Políticas do cotidiano

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POLÍTICAS DO COTIDIANO

Ezio Manzini

POLÍTICAS DO COTIDIANO Ezio Manzini

Tradução

Gabriel Patrocinio

Título original: Politics of the Everyday

Políticas do cotidiano

Todos os direitos reservados. Tradução autorizada da edição de língua inglesa publicada pela editora Bloomsbury Publishing

© 2021 Ezio Manzini

© 2019 Bloomsbury Publishing

© 2023 Editora Edgard Blucher Ltda.

Publisher Edgard Blücher

Editores Eduardo Blücher e Jonatas Eliakim

Coordenação editorial Andressa Lira

Produção editorial Lidiane Pedroso Gonçalves

Preparação de texto Vânia Cavalcanti

Diagramação Negrito Produção Editorial

Revisão de texto Helena Miranda

Capa Laércio Flenic

Imagem da capa iStockphoto

Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br

Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 6. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, julho de 2021.

É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora.

Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Manzini, Ezio Políticas do cotidiano / Ezio Manzini ; tradução de Gabriel Patrocinio. – São Paulo : Blucher, 2023. 132 p.

Bibliografia

ISBN 978-65-5506-711-8

Título original: Politics of the Everyday 1. Design. 2. Sociedade. 3. Inovação social. 4. Espaço (Arquitetura). 5. Desenvolvimento sustentável. I. Título. II. Patrocinio, Gabriel.

23-1889

CDD 745.4

Índice para catálogo sistemático: 1. Design

CONTEÚDO Prólogo à primeira edição em português por Gabriel Patrocínio 7 Prefácio 11 1. Comunidades leves: formas sociais num mundo fluido 13 2. Projetos de vida: autonomia e colaboração 45 3. Políticas da vida cotidiana: design ativismo e normalidade transformadora 77 4. Democracia centrada no projeto: ecossistemas de ideias e projetos 103 Posfácio: Um outro livro. Especialistas em design e a capacidade de design difuso 131

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COMUNIDADES LEVES: FORMAS SOCIAIS NUM MUNDO FLUIDO

Perto da aldeia onde vivo, há uma árvore milenar – uma azinheira (quercus ilex) – numa sedutora clareira entre vinhedos e bosques. Numa noite de verão, perto do pôr do sol, um grupo heterogêneo de pessoas rodeia a árvore sob seus enormes galhos arqueados, que chegam quase até o chão, criando uma magnífica câmara frondosa. Ao centro, junto ao seu tronco, encontra-se um grupo de atores a recitar trechos da Odisseia, acompanhados por três músicos que tocam música contemporânea. Mais tarde, haverá vinho e comida. O sol está se pondo. Um momento de felicidade compartilhada. Ainda assim…

Apesar disso, sabemos que, em outros lugares, naquele exato momento, há pessoas em fuga enquanto outras são baleadas por franco-atiradores, e outras estão morrendo de fome. Para outros, não há árvores ao redor da qual se reunir. Outros, muitos outros, não estão em condições tão dramáticas, mas ainda assim não têm possibilidade de viver um momento como este – porque não têm essa árvore ou são incapazes de reconhecê-la. Por que é então que aqui tudo isso (ainda) existe?

O que eu gostaria de dizer é sobre como esses momentos especiais acontecem: momentos em que todos estão felizes apenas porque sentem que todos ao seu redor estão felizes também, felizes consigo mesmos e felizes com o mundo. Parece-me que essa condição de felicidade compar-

tilhada não significa indiferença ou desconhecimento da vida dos menos afortunados. Não anula o horror à indiferença, ao egoísmo e à violência que proliferam no mundo. Em vez disso, com sua existência simples e delicada, indica que as coisas também podem ser diferentes do que muitas vezes se insinua – diferente da visão de que a felicidade é o resultado do sucesso competitivo e dos benefícios que podem derivar dele. Aquele círculo de pessoas ao redor de uma árvore, ouvindo palavras e música e comendo juntos, diz que outro cenário é possível, e isso pode apontar uma direção para a ação. Estou exagerando? Estou dando muita responsabilidade a um grupo de pessoas ao redor de uma árvore? Talvez eu esteja, mas acredito que devemos ser capazes de reconhecer aí uma semente de uma nova civilização e uma imagem de um futuro possível, que podemos ver emergir em lugares e momentos como este. Então, levando esse exemplo adiante, quem são essas pessoas? Por que elas estão lá? Como elas chegaram a estar lá? As pessoas ao redor da azinheira são um pedaço variado do mundo: algumas vivem na região há gerações, outras escolheram morar lá e ainda outras representam os novos nômades – turistas ou migrantes, conforme o caso. Cada uma delas tem uma rede de relações que inclui alguns dos presentes, mas sobretudo as conecta com outras pessoas, locais ou não, espalhadas pelo mundo físico e digital. Neste momento e neste lugar, essas diferentes redes vão se entrelaçando produzindo um tecido mais denso de pessoas, lugares e coisas. Eles expressam e produzem uma comunidade: uma nova forma contemporânea de comunidade que, diferentemente das comunidades do passado, não lhes foi transmitida. Essa é uma comunidade que existe por escolha, que foi projetada e construída consciente ou inconscientemente.

Quando falo de comunidade, neste livro, estou me referindo a este tipo de comunidade: comunidades voluntárias, leves, abertas, nas quais a individualidade de cada membro é equilibrada com o desejo de fazer algo juntos; comunidades fluidas, sem as quais há apenas a solidão da individualidade conectada ou uma tentativa reacionária de reproduzir as comunidades identitárias fechadas do passado, que, mesmo supondo que já tenham sido tão atraentes, certamente faziam parte de um passado que não pode retornar.

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PROJETOS DE VIDA: AUTONOMIA E COLABORAÇÃO

É noite e estou em casa. No noticiário da televisão, vejo as pessoas chegando do mar com uma luz de esperança nos olhos – esperança de uma nova vida. Vem-me à mente uma história que conheço bem, e que já me contaram muitas vezes em casa. A minha é de uma família de refugiados da Ístria. Em 1945, meus pais tiveram de deixar sua casa em Pola e pegar um barco pelo mar para outro lugar, onde esperavam que a vida fosse melhor. Eles foram forçados a ir, mas para isso precisaram ter uma ideia e encontrar os meios para torná-la realidade. Em suma, eles tiveram de decidir sobre um projeto: um grande projeto de vida que colocasse tudo o que veio depois em um rumo diferente. Por isso, quando observo aquelas pessoas que descem dos navios que as recolheram, não posso deixar de pensar que cada uma delas está ali porque, movidas pela necessidade, como meus pais, imaginaram um projeto e o colocaram em movimento: seu projeto de vida.

É claro que nem todo mundo que é levado a se mudar em decorrência da situação hostil em seu lugar de origem o faz com um projeto. As pessoas que fogem da guerra e da fome que seguem um fluxo e acabam em um campo de refugiados não tiveram escolha. Outras pessoas e eventos decidiram por elas. A decisão delas é, efetivamente, uma deportação: uma mudança de contexto de vida inteiramente dirigida por outros. No

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entanto, não é o mesmo para as pessoas que organizam suas próprias viagens pela África e pelo mar para chegar à Europa. Assim como aconteceu com meus pais, elas têm uma visão e reuniram os meios para alcançá-la ou, pelo menos, tentaram fazê-lo.

Há várias razões para começar com este olhar empático sobre os migrantes para enquadrar uma discussão a respeito de projetos de vida. A primeira é que não posso dizer ou escrever nada hoje em dia sem fazer referência ao assunto que, para mim, é um claro indicador das catástrofes em curso e da nossa incapacidade atual de lidar com elas. A segunda diz respeito inteiramente ao conteúdo deste livro. Para mim, essas duas imagens contrastantes de desenraizamento – migrantes que projetam, ou tentam projetar, suas novas condições de vida e deportados que suportam o que lhes é imposto – parecem emblemáticas de um estado existencial mais geral: um desenraizamento geral, produzido não apenas pelas pessoas em movimento, mas também pelas crises de lugares, comunidades e antigos modos de ser e de pensar. Daí surge a necessidade de projetar a própria vida de forma autônoma para evitar a deportação para os campos de concentração e controle do século XXI, que vão desde os campos de refugiados (com os quais o mundo está tragicamente se enchendo) até as degradadas fronteiras urbanas, residências protegidas e bolhas de informação para as quais somos levados.1

1 Em minha experiência, a necessidade de repensar a questão migrante – não apenas para lidar com os problemas urgentes que estão surgindo, mas também para desencadear um repensar mais amplo sobre as condições de todos os habitantes das metrópoles contemporâneas – surgiu no âmbito do Reframing Migration, um programa de atividades que se realizaram em Londres em 2015-2016, promovidas pelo DESIS UAL Lab e SILK Social Innovation Lab Kent. Alguns dos resultados podem ser encontrados em Barrett, E. & Cipolla, C. (2016). Reframing migration DESIS Network. (http://www.desisnetwork.org/wp-content/uploads/2016/10/ Reframing-Migration-REPORT_2016.pdf).

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POLÍTICAS DA VIDA COTIDIANA: DESIGN ATIVISMO E NORMALIDADE TRANSFORMADORA

Quando viemos morar aqui, há mais de 20 anos, frutas e vegetais locais eram uma raridade. A menos que houvesse um idoso na família que ainda mantivesse uma horta, as frutas e legumes disponíveis vinham sabe-se lá de onde, assim como na cidade. No entanto, estávamos no campo, numa zona com grande tradição agrícola. Em anos anteriores, com raras e preciosas exceções, uma ideia de produção e consumo de alimentos, que perdera toda a conexão com o lugar e com o ciclo natural das estações do ano, havia permeado esta área agrícola.

Vinte anos depois, no mesmo local, já não é tão difícil encontrar fruta e legumes locais: o Mercado Coberto dos Agricultores1 está aberto todos os dias, abastecido e gerido pelos agricultores locais (incluindo 70 empresas agrícolas e pequenos produtores agroalimentares). A qualidade é boa e o preço é justo. O acesso é simples: produzir, vender e comprar esses produtos tornou-se bastante normal.

Parece-me que essa normalidade tem um grande valor político, se por esse adjetivo designarmos algo que incide na política: a forma dos sistemas sociotécnicos e o equilíbrio de poder dentro deles. Comprar e

1 Il Mercato Coperto degli Agricoltori, Montevarchi (AR) (https://www.facebook. com/ilmercatalemontevarchi/).

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vender nesse mercado significa manter ativa, no dia a dia, uma forma de produzir e consumir que se contrapõe à predominante: uma maneira colaborativa de fazer as coisas que expressa alto grau de autonomia (no sentido dado no capítulo Projetos de vida: autonomia e colaboração). Também denota uma forma de conceber a relação entre produção e consumo de alimentos, e entre área local e comunidade, que traz de volta uma ideia de localidade aparentemente há muito esquecida – que se choca com a lógica dominante da agricultura industrial de grande escala, para um mercado de massa. Hoje em dia, o embate entre formas de pensar e fazer já não parece tão evidente nesse espaço local, pois, como já referido, esse modelo localizado está satisfatoriamente consolidado. No entanto, é uma normalidade que está colaborando para uma mudança de sistema: uma normalidade transformadora, cuja existência modifica, ainda que em maior escala, o equilíbrio existente (em termos econômicos e em termos de poder e conhecimento).

A normalidade transformadora que vemos hoje é resultado de uma história de ativismo social e cultural. Os eventos que levaram o mercado dos agricultores à sua forma atual começaram há mais de 10 anos, por iniciativa dos agricultores locais (as preciosas exceções de que falava), em colaboração com o Slow Food e a Câmara Municipal de Montevarchi. Graças ao seu ativismo, foi possível abrir o primeiro protótipo de um mercado de agricultores. Ocorria um domingo por mês e, além de feira, era também uma festa e um evento cultural. Foi também uma forte declaração política a favor de modelos de produção e consumo opostos aos que então vigoravam, feita pelos promotores da iniciativa e por quem dela participou de várias outras formas. Foi essa atividade militante que catalisou interesses latentes e, no que diz respeito à alimentação, deu visibilidade a uma forma diferente de pensar e fazer as coisas. No plano prático, essa série de mercados-eventos criou os primeiros contatos diretos entre produtores locais e compradores (na época ainda potenciais) e começou a criar as formas iniciais de oferta e demanda. Sem esse passado de ativismo e criatividade, a atual realidade transformadora não teria sido possível.

Continuando a história, veremos que, para chegar ao Mercado Coberto dos Agricultores como ele existe hoje, foi necessário realizar uma delicada passagem: da fase inicial, heroica – quando um grupo de entu-

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DEMOCRACIA CENTRADA NO

PROJETO: ECOSSISTEMAS DE IDEIAS E PROJETOS

Há sempre alguém no bar da praça central de Ambra, a aldeia mais próxima de onde moro, e sempre há discussões. Falamos sobre nós mesmos, sobre outras pessoas, sobre o mundo. Sobre futebol, obviamente, e sobre política, embora menos do que antigamente. A praça é também o local onde se cruzam várias redes sociais e por aqui passa tudo o que acontece na aldeia.

A praça de Ambra, em si, não tem nada de particular que a distinga do que foram tradicionalmente muitas outras praças da Itália. O que a torna especial à sua maneira é que lugares como esse estão se tornando cada vez mais raros. Obviamente, Ambra não está fora do mundo e, portanto, como dizem os mais velhos, não é o que costumava ser: a tendência predominante ao individualismo também está em ação aqui. No entanto, aqui parece possível uma ponte entre as comunidades do passado e aquelas que podem ser as comunidades do futuro. Se olharmos com mais atenção para o que acontece no bar e na praça de Ambra, veremos que as pessoas que ali se encontram também fazem parte de várias comunidades associadas ao seu trabalho, interesses, idade e origem (os moradores originários, aqueles por opção, imigrantes de várias etnias e turistas). Cada um desses grupos tem vida e autonomia próprias, mas aqui em Ambra eles também conseguem se encontrar e produzir a comunidade de pessoas

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que se sentem “parte do lugar”. Esta é uma comunidade que tem conexão com a do passado, mas já não é o que costumava ser: é uma comunidade aberta, flexível, contemporânea e que tem ligação com o lugar. É uma comunidade de lugar com fronteiras permeáveis e modificáveis.

Já escrevi sobre essas formas de comunidade, de como elas existem não como um dado natural, mas como um efeito colateral de projetos entrelaçados. Aqui, gostaria de acrescentar que, pelas mesmas razões, essa praça é também uma componente fundamental de uma forma de compreender a democracia e de a pôr em prática. Mas de que democracia estamos falando?

Em Ambra, obviamente votamos (embora com entusiasmo cada vez menor). No entanto, também está claro aqui que a democracia não é apenas votar. A democracia é também a possibilidade de discussão e ação coletiva. Por ser um vilarejo tão pequeno, Ambra oferece ampla oportunidade para isso: há a Filarmônica, que administra o cineteatro, a banda, as aulas de música e canto para as escolas; o Pro Loco (na Itália, uma associação local de voluntários que busca promover e desenvolver um lugar) organiza inúmeras atividades de entretenimento; a Misericórdia (na Itália, uma confraria de voluntários que oferece serviços de ambulância e assistência a doentes e idosos); e a Associação Desportiva. Ambra também compartilha muitas outras associações com aldeias vizinhas, e estas dizem respeito a jovens, arte, turismo, agricultura e meio ambiente. Existem também a igreja paroquial e o que resta dos partidos políticos. Dizer que há muitas possibilidades de discussão e ações coletivas em Ambra não significa, obviamente, que todos participem delas. Cada associação tem o seu grupo de militantes aos quais se juntam outros de diversas formas, desempenhando vários papéis. No entanto, mesmo em conjunto, eles não representam a todos. Assim, não podem ser vistos como expressão da democracia representativa. No entanto, além de produzir resultados tangíveis em várias questões, essa riqueza de associações ajuda a democracia. Ao desencadear conversas, produz os bens comuns que constituem a pré-condição para a democracia: linguagem e discurso; a capacidade de ouvir e comparar ideias. E alimentam a dimensão formal e representativa da discussão democrática com projetos e ideias, mantendo-a em constante diálogo com o que é proposto por essa ma-

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Neste oportuno livro, Ezio Manzini nos brinda com uma instigante reflexão sobre a complexidade contemporânea, que deixa a precisão e a solidez do passado, tornando-se o modelo impreciso e fluido do presente. Segundo o autor, foi o próprio modelo passado quem nos conduziu ao desastre socioambiental que hoje vivemos. Em contrapartida, vislumbra as possibilidades de construções de ambientes favoráveis por meio das inovações sociais.

O livro advoga por uma inovação social transformadora, dando passos em direção à sustentabilidade socio-econômico-ambiental. Propõe uma mudança sistêmica com o auxílio de novas comunidades locais, ao buscar soluções por meio de novas perspectivas, estilo e modos de vida, apresentando uma nova forma de democracia ou, como diz o próprio autor, uma democracia centrada em projetos nos quais a vertente social do design vem elevada à condição política e de cidadania. Espaços esses em que diferentes atores sociais participam desde o início do projeto, tornando-os protagonistas do ecossistema e não apenas fruidores das ações empreendidas.

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