Encontros e desencontros 15

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Klaus Maertens

Encontros E SĂŁo Paulo 2016

desencontros



Copyright © 2016 by Editora Baraúna SE Ltda

Capa

Felippe Scagion

Diagramação

Emília Adamo

Revisão

Alessandra Angelo Primavera

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ ________________________________________________________________ M16e Maertens, Klaus Encontros e desencontros / Klaus Maertens. - 1. ed. - São Paulo : Baraúna, 2016. ISBN 978-85-437-0671-9 1. Romance alemão. I. Título. 16-36336

CDD: 833 CDU: 821.112.2-3

________________________________________________________________ 19/09/2016 22/09/2016 Impresso no Brasil Printed in Brazil

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Vidas e milagres nordestinos 31 de outubro de 1954, quase meia-noite, nasceu um menino em Pedra Seca, Maranhão, sertão feio e tão longe de São Luís que o povo nem sabia que São Luís existia e em São Luís nem se conhecia a tal de Pedra Seca. O pai, Raimundo Nonato de Souza, a mãe Francisca Maria de Jesus, e a parteira Jesuína da Silva Pedroso ficaram muito felizes pelo primeiro rebento do casal. Apesar das dores do parto e da sangueira na cama, todos festejaram com muito fervor e alguma pinga, que estava reservada para esta ocasião. No outro dia mataram um dos poucos cabritos que tinham criado e chamaram a vizinhança para festejar. Gente pobre do sertão é assim: mesmo sabendo a dificuldade que passam para criar qualquer filho, pois muitas vezes não tem comida nem para si mesmo, sempre festejam com muito gosto uma nova criança porque parece que sabem no seu íntimo que esta traz para eles uma coisa que já não tem mais: inocência e alegria. Foi assim quando Francisco, Raimundo e Jesuína e agora também José Francisco, nasceram e será para sempre assim no sertão do Maranhão, do Nordeste, do Brasil e do mundo, pois a criança representa sempre uma esperança nova de tudo que há ainda de bom neste mundo. 5


Ninguém sabe como, mas com toda a fome que Francisca passava, leite de peito para amamentar o seu neném ela tinha. E não era pouco, dava para o menino e ainda sobrava. Deus e a natureza escreveram mais uma vez por linhas tortas uma história de amor e perfeição que só eles sabem escrever, e sem a ajuda de ninguém. E este menino cresceu forte e esperto junto a um cachorro magro e vários cabritos comedores de tudo que era imaginável, e também o inimaginável, como fralda suja do José Francisco que estava no arame e outras coisas mais. Como a alegria com o menino era muito grande é claro que Francisca e Raimundo celebraram esta alegria por muitas vezes à noite depois que a criança adormecia no balaio pendurado no barraco de adobe. O balaio o ajudava a dormir, pois o ventinho que entrava pelas gretas do casebre aproveitava e sempre dava uma balançadinha de forma a ninar o menino. Era a própria natureza ajudando a completar o que fez. Mas, parecendo um milagre ou talvez uma destas coincidências que ninguém explica, nem quer explicar, no dia 31 de outubro de 1955 tiveram que chamar a parteira Jesuína às pressas. E chegou o José Raimundo, complementando a continuidade da família Souza, para Raimundo e Francisca tinha agora um José Francisco e um José Raimundo. É claro que este José antes do nome era o nome do avô. José Raimundo não nasceu tão forte nem tão esperto como o José Francisco e ainda teve que dividir o leitinho do peito da mãe com o irmão mais velho, pois José Francisco não parava de mamar de jeito nenhum. Quando via 6


ele assim o pai pensava: “Até parece estes vereadores aí em Pedra Seca que não param de mamar!”. Mas apesar de não terem como colocar mais água no feijão, pois não tinham nem um nem outro, eles, com muito esforço, conseguiam botar “areia na farinha” de forma a conseguir alimentar todos de forma a crescerem com saúde, apesar de muitos bichos de pé, alguns vermes e algumas feridas que teimavam em não sarar muito facilmente. Mas nada que não fosse comum neste lugar e em muitos outros no Brasil. E foram crescendo entre cabras, bodes, caatinga, cachorros parecendo esqueletos ambulantes, pedras, areia, galinhas que ninguém sabia como tinham força para botar ovo, brincadeiras com pedaços de pau e cocô de cabrito, um sol incansável e sem dó e mandacaru como salvação da pátria quando não tinha mais nada. Às vezes se achava algum lagarto maior e era uma festa, mas as oportunidades para festas eram poucas. Com tudo isso, contrariando toda a lógica universal, eles cresceram felizes, principalmente porque para eles felicidade era uma coisa fácil, não custava dinheiro e estava sempre lá quando a chamavam e quando precisavam dela. E era pura e inocente como não se conhece em cidades longe dali, pois não dependia de nada, só da vontade de ser feliz. Depois dos seus 6 e 7 anos eles tiveram de ir para a escola, que ficava longe da casa deles, mas nem a caminhada de mais de uma hora tirava a vontade dos meninos de irem à escola. Ainda tinha que para eles o melhor era a caminhada da ida e da volta porque ali encontravam colegas e amigos ao longo do caminho e todos iam brincando e 7


conversando. E nem a fome e sede na hora da volta amainava a vontade deste encontro entre a meninada. Todo dia tinham algum assunto novo ou alguma brincadeira que algum menino aprendeu com um primo ou coisa e tal. É quase que incompreensível como uma semente de alguma árvore ou uma simples pedra tinha o poder mágico de trazer alegria e aprendizado para esta turma. Na escola o José Francisco até aprendia mais ou menos as coisas que a tal de “Fessôra” tentava, muitas vezes em vão, explicar para os meninos, mas o José Raimundo tinha lá suas dificuldades. Também pudera, quantos números para aprender e depois ainda as tais das letras e pior, juntar elas para escrever palavras. Êta vida dura, o bom mesmo eram as brincadeiras na ida e na volta da escola. Raimundo Nonato, como bom pai, se preocupava como que poderia ser feito para que seus dois filhos tivessem uma vida futura pelo menos razoável, uma vez que a sua terrinha não daria para sustentar mais dois adultos e possivelmente mais duas famílias. Sendo assim começou a juntar algum dinheirinho para que quando fosse possível, ele poder mandar seus meninos para que possam fazer a vida longe deste seu sertão tão seco que muitos só conheciam chuva por ouvir os mais velhos contar histórias de águas caindo do céu e enchendo rios e açudes. Mas nos últimos anos só havia sol e vento que, por capricho de Deus ou da natureza, ainda levavam as poucas nuvens que havia, para longe. E assim continuava a vida neste sertão sem mudanças e sem surpresas apesar de que às vezes, na missa na cidade, aonde eles todos iam uma vez por mês, porque era longe 8


e a roupa de ir à missa nem sempre estava limpa, pois o pó deste sertão deixava marcas, não só nas pessoas, mas também, na roupa. Lá eles ouviam alguma conversa sobre uma tal de revolução, uma tal de ditadura, comunistas e terroristas, mas como isto era conversa lá da capital ou ainda de mais longe, não lhes interessava. Principalmente porque isto absolutamente não lhes dizia respeito. A única coisa de fora que lhes interessava alguma coisa era quando o coronel Pedro Siqueira, prefeito de Pedra Seca e dono da maior fazenda da região, lhes entregava um saco de um tal de leite em pó que ele dizia ter vindo lá do estrangeiro e que era um presente dos seus amigos deputados da capital. O coronel lhes dizia que era só misturar com água, mas como fazer isto se eles não tinham água!? E que diabo de vacas seriam estas lá do estrangeiro que davam leite em pó? E como deveria ser difícil de tirar este leite das vacas. Vai ver que na hora de tirar leite deveria tudo em volta ficar que nem a estrada do sertão quando passava um caminhão do coronel, levantando pó para todo lado. Ou então como quando passava aquele redemoinho que saía vagando pelo sertão sem rumo e levantando tudo é que era pó e folhas do chão e mandando para dentro dos casebres. É claro que eles preferiam leite de vaca ou de cabra, líquido e quentinho, mas como era um presente, eles não podiam fazer desfeita. Desfeita não se fazia com o coronel Pedro Siqueira, não só porque ele era coronel e prefeito, mas principalmente porque desfeita não se faz com homem de respeito. E também porque um ou outro contava que o coronel Pedro já andou castigando algumas pessoas que tinham feito desfeita com ele. Não se sabia o 9


quê, mas a conversa em miúdos era bastante significativa e não animava ninguém de enveredar por este caminho. A fazenda do coronel Pedro era imensa e era onde se plantava cana tirando água do fundo da terra. E onde se fazia cachaça e rapadura. E onde muitas vezes havia um trabalhinho para fazer e algum dinheirinho para ganhar. E, além disso, ele lhes vendia as rapaduras e a cachaça a um preço bom, descontado direto do que ganhavam lá trabalhando. Rapadura e cachaça, pelo alimento e pela diversão, eram extremamente importantes, pois eram os alimentos do corpo e da alma que existiam na região. E assim todos gostavam, não só pelo alimento e pela diversão, mas também porque eram tradições deles, do povo nordestino, do povo de Pedra Seca. E assim foi seguindo a vida dos Josés, Francisco e Raimundo, no sertão de Pedra Seca. Sertão do Nordeste. Sertão do Brasil em revolução, do Brasil da ditadura, mas que não era o Brasil do sertão, pois o Brasil não chegava ao sertão, o Brasil não chegava a Pedra Seca, e não o conhecia, nem o queria conhecer. Era muito feio, era o filho feio cheio de filhos feios, que tinham que ir para o sul para que fossem considerados gente, ou pelo menos considerados ou percebidos. E os Josés faziam parte destas pessoas esquecidas por todos, menos por eles mesmos. E assim eles eram fortes sem saber. E chegou a hora de seu Raimundo levar seus filhos já crescidos para conhecer uma das maravilhas deste mundo: mulher. Mas como o pessoal que tinha sido contratado pelo coronel Pedro para dirigir as máquinas de plantar cana tinha vindo da cidade grande e tinha algum dinheiro com eles, eles inflacionaram a turma da 10


luz vermelha lá da Tonha. Assim o seu Raimundo não tinha como financiar o desencanto dos seus meninos, e fiado elas não faziam. Tinha ainda que seu Raimundo estava juntando há muito tempo um dinheirinho para que seus meninos pudessem ir a São Luís ou coisa parecida para estudarem e vencerem na vida fora do sertão. E este dinheiro ele não podia usar, mesmo para uma causa tão nobre, pois imagine só se eles, não sendo iniciados na vida amorosa, ficavam igual ao ajudante do padre de Pedra Seca que gostava mesmo era do padre e que tinha cada jeito esquisito de falar, andar e até de se vestir. E para que Deus proteja seus meninos contra estas coisas e desse um caminho natural a eles o jeito então foi apelar para a velha arma do sertão: a cabrita. E assim, com umas duas a três aulas com o pai e a cabritinha o assunto estava resolvido. No ano de 1970 chegou a notícia de que o coronel Pedro comprou uma tal de televisão, que era uma janela grande onde se viam pessoas e coisas de longe. E melhor do que isto: o coronel convidou todos da cidade para ver esta maravilha na praça central que tinha o nome de João Benedito em homenagem ao seu pai. E era para ver uma disputa de futebol entre times do mundo todo, uma tal de copa do mundo. E nesta copa o coronel dizia que tinha um time do Brasil que era muito bom e tinha jogadores geniais como Pelé, Tostão, Gerson, um bigodudo valente chamado Rivelino. Meu Deus isto lá era nome de homem que se preza!? E nesta tarde de domingo, na praça João Benedito, eles conheceram pela primeira vez, tanto a caixona de vidro na qual apareciam um monte de pessoas e coisas como também 11


um time de futebol com uns nomes esquisitos. Mas que parecia ser muito bom porque ganhava as disputas que participava. E tudo isto vinha de um país chamado de “Mechicú”. Poxa não tinha um nome melhor para colocar num lugar? Será que eles mexiam com isso mesmo? No sertão a gente conhecia mulheres que mexiam com as ancas, rebolavam até a bunda, mas mexer com isso aí era difícil de entender! Mas o que mais interessou José Francisco e José Raimundo não foi nada disso, foram imagens de uma cidade que era chamada de cidade maravilhosa e que tinha o nome de Rio de Janeiro. Só de ter um nome com RIO já era bastante para todo sertanejo achar interessante. Mas o que eles viam na tal de televisão era não um rio, mas tanta água que parecia que este rio iria engolir a cidade. E que casas altas eram aquelas, parecia uma empilhada sobre outra, mas tudo certinho e cheio de gente. E em suas mentes ficou claro neste instante: é este o lugar que queremos ir e viver. É muito mais bonito que o nosso sertão, e deverá ser muito bom viver ali. Estava impregnado neles o seu destino, o destino das suas vidas, a vontade incontrolável de viver longe dali, numa terra linda e diferente de tudo que já viram. Era a aventura de suas vidas se apresentando em plena Praça João Benedito, Pedra Seca, sertão nordestino, Brasil. Chegando em casa os meninos contaram para seu pai que ficaram muito impressionados com aquela cidade que viram na tal da televisão: Rio de Janeiro!! E era para lá que eles queriam ir para se fazer na vida. Não haveria lugar melhor e nem mais bonito para que eles possam estudar e trabalhar, criar família e talvez até trazer seus pais para morar com eles. Ou então juntar um dinheiro 12


para comprar a fazenda do coronel e o pai virar prefeito!! Sabendo disso Raimundo foi conversar com o coronel Pedro perguntando a este se ele conhecia esta tal de Rio de Janeiro e se este lugar era realmente bom para seus meninos irem para fazer a vida. Este lhe informou que esta cidade até poucos anos era a capital do Brasil, que era muito bonita, tinha mar e praias maravilhosas e com certeza muita coisa para que eles possam trabalhar, ganhar dinheiro, estudar de noite, como muitos faziam naquela cidade, e até achar uma moça bonita para se casar e constituir uma família. Com certeza sempre haveria de ter alguma pessoa de boa alma que lhes ajudasse ali. E ele até passou um nome e endereço e uma carta de apresentação feita em papel bonito e timbrada com a assinatura do coronel Pedro Siqueira para seu Raimundo. Era para um correligionário do partido dele, e que poderia ajudar os meninos no Rio de Janeiro, caso precisassem. Como seu Raimundo sempre foi trabalhador e ainda era fiel a ele votando − ele e a família − sempre nele, ele se ofereceu para, na sua próxima viagem, dentro de um ou dois meses, para São Luís, levar os meninos do seu Raimundo para que eles possam pegar um ônibus lá para irem ao Rio de Janeiro. Chegando a casa então o seu Raimundo deu as boas novas para a Francisca e seus filhos. E todos festejaram, apesar de um pouco de tristeza na alma da Francisca, pois perderia, quem sabe para sempre, seus filhos que durante tempo criou com carinho e que lhe eram mais queridos que tudo nesta vida. Mas também sabia, e isto concordava com Raimundo, que eles precisariam sair deste sertão 13


sem futuro, se aventurar no mundo, mesmo que fosse às custas de uma eterna dor na alma. Ela devia isto a eles, que sempre lhe faziam tão feliz, mesmo na miséria em que eles viviam. E eram meninos bons e inteligentes, apesar de que José Raimundo às vezes nem tanto assim. Mas filhos são sempre os melhores e não seria ela que faria qualquer distinção entre eles. Não seria justo, pois ela sempre aprendeu que todos são iguais, apesar de diferentes na aparência ou na forma de agir. Que nem os cabritos e os cachorros, de cores e formas sempre um pouco diferentes, mas sempre fiéis e alegres da mesma forma. E para preparar a viagem eles tiveram então de juntar e arrumar todas suas roupas, seus sapatos, que eram sapatos, no plural, pois tinha um pé esquerdo e outro pé direito e assim, consequentemente, eram sapatos. Consertaram ainda umas duas alpercatas e passaram nelas sebo de barriga de bode para que elas ficassem com um pouco de brilho. As duas maletinhas de papelão prensado, apesar de pequenas, eram mais que suficientes para as bagagens, pois seus pertences realmente eram poucos. E o pai Raimundo então lhes entregou o dinheiro que tinha economizado, uma parte para cada um, e se sentou com eles para lhes dar conselhos de vida. Junto com Francisca passou quase uma noite inteira conversando e dando conselhos e recomendações. E passou para José Francisco, como o mais velho, a responsabilidade de cuidar de seu irmão e ainda o nome e endereço e a carta de apresentação para o amigo do coronel Pedro no Rio de Janeiro para que ele pudesse procurar e lhe pedir para orientá-lo na cidade e talvez até arrumar um trabalho e um lugar de morar. 14


A Viagem E dia 28 de fevereiro de 1971 José Francisco e José Raimundo, com 16 e 15 anos respectivamente, foram com o coronel Pedro enfrentar a longa viagem para São Luís. Era muita estrada de chão e tinham que sair bem cedinho para chegar ainda no mesmo dia em São Luís. Saíram logo que o sol despontou no horizonte e viram, com os olhos molhados, seu Raimundo e Francisca acenarem para eles e lhes desejando boa viagem e uma vida decente daí para frente. Se fosse só pelo desejo deles os dois já estariam prontos e já seriam homens feitos no mesmo instante. Mas como não só de vontade se faz a vida, eles secaram suas lágrimas na esperança. Todos quatro. Ou melhor, todos seis, pois o cachorrinho também olhou de olhos distantes e até o bode de estimação do José Raimundo, que ele tinha criado com todo o carinho do mundo, estava perseguindo o carro do coronel com os olhos até que a nuvem de poeira dele sumiu no mundo que eles não conheciam e que todos, inclusive os dois Josés, tinham vontade de conhecer, misturado com um medo danado do que poderia acontecer. A viagem durou o dia todo. O Opalão grená 1969 do coronel Pedro era valente. Enfrentou poeira e buracos sem conta e sem reclamar e chegou a São Luís tentando sacudir 15


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