Sexualidade Começa na Infância

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Sexualidade começa na infância

Maria Cecília Pereira da Silva Organizadora 3ª edição revista e ampliada

PSICANÁLISE & EDUCAÇÃO

SEXUALIDADE COMEÇA NA INFÂNCIA

Organização Maria Cecília Pereira da Silva Revisão técnica

Maria Cecília Pereira da Silva Patricia Oliveira de Souza 3ª edição revista e ampliada

Sexualidade começa na infância

© 2007 Maria Cecília Pereira da Silva

1ª edição – Casa do psicólogo, 2007

2ª edição – Editora Artesã, 2019

3ª edição – Blucher, 2023

Editora Edgard Blucher Ltda.

Publisher Edgard Blücher

Editor Eduardo Blücher

Coordenação editorial Jonatas Eliakim Produção editorial Lidiane Pedroso Gonçalves

Preparação de texto Vânia Cavalcanti Diagramação Negrito Produção Editorial Revisão de texto Ana Lúcia dos Santos Capa Leandro Cunha Imagem da capa João Luiz Pereira da Silva

Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br

Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 6. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, julho de 2021. É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora.

Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Sexualidade começa na infância / organizado por Maria Cecília Pereira da Silva ; revisão técnica por Patricia Oliveira de Souza. – 3ª ed. revista e ampliada – São Paulo : Blucher, 2022. 306 p.

Bibliografia

ISBN 978-65-5506-422-3

1. Psicanálise. 2. Educação sexual para crianças. 3. Homossexualidade. I. Silva, Maria Cecília Pereira da. II. Souza, Patrícia Oliveira de. 22-4699

CDD 150.195

Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise 2. Educação

Conteúdo

Prefácio 11 Apresentação 15

Parte I. Introdução 17

1. Diálogo sobre sexualidade: da curiosidade à aprendizagem 19 Maria Cecília Pereira da Silva

2. Educar nos tempos de hoje 29

José Ottoni Outeiral

3. Características da sexualidade infantil de 0 a 6 55

Maria Cecília Pereira da Silva

4. Novas configurações familiares: identidade de gênero 81

Regina Elizabeth Lordello Coimbra

Parte II. Falando de temas difíceis 97

5. Masturbação infantil 99

Francisca Vieitas Vergueiro, Rosa Maria de Mello Galli

6. Homossexualidade em crianças: será que isso existe? 109

Adriana Canepa Barbosa, Priscila de Oliveira Galvani

7. Violência sexual infantil 123

Maria Cecília Pereira da Silva, Patricia Oliveira de Souza, Zélia dos Santos

Parte III. Lidando com as diferenças 143

8. A sexualidade em crianças com deficiência 145

Carina Gambale, Maria Cecília Pereira da Silva, Patricia Oliveira de Souza

9. Aids, crianças e as escolas 165

Kátia Rodrigues Antunes, Solange de Souza Queiroz Matos

Parte IV. Orientação sexual na escola 175

10. O trabalho de sexualidade na escola e os pais 177

Carina Alvarez Gambale, Francisca Vieitas Vergueiro, Maria Cecília Pereira da Silva

11. Como ser multiplicador 187

Lucimar Medeiros Cabral França, Maria Cecília Pereira da Silva, Rodrigo de Marco Veinert

conteúdo 8

Parte V. O projeto de orientação sexual infantil na rede municipal de educação de São Paulo: planejamento e estruturação 195

12. Orientação sexual nos CEI: um trabalho inédito na SME da cidade de SP 197 Maria Cecília Pereira da Silva

13. Uma experiência de avaliação cooperativa 203 Mary Ann Norris Castanho Rondas

Parte VI. Colocando em prática 227

14. Reflexos do projeto: atividades realizadas pelos educadores nos Centros de Educação Infantil 229 Letícia de Jesus Mello Gonçalves, Rosely Aparecida Pereira, Mary Ann Norris Castanho Rondas

15. Relato de duas experiências de supervisão 253

Parte VII. Dicas 263

Dicas para ler, assistir e refletir 265

Agradecimentos 301 Sobre os autores 303

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1. Diálogo sobre sexualidade: da curiosidade à aprendizagem1

Apesar de todos os trabalhos desenvolvidos por Freud, ainda no início do século passado, apontando a existência da sexualidade infantil, apesar da curiosidade natural das crianças a respeito de sua origem e das dificuldades emocionais decorrentes de quando elas não conseguem ter respondidas as questões que apresentam, alguns preconceitos e tabus dificultam que pais e educadores lidem adequadamente com as manifestações das crianças relativas a essa temática.

Antes mesmo de nascermos, a sexualidade já está presente. Ela se inicia no exercício da maternidade, aliás muito antes, quando surge o desejo de se ter um filho, quando o embrião foi fecundado em uma relação sexual, em que se supõe que um casal experimentou o prazer. A partir do momento em que os futuros

1 Parte deste Capítulo foi publicada em: [Autores diversos]. (2003). Caderno Temático de Formação 1 – Leitura de mundo, letramento e alfabetização: diversidade cultural, etnia, gênero e sexualidade. Secretaria Municipal de Educação. Diretoria de Orientação Técnica – n. 1, São Paulo: SME/ATP/DOT.

pais descobrem que estão esperando um bebê, inicia-se, no imaginário materno e paterno, a constituição desse sujeito, o bebê. Isto é, os pais começam a imaginar se será um menino ou uma menina, qual será a cor dos olhos e dos cabelos, qual será seu nome, e a construir expectativas sobre quem será. As marcas culturais da construção social da sexualidade, na montagem da identidade de gênero, já começam a ser impressas desde aí, no lugar a ser destinado ao futuro bebê.

A sexualidade segue sendo construída nas primeiras experiências afetivas do bebê com a mãe e com o pai, ou com quem cuida dele. Agregam-se as relações com a família, os amigos e as influências do meio cultural. Quando nascemos, nossa percepção é toda sensorial, e nosso corpo, também. É pelo corpo que sentimos o mundo. Os primeiros contatos da mãe com o bebê no banho, na amamentação e todos os outros carinhos, as trocas de olhar e o ninar fazem com que ele sinta muito prazer e sinta-se vivo. Tudo isso compõe gradativamente as primeiras sensações sensuais e será a base para o desenvolvimento da resposta erótica, da capacidade de construir os vínculos amorosos e do desejo de aprender. Esse prazer, se não nos “robotizarmos” demais com a vida adulta dura que vivemos, manifestar-se-á em um corpo todo erótico.

A curiosidade sexual é a principal responsável pelo despertar da aprendizagem. Ela e o desejo de saber se manifestam logo no início da nossa vida. É por meio deles que compreendemos de onde e como viemos ao mundo, e isso nos leva a querermos entender como funciona e o que é o resto das “coisas” do mundo. Assim, começamos a conhecer e a pensar. Quando podemos levantar hipóteses, unir as ideias, construir teorias, podemos pensar. Quando podemos pensar, podemos conhecer e estabelecer relações afetivas. Os vínculos afetivos também são ligações que resultam do desejo de saber e de conhecer o outro.

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2. Educar nos tempos de hoje1

A escola como espaço de promoção da saúde e prevenção da doença

A escola hoje tem um currículo que necessariamente deve envolver promoção da saúde e prevenção da doença. É possível que muitas crianças e adolescentes tenham na escola a segunda chance, e talvez a última, de encontrar um ambiente favorável ao seu desenvolvimento, porque a primeira sempre será a família. Quem não aprender alguma coisa de português ou de matemática neste ano poderá fazê-lo no próximo. Entretanto, estar envolvido com a violência, com questões da sexualidade ou mesmo questões das drogas, esse é um problema para hoje, imediato, e, nesse sentido, a tarefa do professor é extremamente importante na vida dessas crianças e desses adolescentes.

1 Palestra proferida no Encontro Temático EMEI/CEI – Sexualidade infantil, gênero e diversidade. 9 de setembro de 2004. Círculo Militar, SP.

2 Médico psiquiatra e psicanalista (in memoriam).

espaço que nossas crianças e adolescentes habitam

Há algumas estatísticas, facilmente acessíveis nos indicadores sociais do IBGE, que nos revelam que, no Censo realizado em 2002, foram indicadas como causas de morte entre os nossos jovens: o homicídio como a primeira causa; os acidentes, como a segunda; o suicídio, como a terceira; e só depois começam as assim chamadas “doenças físicas e orgânicas”. Ou seja, as três primeiras causas de morte dos jovens, no nosso país, são o que chamamos “causas externas ligadas à violência”. Esses achados nos colocam frente a questões que devem levar à profunda reflexão todos aqueles que trabalham com crianças e adolescentes. Não tenho a menor dúvida de que os educadores desempenharão papel fundamental na prevenção da doença e na promoção da saúde.

No Censo feito em 1992, o homicídio, que hoje é a primeira causa de morte entre os jovens, era a quinta. O que aconteceu para que a quinta causa se tornasse a primeira? Houve, na sociedade, transformações muito profundas, muito intensas. Podemos pensar na nossa população. Na década de 1970 (do século passado), havia, por exemplo, uma música, comemorando o campeonato mundial de futebol que o Brasil vencera, cujo início, mais ou menos, era o seguinte: “Noventa milhões em ação...”. Hoje, nós somos mais de 210 milhões de habitantes. Eu sou mais velho do que a cidade de Brasília. Se pensarmos que determinadas cidades como Campo Grande, Londrina, somos levados a constatar o fato de que, em um curto espaço de tempo, houve uma grande migração para as grandes metrópoles, que não tiveram um verdadeiro desenvolvimento.

Um médico caracterizaria o crescimento dessas metrópoles como um tumor, ou seja, um crescimento desordenado, desorga-

educar nos tempos de hoje 30
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3. Características da sexualidade infantil de 0 a 6

Compreender a sexualidade infantil requer algo além do conhecimento do desenvolvimento da sexualidade. É preciso associá-lo ao desenvolvimento emocional como um todo, bem como às peculiaridades masculinas e femininas nas diversas idades compreendidas entre 0 e 6 anos.1 Apesar dos escritos e apontamentos de Freud, bem como da revolução sexual, questões relacionadas à sexualidade ainda nos surpreendem, embaraçam e envergonham. Seja diante da criança, seja do adolescente ou do adulto, as manifestações da sexualidade mexem com todo mundo.

Costumamos pensar em sexo e nas manifestações da sexualidade com a cabeça de gente grande, com a experiência do adulto, esquecendo-nos de como fomos e como vivemos a nossa sexualidade até chegarmos à vida adulta.

1 Agradeço a Maria Aparecida Barbirato, psicóloga pela USP, especialista em psicoprofilaxia e psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, por alguns dos exemplos oferecidos para este Capítulo. Agradeço a Rosely Aparecida Pereira, psicóloga clínica e escolar e formadora do Grupo de Trabalho e Pesquisa em Orientação Sexual (GTPOS), pela leitura cuidadosa e sugestões para este Capítulo.

Se fizermos um exercício de pensar em quais são as partes eróticas do homem e da mulher, imaginando o corpo todo, de imediato pensaríamos nos órgãos genitais externos masculinos e femininos, na boca, nos mamilos, no pescoço e, talvez, atrás da orelha e nas nádegas. Pensando mais um pouco, surgirão em nossa imaginação as pernas, os braços, as axilas, as costas, o ventre etc., enfim, o corpo todo. Pois é, o corpo todo é erótico! Com isso, podemos dizer que a sexualidade, de imediato, está diretamente associada à genitalidade; no entanto, ao refletirmos um pouco mais, constatamos que todo o corpo é erótico. Além disso, a vida e a nossa relação com ela, com a natureza, com o trabalho pode estar repleta de prazer. Portanto, o prazer não está só na relação sexual, no ato sexual ou na masturbação.

Mas por que será que o corpo todo é erótico? Porque quando nascemos é pelo corpo que sentimos o mundo. A proximidade física e mental dos pais cria no bebê uma sensação de segurança e amor. É no início da vida que o ser humano adquire a imagem boa ou frustradora da mãe e do pai. Cada um de nós carregará ao longo da vida essa imagem, a qual influenciará nossa capacidade amorosa e nossa sensação íntima de bem-estar, mesmo nas situações mais difíceis.

Portanto, o desenvolvimento afetivo-sexual da pessoa será resultado da combinação do componente biológico (índole inata do bebê) com o ambiente e o meio cultural (do qual os pais são parte fundamental).

Vários discípulos de Freud se dedicaram a estudar o desenvolvimento precoce do psiquismo. Melanie Klein2 e Bion3 des-

2 Klein, M. (1997). A psicanálise de crianças. Trad. Liana Pinto Chaves; revisão técnica José A. Pedro Ferreira. In: Obras Completas de Melanie Klein. Vol. II. Rio de Janeiro: Imago.

3 Bion, W. R. (1991). Aprendiendo de la experiencia. México: Piados.

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4. Novas configurações familiares: identidade de gênero

Sou feita de retalhos Cora Coralina1

Pedacinhos coloridos de cada vida que passa pela minha e que vou costurando na alma.

Nem sempre bonitos, nem sempre felizes, mas me acrescentam e me fazem ser quem eu sou.

Em cada encontro, em cada contato, vou ficando maior

Em cada retalho, uma vida, uma lição, um carinho, uma saudade… que me tornam mais pessoa, mais humana, mais completa.

E penso que é assim mesmo que a vida se faz: de pedaços de outras gentes que vão se tornando parte da gente também. E a melhor parte é que nunca estaremos prontos, finalizados… haverá sempre um retalho novo para adicionar à alma.

1 Poema de Cris Pizzimenti, atribuído a Cora Coralina

identidade de gênero

Portanto, obrigada a cada um de vocês, que fazem parte da minha vida e que me permitem engrandecer minha história com os retalhos deixados em mim.

Que eu também possa deixar pedacinhos de mim pelos caminhos e que eles possam ser parte das suas histórias.

E que assim, de retalho em retalho, possamos nos tornar, um dia, um imenso bordado de “nós”.

Este Capítulo é um convite às reflexões sobre temas bastante instigantes: “novas configurações familiares” – espaços de construção do psiquismo humano para crianças durante as idades de 0 a 6 anos e, “identidade de gênero” que se expressa pela multiplicidade de transformações identitárias na cultura. Discutir esses dois assuntos não é tarefa simples, ainda mais com a expectativa de buscar conexões entre eles durante o período do desenvolvimento psíquico, desde o nascimento até os 6 anos. Seguem referenciais significativos que poderão colaborar com a conversa atual: funções da parentalidade; relações com as situações edípicas vividas pelo bebê e pelos pais, interação entre cultura e novas estruturas das famílias; fenômenos sustentados pela esteira das forças pulsionais e papel da diferença sexual como constituintes das relações intersubjetivas e o devir intrapsíquico.

Pedacinhos coloridos de cada vida que passa pela minha e que vou costurando na alma.

Historicamente, a psiquiatria e a psicanálise tiveram seus inícios a partir do universo dos adultos e depois chegaram às crianças e aos bebês. Há mais de um século, em seu início, o tratamento de adultos foi ponto de partida da psicanálise, com a perspectiva

novas configurações
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familiares:

5. Masturbação infantil

Francisca Vieitas Vergueiro

Breve histórico

Dentro da palavra “masturbação”, encontram-se as palavras “mas”, “turba” e “ação”. Turba significa multidão em desordem, povo, muitas pessoas reunidas. Ação quer dizer manifestação de uma força, de uma energia. Já a conjunção “mas”, normalmente, vem antes de alguma restrição.

É interessante como tudo isso se relaciona à palavra “masturbação”. Todos os seres humanos, dos bebês aos idosos, praticam-na ou já a praticaram. Está ligada à manifestação/liberação da energia sexual, mas ao longo da história, foi compreendida de diferentes maneiras.

“Masturbar” vem do latim masturbare e quer dizer provocar o orgasmo pela fricção da mão ou por meio de instrumento adequado ou, ainda, excitar os órgãos sexuais pelo contato da mão ou de objeto, com o intuito de obter prazer. Masturbar-se aparece nos dicionários como sinônimo de “onanizar-se”, e pode-se chamar de

masturbador ou onanista quem pratica a masturbação. Por que onanista?

Graças ao personagem Onã, que, nos relatos bíblicos, foi obrigado a manter relações sexuais com a cunhada, pois rezava a tradição judaica que, se um homem casado morresse, seu irmão assumiria seu lugar junto à viúva, para garantir ao morto um herdeiro. Pois bem, Onã não queria ter um filho com a cunhada, Tamar (viúva de Er, irmão de Onã), para ser criado como herdeiro de seu irmão morto, e, assim, ao fazer sexo com ela, deixava o sêmen cair à terra...

Apesar de esse ato caracterizar coito interrompido, o nome de Onã e seu derivativo, onanismo, têm sido associados à masturbação. E ao “jogar fora” seu esperma, Onã estava colocando em risco toda uma descendência que desembocaria (com a ajuda de seu pai, Judá, que engravidara a nora) em Davi, Salomão e, posteriormente, Jesus. Assim, o “desperdício” do sêmen era visto como pecado porque contrariava a necessidade da espécie humana de multiplicar-se. Já a questão da masturbação feminina era deixada de lado, como a própria mulher, e seria sobre o homem que a suposta ira divina se manifestaria.

É importante lembrarmos que o termo “sêmen” vem de “semente”, pois, na Antiguidade, acreditava-se que o esperma continha tudo o que era necessário para gerar uma nova vida, sendo a mulher apenas um recipiente. Além disso, pensava-se que o esperma era finito. Logo, não usá-lo para a reprodução poderia acarretar prejuízo para a perpetuação das raças. A proibição do ato de se masturbar está ligada à cultura judaica e, consequentemente, à cultura cristã.

Pouca coisa mudou de quatro mil anos atrás, quando esse mito foi construído, espelhando as crenças dos judeus, até o século XVII da era cristã, pois foi somente no século XVIII que a visão mística

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6. Homossexualidade em crianças: será que isso

existe?

André, de 3 anos e 6 meses, frequenta uma creche desde os 4 meses e sempre gostou muito de dançar com um pedaço de pano. Este pano está com ele em todo lugar: vira saia, põe na cabeça e faz mil e uma peripécias no seu mundo de fantasia. Segundo relato da mãe, ele faz isso em casa com as roupas dela, e os vizinhos a recriminam por isso. Um dia, esta mãe disse: “Será que meu filho vai ser bicha?”.

* * *

João tem o comportamento social diferenciado. Gosta de brincar de bonecas e de casinha com as meninas. Quando pergunto a ele o porquê de brincar com bonecas ou de casinha, me responde imediatamente: Você não vê que isto não é boneca! É a minha filha, e estou cuidando dela. Quando eu casar, vou ajudar minha mulher a cuidar de casa porque ela também vai trabalhar para me ajudar a comprar as coisas. * * *

Onde trabalho há uma garota de 5 anos e 6 meses que não é nada feminina. Vou chamá-la de Renata. Em alguma brincadeira ou atividade em que são chamados os meninos, Renata vem e fica junto. Quando alguém fala “mas você não é menino”, ela fica brava e diz que não gosta de ser menina. Brinca só com meninos, e quando a brincadeira é de namorar, se refere à outra menina como namorada.

* * *

Wellington, 4 anos, quer sempre se fantasiar com as roupas femininas: noiva, bruxa, branca de neve, princesa... Já tentei oferecer-lhe fantasias do Super-Homem, Power Ranger, Homem-Aranha e príncipe. Ele até põe, mas não vê muita graça e logo troca novamente. Fico preocupada com o que os pais possam pensar. Será que deveria falar com eles?

Relatos de educadoras de Centros de Educação Infantil do Município de São Paulo.

As situações descritas retratam a preocupação real de quem trabalha e convive com crianças. Pais, familiares, babás, profissionais de saúde e educadores em geral deparam-se constantemente com esse tipo de situação. São situações frequentes, assim como a preocupação dos que estão com as crianças. Neste Capítulo, tentaremos abordar as duas perspectivas, ocupando-nos das crianças e daqueles que cuidam delas. Para tanto, vale um olhar não só para a homossexualidade, mas também para o próprio desenvolvimento infantil. Conhecer o cruzamento entre ambos é rever a pertinência de nossas intervenções e preocupações. Façamos, então, um rápido voo panorâmico sobre essas duas cartografias.

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7. Violência sexual infantil

Luiz, de 3 anos, disse a sua professora: “Meu pai mordeu o peitinho da minha irmã e depois fez xixi em cima dela”.

Como saber se o ocorrido é fantasia ou realidade?

Bel, de 2 anos e meio, entrou embaixo da mesa e começou a chupar o pipi de Ricardo de 3 anos.

Como saber se é brincadeira, imitação do que a criança vê passivamente ou se é repetição do que fizeram com ela?

O tema da violência sexual infantil desperta nos adultos, educadores e profissionais de saúde, que lidam com crianças pequenas, muitas dúvidas e angústias. É um tema intrigante.

Freud, no início de sua obra, entre 1895 e 1897, acreditava que suas pacientes histéricas haviam sofrido alguma experiência traumática durante a infância quando relatavam fantasias incestuosas com seus pais. Teriam sido vítimas de uma sedução sexual efetuada por um adulto? – ele se perguntava. Tal violência consistia em algo

que a paciente não era capaz de compreender e em uma intimidade sexual excessiva da qual não tinha nenhuma consciência. A criança, pensava ele, por ser tão imatura, não tinha como entender o ocorrido nem como se angustiar com algo tão brutal. A violência do trauma consistiria nesse excesso de afeto inconsciente.

A ideia de que a origem da histeria estava no abuso sexual infantil ficou conhecida como “teoria de sedução”. Mas, em seu processo de autoanálise, por meio das correspondências com Fliess (1897), Freud abandona aos poucos tal teoria. Sua famosa frase “Eu não acredito mais em minhas histéricas” amplia o campo da fantasia para a psicanálise. As revelações de suas pacientes poderiam ser produto de sua imaginação. Essa descoberta representou um marco fundamental na história da psicanálise, colocando a fantasia como a realidade psíquica a ser considerada.1

Já Ferenczi,2 psicanalista e discípulo de Freud, apresenta divergências com relação às ideias de Freud sobre o traumatismo. A avaliação clínica de seus pacientes reforçava sua hipótese de que experiências traumáticas reais haviam ocorrido em sua história e que não apenas fantasias de sedução e/ou violência poderiam estar na base de suas perturbações. Para Ferenczi, há três tempos do trauma: o primeiro, no momento em que a criança confia na estabilidade do objeto de amor; depois, quando ela se decepciona na convivência com esse objeto, seguida de ódio, revolta e medo; e, por último quando há a recusa e a negação da realidade (o “desmentido”) das experiências ocorridas com a criança, tanto da parte do adulto diretamente envolvido como daqueles que a rodeiam.

1 Laplanche, J., & Pontalis, J.-B. (1931). Vocabulário da psicanálise. 4 ed. Lisboa: Moraes Editores.

2 Ferenczi, S. (1992). Confusão de análise de crianças com adultos. In: Obras Completas Psicanálise IV, Cap. 9. São Paulo: Martins Fontes, pp. 97-106.

violência sexual infantil 124

8. A sexualidade em crianças com

deficiência

Até que ponto as manifestações da sexualidade podem ser consideradas normais nas crianças com necessidades educacionais especiais?

Difícil tarefa falar de deficiências, escolhendo o tom e a medida, tentando abarcar tantas e tantas desigualdades e preconceitos arraigados nas nossas entranhas. Difícil nomear o imperfeito, as feridas, aquilo que não é simétrico. Sair do manual de como educar, como responder, como “fingir” que não fere.

Há extensa bibliografia descrevendo uma variedade de subgrupos de excepcionais, bem como uma variedade de modelos teóricos utilizados em seu estudo e de áreas afetadas pelas incapacidades intelectuais, físicas, emocionais e sociais. Como tratar esse assunto? O que abordar? Como nomear?

Excepcional, deficiente, com deficiência ou com necessidades especiais? Parecia que o nome revelaria toda uma concepção, preconceituosa ou não. Lidar com o diferente é uma expressão recorrente, que também parece uma daquelas receitas para se falar de

tudo o que foge ao esperado, imaginado, como se fosse fácil fazer e viver a diferença.

Nascer já é difícil, em um campo cheio de expectativas... fazer-se singular é como nascer de novo, como nos lembra Carlos Drummond de Andrade, em seu poema Nascer de novo (ver em DICAS). Fica o convite para explorar esse território ainda tão desconhecido de sensações e informações que serão mescladas neste Capítulo.

Para nascer...

Cada ser humano vem ao mundo com necessidades e demandas, chega para ocupar um lugar, que, na melhor das hipóteses, fica no encontro entre o que precisa e o que o ambiente lhe oferece. Para nascer, o bebê real, aquele que é de fato, precisa ser imaginado e esperado pelos pais. Os casais constroem, para o bebê que chegará, um mundo cheio de expectativas, fruto de desejos e identificações. A mais comum dessas expectativas é de que nasça perfeito e com saúde.

À chegada dos bebês, as mães entram em um estado emocional especial para acolher e compreender as necessidades emocionais deles. Os primeiros cuidados devotados ao bebê despertam nele os primeiros sentimentos e emoções associados às sensações de prazer e desprazer. O bebê vive com a mãe a experiência de continuidade do seu ser, podendo criar o sentido do self, de sentir-se real, de ser.

À medida que a criança cresce, os pais contrapõem o bebê real, que ali está, com o bebê de suas fantasias e expectativas. E, inevitavelmente, várias frustrações virão à tona.

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9. Aids, crianças e as escolas

Kátia Rodrigues Antunes Solange de Souza Queiroz Matos

A pílula conceptiva, nos anos 1970, provocou uma revolução sexual. Ela permitiu que as mulheres e os homens pudessem exercer a sexualidade sem o “grilo” da gravidez não planejada.

Nos anos 1980, a aids criou outra revolução na nossa vida sexual. Ela nos colocou de frente com a necessidade de cuidarmos de nossa saúde sexual. Inaugurou o sexo pensante e com responsabilidade, isto é, obrigou todo mundo a parar para pensar bem na hora mais gostosa de um relacionamento afetivo.

A história da aids começou no início dos anos 1980, nos Estados Unidos, quando um elevado número de pessoas do sexo masculino apresentou um tipo de câncer de pele muito raro (sarcoma de Kaposi) ou uma grave pneumonia (por Pneumocystis carinii), e todas elas tinham em comum o comprometimento do sistema imunológico, levando à conclusão de que se tratava de uma nova doença, ainda não classificada, mas provavelmente de etiologia infecciosa e transmissível. Como muitas dessas pessoas eram homossexuais, acreditava-se que era uma doença que atingia

somente os gays. Gerou muito preconceito. Porém, novos casos foram surgindo entre os hemofílicos e usuários de drogas injetáveis. Isso deu origem à ideia de “grupos de risco”, centrada no biológico e no individual, tendo sido esse conceito superado atualmente pelo conceito de vulnerabilidade, que retira do plano apenas individual a questão da prevenção, incluindo as dimensões social, cultural e política que também são essenciais.

Em 1982, foi dado o nome de síndrome da imunodeficiência adquirida (já dicionarizada, no Brasil, como “aids”) a esse quadro. Em 1983, cientistas descobriram que a aids era causada por um vírus, denominado vírus da imunodeficiência humana (HIV). Quando uma pessoa vive com HIV, é “soropositiva”; apenas quando desenvolve a doença é que se diz que ela tem aids. As pessoas que não têm HIV são soronegativas.

Desde 1992 até os dias atuais, um grande aumento de casos por exposição heterossexual vem sendo observado, tornando-se cada vez mais expressivo o número de casos no sexo feminino.

A epidemia da aids traz consigo um longo histórico de mudanças, lutas, conquistas, trabalho e quebra de tabus, promovendo reflexões e trazendo à tona diferentes questões no âmbito da sexualidade, e atingindo as crianças que nascem de mães soropositivas.

Ainda nos dias de hoje, é um assunto que causa polêmica, suscita sentimentos contraditórios, preconceitos e discriminação. Temos uma tendência a considerar a epidemia da aids algo que só acomete os outros, que não é nossa realidade; e de não reconhecê-la como uma questão que envolve todos nós, cidadãos.

Neste Capítulo, procuramos refletir sobre a inclusão de crianças soropositivas na comunidade escolar, contribuindo para o seu desenvolvimento e o de ações educativas.

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10. O trabalho de sexualidade na escola e os pais

Uma educadora durante uma atividade sobre o corpo humano, explica aos seus alunos os nomes de várias partes do corpo, entre elas, os órgãos genitais dos homens e das mulheres. No dia seguinte, na hora da entrada, quando todos os pais entregavam suas crianças aos professores, uma das mães fala em voz alta: “Que história é essa de ficar falando em pênis e vagina para o meu filho?”. No silêncio tenso que se seguiu, a professora reuniu suas forças, e também em voz alta, para que todos ouvissem sua resposta, disse: “Estávamos trabalhando as partes do corpo e estes são os nomes das partes do corpo que todos nós temos”.

Felizmente, o preparo e a segurança dessa professora, ao justificar frente aos pais, em uma situação imprevista, o trabalho na área da sexualidade resultaram em avanço para essa escola. No entanto, o melhor é que os pais, de antemão, estejam informados sobre o fato

de que o projeto pedagógico da escola inclui a abordagem de temas relativos à sexualidade.

Durante o trabalho de orientação sexual, uma questão recorrente é o fato de que não é tarefa fácil trabalhar com os pais. Muitas vezes, o trabalho com as crianças fica impedido pelo temor, por parte dos educadores, à reação dos pais. Rapidamente, os pais tornam-se depositários de todos os “tabus” que acompanham o tema. Essa questão, muitas vezes, é projetada na tradição, na religião e no medo de romper as barreiras para se discutir esse tema.

Sem dúvida, esse é um tema a ser amplamente discutido; afinal, a escola é para os pais ou para as crianças? Como incluir esses pais, que, muitas vezes, não tiveram e não têm acesso à escola? Os pais, em geral, são referidos não pelo nome, mas por “pai” e “mãe” e, ao mesmo tempo que são chamados à responsabilidade pelas dificuldades que os filhos apresentam, delegam à escola todo o cuidado e toda a responsabilidade pelas crianças. Nas questões da sexualidade, qual o limite entre o que cabe à família e o que é tarefa da escola? O que esperam os pais: que, ao final do dia, suas crianças estejam limpas, penteadas, sem machucados ou que tenham aprendido e experimentado coisas novas? Em qual espaço deixam seus filhos e quais as suas expectativas? O que é possível oferecer às crianças e pais?

Distinguiremos, a seguir, o papel dos pais e da escola na formação da sexualidade infantil, enfatizando a importância da abordagem desse tema em ambos os espaços – em casa (na família) e na escola.

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11. Como ser multiplicador

Lucimar Medeiros Cabral França

Haveis de entender, começou ele, que a virtude e o saber têm duas existências paralelas, uma no sujeito que as possui, outra no espírito dos que ouvem ou contemplam. Se puserdes as mais sublimes virtudes e os mais profundos conhecimentos em um sujeito solitário, remoto de todo contato com outros homens, é como se eles não existissem.1

“Lá vêm as professoras de sexo!” — dizem e divertem-se as colegas de algumas educadoras que trabalham com orientação sexual na escola. A piada não é à toa: sem dúvida, as educadoras em questão estão se tornando “referências” no assunto dentro dos seus ambientes de ensino. Mas o que isso significa? Será que elas se tornaram de fato especialistas em sexo, capazes de responder quaisquer perguntas ou problemas relativos ao tema? Ou será, quem sabe,

1 Assis, M. (1997). O segredo do Bonzo, papéis avulsos. In: Obra completa de Machado de Assis (3 vol.). Afrânio Coutinho (org.). Rio de Janeiro: Nova Aguilar.

que estamos falando de pessoas com novas possibilidades de reflexão sobre situações ligadas à sexualidade?

Para respondermos a essas perguntas e para começarmos a pensar sobre esse tema, precisamos retomar o significado do trabalho de orientação sexual. Sim, obviamente, é verdade que quem participa de um processo de orientação sexual adquire uma série de informações relativas a sexo e sexualidade. São todos dados científicos de alto valor e extremamente importantes! Aprende-se, por exemplo, sobre as diferentes fases do desenvolvimento infantil, assunto imprescindível para quem trabalha com crianças. Estudam-se o corpo humano e a reprodução, os métodos contraceptivos, as fases da gestação, enfim, um apanhado de informações fundamentais para qualquer educador que esteja ligado ao assunto. Mas essas informações podem se tornar absolutamente irrelevantes se não pudermos desenvolver aquilo que é o objetivo principal do trabalho: a capacidade de refletir. Isso porque, em contraste com outros assuntos, falar de sexualidade nos remete inevitavelmente aos nossos crenças, tabus, preconceitos, emoções, valores a respeito de relacionamentos e comportamentos sexuais, temas que não trazem respostas prontas, concepções a respeito do ser humano e do mundo heterogêneas, opiniões múltiplas, assuntos delicados e muitas vezes polêmicos. Portanto, é somente por meio da criação de um espaço reflexivo que o trabalho pode acontecer. Um espaço que busca, antes de responder às dúvidas e questões, criar a possibilidade de se discutirem posições diferentes; de perguntar, questionar e de reconsiderar atitudes e posturas diante da sexualidade. Em outras palavras: para responder, é, antes, necessário poder perguntar, o que frequentemente já é muito difícil quando falamos de sexo e sexualidade (a orientação sexual não se propõe a transmitir valores corretos, mas, sim, debatê-los). De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais:

como ser multiplicador 188

12. Orientação sexual nos CEI: um

trabalho inédito na SME da cidade de SP

Maria Cecília Pereira da Silva

No início da década de 1990, o Grupo de Trabalho e Pesquisa em Orientação Sexual (GTPOS), a convite do saudoso professor Paulo Freire, Secretário Municipal de Educação no governo de Luíza Erundina, desenvolveu um projeto de orientação sexual nas Escolas Municipais de Ensino Fundamental (EMEF) e nas Escolas Municipais de Educação Infantil (EMEI) da prefeitura de São Paulo, financiado pela Fundação MacArthur. Marta Suplicy, na época membros do GTPOS, coordenou esse trabalho, que mais tarde foi publicado pela Editora Olho d’Água, sob o título Sexo se aprende na escola, em 1995.

Em 2003 e 2004, no governo de Marta Suplicy, com Maria Aparecida Perez na Secretaria de Educação, tendo Antonio Carlos Egypto como coordenador geral e técnico do GTPOS e Maria Cecília Carlini Macedo como Assessora técnica da Secretaria Municipal de Educação, o projeto de Orientação Sexual na Escola foi novamente implementado pelo GTPOS nas 31 subprefeituras da cidade, atingindo os CEI (Centro de Educação Infantil, as creches), as EMEI, as EMEF, as Escolas Municipais de Educação Especial

(EMEE), as Escolas Municipais de Ensino Fundamental e Médio (EMEFM) e os Centros Integrados de Educação de Jovens e Adultos (CIEJA). Esse projeto alcançou um total de 2.310 educadores, de 1.113 escolas e creches, chegando, portanto, a educadores que trabalhavam com alunos de 0 a 80 anos, nos anos de 2003 e 2004.

O projeto de orientação sexual nos CEI iniciou-se em agosto de 2003, a pedido das coordenadorias de educação e dos profissionais de CEI. Os CEI trabalham com crianças de 0 a 6 anos.

Foram realizados cursos iniciais de 16 horas, envolvendo 585 professores de desenvolvimento infantil, auxiliares de desenvolvimento infantil e coordenadores pedagógicos. Após o curso, seguiram-se as supervisões de 2 horas mensais em 2003 e quinzenais em 2004, contando com 361 educadores de 223 CEs.

Tivemos como objetivos: oferecer formação ao educador sobre o desenvolvimento sexual e emocional infantil, discutir e refletir sobre questões ligadas à sexualidade, incluindo posturas, crenças, tabus e preconceitos, sentimentos e questões sociopolítico-culturais associadas àqueles desenvolvimentos, sem a imposição de determinados valores sobre outros; e, ainda, possibilitar que o educador oferecesse à criança a oportunidade de ter sua curiosidade sexual adequadamente atendida, contribuindo, assim, para seu processo de aprendizado e para o desenvolvimento de todas as suas capacidades.

Como os diretores e coordenadores pedagógicos têm um relacionamento muito próximo com as crianças, mobilizamo-nos em proporcionar-lhes oficinas de sexualidade que os instrumentalizassem a lidarem adequadamente com as manifestações da sexualidade das crianças e oferecerem-lhes um respaldo institucional. No mês de novembro de 2003, realizamos oficinas de 8 horas, com 157 diretores e coordenadores pedagógicos de CEI e EMEI.

orientação sexual nos cei 198

13. Uma experiência de avaliação cooperativa

Receios e desconfianças sendo superados de forma paulatina, observa-se atualmente o crescente interesse na incorporação da avaliação como etapa do planejamento e da implementação de projetos sociais.

São órgãos públicos, organizações não governamentais e privadas que demonstram a valorização de sua atuação, procurando respostas para questões como:

• até que ponto conseguimos alcançar os objetivos e metas previstos pelo projeto?

• será que nossas ações geraram outros resultados não previstos inicialmente?

• utilizamos as melhores e mais adequadas estratégias, considerando-se nosso público-alvo e os objetivos que pretendíamos alcançar?

• em que aspectos falhamos e em quais fomos bem-sucedidos?

• vale a pena dar continuidade ao projeto?

Essas são algumas das questões que podem ser tratadas pela avaliação de projetos sociais e que orientam o foco ou focos que ela pode ter de forma a fornecer informações confiáveis aos promotores, executores e demais envolvidos em um projeto social.

Para alguns, pode parecer algo simples de ser feito: elabora-se um questionário com as questões mais importantes e aplica-se. Ou, então, basta conversar com alguns beneficiários, e fica-se sabendo se estão satisfeitos ou não.

Nada contra questionários, são importantes instrumentos de levantamento de informações. Para se utilizar esse recurso, no entanto, é necessário esclarecer antecipadamente: como será elaborado? Como será definido o que é importante que contemple? Como selecionar as questões mais relevantes? Que tipos de questões devem ser feitas? Quem responderá o questionário? Esse público tem capacidade para respondê-lo? Quando será aplicado? Essas respostas garantirão as informações que desejamos saber sobre o projeto?

Entrevista é outra técnica valiosa para avaliações, desde que planejada e elaborada criteriosamente: o que se pretende saber com a entrevista? Qual a melhor forma para levantar as informações que a entrevista busca – uma entrevista estruturada ou aberta? Os resultados das entrevistas deverão ser representativos daquele conjunto de beneficiários ou servirão para levantar indícios de algo que se pretende aprofundar posteriormente?

E, ainda, como serão tratados e organizados os dados levantados? Quem os analisará e como serão interpretados? Como serão apresentados?

Não parece tão simples. O que não significa, porém, que a avaliação seja exclusividade de especialistas externos ao projeto. A organização executora pode perfeitamente delegar essa função a membro ou equipe própria, que, respeitando os procedimentos

uma experiência de avaliação cooperativa 204

14. Reflexos do projeto: atividades realizadas pelos educadores nos Centros de Educação Infantil

Letícia de Jesus Mello Gonçalves Rosely Aparecida Pereira Mary Ann Norris Castanho Rondas

A proposta de desenvolver um projeto de orientação sexual com educadores dos Centros de Educação Infantil (CEI), da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, como já assinalado em outros Capítulos, teve como objetivo, além da sua formação e capacitação, para atenderem de forma adequada às demandas de curiosidade sexual infantil, a implementação de ações permanentes, envolvendo a comunidade escolar e familiar, integrando a temática da sexualidade no cotidiano do CEI.

Não são objetivos que possam ser alcançados em curto prazo, pois se trata de construir um processo paulatino, que envolve a reflexão sobre posturas e valores, a ampliação de conhecimentos, a valorização das capacidades de ouvir e observar, a cooperação e o respeito à diversidade de expressões da subjetividade humana.

Como etapa do processo de avaliação, foi realizado, entre abril e maio de 2004, um levantamento de atividades desenvolvidas pelos educadores em seu ambiente de trabalho. Essa etapa de avaliação tinha como objetivo verificar em que medida as ações propostas

pelo projeto estavam repercutindo, mais especificamente, junto aos educadores participantes dos CEI. A intenção era sistematizar as informações dos vários grupos de supervisão, enriquecidas com as avaliações provenientes de cada formador, obtidas ao longo do projeto, então com 9 meses de trabalho. A semelhança com o período de gestação de uma criança foi mera coincidência, mas oportuna.

Foi, então, solicitado a todos os educadores que registrassem por escrito uma atividade ou experiência, que considerassem positiva, desenvolvida no CEI em decorrência do projeto de orientação sexual. O relato poderia referir-se a atividades realizadas com as crianças, com colegas ou pais. A intenção não era obter uma medida quantitativa, pois o preenchimento não era obrigatório. Procurou-se, sim, conhecer o que mudara na prática desses educadores e do CEI, por intermédio de seus relatos e quais caminhos estavam sendo utilizados para integrar a orientação sexual na vida escolar.

Os resultados desse levantamento são apresentados neste Capítulo. Foram agrupadas segundo o objeto da atividade: a forma como os educadores estão trabalhando a orientação sexual com as crianças; a forma como estão multiplicando os conhecimentos e orientando os demais colegas e outros profissionais dos CEI; e, finalmente, a forma como explicam orientação sexual aos pais. Foram selecionados alguns relatos que representam e exemplificam o trabalho dos educadores.

O trabalho com as crianças

Os relatos das educadoras demonstraram que, ao contrário do que ocorria ao iniciarem o curso, elas começaram a observar e analisar o comportamento das crianças e a dar respostas às demandas e à curiosidade sexual destas.

reflexos do projeto 230

15. Relato de duas experiências de supervisão

Dinâmica com a família de pano, realizada por Rosely Aparecida Pereira

Esta atividade1 foi realizada na supervisão com um grupo de educadoras da Coordenadoria da Casa Verde, Freguesia do Ó, Lapa, Brasilândia e Sé, na cidade de São Paulo.

O grupo de educadoras, que, na maioria, trabalha com crianças na faixa etária de 2 a 5 anos, estava interessado em trabalhar o tema “família”, pois desenvolveriam o tema “identidade” dentro de seu planejamento pedagógico. Também já haviam trazido observações de que, nessa faixa etária, as crianças têm curiosidade sobre sua origem e gostariam de usar o material da família de pano para desenvolverem tal tema. Portanto, pretendiam trabalhar com a orientação sexual no contexto pedagógico, fazendo uma intervenção educativa e preventiva.

1 Dinâmica elaborada por Francisca Vieitas Vergueiro com educadoras da Coordenadoria de Pirituba.

Pedi, então, que todas levassem as famílias de pano que estavam em seus CEI (a família branca e a negra e os bonecos grandes), e eu levaria textos de apoio para discussão.

Logo no início da supervisão, fizemos uma roda, no centro da qual coloquei algumas mesas, e ficamos todas em volta delas. Pedi que colocassem seus bonecos misturados no centro das mesas.

Em seguida, solicitei que cada uma dissesse o seu próprio nome e contasse uma história que soubesse a respeito dele ou de como foi sua escolha. Ouvimos vários tipos de histórias: alegres, tristes, engraçadas; algumas não foram lembradas, e outras eram ignoradas. Uma conta que o nome homenageava a avó; outra, que era o nome de alguém famoso na época; outra veio a saber que tinha o nome da ex-namorada do pai; outra, que carregava o nome de uma santa; outra, o de uma tia que morreu; outra ainda continha no nome a mesma inicial de todos os outros irmãos, e tantas outras histórias interessantes, intrigantes, curiosas surgiram.

Distribuí várias folhas de sulfite sobre a mesa. Pedi que formassem famílias das mais variadas composições que conhecessem, deixando cada família sobre uma folha de sulfite. Estávamos em 7 participantes, e formaram-se 12 tipos de famílias: mãe, pai, filhos; mãe com filhos de dois casamentos; homossexual com filhos; avó, tios, mãe, filho; pai com filhos; mãe com filha etc.

Verifiquei se todas as educadoras presentes estavam com suas famílias ali representadas. Se não estivessem, deveriam colocar.

Pedi que observassem e falassem sobre o que achavam que caracterizava uma família. Fui questionando o conceito de família, o “ideal” que temos em nossa mente, e apontei que, atualmente, há uma grande diversidade de constituições familiares, como podíamos ver ali representado.

relato de duas experiências de supervisão 254

Quanto a nossa vivência com as crianças não nos ensinou? Com certeza muito, porque é na relação professor-aluno que se amplia nosso conhecimento e, assim como acontece com as crianças, desperta nossa curiosidade. Sempre é bom revisitar textos e experiências vividas para continuar aprendendo. Como diz a música, navegar é preciso, viver não é preciso. Ao reler os relatos que compõem Sexualidade começa na infância, os quais são baseados na experiência de formação de educadores na área da sexualidade, pude confirmar a importância do trabalho realizado, a riqueza da vivência, a valorização do conhecimento contextualizado na prática cotidiana e o quanto aprendemos conjuntamente, capacitadores e capacitados.

Maria Aparecida Perez Secretária da Educação do Município de São Paulo – 2003-2004

PSICANÁLISE & EDUCAÇÃO

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