do tamanho de uma pulga esmagada pelos dedos preguiçosos de uma criada; a carruagem é uma casca de avelã vazia, fabricada por um esquilo carpinteiro ou por uma lagarta velha, que são, há tempos imemoriais, os fabricantes das carruagens das fadas. É com toda essa pompa que ela passeia todas as noites pelo cérebro das pessoas apaixonadas, e é por isso que elas sonham com o amor. Ela também passa pelo joelho dos cortesãos, que nesse momento sonham que estão fazendo reverências. Ela dá uma paradinha sobre os lábios das senhoras, e elas começam logo a sonhar que estão ganhando beijinhos. Nesses casos, a rainha Mab fica zangada e costuma encher essas mulheres de aftas por causa do excesso de coisas que passam na boca pensando em ficar mais bonitas e melhorar o hálito. Mas, quando Mab passeia pelo nariz de um cortesão, ele sonha que está farejando um 36


cargo mais alto. Quando ela passa pela mão dos políticos, eles já vão sonhando com o dinheiro que irão contar. Às vezes ela passa o rabinho do porco que vai ser dado como dízimo por baixo do nariz do pastor adormecido, e ele começa a sonhar imediatamente com algum outro lucro. Quando ela para no pescoço do soldado, ele sonha com os inimigos que irá matar; nesse momento, a rainha Mab toca o tambor militar, ele acorda assustado, reza e volta a dormir. Essa Mab é a mesma que, durante a noite, amarra as cabeleiras dos duendes todas juntas e faz uma trança com os rabos dos cavalos num nó; quando o nó é desatado, acontecem muitas desgraças. A rainha das fadas também é bruxa e, quando as moças estão dormindo, deita-se sobre as costas delas, apertando-as, para que elas aprendam logo a aguentar bem o nosso peso. É ela que... – Chega, Mercúcio, já chega! – interrompe finalmente ­Romeu. – Você falou, falou, e não disse nada. – Está vendo? Eu estava falando dos sonhos, ou seja, do nada. Os sonhos são filhos da mente desocupada, não passam de fantasia vã. A substância deles é tão espessa como o ar e mais inconstante do que o vento que hoje abraça o frio gelado do norte e amanhã, quando mudar de ideia, sopra para um lugar distante dali, virando para o sul que está cheio de orvalho. – Esse vento de que você tanto fala está soprando agora mesmo em cima de nós – Benvólio tenta apressar os amigos. – A hora do jantar já passou, e nós vamos entrar atrasados. – Ao contrário – diz Romeu –, acho que chegamos cedo demais. Estou pressentindo que alguma coisa, que ainda 37


está escrita nas estrelas, alguma coisa muito triste vai começar aqui esta noite, nesta festa mesmo, uma coisa que vai acabar dando cabo, antes da hora, desta vida que bate dentro do meu peito. Mas vou deixar tudo nas mãos Daquele que sempre dirigiu os meus passos, conduziu o meu leme e irá pilotar meu navio. Vamos, amigos. Alegria... – Enfim! Batam os tambores! – ordena Benvólio. *** – Onde está o Frigideira, que não vem ajudar a tirar os pratos? – pergunta um criado dos Capuleto, no salão da casa. – Mas ele é mesmo um inútil! Não serve nem para lavar um talher. – Quando a boa educação está nas mãos de um homem ou dois somente, e eles não as lavam, tudo fica imundo – acrescenta um colega. – Vamos tirando esses bancos – continua o primeiro –, colocando o guarda-louça no lugar... Cuidado com esses pratos! Ei, você, guarde um pouco de marzipã para mim. Se você é meu amigo, abra a porta para deixar entrar a Susana do moinho e a Heleninha. Ei, Antônio, Frigideira, venham aqui ajudar! – Já vou, já vou! – responde um deles. – Estão procurando vocês no salão grande. Rápido, rápido! – Não dá para estar aqui e lá ao mesmo tempo! Vamos depressa para lá, então. Quem ficar por último carrega tudo.

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Os empregados vão e voltam, colocando mesas e cadeiras. Entram os músicos, depois o senhor e a senhora Capuleto surgem por uma porta do salão, seguidos por um primo dele, Julieta, a ama, Teobaldo e seu pajem, Petrúquio. Os convidados e as convidadas vão chegando. Por outra porta, entram Romeu, Benvólio e Mercúcio, mascarados. – Vamos, cavalheiros! – Capuleto chama os convidados para a dança. – As senhoras que não tiverem calos nos dedos vão dar um rodopio com vocês. Ah, minhas meninas, quem de vocês vai se negar a dançar? Quem fizer corpo mole, vou contar para todo mundo que tem calos! Não é verdade? Entrem na roda, rapazes! Na minha época, eu também usava máscara e sabia dizer coisas bonitas bem baixinho no ouvido das moças. E elas gostavam! Mas esse tempo passou... Vamos, moçada! Músicos, podem começar! Vamos abrir espaço para quem quer dançar. Começou o arrasta-pé, meninas. Os músicos começam a tocar, os convidados entram na dança. Romeu fica à parte. – Mais luz, aproximem as tochas! – ordena Capuleto. – Tirem as mesas do meio do salão, apaguem o fogo da lareira, isto aqui está quente demais! Ah, moçada, este baile veio na hora certa. E eu que nem esperava tanta animação!... Não se levante, primo, sente-se, faça o favor. Para nós já passou a idade de dançar. Ah, meu primo Capuleto, quanto tempo faz que você e eu não colocamos máscaras?... – Nossa, o que você me fez lembrar... – responde o primo. – Já lá vão bem uns trinta anos...

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– O quê? Não é tudo isso, primo, nem tanto assim... Foi no casamento de Lucêncio, lembra? Quando chegar o próximo Pentecostes se completam vinte e cinco anos. Foi naquela festa a última vez que usamos máscaras. – Foi mais, primo, foi há mais tempo. Você não vê que o filho dele é mais velho que isso? Ele já tem trinta anos! – De onde você tirou isso? Há dois anos o filho dele ainda era menor de idade! Enquanto isso, Romeu pergunta a um criado: – Quem é aquela moça ali, fantasiada de santa? – Não sei, senhor. – Ela está valorizando o rapaz só de dançar com ele – ­Romeu comenta, virando-se para os amigos. – As tochas aprendem a brilhar com a luz dessa garota. É como se ela fosse um pendente na face da noite, como um brinco valioso na orelha de um etíope. Perto das amigas, ela parece uma pombinha no meio dos corvos. Assim que esta música acabar, vou direto para o lugar onde ela estiver. Vou pegar na mão dela e reservar já a próxima dança. Como é que eu pude achar que estava apaixonado por outra? Meus olhos estavam enganados, porque nunca souberam o que é beleza de verdade antes desta noite. – Pela voz, esse deve ser um Montecchio – comenta Teobaldo, ao ouvir Romeu perto dele. E ordena a seu pajem: – Vá buscar minha espada, rapaz! Como é que ele se atreve a entrar aqui, disfarçado com essa máscara ridícula, para fazer pouco da nossa festa? Com certeza não será considerado crime nem pecado, se eu matar esse fulano para defender a honra e o sangue de nossa família. 40


Capuleto percebe a ira de Teobaldo e vem falar com ele: – Que aconteceu, sobrinho? Por que essa cara? – Tio, aquele ali é nosso inimigo, é um dos Montecchio. Ele entrou aqui, disfarçado como um bandido, para zombar da nossa solenidade. – Se não me engano, é o jovem Romeu, não? – É justamente o bastardo, meu tio. – Calma, sobrinho, não mexa com o rapaz, ele não está fazendo nada de mau. Para dizer a verdade, toda a Verona fala nele com orgulho, como um rapaz de bom caráter e comportamento exemplar. Nem por toda a riqueza da cidade eu faria mal a ele dentro desta casa. Por isso tenha paciên­cia, faça de conta que ele não está aqui. Essa é a minha vontade e, se você tem consideração por seu tio, não fique de cara amarrada nesta noite de alegria: desenrugue a testa e aproveite a festa! – É difícil, tio. Quando um bastardo como esse entra sem ser convidado e fica circulando pela nossa festa... Ah, eu não vou aguentar... – Vai aguentar, sim, porque essa é a minha vontade, e eu sou o dono da festa. – Não dá, tio! – Se não dá, pode ir embora. Quem é o dono da festa, você ou eu? Se ficar, vai ter que aguentar. Afinal, quem é você para me afrontar? Deus que me perdoe... Agora eu vou deixar que façam tumulto em minha casa, na frente de tantos convidados? – Mas, tio, isso é uma vergonha! – Chega! É melhor você ir embora. Não seja malcriado com seu tio! E, se insistir, vai acabar se dando mal. Percebo 41


há tempo que você sempre tem necessidade de me contrariar, mas agora chega! Quer posar de galo em minha casa? É melhor sair ou ficar quieto. – Enquanto isso, a música termina e Julieta se dirige para onde Romeu­já se colocou, à espera dela. Capuleto se vira para os que dançam, pois já se começava a notar a discussão entre tio e sobrinho: – Muito bem, moçada! A música recomeçou, continuem a dançar. Mais luz, mais luz! Vamos, animem-se, o baile está muito bonito. Teobaldo fica a pensar, revoltado: “Ser obrigado a ter paciência, ainda mais quando estou com tanta raiva... Isso me faz tremer demais. Minha carne e meus nervos não aguentam. Vou ficar quieto e me retirar. Tudo isso só serviu para criar em mim o desejo de vingança!” Enquanto Teobaldo sai da festa, Romeu já está pegando discretamente na mão de Julieta. – Se a minha mão áspera estiver incomodando, posso compensar a ofensa e a grosseria dela obrigando meus lábios a dar um beijo bem suave nessa mãozinha tão linda e macia. – Peregrino desconhecido, você está sendo injusto com a própria mão. Ela me pegou com delicadeza. Quando os devotos tocam as mãos das santas, isso já é um beijo, dado com as mãos. Não é preciso mais... – Mas as santas e os devotos não têm lábios? – Têm, mas eles só servem para rezar – responde Julieta. – Então, querida santinha, vamos deixar os lábios fazerem a mesma coisa que as mãos. Assim como as mãos

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também servem para rezar, os lábios também servem para beijar, para que a fé seja completa. – As santas ficam imóveis, mesmo quando atendem às orações dos devotos. – Perfeito! Então não se mexa, porque vou pegar o resultado de minhas preces. Assim, pela intercessão dos seus lábios, minha santinha, os meus ficam perdoados de qualquer pecado. Logo que Romeu beija Julieta, aproveitando a fraca iluminação daquele ponto, ela contrapõe: – Assim é fácil! Agora o pecado passou da sua boca para a minha. – Como? Eu passei o pecado dos meus lábios para os seus? Isso não, agora eu quero o meu pecado de volta... – Puxa, você só pensa em beijar... – Julieta, sua mãe quer falar com você – diz a ama, aproximando-se. – Quem é a mãe dela? – pergunta Romeu à criada, assim que Julieta se afasta. – Como? Você não sabe, rapaz? A mãe dela é a dona da casa. E é uma mulher muito boa, honesta e inteligente. Fui eu quem deu de mamar à filha dela, com quem você estava conversando. E quer saber de uma coisa? – a empregada diz, baixando o tom da voz: – Quem ficar com ela vai ganhar muito, tanto de dinheiro como de outra coisa, porque ela ainda não gastou nada do corpinho que tem. – Ela é da família Capuleto? A conta vai me sair cara. Meus inimigos vão querer minha vida como preço.

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Benvólio vem chamar Romeu: – Vamos, está na hora. Já nos divertimos bastante. – É disso mesmo que tenho medo. Quanto mais me diverti, mais vou ficar preocupado agora. Nesse momento, o dono da casa diz a todos, em voz alta: – Meus amigos, não quero que ninguém saia agora. Uma ceiazinha modesta nos espera em seguida. – Um criado sussurra algo em seu ouvido. – Como? Já é tão tarde?... Então, se é assim, em nome de minha família, muito obrigado a todos. Respeitáveis cavalheiros e damas, nossos agradecimentos. Boa noite... Mais tochas aqui!... Vamos, vamos... Que pena, já é hora de nos deitarmos. Ah, meu primo, que pena que você já vai... Não sabia que era tão tarde.... Já vou dormir. Enquanto todos saem do salão, Julieta chama a criada: – Venha cá, ama. Quem é aquele ali? – É o filho herdeiro do velho Tibério. – E aquele outro que vai passar pela porta agora? – Aquele? Vou ver se me lembro... Ah, sim, é o jovem Petrúquio. – E o outro que está do lado dele? O que veio dançar comigo... – Aquele eu não conheço. – Vá perguntar o nome dele... E veja se ele também não é casado... – A ama se afasta e Julieta conclui, em pensamento: “... porque, se ele for, não sei por quê, tenho o pressentimento de que meu leito nupcial será o meu túmulo...” A ama volta dizendo:

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– Ele se chama Romeu Montecchio. É o filho único do maior inimigo de sua família. – Meu único amor nasceu bem no meio de meu único ódio! Quando era cedo demais não nos conhecemos, e quando nos conhecemos era tarde demais. Que amor prodigioso tenho comigo, Que me leva a amar o maior inimigo! – Como? O que é que você está dizendo, Julieta? – Nada, é só um poema que me disseram enquanto eu estava dançando... – Julieta! – chamam de dentro nesse instante. – Já vai, já vai! – responde a ama. – Vamos, menina! Todos os convidados foram embora.

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o d n egu o S at


O

desejo antigo deitou-se em seu leito de morte, e uma nova paixão vem ocupar o lugar dele. A beleza pela qual o amor gemia e desejava morrer perdeu o seu encanto, agora que foi comparada com Julieta.

Desta vez Romeu é amado e corresponde a esse amor; ambos foram encantados pelo feitiço do olhar. Agora é a uma suposta inimiga que ele deve dirigir suas queixas de amor e, para ela, a isca doce do amor está presa a um terrível anzol. Como é considerado inimigo, ele não tem como se aproximar para trocar com ela as juras de amor comuns aos apaixonados de todas as épocas e lugares. E ela, tão enfeitiçada como ele, não tem meio nem ideia de como encontrar o recém-amado, seja onde for. A paixão, no entanto, concede poderes aos enamorados, além de tempo e meios, para que descubram como podem se encontrar, temperando os excessos com um outro excesso, o de doçura. 48


*** Romeu veio até a grande praça que fica diante do jardim dos Capuleto. “Será que vou ter coragem? Meu coração já me trouxe até aqui. Já é o suficiente, agora posso voltar. Mas sou feito de barro, para que lado devo ir?” Enquanto a mente pensa em voltar, o corpo, guiado pelo coração, escala o muro e pula para dentro do jardim. – Ei! É Romeu! – grita Benvólio, que passa por ali. – Romeu! Primo, o que você está fazendo? Logo em seguida chega Mercúcio, que ouviu o chamado de Benvólio e pergunta: – Você está vendo Romeu? Ele é um garoto sensato, aposto que está indo para casa descansar na cama. – Não, Mercúcio. Ele foi naquela direção e pulou o muro. Vamos chamá-lo de volta. – Está bem. Romeu! Caprichoso! Doido, maluco! Apaixonado! Amorzinho! Gente em forma de suspiro! Ei, responda só uma vez e fico satisfeito. Vamos, eu quero ouvir: “Pobre de mim!”; quero ouvir uns versinhos rimando “amor” e “dor”. Fale em “Vênus, deusa do amor”, e não esqueça as “feridas causadas pelas setas flamejantes de Cupido”! Ah, sim, lembre também a história do rei que se apaixonou pela jovem mendiga... Acho que ele não está ouvindo... Ele deve estar imóvel, não se escuta ruído nenhum vindo do pomar. O macaco morreu no meio das frutas, vamos ressuscitá-lo! Ei, os olhos brilhantes de Rosalina estão esperando! Lembra?... Rosalina, a de rosto iluminado e lábios vermelhos como a maçã, de pezinhos lindos, de pernas longas e bonitas, de coxas trepidantes 49


e outras qualidades que ficam perto dessa região... Puxa, nem ouvindo falar em Rosalina você quer aparecer? – Se Romeu estiver ouvindo, vai ficar muito zangado com você. – Ele não vai ficar zangado por causa de uma coisa boba como essa. Irado ele ficaria é se nós mandássemos aparecer um fantasma na frente da mulher amada. Já pensou o medo dela? Aí, sim, Romeu ficaria despeitado. Mas eu não estou fazendo nenhum fantasma aparecer aqui. Quem eu estou pedindo para aparecer é o próprio Romeu, em nome da paixão dele. Em nome de Rosalina, é só ele que tem de aparecer... – Vamos embora! Romeu deve estar escondido bem quieto no meio das árvores e vai se fundir totalmente com as sombras daqui a pouco, quando a noite chegar. Como o amor dele é sempre cego, combina melhor com a escuridão – Benvólio também gosta de fazer uma gracinha. – Se o amor é cego, nunca acerta o alvo – retoma Mercúcio. – Agora mesmo Romeu deve estar sentado embaixo de uma nespereira, esperando cair uma fruta. Você sabe que as empregadas chamam as meninas de família de nêsperas quando estão fofocando entre elas... Romeu! Ei, Romeu, boa noite! Já vamos!... Se a nêspera cair, não esqueça de descascar sua pera para a salada de frutas ficar mais completa!... Bom, lá vou eu me deitar na bicama; a minha cama mesmo é fria demais para dormir. Boa noite! Já estamos indo, Romeu! – Vamos! Não adianta procurar quem não quer ser encontrado. *** 50


“Só ri dos ferimentos quem nunca se machucou”, pensa ­Romeu, a sós no pomar. Julieta aparece no terraço e ele se surpreende: “Calma! Quem terá acendido essa luz? É o sol nascendo, é Julieta! Erga-se, Sol luminoso, mate a Lua de inveja. É por isso que a Lua está pálida, doente, porque não pode competir nem de longe com sua beleza, minha amada! Não dê atenção a ela, Julieta, a Lua só está com inveja. Somente um bobo da corte usaria um traje esverdeado, esmaecido, como esse que o luar veste. Não se deixe cobrir com ele, meu amor. Você é minha dona... Ah, se ela soubesse! Ela fala mesmo quando não diz nada. E daí? Os olhos dela dizem tudo, e eu vou dar a resposta. Como eu sou tonto, não é comigo que ela está falando: são duas das estrelas mais brilhantes do céu que saíram para cuidar de alguma outra coisa e agora estão tentando capturar os olhos dela para substituí-las enquanto ficam fora. E se fossem os olhos dela que estivessem brilhando no céu, e as estrelas viessem ocupar seu lugar no rosto de Julieta? O brilho das faces do meu amor faria as estrelas ficarem envergonhadas, o brilho dela ofuscaria as estrelas como a luz do dia faz com a de uma simples tocha; e os olhos dela brilhariam no céu com tanta intensidade que até os pássaros cantariam pensando que fosse dia. Vejam agora como ela apoia o rosto na mão... Ah, eu queria ser a luva que cobre aquela mão para poder acariciar seu rosto...” – Pobre de mim! – diz Julieta. “Ela fala!”, Romeu como que se espanta. “Ah, fale outra vez, meu anjo brilhante! Assim tão perto da minha cabeça, aí em cima, você é mais gloriosa que a noite, como um mensageiro do céu com asas, aos olhos surpresos e 51


maravilhados dos mortais, que se inclinam, dobram-se para trás, para contemplar melhor esse anjo. Um anjo, sim, é você, Julieta, quando flutua suavemente pelas nuvens, velejando em pleno ar.” – Ah, Romeu, Romeu! – volta a falar Julieta, em voz alta. – Onde está você, Romeu? Renegue o seu sobrenome, ignore o seu pai. Se não pode fazer isso, pelo menos jure que me ama, e eu deixarei de ser uma Capuleto. “Continuo a ouvir calado ou mostro que estou aqui?”, ­Romeu fica na dúvida. – É só o seu nome que é meu inimigo, não é você! Você é você, não é Montecchio. O que significa “Montecchio”? Não quer dizer “mão”, “pé”, nem “braço” ou “rosto”, muito menos qualquer outra parte do corpo de uma pessoa. Ah, mude de nome! O que importa é a pessoa, o nome tanto faz. Afinal de contas, o que é um nome? O que nós chamamos de “rosa” vai continuar a ter o mesmo aroma mesmo se mudarmos seu nome. Assim, mesmo que Romeu não se chamasse Romeu, continuaria a ser perfeito, exatamente como já é. Romeu, mude de sobrenome e, em troca do nome de sua família, que não faz parte de você, receba a mim, inteira. – Vou pegar você pela palavra – Romeu começa a falar. – Pode me chamar simplesmente de “Amor”, e eu vou me batizar outra vez com o novo nome. Daqui em diante não me chamo mais Romeu. – Quem é você? – Julieta assusta-se. – Quem está escondido aí na escuridão da noite ouvindo meus segredos? – Já não sei mais como me chamo, para lhe dizer. Minha santinha, eu próprio detesto meu nome, uma vez que é seu 52


inimigo. Se eu o visse escrito num papel, rasgaria a folha num instante. – Meus ouvidos ainda não chegaram a escutar nem cem palavras dessa voz, mas já reconheço o som. Você não éR ­ omeu... Romeu Montecchio? – Nenhum dos dois nomes, minha santinha, se você não gosta deles. – Como foi que você chegou aqui, pode me dizer? E com que objetivo? Os muros do pomar são altos e difíceis de escalar. E você está morto se for encontrado aqui por alguém da minha família. – Passei voando sobre o muro com as asas do amor. Não existe barreira de pedras que consiga impedir o amor de entrar. E ele certamente tentará realizar tudo o que sente que é capaz de fazer. Por isso, nenhum dos seus parentes será páreo para mim. – Se eles encontrarem você, não irão deixá-lo vivo! – Ora, os seus olhos são mais perigosos do que vinte espadas deles! Olhe para mim com carinho e ficarei invulnerável aos ataques. – Por nada no mundo eles podem saber que você está aqui! – Tenho o manto da noite para me esconder da vista deles. Mas, se você me ama de verdade, pode deixar que me encontrem. É melhor ver a morte chegar por causa do ódio deles que levar uma vida que não valha a pena pela falta de seu amor. – Quem lhe ensinou o caminho para chegar até aqui? – O amor foi o meu guia. Ele me ensinou a direção, eu lhe emprestei os olhos. Não sou marinheiro, mas, mesmo que você estivesse na praia mais distante do país mais longínquo, eu levaria meu barco até lá para buscar o tesouro. 53


– Você sabe que a máscara da noite está sobre meu rosto, senão poderia ver como fiquei vermelha. Já que ouviu tudo o que eu falei sozinha, é difícil renegar qualquer coisa do que disse. Agora isso não é mais possível! Mas diga: você me ama? Já sei que vai responder que sim, e eu vou acreditar. Mas, mesmo que jure, você pode estar mentindo. Dizem que o deus Júpiter ri das promessas de amor. Ah, meu querido Romeu, se você me ama, diga com sinceridade. Mas, se achar que sou uma garota fácil demais, posso me zangar: eu também sei me fazer de má e dizer não. Assim, você terá de me conquistar... Mas agora não adianta, você já sabe: Montecchio, seu convencido, eu me apaixonei e agora vai me achar uma mulher volúvel. Mesmo assim pode acreditar, rapaz, vou provar que sou mais sincera do que essas outras que têm mais experiência. Eu deveria fingir que não, claro, mas você ouviu o que eu estava dizendo e já sabe da minha paixão. Por isso, me desculpe e não fique pensando que sou uma dessas levianas que só se revelam na escuridão da noite. – Minha querida, juro por essa Lua abençoada que brilha na copa de todas essas árvores... – Não, não jure pela Lua! A Lua é volúvel, ela muda de cara o tempo todo durante o mês. Só se você for inconstante como ela... – Então, pelo que devo jurar? – Não jure por nada. Se quiser, jure por si próprio: você é tão bonito, é o deus da minha religião, e eu vou acreditar. – Se o amor que está no meu coração... – Está bem, não jure. Eu estou feliz com você, mas não fico feliz com este encontro, aqui, assim, à noite. É muito repentino, precipitado, inesperado demais... muito parecido 54


com o relâmpago, que, quando vamos dizer que o estamos vendo, ele já se apagou. Este amor em botão, aquecido pelo verão, pode ter se tornado uma flor bonita e grande quando nos encontrarmos outra vez. Adeus! Boa noite! Vá dormir, e tenha um descanso cheio de felicidade, igual à que estou sentindo no meu peito. – Como? Você vai me deixar assim, sem dar mais satisfação? – Que satisfação você espera receber esta noite? – Vamos fazer pelo menos uma declaração de amor... – Mas isso eu já fiz, mesmo sem você ter pedido! Você é que ainda não se declarou, e eu posso retirar o que disse... – Você não vai desmentir tudo aquilo que disse, vai? Por quê? – Seu bobo, se eu retirar é só para dar de novo... Mas já estou contente com o que tenho. Minha generosidade pode ser imensa como o oceano e meu amor, profundo como ele. Quanto mais dou a você, mais tenho, porque ele é infinito. Nesse instante, a criada chama, de dentro. – Estão me chamando – diz Julieta. – Adeus, amor! Já vou, ama! Querido Montecchio, seja fiel a mim. Espere um pouquinho e já volto. Julieta entra, e Romeu fica a exclamar: – Que noite abençoada! Já que é noite, só tenho medo de que isso seja um sonho bom demais para ser verdade. Julieta volta. – Só duas coisinhas, Romeu, e aí vou me despedir mesmo! Se seu amor é sincero e honesto, faça o pedido de casamento. Mande a resposta pela pessoa que vai procurar 55


você amanhã, de minha parte. Diga onde e para quando vai marcar a cerimônia e vou me colocar inteirinha a seus pés. Você será o meu senhor, e vou segui-lo até o fim do mundo. – Julieta! – a criada chama novamente. – Já vou!... Mas, se você não tem essa intenção, eu lhe imploro que... – Julieta!... – Já disse que estou indo!... Eu imploro que pare de me perseguir e me deixe sofrer sozinha. Amanhã eu mando alguém... – Espero aguentar até lá... – Boa noite, mil vezes maravilhosa, Romeu! – Mil vezes triste, porque vai me faltar a sua luz, Julieta. O amor vai ao encontro do amor com tanta força como as ondas que se aproximam da praia, e o amor se despede do amor com a mesma dificuldade do estudioso quando é obrigado a largar um bom livro. Romeu começa a se afastar, mas Julieta ainda o chama sussurrando: – Psiu! Romeu, chiuuu! Ah, se eu tivesse a voz do falcoeiro quando chama suas aves de caça de volta!... A escrava tem de ser rouca e não pode falar alto; senão, eu gritaria dentro da caverna onde se faz o maior eco, e a voz do Eco ficaria ainda mais rouca que a minha de tanto repetir o nome do meu amado Romeu. “É minha alma que está chamando o meu nome”, pensa ele. “A voz de quem ama ganha o som da prata no escuro da noite, é como música para os ouvidos distraídos.” – Romeu! – ouve-se novamente o sussurro. – Querida?... 56


– A que horas devo mandar a pessoa amanhã? – Às nove. – Não vou falhar. Parece que daqui até lá são vinte anos. Já esqueci por que chamei você de volta. – Vou ficar aqui esperando até você lembrar. – Então vou continuar esquecendo para que fique aí me fazendo lembrar como amo estar perto de você. – E eu vou ficar para que você continue esquecendo, e para que eu também esqueça que existe qualquer outro lugar que não este. – Já é quase de manhã – percebe Julieta. – É melhor você ir embora. Mas não vá mais longe do que aquele passarinho que a criança soltou e continua preso por uma linha de seda amarrada a uma argolinha na pata. A criança puxa a linha e traz o passarinho de volta, com amor ciumento de sua liberdade. – Eu queria ser esse passarinho... – Eu também, meu doce... Mas eu iria matar você de tanto fazer carinho. Boa noite, boa noite! Vá embora! A despedida é uma dor tão suave que posso ficar dizendo boa-noite até amanhecer. Julieta volta para dentro. “Feche os olhos e durma bem, com o coração em paz. Queria ser eu mesmo o sono e a paz para dormir com tanto prazer... Agora vou visitar meu pai espiritual para pedir conselhos e contar como estou feliz”, pensa Romeu. *** No convento, sozinho em sua cela, frei Lourenço faz suas reflexões: 57


“O amanhecer de olhos cinzentos já está sorrindo para a noite sombria. As nuvens do leste se tingem com raios de luz. A escuridão, pontilhada, atravessada pela cor, cambaleia bêbada, escapando do caminho do dia e das rodas de fogo do titã. Agora, antes que o sol avance com seu olho em chamas para animar o dia e ressecar o orvalho da noite, eu devo encher este cesto de vime com ervas maléficas e flores cheias de sumo precioso. A terra, que é mãe da natureza, é também o túmulo dela. E o que é sepultura também serve de útero fecundo. E do útero da terra a natureza faz nascer filhos de várias espécies, que procuramos aproveitar. Muitos têm qualidades excelentes, outros, menos serventia, mas são todos diferentes. Que grandiosa é a graça potente que reside nas ervas, nas plantas, nas pedras, e como são imensas suas propriedades reais! Pois não existe na terra nada tão pequeno e inútil que não contenha nenhum benefício especial. E nada é tão bom que, usado de maneira imprópria, não renegue sua origem, caindo no abuso. A virtude se transforma em vício quando é mal aproveitada, e o vício às vezes se redime por meio da ação. Dentro do cálice jovem desta pequena flor, mora um veneno junto com os poderes medicinais. Por isso, quando a cheiramos, com uma pequena parte dela todas as partes de nosso corpo se sentem deliciadas. Quando a provamos, porém, ela mata, aniquilando todos os sentidos e o coração. Dentro do homem também governam dois reis, inimigos um do outro, assim como nas ervas: eles são a bondade e a maldade, a graça e a grosseria. E, quando o pior deles predomina, muito rapidamente o tumor fatal corrói a planta inteira.” *** 58


– Bom dia, meu pai espiritual! – Deus o abençoe, meu filho. O que fez você se levantar tão cedo, Romeu? Quem se despede da cama a esta hora certamente não está com a cabeça tranquila. A preocupação espia pelos olhos dos velhos e os mantém acordados, e onde a preocupação vem morar, o sono é logo desalojado. Mas, onde a juventude sem receios e de cabeça tranquila estende os braços e as pernas, o sono reina como senhor absoluto. Por isso, você me aparecer assim, a esta hora, só me dá a certeza de que houve algum desarranjo, mesmo com todo o carinho com que deu bom-dia. Ou, então, e acho que agora vou acertar na mosca, o nosso Romeu não passou a noite na cama. – A última alternativa é a correta, meu frade. Descansei melhor ainda do que na cama. – Que pecado, meu filho! Deus que lhe perdoe! Quer dizer que você passou a noite com Rosalina?... – Com Rosalina? Não, senhor, meu pai espiritual! Nada disso... Já esqueci esse nome... aliás, nem sinto mais nada quando o escuto... – Ah, esse é o bom menino que eu conheço! Mas onde você passou a noite? – Vou responder antes que o senhor me pergunte outra vez. Estive em uma festa na casa dos meus inimigos. Lá, fui ferido por uma pessoa, que também foi ferida por mim. E só o senhor tem o remédio que serve para nós dois. Eu não carrego ódio, meu frade santo, pois, como o senhor pode ver, estou pedindo sua ajuda tanto para mim como para o inimigo... 59


– Fale claramente, meu filho, vá direto ao ponto. Uma confissão feita com enigmas só merece uma absolvição por charadas. – Então, fique sabendo que meu coração deu todo o seu amor para a linda filha do rico Capuleto. E ela me corresponde plenamente. Já está tudo arranjado, só falta o senhor nos unir pelo santo sacramento do matrimônio. Quando e onde nós nos encontramos, e como decidimos nos casar, isso tudo eu vou lhe contar pelo caminho. Só peço ao senhor que concorde em nos casar ainda hoje. – Meu São Francisco! Que mudança! E o que aconteceu com Rosalina? Você gostava tanto dela... Já esqueceu a moça? Ah, é verdade mesmo que o amor dos jovens mora nos olhos, não no coração... Jesus-Maria, como você chorou por ela!... E que lágrimas graaandes... Que desperdício de água salgada para temperar um sentimento que no fim acabou tão insosso... O Sol ainda nem limpou o céu do vapor dos suspiros de Romeu e as queixas dele ainda me doem nos ouvidos... Olhe, menino, ainda estou vendo uma lágrima antiga bem aqui no seu rosto, que você se esqueceu de limpar. Se alguma vez você foi você mesmo, e sofreu por alguém, foi quando amava Rosalina. O dia nem raiou ainda e lá vem você me dizer que já mudou, que está tudo acabado? Agora repita comigo esta frase: “As mulheres podem cair quando os homens são fracos”. – O senhor muitas vezes me repreendeu por estar apaixonado por Rosalina... – Por estar louco de paixão, não por estar apaixonado. Eu estava apontando os exageros, meu filho. 60


– O senhor me dizia para enterrar aquele amor... – Não numa sepultura, claro. O que eu não queria era que você se enterrasse de amor... – Agora eu imploro ao senhor, meu frade: tente me compreender, não me repreenda mais. Aquela que eu amo agora também me ama, eu amo e sou correspondido! Com a outra não acontecia nada disso! – Isso é verdade; mesmo sem conhecer o alfabeto, ela sabia ler o seu amor até de trás para a frente... Está bem, meu pequeno volúvel, eu vou ajudá-lo. Vou fazer o que está me pedindo por um bom motivo: este casamento pode ser muito feliz, pois cria uma boa oportunidade para as duas famílias se reconciliarem, transformando o ódio em puro amor. – Então vamos já, meu pai espiritual! Quero resolver tudo imediatamente! – Calma! Vamos com tranquilidade. Quem corre demais pode tropeçar no caminho... *** Na rua, Mercúcio conversa com Benvólio: – Aonde diabos foi se enfiar esse Romeu? Ele não voltou para casa de madrugada? – Não. Já falei com um empregado da casa e ele não apareceu. – Ah, essa bruxa dessa Rosalina, branquela insensível, está acabando com ele. Romeu ainda vai acabar louco! – O sobrinho do velho Capuleto... – Quem? Teobaldo? 61


– É. Teobaldo mandou entregar uma carta para Romeu na casa dele. – Aposto que é o desafio para um duelo. – E Romeu certamente vai responder aceitando. Ele também sabe responder à altura quando é desafiado. – Coitado do Romeu, ele já está morto! – diz Mercúcio. – Foi apunhalado pelos olhos negros de uma mulher. Ele morreu com os ouvidos atravessados por uma canção de amor. A flecha do pequeno arqueiro cego acertou o coração dele em cheio, bem no centro. Você acha que um homem nesse estado tem condição de enfrentar Teobaldo? – Por quê? O que esse Teobaldo tem de mais? – “Tem” que ele é o príncipe dos felinos. Não há ninguém como ele para dar o bote na vítima desprevenida. Ele sabe lutar como o músico que lê uma partitura: é capaz de manter o ritmo enquanto conta o tempo e os intervalos; então faz a pausa de uma semínima, um, dois e... três, acertou bem no peito! Teobaldo consegue realizar a carnificina usando botões de seda, sabe lutar num duelo como um cavalheiro educadíssimo, mas, ao primeiro descuido... lá se vão as gentilezas! Ah, o bloqueio, a estocada, a balestra, o ataque composto: ele conhece todos os golpes de esgrima! – Balestra o quê? – São os golpes da esgrima, seu ignorante. Mais uma das modas estrangeiras que estão nos impondo agora! E essa gente se admira com qualquer coisa de nada: “Ah, que bela lâmina!”, “Oh, que homem alto!”, “Sim, ma che bella prostituta!” – Mercúcio começa a voar alto. – Não é um horror esse deslumbramento todo? Se trouxerem uma mosca do 62


estrangeiro, todos vão deixar o queixo cair de admiração, tudo agora é fashion, só falta começarem a dizer “Excuse me” em vez de “Com licença”! A gente nem pode mais se sentar do jeito mais confortável que sempre vem alguém ensinar o jeito certo para não estragar a coluna, mas, pelo menos quando se faz tudo certinho, sempre se recebe a recompensa de umas palavrinhas de estímulo: “Very good, very good!”. – Ei, Mercúcio, desça de volta para a terra, olhe quem vem lá. É Romeu! – Como uma tainha seca e sem ovas – comentou Mercúcio. – Já podemos usar carne para preparar uma peixada, porque hoje em dia até a carne está virando peixe, está se peixificando... Dá para ver que ele está encantado pelos poemas daquele antigo italiano, Petrarca: Laura, a musa do poeta, é uma simples cozinheira em comparação com a amada de Romeu. Não importa que o poeta dela soubesse compor versos melhor, claro! Cleópatra não passava de uma cigana, Helena é uma mera meretriz, Tisbe tem os olhos tortos; todas as mulheres perdem a graça e o interesse diante da amada de Romeu... Ei, Romeu, good morning! Bonjour! Estou cumprimentando em francês, em homenagem à sua roupa de hoje. Você nos ignorou solenemente ontem à noite, hein? – Bom dia, bom dia – cumprimentou Romeu. – Como assim ignorei solenemente? – Pode não ter sido com solenidade, mas que fugiu de nós fugiu, seu Romeu. Vai negar? – Desculpe, Mercúcio, eu precisava fazer um negócio importante. E num momento como aquele não dava para ficar distribuindo cortesias. 63


– Ou seja, num caso como o seu, os outros devem parar e ficar de joelhos... – É isso mesmo! – Agora gostei de ver, Romeu. Você entrou no espírito da brincadeira. – Vindo de um homem gentil como você, Mercúcio... – Você sabe que a minha educação é perfeita, Romeu... – Ô!... A educação em forma de gente... – Da cabeça aos pés... – Exatamente como eu – completou Romeu. – Está vendo como os meus sapatos são bem-educados? – Estou. E do jeito que estamos esticando esta brincadeira, os sapatos vão ficar gastos antes de ela acabar. E depois que a sola sumir, a brincadeira vai continuar, sozinha, etérea, solta no ar. 64


– Que coisa mais sem graça, Mercúcio. – Benvólio, entre na conversa também. Minha inspiração está falhando. – Mercúcio está pedindo água. Pode bater três vezes, Mercúcio, você já perdeu esta partida de paciência. – Essa não! Não venha me pedir para desistir que isso, sim, é coisa de quem está perdendo. – Perdendo, eu? – diz Romeu. – Se nós lutarmos, eu ganho de você com uma mão amarrada nas costas, por exemplo. – Ah, é? E se formos caçar ganso, por exemplo, eu mato dois com um tiro só e de olhos fechados. E você, Romeu? – Eu não vou caçar o ganso. Eu vou é afogar o ganso. – Epa! Agora sim a brincadeira começou a esquentar. Entrou um ganso com pimenta na conversa. Gostei de ver, Romeu. Finalmente você ficou sociável. Agora é o Romeu de verdade e, melhor ainda, é e, ainda por cima, fala! Ficar gemendo e chorando por causa de amor é ser igual àquele doido que fica correndo pra baixo e pra cima com a língua de fora antes de esconder uma bugiganga qualquer num buraco. – Melhor parar por aí, Mercúcio. – Agora que eu ia entrar no melhor da história, Romeu?... – Ao contrário, agora é que você ia destrambelhar para o pior... – Ah, coitadinho, o Romeu ficou chateado!... A história ainda estava esquentando, só podia ficar melhor. Mas não faz mal, eu não estava mesmo pensando em esticar o assunto... – Esse é o Mercúcio... – conclui Romeu. *** 65


A ama de Julieta vem caminhando pela rua, acompanhada por seu ajudante, Pedro. – Uma vela de navio, uma vela! – exclama Mercúcio. – Não, são duas – emenda Benvólio –, uma blusa e uma saia. – Pedro! – diz a ama. – Hã... – faz o ajudante. – Meu leque, Pedro! – Pedrinho, seja bonzinho, é só para esconder a cara dela – diz Mercúcio. – Assim a gente não consegue saber qual é a cara: se é o leque ou se é ela mesma... – Deus lhes conceda um bom dia, cavalheiros – diz a mulher, empertigada. – E Deus lhe dê uma boa tarde, bela senhora – responde Mercúcio. – Por quê? Já é de tarde, cavalheiro? – Menos que isso não é, minha dama, porque o ponteiro do relógio está durinho como um pau apontando para cima: é meio-dia em ponto. – Quer parar com essa história? Que tipo de homem é o senhor? – Minha dama, eu sou aquele que Deus criou para se estragar. – Está se vendo... “Menino mimado, menino estragado”, não é esse o ditado? Cavalheiros, agora falem sério: algum dos senhores sabe onde posso encontrar o jovem Romeu? – Eu sei – responde o próprio. – Mas o jovem Romeu vai estar um pouco mais velho do que agora quando a senhora

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encontrá-lo. Eu aqui presente sou o mais jovem de todos com esse nome, que aliás só é o meu por falta de outro pior. – O senhor fala bem. – Quer dizer que o pior é bom? Então ainda posso acreditar em alguma coisa – diz Mercúcio. – Se o senhor é ele – retoma a ama –, precisamos ter uma conversa em particular. – Ela vai convidar Romeu para jantar – Benvólio comenta com Mercúcio. – Epa! Quer dizer que a mulher é uma cafetina? – é a resposta dele somente para Benvólio. – O que foi que você disse? – pergunta Romeu, tentando escutar. – Eu? Nada! Só estava lembrando uma musiquinha antiga que começava assim: Eu tomava café na tina Perfumada de alecrim Eu bebia o meu caféTi-na-morando no jardim. Romeu, você não vai para casa? Seu pai está esperando para o almoço. – Vou, sim, mas vocês podem ir na frente. – Adeus, antiga dama – despede-se Mercúcio. – Vou re­ zar pela senhora... – e continua, cantarolando: – a se­ nho­ra... sem hora... sem ho-o-ora... – Cruz-credo! – diz a ama a Romeu. – Quem é esse desajustado? 67


– Minha senhora, é um cavalheiro que adora simplesmente ouvir a própria voz. Em um minuto, ele consegue falar mais do que cabe na boca em um mês. – Se me desrespeitar de novo, vai levar um tranco tão grande que vai cair no chão, mesmo que ele seja forte... mesmo que seja vinte iguais a ele. E, se eu não conseguir dar o tranco, vou buscar quem consegue! Moleque malcriado! Eu não sou dessas que vivem namorando por aí, como essas cadelas no cio... E você, Pedro, como é que fica parado aí, deixando que qualquer um fique gozando da minha cara? – Eu não vi ni-ninguém gozando da sua cara, pa-patroa – responde o ajudante, que gagueja quando fica nervoso. – Mas se alguém se me-meter com a senhora vai se ver co-comigo, ora se vai. Se alguém tivesse mexido com a-com a senhora eu já tinha puxado a espada, eu ga-garanto. Não tem quem seja mais rá-rápido que eu na ho-hora de puxar a espada... É só apa-parecer uma boa briga, e eu estar de-dentro da lei, cla-claro! – Deus que me perdoe, mas estou me sentindo tão vexada que meu corpo inteiro está tremendo. Malandro sem-vergonha! Eu preciso falar rapidamente: minha jovem patroa me pediu para procurar o senhor. O que ela me pediu para dizer é um segredo que eu não vou contar a mais ninguém. Mas antes me deixe dizer uma coisa: se o senhor enganar a minha patroazinha com promessas falsas, levar a menina para o céu dos bobos, como se costuma dizer, seria uma falta de caráter muito grande, como se costuma dizer, porque ela é muito novinha e, se o senhor fizer jogo duplo com ela, estará fazendo uma coisa muito feia, ah... Posso 68


dizer com todas as letras?... Vai ser até uma covardia! Mas o mocinho não tem cara de covarde... – Ama, pode dizer para a sua patroazinha: eu juro que sou o homem mais sincero do mundo. Posso garantir que... – Estou vendo que é de bom coração, meu rapaz. Senti que está agindo de boa-fé. Meu Deus, ela vai ser muito feliz! – O que a senhora vai falar para ela?... Está prestando atenção no que estou dizendo? – Vou contar que o senhor fez um juramento e que é um rapaz sincero. – Peça a ela que encontre um jeito de ir se confessar agora à tarde. Ela vai me encontrar na cela de frei Lourenço no convento: ele vai nos confessar e fazer o casamento. Isto aqui é para você, pelo seu trabalho, pelo desgaste de cuidar desse assunto... – Não, senhor. Não vou aceitar... Nem um centavo! – Vamos, deixe de besteira! Pegue! – Agora à tarde, então? Fique tranquilo, ela vai estar lá. – Escute, ama. Espere atrás do muro do convento. Dentro de uma hora, o meu pajem vai se encontrar com a senhora lá. Ele vai levar uma escada de cordas trançadas para eu subir escondido à noite, ao encontro de minha felicidade. Até logo! Guarde segredo e eu saberei recompensar seu esforço. Até logo! Fale bem de mim para sua patroazinha. – Que Deus lá no céu os abençoe! Mas escute uma coisa... – Que é, ama? – E esse seu pajem? Ele sabe guardar segredo? Nunca ouviu dizer que duas pessoas só conseguem guardar um segredo quando não existe uma terceira por perto para contar? 69


– Não se preocupe, eu garanto. Ele é surdo como uma porta e confiável como o aço. – Patrãozinho... a minha garota é a mocinha mais doce do mundo... Ah, senhor... quando ela era pequenina... Existe um nobre na cidade, um conde chamado Páris, que faz de tudo para ficar com ela; mas a menina, tão boa, prefere ver um sapo, um sapo de verdade, a deixar que ele se aproxime... Às vezes faço Julieta ficar zangada, quando digo que Páris é o homem certo para ela. Mas pode ter certeza de que, quando eu falo isso, ela fica pálida que nem um lençol. Agora veja uma coisa: não é verdade que rosa, rosmaninho e Romeu começam todos com a mesma letra? – Claro! Todos têm erre no início. Mas por que a pergunta? – Tome cuidado, porque erre também é a letra do Cão. Como é que ele rosna, não é fazendo rrrrrrrrr? Mas não se preo­ cupe, o nome verdadeiro do Cão começa com outra letra. Sabe que ela gosta de fazer brincadeira com o seu nome trocando Romeu com rosmaninho, que é nome de planta cheirosa, e com qualquer palavra que comece com “ro”? O senhor devia ouvir... – Dê lembranças minhas a ela – Romeu se despede, finalmente. – Vou dar, sim... Milhares! Romeu se afasta e a criada chama o ajudante: – Pedro! – Hã?... – Pedro, pegue o meu leque e vá na frente! *** 70


No jardim dos Capuleto, Julieta pensa: “O relógio estava batendo nove horas quando mandei a ama. Ela prometeu voltar em meia hora. Vai ver que não encontrou Romeu... Não, não é isso. Ela é manca. Os pensamentos deviam ser os mensageiros do amor: eles viajam dez vezes mais rápido que os raios do Sol quando expulsam as sombras das colinas enevoadas. É por isso que as pombas ligeiras levam o amor, e Cupido é veloz porque tem asas. Agora o Sol está sobre a montanha mais alta de sua jornada diária: das nove ao meio-dia, são três horas muito longas – e ela ainda não voltou... Se ela ainda sentisse alguma coisa e tivesse o sangue quente da juventude, correria tão rápido como uma bola. As minhas palavras teriam empurrado a ama com mais velocidade até o meu querido amor, e as dele a teriam trazido com rapidez igual de volta para cá. Mas os velhos muitas vezes gostam de se fazer de mortos, moles, vagarosos e pesados como o chumbo... Graças a Deus, aí vem ela!” – Querida ama, quais são as novidades? Você se encontrou com ele? Mande sair o seu ajudante – diz ela, atropelando as palavras. – Pedro, vá esperar no portão – ordena a ama. – Então, querida ama... Meu Deus, por que você está com essa cara triste?... Mesmo que as notícias sejam más, conte-as com alegria, como se fossem boas. Se são boas, você está desafinando para cantar a música das boas-novas ao fazer essa cara de quem sofreu um acidente. – Só estou cansada, me dê um minuto! Calma, meus ossos estão doendo! Eu precisei correr muito! 71


– Ah, como eu queria que você tivesse meus ossos e eu tivesse suas novidades... Vamos, ama, eu imploro! Fale! Querida, queridíssima ama, diga logo! – Meu Jesus, para que tanta pressa? Você não sabe esperar um instante que seja? Não está vendo que estou quase sem ar? – Como é que você está sem ar, se tem ar suficiente para me dizer que está sem ar? A desculpa que você está dando para não contar as novidades está tomando mais tempo do que levaria para contar o que aconteceu. As notícias são boas ou ruins? Responda apenas isso! É só dizer: “boas!”, ou “más!”, e eu terei paciência para os detalhes. Vamos, faça-me passar a ansiedade: boas ou más? – Bom, menina, você reduz tudo a uma escolha simples, mas nem sabe como se escolhe um homem!... Romeu!... Ah, não, ele não! Ele até pode ser mais bonito de rosto que os outros... Só que as pernas não têm nada de mais, apesar de que também são mais bem torneadas que as dos outros garotos! E o corpo todo... Também não dá para falar grande coisa, não tem nada que chame a atenção... mas, por outro lado, é verdade que não tem quem chegue aos pés dele... Mas com certeza não é nenhuma flor que se cheire... Só que, claro, ele é mais gentil que um carneirinho... Vá em frente, menina, siga o seu caminho e faça a vontade de Deus! Ah... já serviram o almoço? – Não, ainda não. Mas eu já sabia tudo isso que você disse! O que eu quero saber é o que ele falou sobre o nosso casamento! Que foi que ele disse?... – Meu Deus, como minha cabeça está doendo! Só eu é que sei! Está latejando como se fosse explodir em vinte 72


pedaços. E as minhas costas, do outro lado!... Ai, minhas costas, minhas costas! O seu coração não dói de estar provocando a minha morte desse jeito, me mandando sair por aí pra cima e pra baixo? – Nossa! Eu juro que estou muito chateada por você não estar se sentindo bem. Minha querida ama, queridíssima, conte logo o que o amor da minha vida disse. – O amor da sua vida disse... Ele falou como um cavalheiro, um rapaz honesto e gentil, e bonito e... eu garanto... como um homem de palavra... Mas onde está a sua mãe? – Onde está a minha mãe?... Por quê? Ora, ela está em casa, lá dentro, onde mais poderia estar? Mas que resposta mais sem sentido: “O amor da sua vida falou como um cavalheiro, um homem de palavra, mas onde está sua mãe?”... Isso é jeito de responder ao que eu pergunto? – Ai, minha Nossa Senhora! Você está nervosa demais! Calma, eu ainda estou no meio da resposta. Então é assim que você trata meus pobres ossos doloridos? Daqui para a frente, é melhor você mesma cuidar de ir entregar os seus recados! – Chega de confusão! Vamos, diga logo, o que foi que Romeu disse? – Seus pais já deram a permissão para você sair hoje para se confessar? – Deram! – Então vá depressa até a cela de frei Lourenço, no convento. O marido que vai fazer de você uma mulher já está esperando lá. Agora você está ficando toda vermelha... Desse jeito o seu rosto vai explodir já, já, com o que eu ainda 73


tenho para dizer... Corra até a igreja. Enquanto você vai lá, eu vou buscar uma escada de corda para que o seu apaixonado possa subir até o ninho de amor quando escurecer. Eu sou a besta de carga e carrego os fardos para você alcançar o prazer, mas a partir desta noite é você mesma quem vai sentir o peso em cima do seu corpo... Pronto! Agora vou almoçar, e você corre até a capela do convento. – Vai ser a minha corrida para a maior felicidade! Queridíssima ama, até logo. *** Frei Lourenço e Romeu conversam na cela do frade. – Que os céus sorriam para esta cerimônia sagrada, para não sofrermos nenhum arrependimento mais tarde... – Amém, amém – responde Romeu. – Mas, mesmo que ocorram muitas tristezas, não serão suficientes para contrabalançar a felicidade que eu sinto quando posso ver Julieta por um só minuto que seja. Junte nossas mãos com as palavras sagradas; e a morte, que devora o amor, que faça o que quiser... Para mim, só o fato de poder dizer que ela é minha já faz que tenha valido a pena viver. – As felicidades extremas também terminam de forma extrema e morrem justamente quando triunfam, como o fogo e a pólvora, que se consomem quando se beijam. O mel mais doce enjoa precisamente por ser delicioso demais, e o gosto dele confunde o apetite. Por isso, é melhor amar com moderação. O amor duradouro age dessa forma. Quem vai com sede demais ao pote não bebe mais do que 74


quem chega calmamente. Aí vem a moça... Ah! Nunca outro pé tão leve pisará nestas pedras eternas! A pessoa apaixonada consegue caminhar sua­vemente no tecido finíssimo do ar de verão sem cair! Como é leve a paixão pura... – Boa tarde, meu confessor espiritual! – cumprimenta Julieta, ao entrar. – Romeu vai responder ao cumprimento, minha filha. Por ele e por mim... – diz o frade. – Boa tarde para ele também... – Ah, Julieta – interrompe Romeu –, se sua felicidade for demasiada, difícil de segurar como a minha, e você souber exprimir melhor que eu a beleza do nosso sentimento, o ar em redor ficará perfumado; a música belíssima da sua voz poderá revelar a felicidade que sonhamos para este encontro tão desejado! – O nosso sentimento é mais rico em realidade do que em palavras. Ele se alimenta de conteúdo, não de enfeites. Só os mendigos conseguem contar quanto têm. Mas o meu amor verdadeiro é tão grande que é como se fosse um excesso; não sei calcular nem metade do tesouro que possuo. – Vamos, venham comigo – convida frei Lourenço. – A cerimônia será rápida, porque vocês não podem ser deixados a sós enquanto não derem o sim, antes que a Santa Igreja tenha unido os dois em um só.

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o r i e Ter c at o


M

ercúcio e Benvólio, acompanhados de pajens e outros criados, estão na praça. – Ouça o que eu digo, Mercúcio, vamos embora! O dia está quente, os Capuleto estão na

rua e, se toparmos com eles, não vai ser fácil fugir da briga. É nos dias quentes como hoje que o sangue ferve e enlouquece. – Você até parece um daqueles que quando entram na taverna jogam a espada na mesa e dizem: “Espero que Deus não me obrigue a usar isto!”. Só que depois do segundo copo voltam a pôr a espada na bainha e, realmente, Deus não obrigou o sujeito a usar aquilo! – E por acaso eu sou um desses? – perguntou Benvólio. – Ora, ora, você é o homem mais esquentado da Itália. Ninguém se sente provocado com tanta facilidade... – Mais alguma coisa?... – Não. Só que, se você fosse dois, logo, logo, não sobrava nenhum, porque os dois iam se matar num instante. Benvólio é capaz de armar uma briga se alguém tiver um 78


pelo de barba a mais ou a menos do que ele... Pode até quebrar a cara de um sujeito porque ele está comendo nozes, e Benvólio não gosta de nozes!... Só você mesmo para arrumar briga sem motivo dessa forma. É tão fácil achar a gema no ovo como encontrar uma razão para uma boa disputa na sua cabeça. O problema é que, a esta altura, de tanto levar pancada, a sua cabeça deve estar tão mexida como uma omelete. Já vi você brigar com um homem na rua somente porque ele tossiu e acordou o seu cachorro, que estava dormindo ao sol! E não deu uma lição de moral no alfaiate apenas porque ele já estava usando o casaco novo antes da Páscoa? E aquele outro, que estava de cadarço velho no sapato novo, por que foi se meter com ele por isso? Em suma, você, que discute por qualquer ninharia, agora vem querer me impedir de procurar uma boa briga? – Mercúcio, se eu fosse tão bem-disposto para lutar como você, ninguém me daria mais nem uma hora e quinze minutos de vida, a contar deste momento... – Uma hora e quinze? Que sujeito generoso... – Cuidado! Os Capuleto estão se aproximando... – Não estou nem ligando... – desdenha Mercúcio. Teobaldo chega à praça, acompanhado de Petrúquio e de alguns criados. – Fiquem perto de mim, porque eu vou falar com essa gente... – diz ele a seus acompanhantes. Depois, dirigindo-se a Benvólio e Mercúcio: – Cavalheiros, boa tarde! Quero trocar uma palavrinha com um de vocês. – Só uma palavrinha?... Com um de nós?... – retruca Mercúcio.­– E por que não faz alguma coisa também? 79


Assim, em vez de ficar sendo só uma palavrinha, vamos ter um pouco de ação. – Disposição para isso eu tenho muita; é só me dar motivo. – Não sabe achar um motivo sem que ninguém o dê? – Mercúcio, você combina bem com Benvólio... Os dois fazem uma harmonia perfeita... – Harmonia?... Então você acha que nós somos menestréis? Se acha, vamos fazer você ouvir umas boas dissonâncias. É com este arco que eu toco o violino, esta é a minha batuta – Mercúcio pousa a mão no cabo da espada. – E é com ela que você vai dançar. – Estamos conversando com gente demais por perto. Vamos para um lugar menos frequentado para raciocinar com calma sobre nossas diferenças. Senão, é melhor cada um ir para o seu lado. Aqui, todos estão olhando para nós. – Os olhos foram feitos para ver, deixe que olhem. Não vou sair daqui só para agradar você. – Então fique em paz – conclui Teobaldo. – O meu criadinho está chegando. É Romeu quem se aproxima nesse momento. – Ele não está com o uniforme dos criados de sua família. – Mercúcio responde à provocação. – Aliás, nem sei se vocês têm empregados lá... – Romeu – provoca Teobaldo –, o ódio que estou sentindo por você me fez lembrar de sua maior qualidade: você é um covarde. – Teobaldo – responde Romeu –, agora tenho motivos para gostar de você; eles me fazem desculpar toda a raiva 80


contida em suas palavras. E eu não sou nenhum covarde. Portanto, adeus! Já vi que você não me conhece bem. – Escute aqui, só que não é desse jeito que você vai se desculpar das desfeitas que me fez. Pode ir puxando a espada. – Tenho certeza de que nunca lhe fiz nenhuma desfeita. Ao contrário, agora gosto da sua pessoa, embora você não possa imaginar por quê. Por isso, meu caro Capuleto (e olhe que eu aprendi a estimar o nome da sua família tanto como da minha!), pode ficar tranquilo. – Mas que submissão, que covardia! Que falta de hombridade, Romeu! – admira-se Mercúcio. – Vamos acabar com isso de espada na mão! Teobaldo, seu caçador de ratos, vamos lá! – O que você quer comigo? – retruca Teobaldo. – Só uma das suas sete vidas, seu gato mimado que nem ratos sabe caçar! E, dependendo da sua resposta, vou acabar também com as outras seis. Como é, vai puxar a lâmina ou só vai ficar segurando? É melhor se apressar, senão eu corto as suas orelhas antes que você nem sequer consiga levantar a espada. – Às ordens! – Teobaldo saca a espada. – Meu caro Mercúcio, não entre nessa! – pede Romeu. – Vamos ver se você conhece pelo menos um golpe – desafia Mercúcio, e começa a lutar com Teobaldo. – Benvólio, puxe a espada e me ajude a separar esses dois, vamos acabar com a briga entre eles – continua Romeu. – Chega, pessoal, que vergonha, vamos parar com esse ultraje!... Teobaldo! Mercúcio! O príncipe proibiu expressamente lutar nas ruas de Verona. Pare, Teobaldo! Mercúcio... Romeu se coloca entre os lutadores, mas Teobaldo fere Mercúcio com um golpe por baixo do braço de Romeu. 81


– Vamos fugir, Teobaldo – grita Petrúquio. Os dois escapam, com seus criados. – Fui atingido! É o resultado da briga entre essas famílias malditas! Estou liquidado. Ele fugiu sem sofrer nenhum golpe? – grita Mercúcio. – Onde você foi ferido? – pergunta Benvólio. – Foi só um arranhão... um arranhão... Agora chega de conversa!... Onde está o meu pajem?... Vá correndo buscar um médico! – Coragem! – Romeu anima Mercúcio. – A ferida não deve ser grande. – Não, não é funda como um poço nem larga como um portão de igreja, mas é suficiente, já serve para matar. Mandem me procurar amanhã, e vão me encontrar no cemitério. Estou acabado para este mundo. As duas famílias são malditas!... Vejam só, um cachorro, um camundongo, um rato consegue arranhar um homem até a morte! Um idiota, covarde, que luta pelas regras de um livro de aritmética! Romeu, por que você tinha que se meter? Não percebeu que ele ia enfiar a espada por baixo do seu braço para me atingir? – Eu quis fazer o melhor naquele momento... – Ajude-me a ir para casa, Benvólio. Estou quase desmaiando... A maldição das duas famílias, malditas sejam!... Já me transformaram em comida de minhoca. Só faltava essa!... ­Famílias malditas!... Mercúcio vai embora, ajudado por Benvólio, e Romeu fica a pensar: “Um cavalheiro, camarada do príncipe, meu amigo de verdade, e foi ferido mortalmente por minha causa... Ele quis 82


defender minha reputação, que foi atingida pela ofensa de Teobaldo, o mesmo Teobaldo que se tornou meu primo faz uma hora... Minha querida Julieta, a sua beleza me fez ficar efeminado, suavizou a força da minha espada...” *** Logo depois, Benvólio retorna à praça, gritando: – Romeu, Romeu! Mercúcio está morto! De nós todos, ele era o mais corajoso, agora é um espírito valente subindo até aquelas mesmas nuvens que desdenham a terra. – O destino infeliz de hoje se projeta sobre o amanhã. Neste dia começa a desgraça que o futuro vai completar – responde Romeu. – Lá vem Teobaldo, furioso, outra vez – avisa Benvólio. – E vivo! – completa Romeu. – Enquanto isso, Mercúcio está morto. A tolerância que eu sentia volta para o céu, e a fúria de olhos chamejantes passa a me conduzir agora. – Teobaldo se aproxima, e Romeu dirige-se a ele: – Trate de engolir aquele “covarde” que você usou para me insultar agora há pouco! A alma de Mercúcio ainda está bem perto, logo acima de nós, esperando pela sua para lhe fazer companhia. – É você, garoto insignificante, quem vai se juntar ao seu amigo num minuto – responde Teobaldo. – É isto aqui que vai decidir! – Romeu desembainha a espada e os dois começam a lutar. Depois de alguns instantes, Teobaldo cai, atingido por um golpe mortal. 83


– Romeu, fuja, depressa! – grita Benvólio. – Outros cidadãos estão se aproximando e Teobaldo está morto. Não fique aí parado!... O príncipe vai condenar você à morte se for apanhado! Rápido, vá embora! Vamos, depressa!... – Ah, eu não passo de uma marionete do destino... – O que você está fazendo aí parado?... Finalmente, Romeu se evade e o tumulto se forma na praça conforme outras pessoas vão chegando. – Mataram Mercúcio? Para onde ele fugiu? – pergunta um dos recém-chegados. – Foi Teobaldo? Para onde ele foi? – Ele não fugiu. Está bem ali – Benvólio aponta para o corpo de Teobaldo. – Então pode me seguir. O senhor está preso, em nome de sua alteza. Nesse momento, aparecem o príncipe, com seu séquito, além de Montecchio e Capuleto acompanhados das esposas e de várias outras pessoas. – Onde estão os bandidos que começaram tudo isso? – pergunta o governante da cidade. – Nobre príncipe – começa Benvólio –, eu posso revelar tudo o que aconteceu na luta trágica que acabou nesta fatalidade. Aquele que está caído ali foi morto por Romeu, depois de ter assassinado o corajoso Mercúcio, parente de vossa alteza. – Teobaldo, meu sobrinho! – grita a senhora Capuleto. – Ai, o filho do meu irmão! Príncipe! Meu marido! Todos, vejam como corre o sangue do meu sobrinho! Príncipe, faça justiça, exija o sangue dos Montecchio em troca do nosso. Meu sobrinho, meu sobrinho! 84


– Benvólio, quem começou esta chacina? – insiste o príncipe. – Foi Teobaldo, que agora está morto pelas mãos de Romeu. Romeu tentou falar com ele com gentileza, quis convencê-lo de que a briga era uma bobagem; ele até mencionou o desgosto que isso tudo causava a vossa alteza. Ele falou tudo isso com calma, sem ameaçar, quase de joelhos, mas era impossível trazer ­Teobaldo de volta ao juízo normal. Ele estava enraivecido, surdo ao chamado da razão: foi logo puxando a espada e apontando para o peito de Mercúcio. Mercúcio também estava com a cabeça quente e respondeu rápido na mesma medida: desviou a espada de Teobaldo com um golpe para afastar a morte e devolveu a estocada com destreza na direção do peito do outro. Nessa hora, Romeu gritou com força: “Parem, meus amigos! Meus amigos, parem já com isso!”. E, com uma rapidez no braço ainda maior do que na língua, baixou a espada sobre as dos outros dois, desviando-as dos pontos mortais, e se jogou entre eles. Foi por baixo do braço de Romeu que Teobaldo tirou a vida do valente Mercúcio com um golpe traiçoeiro. Teobaldo fugiu, mas logo voltou para enfrentar Romeu, que havia mudado de disposição e queria vingar a vida de Mercúcio. Os dois se atiraram um contra o outro como raios e, antes que fosse possível tentar apartá-los, o valente Teobaldo estava morto... Assim que ele caiu, Romeu se virou e fugiu. Essa é a verdade e, se não for, que eu seja condenado à morte. – Ele é um Montecchio! – grita a senhora Capuleto, após a longa exposição de Benvólio. – O parentesco não o deixa dizer a verdade, ele está mentindo! Com certeza foram uns 85


vinte deles que entraram nessa briga covarde, e precisaram de vinte para matar só um dos nossos. Eu lhe imploro justiça, a justiça que só vossa alteza, príncipe, pode conceder. Romeu assassinou Teobaldo. Romeu não merece viver. – Romeu matou Teobaldo, que matou Mercúcio – diz o príncipe. – Quem deve pagar o preço por todo esse sangue derramado? – Certamente não Romeu, príncipe – é a voz do velho Montecchio. – Ele era amigo de Mercúcio. O crime que ele cometeu foi realizar o que a lei devia fazer cumprir: a morte de Teobaldo. – E por esse crime ele será exilado imediatamente – acrescentou o príncipe. – As consequências do ódio entre vocês me dizem respeito. Meu sangue ferve diante de toda essa intolerância brutal; vou lhes aplicar uma pena tão dura por tanta sanguinolência desenfreada que todos se arrependerão amargamente. Ficarei surdo a desculpas e pedidos. Nem lágrimas nem súplicas me demoverão do castigo que estou planejando; portanto, não adianta nem começar. Que Romeu se ponha a salvo rapidamente, porque, se for encontrado, essa será sua última hora vivo. Levem os corpos daqui e aguardem minhas ordens. Meu próprio perdão equivaleria a um assassinato, se eu deixasse os assassinos se safarem tranquilamente. *** “Que os melhores cavalos galopem a toda velocidade no rumo da mansão de Febo, deus do Sol”, devaneia Julieta. 86


“Se Faetonte, o filho do Sol, estivesse conduzindo vocês, certamente chegariam ao oeste com mais velocidade, e a noite escura viria mais depressa. Feche logo a cortina, noite protetora dos amores! Que os olhos embaçados do dia comecem a piscar cada vez mais, até se fechar, e Romeu salte para os meus braços, sem que ninguém o veja nem mesmo o perceba... Os apaixonados conseguem realizar o ritual do amor com sua própria beleza. Se o amor é mesmo cego, combina melhor com a noite. Venha logo, escuridão noturna, senhora vestida com sobriedade, toda de negro, e me ensine a perder uma partida ganha, jogada entre duas virgindades sem mancha. Cubra meu sangue imaculado, que enche o meu rosto de cor, com seu manto escuro, até que o amor que se inicia, tornando-se cada vez mais forte, encare o verdadeiro amor como um ato de simples modéstia. Aproxime-se, noite! Venha logo, Romeu! Venha, você que é o dia em plena noite, pois você, sob as asas da escuridão, é ainda mais brilhante que a neve que acaba de cair nas costas do corvo. Vamos, noite generosa! Venha logo, noite de amor, trazendo o meu amado. E, quando nós morrermos, pegue Romeu e divida-o em pequenas estrelas: o rosto do céu noturno ficará tão lindo que todos na terra vão se apaixonar pela noite, esquecendo-se até de adorar o Sol brilhante. Ah! Eu comprei a mansão do amor, mas não tomei posse dela, e fui vendida, mas ainda não se aproveitaram de mim! Este dia é tão aborrecido para mim como a noite da véspera de um dia de festa para a criança impaciente: ela já ganhou a roupa nova e ainda não pode usá-la. Ah! Aí vem a ama com as novidades, e qualquer pessoa que me fale de Romeu estará tratando do assunto mais divino.” 87


A ama de Julieta entra, com expressão de desânimo, trazendo algumas cordas. – Então, ama, que há de novo? O que você está trazendo aí? As cordas que Romeu mandou buscar? – Ai, ai! São as cordas, sim. A criada deixa cair no piso o que tem nas mãos, e Julieta volta a perguntar: – Mas o que houve? Que cara é essa? Por que você está torcendo as mãos? – Ai, meu Deus, que dia, que dia! Ele morreu! Morreu! Está morto! Estamos bem arranjadas, Julieta! É o fim! Que dia triste! Ele se foi, mataram o menino! Ele morreu! – Como o céu pode ser tão ciumento? Por que levar Romeu dessa forma? – Ah, Romeu, Romeu! Quem poderia imaginar?... O próprio Romeu!... – Por que o Diabo me atormenta desse modo? Isso é uma tortura tão grande como o inferno. Mas ele está mesmo morto? Se você disser que sim, essa resposta será mais venenosa para mim do que o basilisco, aquele bicho que mata só com o olhar. Não sou mais eu mesma, eu não existo mais sem ele, que é meu outro eu, se ele também não mais existe. Feche os olhos e diga que sim, se ele estiver morto; senão, continue com os olhos abertos... – Eu vi a ferida com meus próprios olhos! Que Deus o tenha!... Foi bem aqui, naquele belo peito de homem... Um pobre cadáver, um pobre cadáver ensanguentado... pálido, todo branco como as cinzas – a ênfase da fala da ama vai

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num crescendo –, encharcado de sangue, todo coberto de sangue coagulado... desmaiei só de olhar... – Pare! Pare! Meu coração! Que o coração arrebente de vez! Meus olhos ficarão fechados para sempre, prisioneiros, sem um único pensamento de liberdade. Terra mesquinha, pó inútil, junte-se ao pó! Pare todo o movimento! Que eu seja enterrada com Romeu, apertada no mesmo caixão pesado! – Ai, Teobaldo!... Coitado do Teobaldo... – a ama continua a se lamentar. – O melhor amigo que eu já tive na vida! Teobaldo, sempre tão gentil, um rapaz galante como só ele! Quem diria que eu ainda estaria viva para ver morto o pobre menino... – Mas que furacão é esse que sopra em nossa vida? Quer dizer que, além de Romeu, Teobaldo também está morto? O meu primo mais querido?... Ah, toquem as trombetas, chegou o Dia do Juízo Final! Quem ainda pode se considerar vivo se esses dois morreram? – Teobaldo está morto, Romeu foi exilado. Romeu matou Teobaldo e por isso foi banido. – Meu Deus!... O sangue de Teobaldo foi derramado pela mão de Romeu?... – Foi, foi... Foi ele. Que dia amaldiçoado! Foi ele sim. – Ah, aquele coração de serpente, escondido atrás de um rosto lindo como um campo de flores... – Julieta parece desenganada. – Alguma vez um dragão conseguiu se esconder tão bem na caverna? Um monstro... e é lindo! Maldito com cara de anjo... Corvo com asas de pomba, lobo escondido dentro do cordeiro! Matéria ignóbil de aparência divina, justamente o contrário do que parece ser, um santo condenado ao inferno, um bandido honrado!... Ah, mãe natureza, 89


por que foi buscar no inferno o espírito de um condenado para colocá-lo dentro do paraíso mortal de um corpo tão belo?... Já se viu um livro de conteúdo tão baixo com uma encadernação tão esplêndida?... Ai, como a traição em forma de homem pôde vir morar num palácio tão perfeito? – Não se pode confiar nos homens. Eles são infiéis, desonestos; são todos traiçoeiros, todos falsos, fingidos, dissimulados! Todos uns sem-vergonha!... Mas onde está o meu ajudante?... Vá me buscar um copo de aguardente! Todo esse desgosto, essa dor, essa decepção, tudo isso me faz envelhecer. Que Romeu seja amaldiçoado!... – ... E que nasçam feridas na sua língua por falar assim dele! Ele não nasceu para ser amaldiçoado. A própria maldição sairia amaldiçoada se ousasse chegar perto do rosto dele. Porque o rosto dele é como um trono onde a dignidade merece ser coroada com o título de imperador único de todo o Universo! Como eu fui injusta ao falar de Romeu dessa forma! – Você vai falar bem de quem matou seu primo mais querido? – E você quer que eu fale mal do meu marido? Ah, coitadinho, quem vai salvar a honra dele se justamente eu, que sou sua mulher há apenas três horas, acabei de arrastá-la na lama? Mas também... por que você foi tão malvado e matou o meu primo? Só que o malvado poderia ter sido meu primo, e você é que estaria morto... Chega de chorar. Basta de lágrimas, voltem para a fonte de onde saíram! O choro pertence à tristeza, e vocês estão vindo na hora errada para se oferecer à alegria. Meu marido está vivo, apesar de Teobaldo estar morto. Mas, se Teobaldo estivesse vivo, 90


teria matado meu marido. Essa ideia consola; então, por que estou chorando? Mas eu ouvi uma coisa pior do que a morte de Teobaldo, e isso me matou: eu gostaria de esquecer que ouvi aquilo... Mas não adianta, a lembrança dessas palavras me aperta a memória como a culpa faz com a consciência do criminoso: “Teobaldo está morto, Romeu foi exilado”. Este “exilado”... exilado, essa palavra me mata mais do que a morte de dez mil teobaldos. Teobaldo morrer já é um sofri­mento grande, mas termina aí. Só que o sofrimento faz questão de vir acompanhado para ser bem sentido, por isso gosta de trazer com ele outros sofrimentos: se você tivesse dito, quando contou que Teobaldo estava morto, que meu pai ou minha mãe, ou até mesmo os dois juntos... Que sofrimento isso já não seria?... Mas, depois de dizer que Teobaldo está morto, vir me contar que “Romeu foi exilado”... Só essa frase já dói mais que saber que Teobaldo, papai, mamãe, Julieta e Romeu morreram todos. Não há medida nem limite para o sofrimento mortal que isso me traz. Não existem palavras que consigam exprimir como estou sofrendo... Onde estão meu pai e minha mãe agora, ama? – Eles estão velando o corpo de Teobaldo e chorando muito. Não quer ir se encontrar com eles? Eu levo você até lá. – Eles vão lavar as feridas de Teobaldo com lágrimas. Já as minhas vão continuar a cair até ficarem secas, enquanto Romeu estiver no exílio. Pegue as cordas. Coitadas, já não servem para nada, estão como eu. A escada de corda não vai ser mais necessária, Romeu já deve ter partido. Ele queria fazer de vocês uma escada para a minha cama, mas eu, ainda virgem, já sou viúva. Venham, cordas; venha, ama. 91


Vou para o meu leito de núpcias, e que a morte, em vez de Romeu, leve a minha virgindade... – Vá logo para o seu quarto – pediu a criada. – Vou encontrar Romeu, e ele virá consolá-la. Sei bem onde ele está. Escute bem, o seu querido vai estar aqui à noite. Eu vou buscá-lo. Ele está escondido na cela de frei Lourenço. – Ah, vá correndo! Entregue este anel ao meu fiel cavaleiro, e faça que ele venha buscar o meu último adeus! *** – Apareça, Romeu! – chama frei Lourenço. – Apareça logo, seu medroso! A aflição se apaixonou por você, e você acabou se casando com a catástrofe. – Frade santo, o que aconteceu? – pergunta Romeu, que estava escondido. – Qual é a pena que o príncipe aplicou? Qual é a desgraça que eu ainda não conheço e que agora veio me apertar a mão? – Será que o meu querido filho já se acostumou com a companhia da adversidade? Trago notícias do castigo que o príncipe destina a você. – A pena de morte, no mínimo... – Não... O príncipe deu uma sentença muito mais suave: não a morte do corpo, mas o desterro do corpo. – Desterro?... Quer dizer, o exílio?... Tenha piedade de mim, diga que a pena é a morte; o exílio é muito mais terrível aos olhos dele, muito mais do que a morte! Não me diga que ele me baniu.

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– Baniu! A partir de agora, você está exilado de Verona. Tenha paciência, o mundo é enorme e espaçoso. – Não existe mundo fora dos muros de Verona! Só purgatório, tortura, o próprio inferno! Ser exilado de Verona é ser exilado do mundo, e o exílio do mundo é a morte... Ser desterrado já é morrer pela metade. Chamando a morte de desterro, o senhor corta a minha cabeça com um machado de ouro e ainda sorri do golpe que está me matando. – Mas que pecado mortal! Que ingratidão grosseira! – recrimina o frade. – As nossas leis dizem que você deveria morrer como castigo pelo que fez, mas o príncipe foi generoso e colocou a lei de lado para favorecê-lo. No seu caso, ele baniu a palavra “morte”. Essa é a verdadeira generosidade, e você está cego diante dela. – Isso é tortura, não é generosidade! – insiste Romeu. – O paraíso fica onde Julieta está. E qualquer gato, qualquer cachorro, até os menores ratinhos e as coisas mais insignificantes que vivem nesta cidade moram no paraíso, porque podem contemplar Julieta. Mas Romeu não!... As moscas do lixo são mais importantes, têm uma condição superior, melhor que a 93


de Romeu. Elas podem pousar na mão maravilhosa e fresca de Julieta e roubar palavras eternas dos lábios dela. Se quiserem, podem até roubar beijos inocentes de Julieta, mas Romeu não!... Ele foi banido. Elas voam para perto, eu tenho que voar para longe! E o senhor ainda vem me dizer que o exílio não é a morte! O senhor não tem aí nenhum veneno preparado, nenhuma faca afiada, nenhum outro instrumento de morte, além do desterro? Exilado!... Ah, meu frade, essa palavra se aplica aos condenados que estão no inferno, que uivam só de ouvi-la. Como o senhor tem a coragem, sendo um guia espiritual, um sacerdote, alguém que perdoa os pecados, além de meu amigo íntimo... Como o senhor tem a coragem de me mutilar com essas palavras: banimento, desterro, exílio?... – Você está fora de si. Deixe-me falar um instante... – Já sei, vai falar outra vez em exílio... – Ao contrário. Vou lhe oferecer uma armadura para protegê-lo dessa palavra, o leite doce da reflexão, a filosofia para reconfortá-lo... Embora você esteja exilado... – Outra vez essa história de “exilado”? Pode esquecer a filosofia... A não ser que a filosofia seja capaz de inventar uma Julieta, mudar uma cidade de lugar, desfazer a condenação de um príncipe, ela não serve para nada, não vale nada! Não fale mais nisso... – Ah, pelo que estou vendo, os loucos não têm ouvidos... – E como poderiam ter, se os sábios não têm olhos?... – Deixe-me dar uns conselhos sobre sua situação... – O senhor não pode falar do que não sente. Se fosse jovem como eu, e Julieta fosse o seu amor, e estivesse casado com ela há apenas uma hora, e tivesse assassinado 94


Teobaldo... se estivesse louco de amor como eu, e exilado como eu, então poderia falar, certamente estaria arrancando os cabelos e se jogando no chão como eu faço agora, para tomar desde já a medida da sepultura. – Levante-se, estão batendo – ordena frei Lourenço. – Meu querido Romeu, trate de se esconder. – Eu? Nunca! – enquanto isso, ouve-se outra batida à porta. – A não ser que o sopro do meu coração forme uma neblina para me esconder dos olhos dos outros. Batem mais uma vez. – Depressa, Romeu – insiste o frade. – Não está ouvindo? Estão batendo outra vez... Quem é?... Romeu, levante-se! Vão prender você... Já vai!... Vamos, Romeu, levante-se! – Batem ainda mais uma vez. – Depressa, para o meu gabinete de estudo!... Já vai, estou ocupado!... Pelo amor de Deus! Que cabeça­‑dura!... Um momento, já vou! Quem está batendo com tanta força? É da parte de quem? O que quer? Do lado de fora, a criada dos Capuleto responde: – Venho da parte de Julieta. Preciso dar um recado. Deixe­‑me entrar! – Entre, entre! – diz frei Lourenço, abrindo a porta. A ama entra afobada: – Meu frade santo! Diga, meu frade, onde está o patrão da minha patroa?... Onde está Romeu? – Ali no chão, bêbado das próprias lágrimas. – Ah, é o mesmo caso da minha patroazinha. Exatamente igual! – Que semelhança brutal! Uma situação digna de piedade! 95


– Ela está prostrada do mesmo jeito que ele. Chorando, soluçando, gemendo sem parar... Ei, vamos, levante-se! Fique já de pé, se é homem! Pelo amor de Deus, pelo amor de Julieta, vamos, levante-se! Não se deixe derrubar desse jeito! – Ama!... – geme Romeu. – Pronto! Escute, meu senhor, só a morte é que não tem remédio! – Você estava falando em Julieta? Como ela está? Julieta não está julgando que eu sou um reles assassino que manchou o princípio da nossa felicidade com o sangue da própria família dela?... Onde está ela? O que ela está fazendo? O que a minha mulher disse sobre nosso amor destruído? – Nada, senhor, não disse nada! Ela só faz chorar e mais chorar... E agora deu de ficar jogada na cama. Às vezes se ergue e grita chamando Teobaldo, outras vezes chora falando o nome de Romeu, e volta a cair na cama. – É como se o som do meu nome tivesse nela o impacto de um tiro. É como se ela estivesse morrendo ao se lembrar de mim e de como matei seu primo querido com esta mão que usa o meu nome... Querido frade, diga, diga em que parte horrível da anatomia está escondido o meu nome! Diga, e vou arrancar essa parte odiosa de mim. Romeu desembainha a espada. – Calma! – diz o frade. – Calma com essa mão desesperada! Você é homem? Isso se vê só de olhar para o seu rosto e o seu corpo. Mas as suas lágrimas são de mulher! A sua reação desmedida denota a fúria irracional de um bicho selvagem. Uma mulher mal definida num homem bem definido! Ou um animal improvável num provável ser humano! Você me 96


surpreende. Pelas minhas sagradas ordens!... Pensei que tivesse mais juízo! Você matou Teobaldo, agora quer se matar? E, ainda mais, quer matar a mulher que mora dentro de você e receber a condenação eterna por causa desse ódio imperdoável e passageiro por si próprio? Por que ofende assim o próprio nascimento, o céu e a terra? Porque o seu nascimento, o céu e a terra, todos três se encontram dentro de você ao mesmo tempo. E você quer perder tudo isso de uma vez só... o que significa se perder, perder a si próprio, em suma: a perdição total. Que vergonha! Que vergonha! Você envergonha a seu corpo, a seu amor, não faz jus a sua inteligência... Como um usurário avarento, tem de tudo em abundância e não sabe usar nada. De que adianta a bela figura, todo esse amor, toda essa inteligência? Seu rosto, seu corpo, não passam de um belo molde de cera sem valor; seu amor, tão decantado, não passa de palavras, pois você ainda imagina matar esse mesmo amor que cercou de tantas promessas. A sua inteligência, ornamento da aparência e do amor, é deformada pela conduta das duas outras partes e se torna como a pólvora nas mãos do soldado inábil, que explode quando menos se espera. Da mesma forma, você explode consigo próprio quando pensa em se defender. Acorde, homem! A sua Julieta está viva, e você pensando em morrer por ela. Aí está você, vivo e com tudo para ser feliz: Teobaldo queria matá­ ‑lo, mas é você quem o mata. Mais um motivo para estar feliz: a lei, que pode ordenar a condenação à morte, torna-se sua amiga e oferece a solução mais amena do exílio. Aí está: uma série de motivos, de bênçãos, para ficar contente. A felicidade está cortejando você! Mas você prefere agir como 97


uma menina teimosa e mal-educada, desdenha de sua sorte e de seu amor. Tome cuidado! Tome cuidado, quem age assim morre na miséria. Agora vá encontrar o seu amor como foi combinado, suba até o quarto dela, vá consolar a moça. Mas, escute, não me fique lá até a hora em que começa o turno da guarda, porque, senão, vai ser muito difícil fugir para Mântua. Lá, pode viver até encontrarmos o momento certo para divulgar o seu casamento, reconciliar as famílias, conseguir o perdão do príncipe e chamar você de volta com duzentas mil vezes mais alegria do que essa lamentação tola de agora, esses choramingos de donzela... Pode ir, ama. Dê lembranças minhas à sua patroa­zinha. Providencie para que a família vá logo para a cama; não vai ser difícil, porque todos querem descansar da tragédia. Romeu já vai. – Senhor, eu ficaria aqui a noite toda escutando os seus conselhos – responde a ama. – Quanta coisa não se aprende com o senhor, meu frade! Vou já contar a Julieta que Romeu está a caminho. – Faça isso e diga à minha amada que pode se zangar comigo pelo que eu ia fazer – diz Romeu. – Ah, este é o anel que ela me pediu para lhe entregar. Mas vá logo, porque está ficando tarde. A criada sai, e Romeu comenta: – Como estou me sentindo renovado pelas suas palavras, meu pai espiritual... – Agora vá! Boa noite! E não se esqueça: você não pode falhar, ou sua vida corre risco. Saia da cidade antes do turno da guarda, ou vá embora assim que o sol raiar, mas bem disfarçado. Fique na cidade de Mântua. Vou procurar 98


sempre o seu pajem, para que ele leve notícias de tempos em tempos. Agora me dê a mão. Já é tarde. Adeus! – Se eu não estivesse indo ao encontro de uma alegria maior, seria uma grande tristeza me separar do senhor neste momento. Adeus! *** O senhor e a senhora Capuleto, em sua sala, conversam com Páris. – Aconteceram coisas tão desagradáveis – conta o dono da casa – que nem tivemos tempo de falar com nossa filha. Veja você, ela gostava tanto como nós do primo Teobaldo. Mas todos nascemos para morrer! Já é tarde, ela não desce mais esta noite. Posso lhe garantir que, se não fosse sua visita, eu mesmo já estaria na cama há mais de uma hora. – Horas de tristezas não deixam tempo para gentilezas – lembra Páris. – Senhora, boa noite! Dê lembranças minhas a sua filha. – Vou dar, pode ficar certo. Amanhã, bem cedo, vou saber qual é a disposição dela. Agora à noite ainda continua prostrada pelo sofrimento. – Meu caro Páris – acrescenta o senhor Capuleto –, vou fazer tudo para convencer minha filha. Acho que ela obedecerá a todas as minhas ordens; ou, melhor, não tenho dúvidas quanto a isso. Querida esposa, vá falar com ela agora, antes de se deitar. Conte-lhe do amor do nosso caro Páris. E, preste atenção, já marque com ela para a próxima quarta-feira... Mas espere! Que dia é hoje? 99


– Segunda-feira – responde a mulher. – Segunda?... Ah, ah! Então quarta é cedo demais. Marque para quinta-feira. Isso!... Conte a Julieta que na próxima quinta-feira ela estará casada com este nobre conde. E você, Páris, estará pronto até lá? Gostou da pressa? Não vamos fazer uma cerimônia grandiosa. Só um amigo ou dois... Você entende, como Teobaldo acaba de ser assassinado, seria uma indelicadeza fazer grandes festejos numa data tão próxima; pensariam que não sentimos dor pela perda do primo. Por isso vamos reunir só meia dúzia de amigos e ponto final. Mas o que você acha de quinta-feira?... – Senhor Capuleto, por mim, eu gostaria que quinta-feira fosse amanhã... – Bom, pode ir. Então será na quinta-feira. E você, vá falar com Julieta antes de se deitar. Prepare a menina para o casamento. Até logo, conde. Criado, vá iluminar o meu quarto! Não precisa me esperar para levar a tocha. É tão tarde que daqui a pouco já se poderá dizer que é cedo. Boa noite! *** No terraço de seu quarto, Julieta conversa com Romeu. – Você já vai? Ainda não amanheceu. Foi o rouxinol, não a cotovia, que cantou agora para os nossos ouvidos temerosos. Ele canta todas as noites naquela romãzeira. Acredite, meu amor, era o rouxinol. – Era a cotovia – responde ele. – É ela que anuncia a manhã, não o rouxinol. Veja, meu amor, os primeiros raios da manhã estão, com inveja, tentando atravessar as nuvens. As 100


velas noturnas estão se apagando, e o dia brincalhão se aproxima nas pontas dos pés, por cima dos topos das montanhas, cobertos de neblina. Minha opção é partir e viver, ou ficar e morrer. – Aquela luz não é a luz do dia, eu é que sei. É algum meteo­ro que se desprendeu do sol para servir de tocha e iluminar o caminho de Romeu até Mântua. Está vendo? Não precisa ir já. Fique mais um pouco! – E que eles me prendam, que me matem... Fico feliz, se é você quem pede. Está bem: o cinza do céu não é o reflexo do olho da manhã, mas um resto de luar. Nem é a cotovia que canta essas notas agudas, tão acima da escala da nossa cabeça. Tenho mais desejo de ficar do que vontade de partir. Venha, morte, seja bem-vinda! É Julieta quem pede. Então, meu amor, vamos continuar juntos, a falar... ainda não é dia. – Mas não, já está clareando, sim – Julieta como que desperta para a realidade em redor. – Vá embora já, parta logo, meu amor! É a cotovia que está cantando desafinada, fazendo dissonâncias e acordes desagradáveis. Dizem que a cotovia sabe dividir bem o tempo da música; não é verdade, é a nós que ela está dividindo. Também dizem que o sapo e a cotovia trocaram de olhos; como eu gostaria que tivessem trocado de voz também! A voz dela está me enchendo de medo e faz você se afastar de mim! Pronto, vá embora!... O dia está clareando, cada vez mais rápido! – Quanto mais entra a luz, mais escuro fica o nosso sofrimento! – diz Romeu. – Julieta! – admira-se a ama, entrando no quarto. – Sim?... 101


– Sua mãe já vem para o seu quarto! O dia está nascendo. Tome cuidado, não faça bobagem! A ama sai rapidamente em seguida, e Julieta diz: – Por esta janela entra o dia e sai a vida. – Adeus. Adeus, amor! Só mais um beijo e vou embora. Depois que Romeu desce pela escada de corda, Julieta ainda pergunta: – Mas você precisa mesmo ir?... Meu amo, meu amor, meu amante! Preciso ouvir a sua voz a todas as horas, pois em cada minuto existem vários dias. Por essa conta vou envelhecer muitos anos antes de voltar a abraçar o meu amado Romeu... – Adeus! Não vou deixar escapar nenhuma oportunidade de mandar notícias do meu amor. – E se nunca mais pudermos nos ver?... – Julieta se assusta com a ideia. – Nem pense nisso! Ainda vamos rir um dia lembrando o sofrimento de hoje! – Deus me perdoe, mas estou com uma má premonição. Agora que vejo você aí embaixo, é como se estivesse vendo seu corpo morto no fundo de uma sepultura. Ou meus olhos estão falhando, ou você parece pálido como um cadáver. – Você também me parece pálida. Mas confie em mim, meu amor. É o sofrimento que resseca o nosso sangue. Adeus, adeus! Romeu se afasta e Julieta fica a se lamentar. “Que destino! Todos dizem que o destino é inconstante. Mas, se é assim, o que ele tem a ver com Romeu, que é tão fiel? Seja fiel você também, destino! Assim, em vez de ficar tanto tempo com ele, traga-o logo de volta para mim.” 102


– Filhinha! Você ainda está acordada? – a mãe de Julieta chama no corredor. – Quem é? Mamãe?... Ainda está acordada tão tarde, ou já se levantou tão cedo? Que surpresa esta, de vir ao meu quarto tão fora de hora! A mãe entra no quarto, dizendo: – Então, Julieta, o que está acontecendo? – Não estou me sentindo bem, mamãe. – Ainda chorando a esta hora pela morte de seu primo? Você acha que vai conseguir levantá-lo do túmulo com suas lágrimas? Mesmo que isso acontecesse, ele não ressuscitaria. Você já chorou o suficiente. Sofrer um pouco é demonstração de amor, mas sofrer demais é sinal de falta de juízo. – Mesmo assim, estou chorando uma perda muito sentida. – É importante que você sinta a perda, mas não precisa chorar mais pelo amigo. – Mas, se sinto a perda, não sei ficar sem chorar pelo amigo. – Está bem, menina, você não está chorando só pela perda do amigo, mas porque o covarde que o assassinou continua vivo... – Que covarde, mamãe? – Aquele covarde, Romeu... – ... que já deve estar bem longe daqui. Mas que Deus o perdoe. Eu já o perdoei, de todo o coração. Mesmo assim, nenhum outro homem me causou tanto sofrimento como ele. – Isso porque esse traidor assassino ainda está vivo. – Mamãe, ele está fora do alcance de minhas mãos, senão seria eu, somente eu, a vingar a morte de meu primo. 103


– Vou providenciar a vingança, não se preocupe – afirma a mãe de Julieta. – Você não precisa mais chorar por isso. Vou mandar gente atrás dele em Mântua, para onde esse renegado deve ter fugido. Ele vai receber o que merece. Uma gota de veneno na bebida, e o assassino vai logo se juntar a Teobaldo. Você vai ficar satisfeita. – Na verdade, só vou ficar satisfeita quando pegar Romeu eu mesma com minhas próprias mãos! Nem que seja morto! Meu coração está transpassado por causa de um amigo. Mamãe, se a senhora mandar mesmo alguém com o veneno, serei eu a colocá-lo na bebida para que Romeu durma rapidamente em paz. Ah, meu coração estremece só de ouvir o nome dele sem que eu possa ir ao seu encontro. Quero que ele sinta na própria pele o amor que eu tinha por Teobaldo. – Descubra o meio de fazer isso, e eu vou buscar a pessoa. Mas agora quero lhe dar boas notícias, filhinha. – É uma boa hora, porque, se existe alguém que precisa de boas notícias, sou eu mesma... Quais são elas, mamãe? – Escute bem: o seu pai é muito carinhoso e previdente, minha filha. Para aliviar todo esse peso que você está sentindo, ele está preparando um dia de muita felicidade. Por essa você não esperava, e muito menos eu... – E que dia será esse, mamãe? O que ele está preparando? – O seu casamento! Filhinha, na próxima quinta-feira, de manhã bem cedo, você se casa com um rapaz galante, jovem, um autêntico cavalheiro, um nobre: é o conde Páris! Vai ser na Igreja de São Pedro. E você vai ser uma noiva muito feliz! – Mamãe!... Ele nunca conseguirá fazer de mim uma noiva feliz! Nem na Igreja de São Pedro nem na Igreja de São 104


Nunca! Estou admirada com tanta pressa! E ainda vou ter de me casar com um homem que nem falou comigo sobre esse assunto!... Eu lhe imploro, mamãe, vá dizer ao papai, que é meu amo e senhor, que ainda não quero me casar. E, mesmo que fosse para me casar, juro que prefiro Romeu, que a senhora sabe que eu odeio, a esse conde Páris. Mas essas é que eram as boas notícias, mamãe? – Seu pai vem aí. Diga isso a ele você mesma e veja como vai receber sua resposta. Capuleto entra no quarto, acompanhado da ama. – O ar se enche de orvalho quando o sol se põe, mas no pôr do sol do filho de meu irmão chove com abundância – comenta o dono da casa. – E essa agora? Você é uma calha, minha filha? Ainda está chorando? Chovendo cada vez mais? Nesse corpo de menina estou vendo reunidos um barco, o mar e o vento. Os seus olhos são o que eu chamo de mar, porque não param de derramar lágrimas; o barco é seu corpo, velejando nessa corrente salgada; os ventos são os suspiros, misturados com as lágrimas; e elas com eles, sem nenhum momento de calmaria, vão fazer naufragar o corpo em meio à tempestade... E essa agora, mulher!... Você já entregou a ela o nosso decreto? Contou o que decidimos? – Contei. Ela agradece, mas não quer obedecer. Parece que a tonta prefere se casar com a sepultura! – Vá com calma... Vamos ver se entendi, minha querida esposa. Como é mesmo? Ela não quer? Será uma filha mal­ ‑agradecida? Não está orgulhosa? Será que não percebeu que é uma bênção uma menina sem futuro como ela conseguir um casamento com um noivo tão promissor, um nobre? 105


– Não me sinto orgulhosa, mas agradeço pela sua preocupação, papai – responde Julieta. – Não posso sentir orgulho por aquilo que detesto. Mas estou agradecida, porque a intenção é motivada pelo amor, é para que eu me orgulhe. – Como?... Que lógica é essa? Mas o que é isso?... Não sente orgulho... mas agradece... e está agradecida... mas é para se orgulhar... “Eu agradeço pelo que não tenho que agradecer, e não me orgulho pelo que tenho que me orgulhar”! Conclusão: a senhora vai se apresentar, muito bem arrumada e elegante, na Igreja de São Pedro, com seu noivo Páris na próxima quinta-feira... ou mandarei arrastá-la até o altar. Agora saia da minha frente, menina doente e atrevida!... – O pai começa a se descontrolar. – Calma, calma, não se exalte! – intervém a mãe. – Você está ficando doido? – Papai – pede Julieta –, o senhor é tão bom, eu lhe imploro de joelhos que me escute com paciência. É só uma palavra... – Vá se enforcar, fedelha atrevida! Desobediente infeliz! Ouça o que estou lhe dizendo: apareça quinta-feira na igreja ou nunca mais me olhe na cara. Ele perde o controle, definitivamente: – Não mexa essa boca, não diga nada, não me responda! Meus dedos estão coçando... Mulher, sempre achamos que Deus não nos tinha abençoado, pois não tivemos mais filhos, mas agora vejo que ter tido só uma como esta já foi demais e que esta filha é uma maldição! Saia já da minha frente, sua mal-agradecida! – Que Deus a abençoe! – geme a criada. – O senhor faz mal em falar assim com sua filha. 106


– E por quê, pode-se saber, senhora sábia? Dobre a língua e veja como fala, poço de sabedoria! Vá fazer suas fofocas em outra parte! – Não estou falando por mal... – Ah, que bela novidade... Esta mulher agora fala por bem... – Não posso falar?... – insiste a ama. – Já chega, sua tagarela resmungona! É melhor guardar as palavras para o que você sabe fazer bem, que são as suas fofocas. E vá fazê-las lá na sua estrebaria, porque aqui não precisamos delas! – Você está muito alterado – tenta interromper a senhora Capuleto. – Controle-se! – Deus do céu! – o pai de Julieta continua muito exaltado. – Essa história vai me deixar louco! O tempo todo, de dia, de noite, todas as horas, contra a maré ou a favor dela, no trabalho, no lazer, sozinho ou na companhia dos outros, minha única preocupação era casar essa menina! E, agora que arranjei um nobre de boa linhagem, rico, jovem e educado, dotado das qualidades das melhores cepas, como eles costumam dizer, com todas as condições que um coração de mulher poderia desejar num homem, aparece-me esta pequena tonta e mal-educada, que mal acabou de sair das fraldas, achando que sabe tudo, e diz: “Não quero me casar. Não sei amar, sou jovem demais. Por favor, me perdoe, papai”... – Arremeda a voz da menina. – Então estamos acertados: você não se casa, e eu perdoo tudo. Vá pastar onde quiser, porque na minha casa nunca mais! Pense bem, reflita, porque eu não sou de brincadeira. Quinta-feira se 107


aproxima. Ponha a mão no coração e escute. Se é minha filha, vai se casar com o meu amigo. Se não, vá se enforcar, vá mendigar, morra de fome, caia pelas ruas; porque, isto eu garanto, não vou mais reconhecê-la como filha nem poderá mais se beneficiar do que tenho. Pense bem, reflita duas vezes. Minha palavra é uma só! Capuleto sai, zangado, e Julieta diz à mãe: – Não existe piedade lá em cima, nas nuvens, que esteja assistindo ao fundo de meu sofrimento? Ah, minha mãe querida, não me abandone! Adie esse casamento por um mês, uma semana pelo menos. Se não puder fazer isso, arrume meu leito de núpcias no mesmo túmulo sombrio em que Teobaldo está enterrado. – Não é comigo que você deve falar. Eu não tenho nada a responder. Faça o que quiser, porque não tenho mais nada a ver com o assunto. A mãe se retira depois dessas palavras. – Pelo amor de Deus!... Ama! Como podemos evitar isso? Meu marido está na terra, deposito minha fé no céu. Como posso trazer a fé de volta à terra, a não ser que meu marido deixe a terra e vá comigo para o céu? Console-me, me dê um conselho. Ah, como é que o céu ensaia os seus projetos numa criatura tão ínfima como eu!... O que você diz? Você não tem uma palavra alegre para me dizer? Uma palavra de consolo pelo menos, ama! – Já sei o que dizer: Romeu foi exilado, e aposto o mundo todo contra nada que ele nunca terá a coragem de voltar para reclamar você; ou, então, se voltar, tudo deverá acontecer às escondidas. Então, já que o caso é esse que 108


estamos vendo, o melhor é se casar com o conde. Ah, ele é um cavalheiro perfeito! Romeu é um caipira perto dele. Nem as águias têm olhos tão verdes, tão bonitos e penetrantes como os de Páris. Meu coração nunca se engana: você vai ser mais feliz com esta segunda paixão, porque é muito melhor que a primeira! E, mesmo que não seja assim, o primeiro marido já morreu; se não, é a mesma coisa que estar morto, porque ele não pode viver aqui e não serve mais para nada. – O que você está falando vem do coração? – E da alma também! Senão, não preciso nem de um nem da outra. – Amém. – O quê?... – estranha a criada. – Você realmente me consolou muito... Agora vá procurar minha mãe e diga que eu saí para me confessar na cela de frei Lourenço e ser absolvida. – Está bem, já vou. Você vai fazer a coisa certa. A ama vai falar com a mãe de Julieta, que fica sozinha a refletir: “Que castigo, essa velha! Que inimiga maldosa! Qual pecado é maior: querer que eu rompa a minha promessa dessa forma ou desprezar meu verdadeiro senhor e marido com essa mesma língua que o elogiou acima de qualquer comparação tantos milhares de vezes? Pode ir, minha fiel conselheira! Vá!... Daqui para a frente você não tem nada mais a ver comigo. Vou encontrar o frade e pedir um remédio. Se todo o resto falhar, eu mesma terei o poder de morrer!” 109



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rei Lourenço recebe Páris no convento, em sua cela. – Na quinta-feira? É muito pouco tempo! – admira-se o frade. – O senhor Capuleto agora é meu segundo pai

e quer assim. Ele tem pressa e eu não tenho motivo para retardar a cerimônia. – Mas, conde, o senhor diz que ainda não sabe o que a moça acha a respeito. Isso não é correto, não gosto da ideia. – Julieta está chorando sem parar pela morte de Teobaldo, por isso ainda não consegui falar de amor com ela. Vênus não sorri na mansão das lágrimas. Agora, frei Lourenço, o pai acha perigoso que ela se entregue a chorar dessa forma descontrolada. Ele está certo em querer apressar o casamento para interromper a inundação de lágrimas. Se ela continuar assim, não poderá mais aparecer em sociedade. Agora o senhor conhece o motivo da pressa. Nesse momento, Julieta chega à cela do frade.

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– Mas que feliz coincidência, minha senhora e minha esposa! – cumprimenta Páris. – Pode ser, senhor, quando eu me tornar uma esposa – responde ela. – Esse “pode ser” acontecerá, meu amor, na próxima quinta-feira. – O que tiver de ser será. – Isso é certo – confirma frei Lourenço. – Veio se confessar com o nosso frade? – pergunta Páris. – Para responder a essa pergunta, eu estaria me confessando ao senhor. – Não vá negar ao frade que me ama... – Confesso ao senhor que sinto por ele o mesmo amor que se tem por um pai. – Da mesma forma, estou certo de que vai confessar a ele que me ama como a um noivo. – A confissão terá mais valor se eu falar depois que o senhor sair do que aqui na sua frente. – Pobrezinha, o seu rosto está quase desfigurado de tanto chorar... – Se é assim, as lágrimas tiveram pouco efeito, porque ele já não era bonito antes do choro... – Você ofende ao seu rosto com essas palavras mais do que as lágrimas conseguiriam fazer... – Não é nenhuma ofensa, senhor, é a pura verdade, pois o que eu disse se referia a meu próprio rosto... – O seu rosto me pertence, e você o ofendeu, Julieta...

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– Pode ser, pois é verdade que ele não me pertence mesmo... O senhor está livre agora, frade? Ou devo voltar para a missa do fim da tarde? – Querida filha, sempre tão solícita, estou à sua disposição... Senhor conde, agora preciso ficar a sós com esta moça. – Deus me livre de perturbar tamanha devoção – responde Páris. – Julieta, quinta-feira pela manhã vou a sua casa despertá-la. Até lá, então. Adeus! E guarde este beijo sagrado! – Oh, feche a porta, frade! – pede Julieta assim que o conde se retira. – E em seguida chore comigo. Não tenho mais esperança, nem cura, nem auxílio... – Ah, Julieta, eu já sabia de sua dor! Meu coração ficou muito apertado com isso. Fiquei sabendo que você está sendo obrigada a se casar quinta-feira nesta capela, e não há nada que possa evitar isso. – Frade, não me conte mais nada do que ouviu sobre o assunto a menos que seja para me dizer como posso escapar dele. Se o senhor não puder me ajudar em nada com sua sabedoria, pelo menos não impeça a minha decisão de me matar imediatamente com este punhal. Deus uniu meu coração ao de Romeu, e o senhor juntou nossas mãos. E antes que meu coração revoltado seja entregue a outra pessoa, fazendo uma traição, estas mãos, que pertencem a Romeu, acabarão com ele e com elas mesmas. Por isso, dê-me um conselho; o senhor tem uma longa experiência. Senão, este punhal sangrento poderá resolver todas as contradições e será esse o final que todos os seus anos de engenho e arte não terão sido capazes de evitar. Mas não demore para falar 114


qual é a saída honrosa para a situação. Como já disse, pretendo morrer, se o que o senhor disser não remediar o que está acontecendo! – Calma, minha filha. Eu posso entrever uma forma de esperança, mas a realização do plano é tão desesperada como o horror que pretendo evitar. Se, em vez de se casar com o conde Páris, você tem força de vontade suficiente para matar a si própria, é provável que aceite passar por um estado parecido com a morte para evitar essa desgraça. Você está lidando com a morte para fugir dela e, se quiser ousar, eu tenho o remédio. – Ah, frade, é melhor que o senhor ordene que eu me jogue de uma torre alta do que ser obrigada a me casar com Páris. Prefiro passar por uma estrada cheia de ladrões ou de cobras venenosas. Amarre-me diante de ursos furiosos ou me abandone no ossário de um cemitério, cheio de esqueletos. Enrole-me numa mortalha com um morto. Mande-me fazer qualquer coisa dessas que sempre me fizeram tremer quando ouvia falar nelas, e eu faço tudo sem hesitar nem temer, se com isso puder continuar a ser a mulher intocada do meu querido amor. – Então escute. Vá para casa, aja normalmente, faça como se estivesse feliz em dar o consentimento para se casar com Páris. Procure ficar sozinha amanhã à noite, não deixe nem sua ama entrar em seu quarto. Pegue este frasco quando for se deitar e tome todo o líquido destilado que nele está. Em seguida, um humor frio e dormente correrá por todas as suas veias. A pulsação vai parar completamente. Nenhum calor, nenhuma respiração darão 115


prova de que você continua viva. A cor rosada dos lábios e das faces vai desaparecer. Seu rosto ficará completamente pálido. As janelas dos olhos vão se fechar como quando a morte encerra os dias da vida. Cada parte do corpo, desprovida de sua autonomia, irá se tornar fria e rígida, como as de uma morta. Você permanecerá nesse estado que simula a morte durante quarenta e duas horas e, no final, despertará como de um sono agradável. Assim, quando o noivo chegar quinta-feira de manhã para despertar Julieta, ali estará ela, como morta, vestida com as melhores roupas, como é o costume em nossa cidade. Você deverá ser levada para a antiga capela-mausoléu da valorosa família Capuleto. Enquanto isso, antes que desperte, vou escrever a Romeu contando nosso plano. Ele virá imediatamente, disfarçado. Nós dois vamos esperar que você acorde e, na mesma noite, Romeu leva Julieta para Mântua... E fim da história!... Assim você estará livre desta ameaça, se nenhuma criancice volúvel ou nenhum medo típico de mulher abaterem sua coragem na hora de fazermos o que é preciso. – Dê-me o frasco, dê o frasco, já! E não diga que eu sou medrosa! – Aqui está. Agora vá, seja forte e persista na decisão. Vou mandar um frade a Mântua com a carta para Romeu. – Amor, dê-me forças! E que eu não falhe com sua ajuda! Adeus, querido pai espiritual! ***

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No salão da casa Capuleto, o chefe da família ordena: – Entregue o convite a todas as pessoas desta lista. Um criado sai para cumprir a tarefa. – E você, vá contratar vinte ótimos cozinheiros. – Sem problema, senhor! Eu vou verificar se eles lambem os dedos quando cozinham – responde o segundo criado. – Para que isso? – Para ver se cozinham bem. O mau cozinheiro não lambe os dedos. Só vou contratar os que fizerem isso. – Está bem. Agora vá!... Precisamos ser rápidos, estamos muito desprovidos desta vez!... O quê? Minha filha foi ver frei Lourenço? – Foi sim, senhor – responde a ama de Julieta. – Bom, quem sabe ele consiga dar um pouco de juízo à garota. Uma bela de uma rebelde desobediente me saiu essa filha! – O senhor vai ver como ela volta de lá toda contente. Julieta retorna justamente nesse instante e entra no salão. – Essa agora, minha cabeça-dura! – é a recepção do pai. – Por onde andou vagabundando? – Fui a um lugar em que me ensinaram a me arrepender do pecado da desobediência aos pais e às ordens deles. Frei Lourenço, que é um santo, me mandou vir me ajoelhar a seus pés e pedir perdão. Perdoe-me, papai, eu lhe imploro! De hoje em diante cumprirei sempre suas ordens! – Mandem buscar o conde! Digam que está confirmado: o laço nupcial será atado amanhã de manhã. 117


– Eu encontrei esse jovem senhor na cela de frei Lourenço e transmiti todo o amor que podia, dentro dos limites da decência. – Ora, muito bem! Agora sim estou contente! Pode se levantar, agora tudo está como deve ser!... Preciso ver o conde! Vamos, depressa, já não mandei buscar o rapaz? Declaro, diante de Deus, que toda a nossa cidade deve muito a esse reverendo santo frade. – Ama, você pode vir comigo até o meu quarto? Venha me ajudar a escolher as roupas e os adereços para eu ficar bem bonita amanhã! – Agora não posso; a cerimônia é só na quinta-feira – responde a criada. – Temos tempo suficiente até lá. – Vá, ama, vá com Julieta – ordena o dono da casa. – Vamos todos à igreja amanhã. – A nossa despensa está quase vazia – comenta a senhora Capuleto depois que Julieta sai, acompanhada da ama. – E agora já é quase noite. – Tudo vai correr bem, eu garanto, mulher – diz o marido. – Vá ter com Julieta para ajudar a menina a ficar mais bonita ainda. Hoje não vou me deitar. Quero ficar só... Vou brincar de dona de casa, ha, ha... Quê? Já saíram todos?... Então vou dar uma caminhada até a casa do conde Páris. Quero eu mesmo dar a notícia e preparar o rapaz para amanhã. Meu coração está tão feliz e maravilhosamente leve desde que essa menina descabeçada voltou a ter juízo! ***

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Julieta diz à ama: – Ah, esta faixa e esta tiara são as melhores... Mas, querida ama, desejo pedir uma coisa: você me deixa ficar sozinha esta noite? Preciso fazer muitas orações para convencer o céu a ser benigno com o meu caso: você bem sabe que a minha situação é falsa e com muito risco de acontecer um pecado. Nesse momento, a senhora Capuleto entra no quarto: – Ah, você está bastante ocupada, não? Precisa da minha ajuda? – Não, mamãe, obrigada. Já separei tudo o que será necessário para o que vai acontecer amanhã. Agora, por favor, deixe-me ficar sozinha... e leve a ama para passar a noite com a senhora. Tenho certeza de que as duas estão com as mãos cheias de trabalho que não estava previsto e ainda falta fazer. – Boa noite, filha! Vá se deitar e descanse, porque você precisa muito... – Adeus, mamãe... – “Deus sabe quando vamos voltar a nos ver...” Julieta conclui para si própria. “Sinto um frio na espinha, um tremor que me percorre as veias, quase congelando o calor da vida. Vou chamá-la novamente para me aliviar...” – Ama! “Mas o que ela pode fazer aqui? Preciso preparar sem ninguém por perto a minha cena de desmaio... Agora vamos ver esse frasco!... E se essa mistura não funcionar? Então terei de me casar amanhã de manhã?... Não, não, de jeito nenhum!

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Este é o remédio que vai evitar que isso aconteça. Agora, fique aí, bem quieto” – Julieta pega o punhal e o coloca a seu lado. “E se o que o frade me deu for um veneno que mata suavemente? Se ele está com medo de ser acusado, porque terá de revelar que já sou casada com Romeu e por isso não posso me casar com outro...? E se for isso? Mas acredito que não, ele jamais faria uma coisa dessa, um homem santo como ele... Não vou prosseguir num pensamento tão mau. E se, quando estiver no túmulo, eu acordar antes que Romeu chegue para me salvar? Isso bem pode acontecer... e seria horrível! E se eu ficar sufocada dentro do mausoléu da família porque lá não penetra o ar fresco por aquela entrada pequena... e eu morrer antes que Romeu chegue?... E, se ainda estiver viva, só a lembrança horrível de que ali é um local escuro e dominado pela morte, além do terror do próprio lugar, um conjunto de sepulturas, com várias gerações de mortos, onde durante séculos e séculos os ossos de meus ancestrais foram quase que 120


empilhados... Nem quero pensar! É lá que Teobaldo foi enterrado há tão pouco tempo, ainda coberto de sangue, e já está apodrecendo na mortalha... E ainda dizem que os fantasmas aparecem por lá a certas horas da noite. Meu Deus! É bem provável que eu acorde cedo demais, no meio daqueles cheiros e dos gritos dos mortos que só podemos ouvir quando estamos lá. Dizem que as pessoas que conseguem escutá-los ficam loucas. E se eu acordar e ficar louca com todas essas coisas aterrorizantes em volta? Será que vou sair pulando, rindo e brincando com os ossos dos meus ancestrais?... Vou desenrolar Teobaldo, desfigurado, da mortalha?... E se no meio de toda essa loucura eu pegar a tíbia de algum avô e, pensando que ela é um bastão, quebrar, de desespero, minha própria cabeça?... Ah, olhe só... Já estou vendo o fantasma de meu primo correndo atrás de Romeu, que reduziu o corpo dele a esse estado com a ponta da espada... Pare, Teobaldo, pare!... Já vou, Romeu! Estou bebendo isto por você!” Julieta bebe o conteúdo do frasco e se deixa cair na cama. *** – Pegue essa chave e vá buscar mais temperos na despensa – ordena a dona da casa à criada. – Os confeiteiros estão pedindo tâmaras e marmelos – informa a ama. – Acordem! Acordem! – quase grita o patrão aproximando-se das duas. – O segundo galo já cantou, e o toque de recolher soou já faz tempo. São três da manhã. Cuide da carne assada, Angélica, e não faça economia! 121


– Vá dormir, patrão – pede a ama. – Já passa da hora. O senhor vai passar mal amanhã se continuar de pé a noite toda. – O quê? De jeito nenhum! Já passei muitas noites em claro por causa de coisas menos importantes e nunca me senti mal. – Você pode ter sido um grande boêmio no seu tempo – brinca a senhora Capuleto –, mas hoje sou eu quem fica acordada velando pelo seu sono. – Isso é ciúme, isso é ciúme... – replica o patrão, na mesma moeda, e a mulher e a empregada vão cuidar dos afazeres. Enquanto isso, chegam alguns criados com espetos, lenha e cestos. – O que é isso? – pergunta Capuleto. – Coisas para a cozinha, senhor – responde um dos empregados –, mas não sei para o que são. – Então corram! Vão depressa!... Você aí, vá trocar essa lenha por galhos mais secos! Chame o Pedro, ele vai mostrar onde ficam. – Eu tenho cabeça, senhor, e posso buscar a lenha seca sozinho; não preciso incomodar o Pedro por causa disso – responde o criado. – Mas que respondão este filho de uma prostituta, ha, ha, ha!... – O patrão está feliz. – Então está certo! Já sei onde você encontrará os galhos: é na cabeça... Não falei?... Ha, ha, ha! Meu Deus, já está clareando e o conde vai chegar com a música: pelo menos foi o que ele prometeu. Já estou ouvindo os instrumentos!... Ama! Mulher!... Aonde foram se meter? Ama, estou chamando! 122


– Já vou, já vou! – a criada volta, apressada. – Vá acordar Julieta. Ponha a menina de pé enquanto eu converso com Páris. Corra, porque não quero perder um minuto. O noivo já chega. Vá depressa, depressa! Estou mandando! *** – Julieta!... Julieta!... Acorde, menina! Julieta, vamos!... Rápido, eles estão esperando!... Parece até uma ovelhinha dormindo!... Pronto, já dormiu o suficiente... Acorde, amorzinho... Mas que menina dorminhoca... Amorzinho... Coração da ama... Está na hora de a noivinha se levantar... O que está acontecendo?... Já sei! Quer aproveitar o máximo do sono e está com vontade de dormir uma semana, mas aposto que hoje à noite o conde Páris não vai deixar você descansar nem um minuto... Deus que me perdoe, amém... Mas como ela dorme! Que sono pesado!... Só que eu preciso acordar você, menina. Menina! Julieta... Julieta! Quer que o conde venha buscar você na cama? Já pensou que vergonha?... Não é?... Mas como? Você se deitou vestida! Nem tirou a roupa para dormir!... Não vai acordar? Vamos, vamos! Preciso levar você... Ai, meu Deus!... A menina está morta! Socorro! Venham ajudar! Julieta morreu! Que dia, para que foi que eu nasci? Preciso de um gole de aguardente. Patrão! Patrão! A senhora Capuleto vem ao quarto de Julieta, atraída pelos gritos da ama. – Que barulho é esse? – Que dia desgraçado! 123


– Mas o que foi que aconteceu? – Olhe, patroa! Veja! Que dia desgraçado! – Ai de mim! Minha filha! Minha filhinha, minha vida! Acorde, vamos, viva, senão eu morro também! Socorro, ajudem! Vá chamar alguém! Capuleto chega nesse momento. – Que vergonha! Por que essa menina ainda não veio? O marido dela já chegou! – Ela está morta, patrão! Morreu, faleceu! É o dia mais triste da minha vida. – Que infelicidade! Ela está morta!... Morta... morta... – soluça a mãe. – Ah, deixem-me ver... Saiam da frente! Mas ela está fria! O sangue parou... os braços e as pernas estão rígidos. Já faz tempo que a vida saiu desses lábios... A morte caiu sobre ela como a geada que vem antes do tempo para atacar a flor mais bonita dos campos... Que dia maldito! Não passo de um velho infeliz! – Que dia horrível! – lamenta a criada. – O pior da minha vida! – acrescenta a patroa. – Morte, já que levou minha filha para me fazer chorar, aproveite para amarrar bem a minha língua. Não quero falar nunca mais. Frei Lourenço e Páris, acompanhados dos músicos, chegam também ao quarto de Julieta. – A noiva já está pronta para ir à igreja? – pergunta o frade. – Pronta para ir está, mas para voltar... nunca mais – soluça o pai. – Meu filho, a morte roubou sua noiva na véspera 124


do casamento. Ali está ela, uma flor, que é o que ela era, uma flor deflorada pela morte. A morte é que é meu genro, a morte é que é meu herdeiro. O marido de minha filha se chama Morte. Eu vou morrer e deixar tudo para ele, ou seja, a vida. Viver é morrer, tudo é morrer. – Esperei tanto tempo para ver o rosto deste dia, e o que ele me dá é esta visão? – Páris está chocado. – Hora maldita, hora infeliz! – a mãe de Julieta se lamenta. – Este é o dia mais miserável, mais desgraçado que o tempo tinha a nos oferecer. O tempo segue impassível; ele caminha sem parar para ninguém, nem para reviver esta pobre criança. Uma menina tão cheia de afeto, que só me dava amor e alegrias, e vem a morte e carrega uma criatura tão especial para longe da minha vista! – Que dia desgraçado! Que miséria! Que dia miserável e desgraçado! – descabela-se a ama. – O pior que já existiu! Que dia! Que dia! Que dia! O mais miserável e desgraçado de todos! Nunca existiu um dia tão tenebroso, tão miserável, tão desgraçado! – Desprezado, rejeitado, odiado, martirizado, assassinado! Esse sou eu! – contrapõe o velho Capuleto. – Tempo insensível, senhor dos dias, por que veio matar nossa cerimônia justamente hoje? Minha menina! Minha criança! Mais que minha filha, minha própria alma! Ai de mim, minha filha está morta, e com ela morreram todas as minhas alegrias. – Calma, calma! – intervém frei Lourenço. – Por favor, controlem-se. Não é possível curar o sofrimento com todo esse sofrimento. Deus tinha uma parte desta bela menina tão grande como a de vocês. Agora Deus ficou com tudo, 125


e ela ganhou a melhor parte. Nenhum de nós conseguiria guardar a parte que nos cabe da menina contra a morte, mas Deus guarda a parte dele na vida eterna. O que vocês mais queriam é que ela estivesse sempre melhor; ela estar bem era a maior alegria de todos. E, nesse amor, vocês amam tanto sua filha que ficam loucos ao saber que ela atingiu um estado melhor que o de nós todos aqui. A mulher mais bem casada não é a que vive muito tempo casada, mas a que morre casada e jovem. Enxuguem as lágrimas, coloquem ramos de flores sobre o corpo dela. E, conforme o costume, levem-na para a igreja, vestida com as melhores roupas. É verdade que a natureza nos faz lamentar e chorar, mas as lágrimas da natureza contrariam a razão. – Tudo o que mandamos preparar para um casamento vai ser oferecido num funeral – lembra o pai. – Em vez da marcha nupcial, os músicos vão tocar a marcha fúnebre. O banquete de bodas será a refeição do luto. Os hinos que iríamos cantar, em vez de serem os de um casamento, serão os de um funeral. As flores da noiva servirão para cobrir o próprio corpo morto dela. Nesta festa, tudo saiu ao contrário... – Por favor, saia do quarto, senhor Capuleto – pede o frade. – A senhora também, por favor, vá com seu marido... O senhor também, conde... Preparem-se para acompanhar o cortejo que sairá para o mausoléu da família. Deus deve estar castigando a todos por alguma ofensa, algum mal que fizeram. Não o provoquem mais lamentando desse modo a vontade divina. *** 126


Saem todos, enquanto os músicos e os criados da casa conversam no corredor. – Pessoal, aqui é o caso de, literalmente, pôr a viola no saco e ir embora – diz um dos músicos. – Você é que está certo – confirma a ama, que está passando por ele. – Mas viram que dia miserável e desgraçado? É só tristeza! – É verdade. O caso não tem mais solução. A empregada segue em frente e, no mesmo instante, Pedro, seu ajudante, aproxima-se dos músicos: – Pessoal, toquem “De coração leve”. Se não quiserem que eu morra, toquem “De coração leve”. – Por que justamente “De coração leve”? – Porque eu estou com o coração pesado e preciso de uma música que possa me aliviar. – Agora não é o momento de tocar – nega-se o músico. – Então não vão tocar? – insiste Pedro. – Acho que não. – Então eu é que vou tocar todos daqui para fora! – Se conseguir... – Esperem só! Basta eu começar a cantar e vocês vão ver o que minha voz é capaz de fazer. – Vai cantar? Quero só ver... Comece, que eu vou fazer a segunda voz – os músicos se divertem com Pedro. – E eu sei fazer a terceira e a segunda ao mesmo tempo! Mas não vão se assustar, hein? Vamos aquecer a voz: ré, fá, sol... so-ol... – Epa, parece que estourou uma corda vocal. – Quietinho aí, senão eu é que vou estourar com você. 127


– Ah, isso sim! Nós já tínhamos percebido que você era uma bomba! – Está bem, está bem, os músicos são vocês. Mas escutem só esta: A bele-e-eza Em meu coração se ca-ala Porque mais alto fa-ala A triste-e-za. – Então, gostaram? O timbre da minha voz não parece de prata? – pergunta Pedro. – Eu antes diria que o som mais parece de lata... – responde um dos músicos. – O que você acha, Simão Trombone? – Olhe, Hugo da Rabeca, eu diria que até que o rapaz não é tão desafinado assim... quando fica calado! – Está bem, está bem, já entendi. Ninguém mais pode ser músico quando há músicos por perto. Vou ajudar a ama, mas vocês podem esperar no salão. Pedro se afasta, e os músicos comentam: – Que sujeitinho desagradável! – Ele que vá se enforcar, Simão. E agora? Voltamos para casa ou esperamos novas ordens? – Acho melhor a gente esperar, Cravelha. O enterro sai a qualquer hora, e acho que, nesse meio-tempo, vão nos servir um almoço.

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o t n i u Q at o


R

omeu caminha, pensativo, por uma rua de Mântua. “Se é que se pode confiar no olho do sono, que procura nos agradar, meus sonhos são um presságio de ótimas notícias em breve. O coração, rei do

corpo, está tranquilamente sentado no trono. Senti o dia todo uma sensação muito gostosa, muito diferente: é como se eu estivesse andando sem pôr os pés no chão, de tão leves que estão os meus pensamentos... Sonhei que minha amada veio e me encontrou morto. Que sonho estranho esse, que deixa um morto pensar depois de ter morrido!... E ela me instilou tanta vida pela boca, com tantos beijos, que ressuscitei. Fiquei vivo outra vez e, agora, era um imperador. Mas ao mesmo tempo isso é triste porque... como deve ser gostoso o amor na realidade, se, já nos sonhos, ele é tão cheio de alegria!...” – Romeu vê Baltasar, que se aproxima. “Que bom! Notícias de Verona!” – Bom dia, Baltasar. Está me trazendo alguma carta de frei Lourenço? Como está Julieta? Meu pai está bem? E 132


Julieta?... Estou perguntando de novo porque nada pode ir mal quando ela vai bem. “Então nada mesmo vai mal, porque ela vai muito bem; aliás, foi desta para melhor... Portanto, melhor impossível”, pensa o criado, mas diz: – O corpo de Julieta repousa na capela da família, e a parte imortal dela está vivendo com os anjos. Vi quando ela foi posta no caixão e corri para avisar o senhor. Peço que me desculpe por trazer notícias tão más, mas foi o senhor mesmo quem mandou que viesse comunicar tudo o que acontecesse. – Mas foi isso mesmo que aconteceu?... Estrelas do céu, não acredito mais em suas mensagens!... Você sabe onde estou alojado. Vá buscar papel e tinta, e alugue cavalos velozes. Vou voltar esta noite mesmo para Verona. – Tenha paciência, senhor, eu lhe imploro. A sua aparência está pálida e irada, já estou prevendo uma desgraça. – Cale a boca, você está enganado. Agora me deixe em paz e vá fazer o que eu mandei. O frade não mandou nenhuma carta? – Não, senhor, mas fique calmo... – Bom, não importa. Vá depressa alugar esses cavalos. Vamos nos encontrar em seguida na casa onde estou morando. Assim que o empregado se afasta, Romeu faz seus planos: “Está bem, Julieta. Vou me deitar a seu lado esta noite. Agora é pensar no jeito certo de chegar lá... Ah, como os pensamentos ruins entram rapidamente na cabeça de um 133


homem desesperado!... Conheço um boticário nas redondezas: agora mesmo vi quando ele saía, com aquela cara sinistra e um saco na mão, para recolher ervas do campo. Ele é muito magro, como se a miséria mais terrível tivesse comido seu corpo até os ossos. Na farmácia, ele tem uma tartaruga pendurada, um crocodilo empalhado e peles de peixes, tudo muito feio. As prateleiras estão abarrotadas de caixas velhas e vazias, bexigas e sementes secas, pedaços de barbante e um monte de botões de rosas espalhados para compor o quadro. Quando vi aquela penúria, pensei: se alguém precisa encontrar um veneno para matar outra pessoa em Mântua, este é o lugar, e este é o malfeitor que sabe preparar a poção. Ah, tudo isso me passou antes da hora, mas chegou o momento certo de procurar o bandido... Esta deve ser a casa, se me lembro bem... Hoje é feriado na cidade, por isso está fechada.” – Boticário! Ei, boticário, é um cliente! – chama Romeu. O outro sai para atender: – Quem está gritando aí tão alto? – Venha logo, homem!... Já vi que você é muito pobre... Tome, aqui estão quarenta ducados. Quero que você me prepare uma dose de veneno. Quero um de ação rápida, que se distribua por todas as veias e mate no mesmo instante a pessoa cansada da vida que o tomar. E que o corpo expulse a alma tão rápido e violentamente como a explosão da pólvora atira a bala para fora do canhão. – Eu posso arranjar essa droga fatal, mas a lei de Mântua condena à morte quem lida com ela... – Mas você, que é tão miserável e passa tanta necessidade, tem medo da morte? Pode-se ver a fome na sua cara, 134


a pobreza come nos seus olhos, a necessidade está montada em suas costas. Vê-se que o mundo não é seu amigo, e muito menos as leis do mundo. Ainda não se fez uma lei que torne você rico, então deixe de ser pobre e desrespeite a lei. Tome logo isto... – A minha pobreza aceita, mas não a minha vontade. – Estou pagando a sua pobreza, não a sua vontade! – insiste Romeu. – Então despeje isso no líquido que preferir – cede o boticário – e beba em seguida. Mesmo que tenha a força de vinte homens, o senhor vai bater as botas na hora. – Aqui está seu pagamento. É em ouro, o pior veneno que já inventaram para a alma humana. Ele mata mais gente neste mundo ambicioso do que essas pobres substâncias que você tem tão pouca coragem de vender. É você quem está comprando o meu veneno, você não me vendeu nada. Adeus! Compre comida e ganhe umas carnes! – Romeu se afasta, a pensar: “Venha comigo, meu remédio, e não veneno, venha comigo para a sepultura de Julieta. É lá que vou aproveitar o seu efeito”. *** Frei João entra na cela de frei Lourenço: – Santo frade! Como vai, meu irmão em São Francisco? – Ora, se não é a voz de frei João! Já de volta de Mântua? Seja bem-vindo! O que me conta de Romeu? Se ele escreveu, pode me entregar a carta imediatamente! – Fui encontrar um irmão descalço da nossa ordem para irmos visitar juntos os doentes de Mântua. Mas os guardas 135


logo suspeitaram que tínhamos estado numa casa dominada pela peste infecciosa. Por isso, fecharam os portões da cidade e nos deixaram no isolamento aqui em Verona. Assim, a minha pressa de ir para Mântua ficou me esperando no portão. – Então quem levou minha carta para Romeu? – Ninguém... Aliás, ela ainda está aqui... Não pude mandar entregá-la nem devolvê-la a você por um mensageiro, de tanto medo que tinham da infecção. – Que azar! Para a nossa ordem, esta carta não era pouca coisa, pois estava cheia de instruções importantes para Romeu. O fato de ela não ter seguido pode causar muito dano. Frei João, vá buscar já a picareta e a pá. Traga-as imediatamente para minha cela. – É para já, irmão. Enquanto frei João sai à procura das ferramentas, frei Lourenço faz seus preparativos: “Agora preciso ir sozinho até o mausoléu. Julieta deve acordar dentro de três horas. Ela vai me recriminar quando souber que Romeu ainda não foi avisado. Vou escrever novamente para Mântua e esperar em minha cela até que Romeu volte. Pobre cadáver vivo, fechado no túmulo de um homem morto...” *** Páris e seu pajem, que carrega uma coroa de flores e uma tocha, entram na capela-mausoléu da família Capuleto. – Passe a tocha, rapaz! – ordena o conde. – Agora saia e fique atento. Mas antes, melhor ainda, apague a chama: não 136


quero que me vejam aqui. Deite-se junto àqueles ciprestes e fique de ouvido colado no chão para ouvir os passos de qualquer um que se aproxime do cemitério. A terra é fofa e irregular, porque é sempre cavada para abrir novos túmulos, e vai ser fácil ouvir: se alguém chegar perto, dê um assobio... Passe as flores. Agora vá e faça como mandei. “Estou quase sentindo medo de ficar sozinho aqui no cemitério”, pensa o pajem, “mesmo assim, vou arriscar.” – Querida flor – começa a declamar o conde –, com flores cubro o teu leito nupcial! Oh, que desgraça! Teu dossel é feito de pedras e pó, mas virei regá-lo todas as noites com água perfu­mada ou, na falta dela, com lágrimas destiladas de meu luto. A homenagem fúnebre que por ti farei será vir todas as noites a este lugar, a banhar teu túmulo com meu pranto. – Ouve­‑se o assobio do pajem. “O rapaz está avisando que alguém se aproxima. Que pés malditos vêm passear por aqui durante a noite, pisoteando o solo sagrado e interrompendo minha cerimônia, meu ritual de amor puro? O quê? E ainda por cima com uma tocha? Que a escuridão da noite me conserve escondido enquanto isso.” Romeu e Baltasar chegam ao portão da capela com uma tocha, além de uma picareta e outras ferramentas. – Dê-me a picareta e a barra de ferro. Agora pegue esta carta: assim que amanhecer, vá entregá-la a meu pai. Passe a tocha. A partir deste momento, não importa o que acontecer, permaneça aqui fora e fique afastado. Mesmo que você veja ou escute alguma coisa, cuide de sua vida e não venha me interromper. Resolvi descer até este leito da morte em parte para rever a minha amada, mas principalmente 137


para pegar um anel precioso que está no dedo morto dela. É um anel que preciso usar num assunto muito importante. Por isso, fique do lado de fora e mantenha-se afastado. E, se por acaso sentir curiosidade e vier espiar o que estou pretendendo fazer, juro por Deus que arrebento com todos os seus ossos, e este mesmo cemitério vai ganhar mais um hóspede. Por isso, cuidado: a noite é perigosa, e eu sou mais ainda. Está me ouvindo? Eu sou muito mais furioso e implacável do que um tigre ou que uma tempestade no mar. – Já vou, patrão – responde Baltasar, assustado. – Não venho perturbar o senhor de jeito nenhum. – Se você fizer mesmo isso, estará demonstrando que é meu amigo de verdade. Agora pegue isto... Viva muito e seja rico! Adeus, meu bom companheiro! “Ainda assim, vou ficar escondido por perto e observar. Estou com medo por causa das atitudes dele e tenho dúvidas quanto a suas intenções”, reflete o pajem de Romeu enquanto se afasta. 138


– Bocarra insaciável, útero da morte – é a vez de Romeu declamar –, empanturrado com o melhor pedaço, o melhor petisco da terra, ordeno que abra suas mandíbulas podres! – Ele abre o portão do mausoléu. – E, apesar de tudo, venho lhe oferecer mais comida. “Esse é aquele Montecchio arrogante que foi exilado, o mesmo que matou o primo querido da minha amada...” – Páris se surpreende com a entrada de Romeu. “E foi de sofri­mento pela morte dele (pelo menos é o que se acredita) que esta criatura linda veio parar também na sepultura. Certamente esse bandido veio até aqui para aprontar alguma com os cadáveres. Mas não vou permitir...” – e se adianta para cortar o caminho do invasor: – Pode parar por aí com a insolência, Montecchio. Desde quando uma vingança tem de continuar depois de morto o inimigo? Bandido condenado, considere-se preso neste ato! Obedeça e siga-me. Agora sua pena será a morte! – Eu sei... e é por isso mesmo que vim para cá. Meu caro, não provoque um homem desesperado: é melhor sair daqui e me deixar sozinho. Lembre-se dos que já partiram e sinta medo deles. Eu lhe peço encarecidamente: não sei quem é você, mas não me faça carregar mais um pecado na consciência fazendo despertar a minha fúria. Vá embora daqui! Pelo céu, com certeza gosto mais de você que de mim, já que cheguei até aqui com uma arma que pretendo usar contra mim mesmo e não contra você. Não continue mais aqui, saia! Salve sua pele e depois conte que foi a piedade de um louco que o obrigou a fugir. – Desafio você a provar o que está dizendo! – insiste Páris. – Já lhe dei voz de prisão por crime cometido. 139


– Continua a me provocar? – resiste Romeu. – Então tome esta. Os dois puxam as espadas e começam a lutar, e o pajem do conde, ao ouvi-los, decide: “Meu Deus, eles estão brigando! Vou chamar o vigia!” – Ai! Estou ferido! – grita o conde, e cai. – Se tem piedade, abra o túmulo e coloque-me lá dentro, ao lado de Julieta. Páris morre, mas antes ouve ainda as palavras de Romeu: – Adivinhe se é isso o que vou fazer... Na penumbra, Romeu se aproxima do rosto do homem caí­do: “Vamos ver de quem é esta cara... O conde Páris, parente de Mercúcio! Que foi mesmo que disse o meu pajem quando estávamos vindo para cá, e eu, com minha alma perturbada, não estava prestando atenção? Se não me engano, ele disse que ­Páris ia se casar com Julieta. Era isso mesmo? Ou não? Será que não foi sonho? Ou será que fiquei mesmo louco, achando que ele estava falando de Julieta e não era nada disso?... Vamos, dê­‑me sua mão, você que, como eu, também foi inscrito no livro amargo da desgraça. Vou enterrá-lo num túmulo triunfal! Um túmulo? Ah, não, uma lanterna, meu caro jovem assassinado, porque Julieta também está descansando aqui. A beleza dela dá a este jazigo uma presença festiva, cheia de luzes. Morte, descanse aqui, enterrada por um homem morto”. Romeu põe o corpo de Páris numa sepultura do mausoléu. “Quantas vezes um homem que está a ponto de morrer não sente uma grande alegria? É o que chamam de relâmpago antes da morte. E que nome posso dar agora a esse relâmpago?... Meu amor! 140


Minha mulher! A morte, que sugou o mel de sua respiração, não tem poder sobre sua beleza! Você não foi derrotada, não foi conquistada! Os sinais da beleza ainda estão, rosados, em seus lábios e nas maçãs do rosto. A bandeira pálida da morte não conseguiu avançar aqui... Teobaldo, é você que está enrolado aí nessa mortalha ensanguentada? Que favor maior posso lhe fazer do que, com esta mesma mão que cortou a sua juventude, cortar também a vida de quem era seu inimigo? Perdoe­‑me, primo... Ah, minha querida Julieta, como você consegue se manter tão linda, mesmo aqui? Será que a morte imaterial se apaixonou e o monstro disforme e horrível quer conservá­‑la intacta na escuridão, como se fosse sua amante? Tenho medo dessa causa e é por isso que vou ficar aqui, com você: nunca mais partirei deste palácio da noite tenebrosa. Vou ficar para sempre a seu lado, com os vermes que são seus companheiros. Aqui repousarei eternamente; jogarei o destino anunciado pelas estrelas desatinadas para longe desta carne cansada do mundo... Olhos, deem o último olhar! Braços, o último abraço! Lábios, portas da respiração, selem com um beijo merecido o acordo atemporal com a morte avassaladora! Venha, amarga condutora! Venha, guia repugnante! Piloto desesperado, vamos atirar imediatamente o seu navio gasto, cansado de navegar, sobre as pedras cortantes!” – Um brinde ao meu amor!... – grita Romeu. “Mas que boticário competente!... Esta droga tem mesmo efeito imediato... Com este beijo... eu morro...” *** 141


Pela outra ponta do cemitério está entrando frei Lourenço, com uma lanterna, uma pá e uma picareta: “São Francisco me dê asas! Em quantos túmulos terei de tropeçar ainda esta noite com estes velhos pés?”. – Quem está aí? Quem vem visitar os mortos tão tarde da noite? – Sou amigo e conheço bem o senhor, santo frade. – Que Deus o abençoe! Diga, meu amigo, que tocha é aquela que está brilhando para ninguém, ou melhor, para as caveiras e os vermes? Se não me engano, a luz vem do mausoléu dos Capuleto... – É de lá mesmo, frade. Meu patrão está lá. Sei que o senhor é próximo dele. – Dele quem?... – Romeu. – Há quanto tempo ele está ali? – Mais de meia hora. – Eu vou até lá. Venha comigo! – Não tenho coragem, meu frade. O patrão não sabe que ainda estou aqui. E ameaçou me matar se eu ficasse por perto vigiando as intenções dele. – Então permaneça aqui. Eu vou só. Mas vou com medo... É verdade, estou com medo de que alguma coisa nefasta tenha acontecido. – Eu peguei no sono embaixo daquele cipreste e sonhei que meu patrão estava lutando com outra pessoa... e que meu patrão a havia matado. – Romeu! – grita frei Lourenço, avançando, enquanto reflete: “Ai de mim, que manchas de sangue são essas nas 142


pedras da entrada? Que significam essas espadas largadas aí, ensanguentadas e destoando deste templo da paz?”. O frade entra no mausoléu. “Romeu! Como ele está pálido!... Outro?... Quem é este?... O quê? Páris? Você também?... Banhado de sangue... Ah, que hora terrível foi a culpada por este acontecimento lamentável?... A menina está se mexendo...” Julieta desperta e se espreguiça. Ao ver frei Lourenço, ela diz: – Ah, meu querido frade! Onde está meu marido? Lembro bem onde é que eu deveria acordar, e aqui estou... Mas onde está meu amado Romeu? – Estou ouvindo uns ruídos – comenta frei Lourenço. – Menina, levante-se desse ninho da morte, de contágio e de sono antinatural. Um poder maior que o nosso, que não podemos enfrentar, se opôs aos nossos planos... Vamos, vamos embora. Seu marido está morto, bem ao seu lado... E Páris também... Vamos! Vou mandar você para um convento de santas freiras. Não pare para fazer perguntas, o vigia está se aproximando. Vamos, minha querida Julieta, rápido! – Ouvem-se novamente os ruídos. – Não ouso ficar mais aqui. – Então vá – responde Julieta. – Pode ir sozinho, porque daqui não saio! – Frei Lourenço sai, apressado, e ela repara no que se encontra a seu redor: “Que é isto? Uma taça, envolta pela mão do meu querido amor? Já entendi, é veneno, ele acabou com a vida antes da hora... Egoísta! Bebeu tudo sozinho, não deixou nem uma gota para me servir depois?... Vou beijar sua boca. Com certeza os lábios ainda estão com 143


um pouco de veneno: esse estimulante vai me ajudar a morrer”. Julieta beija Romeu e: “Mas a boca ainda está quente!...” Dois vigias noturnos do cemitério se aproximam: – É aqui! – chama o primeiro. – Por onde se passa? – pergunta o outro, um pouco mais longe. Outros dois vêm, mais distantes. “Quem será?” – Julieta percebe o movimento – “Terei de ser rápida. Nunca isto apareceu numa hora tão certa!”. Pega o punhal de Romeu – “É aqui que ele deve ficar guardado” – e o enfia no peito. “Pronto! Está feito, que eu morra logo!...” Julieta cai sobre o corpo de Romeu e morre em seguida. Um dos vigias chega ao mausoléu, com o pajem de Páris. – É aqui! – informa o pajem. – Ali, onde a tocha está queimando. – O chão está coberto de sangue. – O chefe dos vigias dá ordens aos colegas que estão fora: – Façam uma busca pelo cemitério! Vejam se encontram alguém e prendam-no imediatamente. Que visão horrível! Este cadáver é do conde!... Julieta!... Ela está sangrando! O corpo ainda está quente, ela acaba de morrer... Mas como é que ela passou estes dois dias aqui, sepultada?... Vigias, voltem!... Vão avisar o príncipe! Chamem os Capuleto! Acordem os Montecchio!... Vai um, enquanto os outros dão busca no cemitério!... Estamos vendo o lugar em que tudo aconteceu, mas não sabemos onde e como se iniciou esta desgraça... Um dos vigias volta, com Baltasar. – Este é o pajem de Romeu! Ele estava no cemitério, e eu o descobri. 144


– Mantenha o homem preso até o príncipe chegar. Outro vigia aparece com frei Lourenço. – Encontrei este frade. Ele está tremendo e não para de soluçar e de gemer. Esta pá e a picareta estavam com ele, e ele vinha desta parte do cemitério. – É o suspeito principal! – conclui o vigia-mor. – Ele também fica detido aqui. Mais tarde, chega o príncipe acompanhado de seus ajudantes. – Que desgraça é essa que vem perturbar tão cedo o sono e o descanso matinal de nossa pessoa? Logo em seguida, surge a família Capuleto. – O que aconteceu? Por que esses gritos por toda parte? – pergunta o pai de Julieta. – Algumas pessoas nas ruas estão gritando “Romeu!”; outras, “Julieta!”, e também ouvi gritos de “Páris!”. Todos estão correndo para cá, na maior confusão, em direção a nosso mausoléu. – Que sobressalto é esse que assusta os nossos ouvidos? – teme o príncipe. – Alteza – esclarece o vigia principal –, o conde Páris está aqui, morto. Romeu também, e também morto. E Julieta, que já estava morta antes, ainda estava com o corpo quente e acaba de morrer. – Investiguem, façam buscas, descubram como aconteceu esta loucura... – ordena o príncipe. – Prendemos este frade e o pajem de Romeu, que estavam com ferramentas próprias para violar os túmulos dos mortos. 145


– Céus! – admira-se Capuleto. – Mulher, veja este punhal que veio parar no lugar errado: ele devia estar na bainha do Montecchio, mas está cravado no peito de minha filha! – Deus me proteja! – lamenta-se a mãe de Julieta. – Esta visão da morte é como um sino que chama minha velhice para o túmulo! Montecchio chega com parentes e criados. – Venha para cá, Montecchio – chama o príncipe. – Você se levantou cedo para ver seu filho e herdeiro, que morreu mais cedo ainda. – Que tragédia, meu príncipe! – responde Montecchio. – Minha esposa morreu durante a noite. A tristeza pelo desterro de meu filho tirou a respiração da pobre! Que mais me podia faltar nesta idade? – Olhe, e verá! – aponta o príncipe. – Que falta de consideração! Que modos são esses de se atirar na sepultura antes de seu pai, meu filho?... – Feche logo essa boca, antes que diga mais algum ultraje! Vamos tirar a limpo tudo o que se passou neste lugar. Vamos descobrir as causas, quem fez o quê e por quê! Depois disso, vou fazer o papel de general do seu exército de desgraças e conduzirei a todos com imparcialidade até a morte. Enquanto isso, mantenham a calma, e que as lamentações sejam escravas da paciência. Apresentem os suspeitos. – Eu sou o principal – começa frei Lourenço, afoito –, apesar de ser o menos apto a praticar esse tipo de ação. Mesmo assim, sou o maior suspeito, já que a hora e o lugar depõem contra mim nas circunstâncias desta mortandade 146


horrível. Por isso me apresento para dar as explicações, mesmo sabendo que posso ser condenado e executado. – Então diga de uma vez o que sabe deste caso. – Serei breve, pois sei que o tempo que me resta de vida é tão pouco que até o relato do ocorrido é mais longo que isso. Romeu, que ali se encontra, morto, era o marido de Julieta. Ela, que também está ali, morta, era a esposa fiel de Romeu. Fui eu quem oficiou o casamento. No mesmo dia em que se casaram em segredo, Teobaldo foi assassinado, o que causou o desterro do noivo recém-casado para fora desta cidade. Era por ele, não por Teobaldo, que Julieta estava sofrendo. O senhor, pensando em livrá-la do sofrimento, prometeu que a daria em casamento ao conde Páris, mesmo que ela tivesse de casar à força. Ela me procurou e, muito alterada, praticamente me obrigou a fazer um plano para livrá-la desse segundo casamento, senão se suicidaria em minha própria cela. Foi assim que eu dei a ela uma poção para dormir, preparada por mim. O efeito foi o que eu planejava: ela dormiu com todas as formas da morte. Nesse meio-tempo escrevi para Romeu, dizendo que ele podia voltar em segredo nesta mesma noite terrível para estar presente quando ela acordasse, no mausoléu. O efeito da poção terminaria numa hora marcada. Mas frei João, que devia levar minha carta a Romeu, foi impedido de sair da cidade, devido a um incidente, e veio me devolver a carta ontem à noite. Então, sozinho, na hora marcada para Julieta despertar, vim com a intenção de conduzi-la para fora do mausoléu da família. Eu pensava em levá-la escondida para minha cela, de onde poderia fazê-la ir em segredo ao 147


encontro de Romeu. Mas quando cheguei... alguns minutos antes da hora de ela acordar... encontrei o nobre Páris e o excelente Romeu já mortos. Ela despertou; tentei fazê-la sair daqui e suportar com paciência esta obra dos céus. De repente, um ruído me fez ir para fora deste lugar. Ela, no auge do desespero, não quis sair comigo, mas, ao que tudo indica, praticou a violência no próprio corpo. Isso é tudo o que sei. A ama de Julieta estava sabendo do casamento. Se tudo deu errado por minha culpa, sacrifiquem minha velha vida, um pouco antes da hora prevista, de acordo com os rigores da lei mais severa. – Sempre tivemos o senhor, frade, na conta de homem santo. E onde está o pajem de Romeu? Que papel ele desempenhou nisso tudo? – pergunta o príncipe. – Eu fui levar a meu patrão, Romeu, a notícia da morte de Julieta. Em seguida, ele voltou a toda a velocidade de Mântua, diretamente para este lugar, esta capela. Ele me mandou entregar esta carta hoje cedo a seu pai e ameaçou me matar quando entrou no mausoléu se eu não fosse embora. – Dê-me a carta – ordena o príncipe. – Quero dar uma olhada nela. Agora, onde está o pajem do conde que foi chamar o vigia?... Ah, aí está... O que o seu patrão veio fazer neste lugar? – Ele veio trazer flores para o túmulo de sua noiva e me pediu para ficar de guarda, do lado de fora. Foi o que eu fiz. Logo chegou alguém com uma tocha para abrir o mausoléu. Dali a pouco os dois estavam lutando, e eu corri para chamar algum vigia do cemitério. 148


– Esta carta confirma as palavras do frade: o que aconteceu entre eles, o caso de amor, a notícia da morte de Julieta... Aqui ele também escreve que comprou um veneno de um boticário esfarrapado e vinha com ele para este mausoléu, disposto a morrer e ficar deitado para sempre ao lado de Julieta... Agora, onde estão esses inimigos?... Capuleto! Montecchio! Vejam o castigo terrível que se abateu sobre o seu ódio, como o céu encontrou uma forma de usar o amor para acabar com as suas alegrias. E eu, por ter fechado os olhos diante de suas arruaças, perdi parentes muito próximos! Todos fomos punidos! – Montecchio, meu irmão – Capuleto toma a ­iniciativa –, dê-me sua mão. Isto é por minha filha, sei que nada mais posso pedir. – Mas eu posso lhe dar mais – responde Montecchio. – Vou mandar fazer uma estátua de sua filha em ouro puro, de modo que, enquanto a cidade de Verona for conhecida por esse nome, nenhuma outra imagem possa se igualar à da mulher autêntica e fiel chamada Julieta. – A estátua de Romeu que colocarei ao lado dela não será menos valiosa. Pobres vítimas sacrificadas pela nossa inimizade! – Uma paz melancólica se celebra aqui esta manhã – conclui o príncipe. – O Sol, de tristeza, não quer mostrar sua face. Agora vamos sair daqui e continuar a conversar sobre estas coisas tristes. Alguns serão perdoados; outros, punidos. Pois nunca houve história mais triste do que esta, de Julieta e de seu amado, Romeu.

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PARA CONTEXTUALIZAR1

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illiam Shakespeare iniciou sua carreira no t­ eatro como ator, mas certamente foi o fato de ter escrito Romeu

e Julieta, Macbeth, Otelo, Hamlet e tantas outras peças de teatro que o tornaram conhecido mundialmente como um dos maiores escritores de todos os tempos. Muitos mistérios envolvem a biografia do criador de Romeu e Julieta, pois o autor não deixou cartas, diários ou apontamentos com o registro de seus sentimentos, sua sensibilidade ou suas posições políticas e religiosas. No entanto, os biógrafos, com base em diversas fontes, conseguiram rastrear sua trajetória, não só na cidade natal, Strafford-upon-Avon (Inglaterra), mas também em Londres, onde viveu e atuou em várias companhias teatrais. Há controvérsias sobre o dia exato do nascimento de William Shakespeare, ocorrido entre 21 e 23 do mês de abril de 1564, mas seus biógrafos concordam que ele recebeu o nome Guilelmus Filius Johannes Shakespeare no dia 26 de abril, na Igreja da Santíssima Trindade, na cidade de Strafford-upon-Avon. Seu padrinho chamava-se William Smith e advém daí o nome pelo qual era chamado o filho de Johannes Shakespeare, um fabricante de luvas bem posicionado na sociedade local, e de Mary Arden, filha de um próspero agricultor. Na época de Shakespeare, a escola primária e secundária era estruturada da seguinte maneira: no primeiro nível, aprendia-se a 1 Seção elaborada por Maria Schtine Viana, bacharel em Letras, mestre em Filosofia e doutoranda no Departamento de Estudos Portugueses da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Portugal. Estudou Artes Cênicas e atuou como atriz em várias companhias teatrais. É autora de livros de literatura, didáticos e destinados à formação de professores.

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Daniel Araujo

Vida e obra


ler e escrever corretamente em inglês; no segundo ciclo, os alunos estudavam gramática latina, para que, no terceiro estágio, pudessem ler os textos clássicos da literatura latina, como as fábulas de Esopo e os poemas de Virgílio. Na última etapa dessa escolarização, que antecedia a ida para a universidade, entre outras atividades, os estudantes faziam traduções e retroversões entre o latim e o inglês. Aos seis anos, o pequeno William foi matriculado na escola, onde permaneceu até os 15 anos. Pode-se imaginar o jovem Shakespeare a memorizar e construir frases, estudar gramática e repetir prosa e versos em latim de 30 a 40 horas por semana. O que nós chamamos atualmente de escrita criativa, era praticado nas aulas de retórica. De acordo com o biógrafo de Shakespeare, Peter Ackroyd, essas aulas de retórica foram fundamentais para sua formação como dramaturgo, pois foi nesse período que ele aprendeu a declamar textos latinos, que era obrigado a memorizar, conhecer o sentido das palavras, compor sobre um tema e redigir orações formais. “Para a criança atenta, tudo isso se torna um meio maravilhoso de composição. A retórica e os recursos da retórica tornam-se uma forma de criação.”2 Não se sabe ao certo que profissões Shakespeare exerceu entre os 16 e 18 anos, pois ele não seguiu os estudos universitários, como outros dramaturgos de sua época. Alguns biógrafos aludem a possibilidade de que tenha trabalhado com o pai na fabricação de luvas. Outros acreditam que tenha lecionado para crianças do primeiro ciclo escolar. Todavia, há estudiosos que garantem que ele atuou como ator na casa de um nobre, no norte da Inglaterra. Naquela época, era muito comum os nobres financiarem companhias teatrais. Certo é que William Shakespeare casou-se aos 18 anos, em 1582, com Anne Hathaway e, não muito tempo depois, mudou-se para Londres, onde morou em diferentes lugares. No entanto, viajava com frequência à sua terra natal para visitar a esposa, com quem teve três filhos. 2 ACKROYD, Peter. Shakespeare: a biografia. Lisboa: Teorema, 2005. p. 61.

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Em seu período londrino, Shakespeare participou de várias companhias teatrais como ator, dramaturgo, acionista e diretor. Era muito comum os artistas desempenharem várias funções na trupe na qual estavam integrados. De acordo com seu biógrafo Peter Ackroyd3, William Shakespeare participou das seguintes companhias: Os Homens da Rainha, Os Homens do Lord Strange, Os Homens de Pembroke e Os Homens do Lord Chamberlain (também conhecida como Os Homens do Camareiro-Mor) e Os Homens do Rei. Apesar de integrar diferentes grupos teatrais ao longo da vida, Shakespeare sempre esteve acompanhado por um grupo de amigos atores, como Richard Burbage, John Sincler, Henry Condell e Christopher Beeston, e, para eles, escreveu seus personagens mais marcantes, embora suas peças também fossem encenadas por outros grupos teatrais. Os biógrafos não conseguem determinar exatamente a ordem cronológica da produção de William Shakespeare na fase inicial, mas todos concordam que, por volta de 1598, ele já era um exímio dramaturgo, pois dominava a arte de escrever comédias, como A megera domada, A comédia dos erros e Os dois cavalheiros de Verona; peças históricas, como Henrique IV, Ricardo II e Ricardo III; e ainda tragédias, como Tito Andrônico e Romeu e Julieta. Em 1596, seu filho, Hamnet, morreu com apenas 11 anos de idade. Essa fatalidade pode ter abalado profundamente o dramaturgo e ele talvez tenha encontrado, na criação, espaço para extravasar sua dor. Fato é que, pouco tempo depois, escreveu a primeira de suas obras mais famosas: Romeu e Julieta. Na sequência, vieram: Sonho de uma noite de verão, Ricardo II, O mercador de Veneza, Henrique IV e Rei João. Por volta de 1600, Shakespeare já era reconhecido como o mais importante dramaturgo da língua inglesa e havia angariado alguma fortuna. Suas peças, além de atraírem milhares de espectadores, eram impressas e vendidas na forma de pequenos volumes, conhecidos como “quarto”, pois correspondiam ao tamanho de uma folha dobrada em quatro partes. 3 Cf. ACKROYD, Peter. Shakespeare: a biografia. Lisboa: Teorema, 2005.

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Após a morte da rainha Elisabeth I, em 1603, sucede-lhe o rei Jaime I, que contratou os serviços da companhia de Shakespeare, Os Homens da Rainha, que, então, passou a ser conhecida como Os Homens do Rei. Além de participar da companhia como ator e acionista, o dramaturgo escreveu, para ela encená-la, a comédia Medida por medida e outras obras que contribuíram para alçá-lo ainda mais à imortalidade literária, como as tragédias: Hamlet, Otelo, Macbeth, Rei Lear e Coriolano, e os dramas históricos: Antônio e Cleópatra e Júlio César. Em 1607, ele voltou a morar em Stratford, onde havia comprado uma boa casa para sua família, entre outras propriedades, e já era considerado um ilustre cidadão. Na terra natal, escreveu Péricles (em colaboração com George Wilkins), Conto de inverno, Cimbelino e A tempestade, tragicomédias bem ao sabor da moda à época. Henrique VIII e Os dois nobres parentes foram escritas em parceria com John Fletcher, em 1612. Ainda que passasse a maior parte do tempo em Stratford e seu nome não aparecesse mais como ator nos programas, ele continuou a atuar como dramaturgo da companhia Os Homens do Rei e ainda foi acionista do teatro Frades Negros, adquirido por seu amigo, Richard Burbage. É possível que também supervisionasse os trabalhos da companhia. O artista faleceu em 23 de abril de 1616, deixando-nos um legado de 38 peças teatrais e 154 sonetos, publicados postumamente, além de outros poemas. Cabe dizer que, se na atualidade podemos conhecer tantas obras escritas por William Shakespeare, isso se deve ao trabalho de seus amigos, Henry Condell e Jonh Heminges, que organizaram a edição de suas obras em 1623.

O contexto histórico da obra No século XV, várias transformações começaram a ocorrer na Europa, como a expansão marítima, a ampliação das atividades comerciais e urbanas, a constituição das bases das línguas nacionais e o fortalecimento da burguesia. Nessa época, a produção 155


cultural e intelectual medieval era comparada com o legado da civilização clássica, sobretudo grega. Por isso, a realidade do mundo medieval passou a ser vista como obscura, cheia de trevas, na qual reinavam a ignorância, a superstição e a intolerância religiosa, sobretudo por causa da Inquisição. Os seres humanos e a realidade natural tornaram-se o centro das questões; os preceitos divinos deixaram de ser usados para explicar os eventos da natureza. Por isso se afirma que a principal característica do humanismo – que floresceu nessa época – foi o antropocentrismo, ou seja, o ser humano passou a ser o centro das questões, em contraponto ao teocentrismo, dominante na Idade Média, quando Deus era o centro de tudo. Diante desse quadro, sentiu-se a necessidade de novos parâmetros para a educação e a criação artística, e os estudos das áreas humanas começaram a merecer destaque. Os “humanistas” eram, então, pessoas empenhadas em divulgar estudos das chamadas humanidades (Poesia, Filosofia, História, Retórica). Para se aprofundar nessas disciplinas humanísticas, foram retomados temas e alguns princípios da Antiguidade Clássica (grega e latina). Advém daí a grande importância dada às fábulas de Esopo e aos textos de poetas como Virgílio, durante os séculos XV e XVI. Como vimos, o estudo dos autores latinos fez parte da formação de William Shakespeare. No campo literário, o autor de Romeu e Julieta produziu sua obra no período chamado de Classicismo ou Época Clássica. Esse movimento artístico durou do século XVI ao XVIII. Considerando-se todas as evoluções intermediárias, o movimento literário desse período é chamado, genericamente, de Época Clássica, porque sua característica principal é a imitação dos antigos clássicos (gregos e latinos) em relação ao tratamento de valores humanos universais e à busca do equilíbrio e da distinção de formas e gêneros. Entretanto, nesses quase três séculos, a Época Clássica abarcou diferentes movimentos estéticos: o Classicismo, o Maneirismo, o Barroco e o Arcadismo (Neoclassicismo). O Classicismo ocorreu na maior parte do século XVI, o Barroco praticamente ocupou todo o século XVII e o Arcadismo caracteriza o século XVIII. 156


Durante o Classicismo, época em que William Shakespeare viveu e produziu sua obra, o homem era o centro do Universo, a religião era passível de questionamento e a experiência pessoal tinha grande valor. O amor pela mulher idealizada era também uma maneira de lidar com os próprios conflitos diante da perene noção de indivíduo e da fascinante aventura de ser pensante. Shakespeare nasceu em um momento no qual grandes mudanças políticas ocorriam também na Inglaterra. Essas informações históricas são importantes para compreender não apenas os fatos que envolvem a biografia do escritor, mas também a importância do reinado de Elisabeth I para a própria história do teatro. O dramaturgo nasceu poucos anos após a coroação da rainha Elisabeth I, filha do rei Henrique VIII. Seu pai reinou de 1509 a 1547, e cabe lembrar que, ao romper com os dogmas da Igreja Católica e instituir o anglicanismo como religião oficial da Inglaterra, ele provocou convulsões de ordem religiosa e política por toda a Europa. Durante o reinado de Eduardo VI (1547-1553), filho e sucessor imediato de Henrique VIII, o protestantismo foi efetivamente implantado como religião oficial na Inglaterra. O curto período (15531558) em que Maria I, meia-irmã de Eduardo, governou foi marcado pela reação da Igreja Católica. Portanto, quando Elisabeth I assumiu o poder, em 1558, após a morte de Maria I, os autos religiosos, ligados aos ciclos da Igreja Católica, foram amplamente proibidos. Alguns biógrafos acreditam que os pais de Shakespeare vinham de famílias católicas, que foram obrigadas a seguir os dogmas da igreja protestante. Portanto, todo o período formativo e profissional de William Shakespeare foi marcado pela oscilação entre passado e presente, catolicismo e protestantismo, fé e ceticismo, hábitos feudais e ambições burguesas. Nessa época, os mercadores e barões, em ascensão, foram tomando o lugar privilegiado da velha nobreza. As relações de parentesco passaram a contar menos, dando lugar aos vínculos que se estabeleciam inclusive entre pessoas vindas das camadas médias 157


com os nobres. Segundo Ackroyd: “Essa já foi chamada a transição de uma sociedade de linhagem para uma sociedade civil”.4 Essas mudanças eram sentidas também na cidade de Londres, que expandia seus limites e atraía jovens camponeses, os quais migravam em busca de oportunidades de trabalho como aprendizes nas oficinas de ofício, no comércio e, ainda, no teatro. Londres já não era uma cidade medieval. Havia uma população urbana, composta de pessoas que se relacionavam de maneira menos cerimoniosa, e o teatro era uma grande escola. As pessoas iam ao teatro tanto para se divertir e observar como os atores falavam e se comportavam quanto para ouvir as mensagens sociais e políticas ali propagadas. Havia uma convergência entre o teatro e a vida citadina.

O teatro elisabetano O teatro elisabetano recebeu esse nome justamente por ser associado ao governo da rainha Elisabeth I, mas suas origens certamente estão nas apresentações sacras públicas, nas quais os atores encenavam cenas da Bíblia e os milagres realizados pelos santos. Não havia salas de teatro como na atualidade. As apresentações eram feitas praticamente sem cenário, nos pátios das estalagens ou nas áreas portuárias. As peças eram encenadas em um estrado de madeira retangular, instalado sobre cavaletes. A maioria do público ficava no pátio e assistia ao espetáculo de pé. Porém, havia alguns lugares construídos especificamente para realizar espetáculos, geralmente ocupados por um grupo específico de atores, como o Theatre, edificado em 1580. Posteriormente surgiram também o Rosa e o Curtain. Essas edificações eram construídas na forma poligonal ou circular. Ainda que houvesse pequenas diferenças entre uma construção e outra, o chamado teatro elisabetano tinha uma estrutura bastante peculiar. O palco, de forma retangular, situava-se em um dos lados da arena. Geralmente, era composto de duas partes: uma a céu aberto; outra, mais recuada e coberta, apoiada por duas colunas.

4 ACKROYD, Peter. Shakespeare: a biografia. Lisboa: Teorema, 2005. p. 111.

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As paredes eram ocupadas por camarotes destinados aos nobres e espectadores privilegiados, enquanto a maioria do público ficava de pé durante a apresentação. Somente no reinado de Jaime I, sucessor de Elisabeth I, que salas de teatro foram construídas realmente. Para se ter uma ideia da importância da arte da encenação na época, um teatro financiado e dirigido por um importante empresário, o Rosa, tinha capacidade para acomodar 600 espectadores no pátio central e cerca de 1 400 nas galerias. Além das apresentações nesses lugares fixos, as companhias faziam excursões pelo país, percorrendo aldeias e cidades em uma carroça, na qual transportavam o figurino e alguns objetos cênicos básicos. Apesar de ser um negócio bastante lucrativo, os artistas precisavam lidar com situações muito adversas, como o inverno rigoroso. Por exemplo, em dezembro de 1598, o Rio Tâmisa congelou. Os atores de várias companhias, com a ajuda dos moradores da cidade de Shoreditch, literalmente desmontaram as paredes do Theatre e reutilizaram o material para erguer outro, na margem oposta do rio, com espaço para abrigar três mil espectadores. Essa nova casa recebeu o nome de Globe. Na inauguração, foi encenada uma peça de Shakespeare, Júlio César. Shakespeare era um dos acionistas desse empreendimento. Sua trupe à época, Os Homens do Camareiro-Mor, atuou neste teatro durante muitos anos até mudar de nome quando passou a ser subsidiada pela rainha Elisabeth I e, posteriormente, pelo rei Jaime I. Um incêndio acidental em 1613 destruiu o Globe e, ainda que ninguém tenha morrido ou se ferido gravemente, o espaço foi totalmente destruído. Um ano depois foi reconstruído, inclusive com a participação monetária de Shakespeare, que continuava sendo um acionista. Entretanto, é possível que o dramaturgo tenha vendido sua parte no negócio logo após a reconstrução. As pestes eram outro grave problema enfrentado pelos artistas. Não é difícil imaginar o que significavam os surtos de peste para os atores, que dependiam das viagens que, por si sós, já eram difíceis. Soma-se a isso o fato de os teatros financiados pelos nobres serem fechados nessas temporadas de doença. Muitas 159


companhias, por exemplo, foram encerradas em 1594, justamente em decorrência de uma pandemia. Nessa altura, Skakespeare e os amigos integravam a companhia Os Homens do Camareiro-Mor, uma das poucas que sobreviveu às intempéries. Além disso, não com pouca frequência, as companhias teatrais sofriam a pressão dos setores puritanos, como a que ocorreu em 1596, quando os atores foram proibidos não só de atuarem nas estalagens mas também nos teatros públicos. As diferentes companhias teatrais tinham um repertório com várias montagens e apresentavam até seis peças diferentes por semana. Isso exigia bastante dos dramaturgos e dos atores, que precisavam saber de cor, no mínimo, 30 papéis diferentes. Cada trupe era formada por oito a 12 atores, dos quais alguns eram jovens aprendizes. O período de formação durava de três a 12 anos, a depender do talento do aprendiz. Nessa época, todos os papéis eram interpretados por homens, pois o trabalho teatral, como tantos outros, era proibido para as mulheres. Os papéis femininos eram interpretados geralmente pelos jovens aprendizes, que usavam máscaras. Cada ator recebia apenas as folhas de papel com suas falas para decorar e não a peça inteira. Disso advém ainda hoje usar-se o termo “papel”, para designar o trabalho do ator em determinada atuação. O manuscrito completo era conhecido como “livro da peça” ou simplesmente “o livro”. Antes de ser representada, a peça deveria ser submetida a uma espécie de censor, que verificava se o texto fazia alguma crítica política ou religiosa ao governo. Naquela época, era muito comum os artistas serem custeados por nobres para que pudessem produzir suas obras. Essa prática assegurava, com maior ou menor generosidade, a existência material de um artista ou companhia teatral e, em contrapartida, os artistas lhes dedicavam sua arte. Por isso as companhias de teatro eram conhecidas pelos nomes de seus financiadores, geralmente membros da nobreza. 160


A concepção da obra Romeu e Julieta Romeu e Julieta é uma de seis peças shakespearianas ambientadas na Itália. Os dados geográficos e culturais são tão precisos nessas peças, que alguns biógrafos chegam a alegar que o dramaturgo pode ter vivido algum tempo nesse país, a serviço do conde de Southampton, que fora estudar na Universidade de Pádua. A história se passa em Verona e seu pano de fundo é a rivalidade entre as famílias Montecchio e Capuleto, um conflito que envolve tanto parentes como criados. Em um baile de máscaras, Romeu Montecchio conhece Julieta Capuleto. A paixão é mútua e instantânea. Ao descobrirem que pertencem a famílias inimigas, os dois desobedecem às restrições familiares e vivem sua paixão explosiva e desesperançada. Na época de Shakespeare, era comum o dramaturgo usar um tema desenvolvido por outro autor, ou algum fato da tradição oral, para escrever suas peças. A intriga de Romeu e Julieta, por exemplo, foi inspirada no poema A trágica história de Romeu e Julieta, de Arthur Brooke, que, por sua vez, baseou-se em uma história escrita pelo italiano Matteo Bandello. Ao condensar uma história em quatro dias, que, no poema, durava nove meses, Shakespeare, com sua habilidade magistral, acentuou a dimensão dramática do tema. Ciente do gosto de seu público por disputas e duelos, ele destacou esses embates aumentando a participação de personagens secundários, como Mercúcio e Páris. Além disso, a mensagem do poema de Arthur Brooke era bastante moralista, pois enfatizava que a morte do casal decorrera do fato de terem desrespeitado os pais e se casado secretamente. Na versão shakespeariana, a ênfase da tragédia está no conflito instaurado entre as duas famílias há várias gerações. Os jovens não são somente vítimas dessa circunstância como também a morte trágica de ambos sela o acordo de paz entre os Montecchios e os Capuletos. Além de ser um sucesso de público à época, foram publicadas duas edições do libreto da peça durante a vida do autor, um marco que não ocorreu com todas as suas peças. 161


A peça Romeu e Julieta foi encenada, pela primeira vez, em 1594, mas o papel vivido por Julieta só foi interpretado por uma mulher em 1708. Os estudiosos são unânimes em afirmar que, apesar de ser difícil determinar a maneira pela qual Shakespeare concebia suas peças, não há dúvida de que muitas obras escritas por ele na juventude foram revistas na maturidade.

MOTIVAÇÃO PARA A LEITURA Na obra Por que ler os clássicos, Ítalo Calvino5 afirma que: “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. Isso significa que um verdadeiro clássico é uma obra aberta, em que os sentidos podem ser revistos a cada geração de leitores, de acordo com os valores do tempo em que está sendo lida. A peça Romeu e Julieta já foi representada nos palcos do mundo inteiro e serviu de tema para o roteiro de vários filmes. A releitura feita por Fernando Nuno, em pleno século XXI, de uma obra escrita por William Shakespeare no século XVI só confirma essa máxima do escritor italiano. Silvana Salerno

Fernando Nuno é autor de muitas obras destinadas ao público infantojuvenil e já recebeu muitos prêmios por esses trabalhos. Além disso, prestou serviços como curador editorial para milhares de obras, publicadas por diferentes editoras. Ele ministra palestras e cursos derivados de seus livros para estudantes e professores. Essa vasta experiência contribui para a qualidade e fluidez de suas adaptações de clássicos da literatura universal.

5 CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 11.

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Arquivo pessoal

Essa adaptação de Romeu e Julieta foi ilustrada por Daniel Araujo, que estudou Arquitetura e Urbanismo, mas se dedica à arte da ilustração há mais de duas décadas. Para criar as imagens deste livro, ele usou a técnica chamada aquarela. A leitura dessa tradução integral da obra, apresentada em estrutura de prosa e em linguagem atualizada, será uma ótima oportunidade para que você conheça a genialidade de William Shakespeare. Mas mesmo que você já tenha lido outras adaptações de Romeu e Julieta e se lembre do tema central da obra, certamente terá a sensação de estar diante de uma nova história, pois a inesgotabilidade de sentido, mencionada por Ítalo Calvino, também pode ser associada ao fato de que, a cada nova leitura que fazemos de um clássico, temos a sensação de que estamos lendo uma obra nova.

RELAÇÃO ENTRE A OBRA, O TEMA E OS GÊNEROS LITERÁRIOS O gênero dramático passou por várias mudanças ao longo do tempo e na atualidade. Cada vez mais há menos certezas quanto ao que se pode considerar um texto adequado para ser encenado. Isso não quer dizer que a literatura dramática deixou de existir, mas que as inúmeras possibilidades de se criar um espetáculo cênico na contemporaneidade determinaram que novos conceitos surgissem em torno do que seria a teatralidade de um texto. Atualmente, a origem de um espetáculo teatral não precisa obrigatoriamente ser um texto escrito. Por exemplo, o texto pode ser construído coletivamente pelos atores, com base em um objeto cênico, uma iluminação, um elemento do cenário ou dos movimentos corporais improvisados pelo ator. Nesse caso, o texto pode ser 163


mesmo “impublicável”, porque pode não ser possível a leitura dele fora da encenação. Portanto, hoje, o dramaturgo pode criar um texto teatral com as características próprias do gênero, com indicação dos personagens, determinação das cenas e atos, rubricas, definição da entrada e saída dos personagens de cena. Por outro lado, ele também pode criar outras hipóteses de leitura, por exemplo, indicando apenas os movimentos corporais do ator, que pode até mesmo não falar nada em cena. Pode ainda adaptar textos não teatrais para o teatro ou escrever o texto com base na improvisação dos atores. Mas na época em que William Shakespeare escreveu não era assim. Ainda que os atores improvisassem e criassem falas durante a montagem do espetáculo, havia regras que determinavam o gênero trágico. Algumas vinham desde a Antiguidade Clássica e foram ampliadas no Classicismo. Por exemplo, a regra das três unidades. 1. Unidade de ação: toda a narrativa deveria ser organizada em torno de um tema central. No caso de Romeu e Julieta, seria o amor proibido entre dois jovens oriundos de famílias inimigas. 2. Unidade de tempo: toda a narrativa deveria transcorrer em 24 horas. Essa regra não é seguida por Shakespeare, pois a peça transcorre em quatro dias. 3. Unidade de espaço: a ação deveria se desenrolar em um único local (na mesma cidade, palácio, casa etc.). Em Romeu e Julieta, tudo transcorre na cidade de Verona. De acordo com Aristóteles, a catarse era muito importante na tragédia, pois ela permitia que o espectador purificasse a alma por meio de uma descarga emocional que se daria quando o herói/heroína passasse do estado de “felicidade” para o de “infelicidade”. Assim, cabe observar que, quando Romeu não é condenado à morte pelo príncipe, mas apenas obrigado a se exilar, e o frei Lourenço apresenta um plano de fuga bastante exequível, o espectador/leitor sente certo alívio e, até a cena final, ainda tem esperança de um final feliz para o casal. É essa capacidade de manter as 164


expectativas, provocando as emoções do espectador/leitor enquanto acompanha os diferentes estados emocionais dos protagonistas, que provoca, nessa obra de Shakespeare, a catarse tão peculiar ao gênero trágico. Apesar das mudanças ocorridas no gênero dramático ao longo do tempo, a atuação dos personagens em dado espaço é essencial para as artes dramáticas, pois o destino deles é determinado pela ação que desempenham no palco. Portanto, a ação dramática é aquela que provém da execução de uma vontade humana, mas com certa carga de intenção, ou seja, com um objetivo. Essa peculiaridade de mostrar por meio da ação é o que difere a estrutura dramática daquela construída em forma de prosa. Ao apresentar a adaptação de uma das peças mais conhecidas de Shakespeare na forma de romance, mas mantendo uma estrutura bastante dialogal, Fernando Nuno conseguiu manter o estilo original do dramaturgo ao mesmo tempo que propiciou, aos leitores do século XXI, a chance de conhecer essa obra clássica tão importante de forma mais acessível. Ele ainda teve o cuidado de estruturar a divisão da narrativa não em capítulos, mas em atos. Portanto, cada passagem dela corresponde exatamente à parte designada em cada ato da obra original. Romeu e Julieta é certamente uma das peças mais representadas e adaptadas no mundo inteiro. Linda Hutcheon, teórica canadense que estuda a adaptação e a tradução, considera que, longe de ser um prejuízo à obra original, a adaptação é uma obra importante, sobretudo para o público juvenil, pois, por meio desses textos reescritos em uma linguagem mais acessível, constroem-se pontes entre a obra clássica e o leitor em formação6. Os adaptadores contam histórias do seu modo e, para fazê-lo, usam as mesmas ferramentas que os contadores de histórias sempre utilizaram. Desse modo, não apenas simplificam mas também ampliam os sentidos do texto original.

6 HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Florianópolis: ed. da UFSC, 2011.

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De acordo com Hutcheon, a adaptação pode ser considerada uma transposição de uma obra para outra. Nesse caso, são mantidas muitas características da obra original. Ela também pode ser uma transcodificação, em que as mudanças são de outra ordem, pois muda-se também a mídia. Por exemplo, a transformação do texto teatral para o modo narrativo, como fez Fernando Nuno, seria uma transposição; já uma adaptação da peça Romeu e Julieta para o cinema seria uma transcodificação, porque, além de o texto ser a base para a criação do roteiro cinematográfico, há uma mudança do livro para a mídia cinematográfica. Portanto, trata-se de um processo de recriação cultural mais amplo.7 Ao fazer a adaptação da peça teatral Romeu e Julieta para a estrutura narrativa, Fernando Nuno traduziu o texto do inglês arcaico utilizado por William Shakespeare adequando-o a uma linguagem contemporânea. Entretanto, não suprimiu nenhuma parte e manteve muitas características do gênero original. Por exemplo, na abertura há a apresentação dos personagens e a descrição do local em que se passará a ação dramática, recursos próprios do gênero dramático. Além disso, a versão dele mantém toda a ação e todos os diálogos shakespearianos em linguagem menos formal, e atualizada, para dar mais leveza ao texto e, ao mesmo tempo, preservar o diálogo pretendido pela obra original. Afinal, o inglês antigo, que hoje nos é tão difícil de entender, era na época a linguagem do povo e foi para pessoas de todas as classes (nobres, burgueses, mercadores, mestres de ofício e aprendizes) que Shakespeare criou suas peças.

7 HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Florianópolis: ed. da UFSC, 2011. p. 30.

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Este livro foi composto com a família tipográfica Caecilia, para a Editora do Brasil, em 2020.



Romeu e Julieta

u e m Ro e eta i l Ju

William Shakespeare Tradução integral em linguagem atualizada de FERNANDO NUNO

A trama de Romeu e Julieta é amplamente conhecida. Nesta obra, William Shakespeare apresenta, como raros escritores, o sublime e o grotesco, ambos os extremos das atitudes humanas. A tradução integral desse clássico incomparável, escrita em linguagem atualizada por Fernando Nuno, oferece ao leitor a oportunidade de conhecer a genialidade desse grande escritor e dramaturgo. Com muita destreza, Nuno capta a profundidade da obra e a transforma em uma leitura descomplicada, possibilitando a apreciação completa do texto.

Tradução integral em linguagem atualizada de

Fernando Nuno Ilustrações de

Daniel Araujo


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